Anais Enapehc 3

March 20, 2018 | Author: Vinicius Carvalho da Silva | Category: Geometry, Science, Libraries, University, Physics & Mathematics


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SumárioPrefácio.....................................................................................................03 Textos completos em ordem alfabética.....................................................06 Organização, Realização e Apoio...........................................................639 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 3 Prefácio O Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das Ciências, anteriormente intitulado “Encontro Nacional de Pesquisadores em História das Ciências” é um evento inteiramente organizado por alunos de pós- graduação e se destina, também, ao público discente de graduação ou de pós-graduação. Inicialmente realizado na UFMG, no ano de 2010, o primeiro encontro foi organizado por Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa Ávila e Paloma Porto Silva, pós-graduandos em História pela UFMG. No I ENAPEHC realizaram-se duas conferências, ministradas pelos professores Olival Freire Jr. da UFBA e Ivan da Costa Marques da UFRJ. Também foram realizadas duas mesas redondas em que os professores Ricardo Fenati da FAJE, Mauro Lúcio Leitão Condé da UFMG, Eduardo Viana Vargas também da UFMG, Carlos Alvarez Maia da UERJ, José Carlos Reis da UFMG e Luiz Carlos Soares da UFF debateram temas concernentes à História, à Filosofia e à Sociologia das ciências. A primeira edição do encontro contou com 5 Simpósios Temáticos e 59 trabalhos apresentados por estudantes e pesquisadores das mais variadas instituições de ensino e pesquisa do Brasil. Durante o evento de 2010 a demanda pela realização de uma segunda edição tornou-se evidente. Assim, no ano seguinte (2011) realizou-se, em Salvador, nas dependências da UFBA, o II Enapehc. À comissão organizadora inicial, foram acrescidos os nomes e esforços dos pós-graduandos Fábio Freitas, Frederik Moreira dos Santos, Gustavo Rodrigues Rocha, Nilton de Almeida Araújo e Thiago Hartz. Na segunda edição do evento realizou-se uma conferência de abertura (ministrada pela professora Ana Carolina Vimieiro Gomes da UFMG), uma mesa redonda de encerramento (composta pelos debatedores Carlos Ziller Camenietzki da UFRJ, Flávio Coelho Edler da Fiocruz e Maria Margaret Lopes do MAST) e dois cursos avançados ministrados pelos professores Amílcar Baiardi (UFRB/UFBA) e João Carlos Salles (UFBA). Nessa ocasião, recebemos 39 propostas de comunicação oral de pesquisas concluídas ou em andamento de docentes e discentes de diversas regiões brasileiras. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 4 Em 2012, após a realização do 13º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, realizado pela Sociedade Brasileira de História da Ciência – SBHC nas dependências da USP em São Paulo, a comissão organizadora optou pela alteração no nome do evento, mantendo, contudo, a abreviação ENAPEHC. Assim, o Encontro Nacional de Pesquisadores em História das Ciências passou a chamar-se Encontro Nacional de Pós- Graduandos em História das Ciências, muito embora a motivação e o objetivo do evento tenham se mantido os mesmos. Com intuito de dar continuidade aos debates promovidos pelas duas primeiras edições do evento, o III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 3 teve sua proposta de realização gentilmente aceita pela professora Helena Miranda Mollo (UFOP) e, então, foi acolhido pela Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. A terceira edição do evento realizou-se entre os dias 16 e 18 de outubro de 2013, no Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), campus de Mariana – MG. Além da comissão inicial formada por pós-graduandos da UFMG, somaram-se os nomes de Felipe Daniel do Lago Godoi e Lucas de Melo Andrade, pós-graduandos em História pela UFOP. Ressaltamos que sem a confiança em nós depositada pela professora Helena Miranda Mollo, sem a ajuda dos graduandos da UFOP que atuaram como monitores no evento e, sobretudo, sem a preciosa colaboração dos colegas Felipe Godoi e Lucas Andrade, o Enapehc 3 não teria se realizado dentro do prazo previsto. Durante o Enapehc 3 realizaram-se duas mesas redondas e uma conferência de abertura. A conferência intitulada “Para uma historiografia da ciência: agente, processos e artefatos” foi ministrada pela professora Moema de Rezende Vergara do MAST. A primeira mesa redonda, intitulada “História da ciência no Brasil, século XVIII e XIX” contou com a participação dos professores Helena Miranda Mollo (UFOP), Karen Macknow Lisboa (USP) e Ronald J. Raminelli (UFF). A segunda mesa redonda, intitulada “História e Filosofia das Ciências”, contou com a participação dos professores Marlon J. Salomon (UFG), Mauro Condé (UFMG) e Patrícia M. Kauark Leite (UFMG). Além da importante participação dos professores convidados, é com grande orgulho que informamos o recebimento de 18 variadas propostas de Simpósios Temáticos e 126 resumos para comunicação em Simpósio Temático oriundos das cinco regiões brasileiras; um aumento expressivo que demonstra o renovado interesse dos discentes e pesquisadores da área pela manutenção dos debates promovidos pela Enapehc desde 2010. Os textos aqui publicados são resultados de pesquisas concluídas ou em andamento que foram apresentados e discutidos ao longo dos três dias de evento em Mariana – MG. Esses textos de estudantes das mais variadas temáticas representam, em grande medida, o futuro dos debates na área da História, Filosofia e Sociologia das ciências. Sendo Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 5 assim, gostaríamos agradecer a todos os participantes do Enapehc 3 que ajudaram a fazer do encontro um momento de troca de conhecimentos e de valioso aprendizado, experiências de grande proveito para todos os estudantes que se encontram em processo de formação. Gostaríamos, ainda, de agradecer ao Programa de Pós-Graduação em História da UFOP, pela realização do evento. Ao Scientia - Grupo de Teoria e História da Ciência da UFMG, ao Programa de Pós-Graduação em História da UFMG e ao NEHM - Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade da UFOP, pelo apoio. Em especial, gostaríamos de agradecer aos professores: Helena Miranda Mollo (coordenadora do NEHM), Mauro L. L. Condé (UFMG), Carlos Alvarez Maia (UERJ), Marco Antônio Silveira (coordenador do PPG-His da UFOP), Kátia Gerab Baggio (coordenadora do PPG-His da UFMG), Bernardo Jefferson de Oliveira e Betânia Figueiredo Gonçalves (coordenadores do Scientia) que nos ajudaram, de diferentes modos, na organização do evento. Também agradecemos imensamente pela valiosa contribuição dos professores convidados: Moema de Rezende Vergara, Karen Macknow Lisboa, Ronald J. Raminelli, Marlon J. Salomon e Patrícia M. Kauark Leite. Não poderíamos esquecer o apoio dado pela Sociedade Brasileira de História da Ciência, a SBHC, nessa empreitada que se iniciou há 3 anos atrás. Agradecemos Rodrigo Machado da Silva pela normalização dos textos desta edição. Por fim, gostaríamos de agradecer a Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e a Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, que promoveram e possibilitaram a realização do Enapehc 3. Felipe Daniel do Lago Godoi Mestrando em História da UFOP Francismary Alves da Silva Professora da Universidade Federal de Rondônia e doutoranda em História da UFMG Gabriel da Costa Ávila Doutorando em História da UFMG Lucas de Melo Andrade Mestrando em História da UFOP Paloma Porto Silva Doutoranda em História da UFMG Comissão Organizadora do Enapehc 3 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 6 TEXTOS COMPLETOS EM ORDEM ALFABÉTICA........................................................ AS QUATRO DIMENSÕES DE ACHILLE BASSI Aline Leme da Silva UFABC- Universidade Federal do ABC Mestranda em Ensino, História e Filosofia das Ciências e Matemática Agência Financiadora: CAPES [email protected] Plínio Zornoff Táboas UFABC- Universidade Federal do ABC Doutor em Educação Matemática [email protected] Resumo: O trabalho apresentado é um excerto de uma pesquisa mais ampla em História da Matemática no Brasil, cujo objetivo é analisar as dimensões de Achille Bassi como “professor”, “pesquisador”, “divulgador” e “gestor da Matemática”. Achille Bassi, matemático italiano, formado na Universidade de Pisa e Professor Catedrático na Universidade de Bolonha, chegou ao Brasil em 1939 a convite do governo brasileiro para lecionar na Universidade do Brasil; posteriormente, passou por outras instituições de ensino como Universidade de Minas Gerais e Universidade de São Paulo (USP). Retratamos uma mostra da vida e obra de Achille Bassi ao longo de sua trajetória nessas instituições, com a finalidade de que sua produção possa ser divulgada junto à comunidade científica brasileira. Será dada ênfase nos anos de 1953 a 1973, período em que Bassi foi diretor do Departamento de Matemática da USP em São Carlos e, consequentemente, de maior relevância em sua vida acadêmica. Palavras chave: Achille Bassi; História da Matemática; ICMC-SC USP. Abstract: The work presented is an excerpt from a larger study on the History of Mathematics in Brazil, aiming to examine the dimensions of Achille Bassi as "teacher", "researcher", "publisher" and "manager of mathematics." Achille Bassi, Italian mathematician, educated at the University of Pisa, and Professor at the University of Bologna, arrived in Brazil in 1939 at the invitation of the Brazilian government to teach at the University of Brazil; subsequently passed by other educational institutions like University of Minas Gerais and University of São Paulo (USP). Picture a shows the life and work of Achille Bassi along its trajectory in these institutions, in order that its production may be disclosed by the Brazilian scientific community. The emphasis will be in the years 1953-1973, during which Bassi was director of the Department of Mathematics at USP in São Carlos and hence of greater relevance in their academic life. Keywords: Achille Bassi; History of Mathematics; ICMC-SC USP. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 7 Introdução O trabalho aqui apresentado faz parte de um projeto maior em História da Matemática que tem por objetivo analisar o personagem Achille Bassi sob quatro dimensões ou papéis sociais, como “professor”, “pesquisador”, “divulgador” e “gestor da Matemática”. A ideia inicial para realização deste projeto surgiu com a leitura do livro Uma História Concisa da Matemática no Brasil de Ubiratan D’Ambrósio (2008), em que o autor sugere algumas possibilidades de pesquisa em História da Matemática no Brasil. Entre algumas das sugestões do autor, a que me chamou a atenção foi a atuação de Achille Bassi no cenário brasileiro e que ainda não havia sido estudada de maneira sistemática. Para que os objetivos da pesquisa sejam alcançados, utilizaremos uma abordagem de História Vertical, em que o pesquisador de História da Ciência parte de uma perspectiva interdisciplinar, “em que a ciência em foco é meramente encarada como um dos elementos na vida cultural e social do período em causa” (KRAGH, 2001, p. 91). Ou seja, um elemento não pode ser dissociado dos demais elementos. No caso específico de Achille Bassi, não podemos desmembrar o professor, do pesquisador, do divulgador e do gestor da Matemática. Por este motivo, ao tentarmos falar separadamente de cada um dos papéis sociais do professor Bassi na tentativa de tornar o texto mais didático, vemos que esses papéis se entrelaçam a todo o momento e dão origem ao personagem aqui estudado. A reconstrução desse personagem e sua contribuição à Matemática no Brasil devem ser encaradas como o ponto de vista do autor, que não deve emitir julgamentos ou juízos de valor, pois em História não existe ponto de vista correto, mas sim, uma interpretação provisória. Lembrando sempre que o personagem estudado não era um indivíduo isolado, mas que agiu em um contexto do passado, estimulado por uma sociedade e, portanto, também deve-se estudar o meio histórico e social em que Bassi estava inserido (CARR, 1996). Ao analisarmos as contribuições do personagem estudado, acabamos construindo uma biografia incompleta do mesmo, já que, segundo Carr (1996) deve-se estudar o historiador antes de começar estudar os fatos. Então, antes de estudar a contribuição de Achille Bassi, devemos estudar quem foi esse personagem, pois a partir do estudo desse passado é que tentaremos compreender o presente. Desta forma, “a função do historiador não é amar o Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 8 passado ou emancipar-se do passado, mas dominá-lo e entendê-lo como a chave para a compreensão do presente” (CARR, 1996). Achille Bassi como professor Bassi nascido em 09/08/1907 se formou em Matemática pela Escola Normal Superior de Pisa em 1929 e sua tese recebeu o prêmio “Eugênio Bertini” que era concedida pela Universidade ao aluno que desenvolvesse a melhor dissertação de Matemática do ano (BASSI, 1961, p. 4). No ano seguinte, após concluir um curso de extensão na própria Universidade de Pisa, Bassi foi nomeado assistente do Professor Francesco Severi, professor catedrático da Universidade de Roma, para os cursos de Análise Algébrica e Infinitesimal. Além de também ser nomeado assistente da cadeira de Geometria Analítica e Projetiva e Descritiva da Universidade de Turim, por meio de concurso público no ano de 1933 (BASSI, 1961, p. 3 - 4). Ainda na Itália, Bassi foi nomeado professor interino para o ensino de Geometria Descritiva e Complementos de Geometria Projetiva pela Universidade de Bologna em 1937 e para a cadeira de Geometria Superior em 1938. (BASSI, 1961, p. 5). Após aceitar o convite do governo brasileiro em 1939 para lecionar na FNFi (Faculdade Nacional de Filosofia), integrante da Universidade do Brasil, Bassi passou a reger a cadeira de Geometria nessa instituição (SILVA, 2006, p. 6). No ano seguinte, Bassi afirma ter introduzido a noção de Topologia Combinatória, até então desconhecida no Brasil, na qual Bassi dedicou o curso de Geometria Superior (BASSI, 1961, p. 6). No ano de 1941, Bassi era responsável em ministrar a disciplina de Geometria Superior e Complementos de Geometria Projetiva na FNFi para alunos dos cursos de Matemática e Física, totalizando uma carga horária de 6 horas semanais (SILVA, 2002, p. 110). Ainda na FNFi, Bassi organizou um curso de extensão bienal em que um de seus alunos foi Leopoldo Nachbin, considerado um dos mais importantes matemáticos brasileiros e membro fundador da CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas) e do IMPA (Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada). Nachbin, inclusive, elaborou um trabalho sob orientação de Achille Bassi (BASSI, 1961, p. 6). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 9 Além de toda essa atividade no Rio de Janeiro, em 1943 Bassi foi convidado a lecionar um curso de Topologia na FFCL (Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras) da USP (Universidade de São Paulo) (BASSI, 1961, p. 7). Segundo Silva (2002), com a saída de Giacomo Albanese da FFCL, Bassi também passou a ir lecionar em seu lugar a disciplina de Geometria Superior na USP (SILVA, 2002, p. 117). Já em 1947, o professor Bassi aceitou o convite para atuar na Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais, onde permaneceu até 1952, porém, não encontramos registros de sua atividade como docente nessa instituição. Enquanto permaneceu nessa Universidade, sua principal preocupação foi em relação à construção de uma biblioteca e a nomeação de assistentes, o que não ocorreu (BASSI, 1961, p. 8 - 9). Entretanto, essa atitude mostra a preocupação que esse personagem tinha com a pesquisa, seu objetivo era fazer uma verdadeira escola científica no Brasil, orientada para a investigação. Em 1953, Achille Bassi transferiu-se para a Escola de Engenharia de São Carlos com o objetivo de organizar o Departamento de Matemática e assumiu a cadeira de Geometria. Em São Carlos, além de lecionar as disciplinas da cadeira de Geometria, também organizou um curso de Doutoramento e orientou seu assistente, o Professor Gilberto Francisco Loibel (BASSI, 1961, p. 10). A tese de Loibel para obtenção do título de doutor intitulou-se Sobre Quase-Grupos Topológicos e Espaços com Multiplicação e foi publicada em 1959. Para que Bassi foi orientador de doutorado do Professor Loibel, ele teve que ser convencido: Houve, em um tempo, alguma dificuldade em convencer o professor Bassi a me orientar. Ele achava que era cedo ainda. Realmente, talvez para padrões atuais fosse mesmo cedo, porque eu estava começando a pós graduação. Naquela época não existia mestrado, então eu propunha ao Professor Bassi: - Muito bem, deixe que eu arrumo um orientador em São Paulo. - Não, eu vou orientá-lo. - Então, vamos tocar a orientação para a frente (LOIBEL, 2000). Silva (2006) destaca a importância de Loibel no cenário brasileiro: Desde sua chegada à EESC da USP até sua aposentadoria Gilberto Francisco Loibel foi um dos principais impulsionadores do excelente ambiente de estudos e pesquisa em matemática da região do Estado de São Paulo que compreende São Carlos, Rio Claro e Campinas. Ele foi um dos matemáticos brasileiros que muito contribuiu para a fase de consolidação da pesquisa em nosso país (SILVA, 2006, p. 80). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 10 Ainda tratando do personagem Achille Bassi como professor, devemos citar o trecho ressaltado por Nelo Alan, ex-aluno de Bassi em 1950 na disciplina de Geometria Projetiva, em que Nelo afirma que muitos alunos não gostavam de Bassi por causa da língua italiana (FÁVERO, 1992 apud SILVA, 2002). Nelo Alan, sendo aluno de Bassi pela FNFi em 1950 também nos mostra que Bassi, nesse período, lecionava tanto na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, como também na Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte e que, portanto, devia fazer longas viagens de um estado ao outro semanalmente ou, até mesmo, diariamente. Em São Carlos, foi seu aluno do curso de Engenharia o professor de matemática da Educação Básica Celso Zoega Táboas, radicado em Leme, interior do estado de São Paulo. O prof. Celso Táboas contava a seus colegas – e é testemunha disso o seu filho Plínio Zornoff Táboas, coautor desse trabalho – que o prof. Achille Bassi dava aulas na Escola de Engenharia de São Carlos, em 1954, em italiano; num certo dia, entrou na sala de aula e começou a falar um português correto e fluente para surpresa de seus alunos. Indagado sobre o porquê não tinha feito isto antes, revelou que temia não conseguir expressar-se corretamente em português e, em consequência, não conseguir conceituar corretamente os elementos da matemática para os seus alunos. Segundo documento anexo ao processo de contagem de tempo de serviço do Professor Bassi, os trabalhos desenvolvidos por ele e que foram considerados como didáticos são: O significado da Escola de Engenharia de São Carlos de 1953, Elementos de Geometria Projetiva de 1954, Elementos de Geometria Projetiva (edição ampliada) de 1966, Noções críticas elementares de topologia geral de 1955, Considerações introdutórias sobre os sistemas lógico-dedutivos de 1956, Problemas educacionais brasileiros de 1963, Discurso por ocasião da cátedra de Geometria de 1963, Galileu Galilei. Conferências Comemorativas de 1965 (Processo USP, lista n°3). A obra Geometria Projetiva, de 1967, representa o curso homônimo que Bassi ministrou na Escola de Engenharia de São Carlos para os alunos da Engenharia Civil e, segundo o autor, é uma versão melhorada de cursos que ministrou anteriormente na Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais, durante sua permanência nessa instituição. Esse livro foi utilizado por vários anos por professores que ministravam a disciplina de Geometria Projetiva na USP de São Carlos. O livro Considerações introdutórias sobre os sistemas lógico-dedutivos publicado em 1972 é uma apresentação das noções fundamentais sobre os sistemas lógico-dedutivos Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 11 destinada a professores do Ensino Secundário e por esse motivo “foram reduzidas ao mínimo possível notações e locuções técnicas, que não fazem parte da bagagem cultural usual do Professor de Ensino Secundário, e mais próprias dos especialistas” (BASSI, 1972). Essa obra foi revista pelo professor Edison Farah, personagem de destaque e que influenciou as pesquisas em lógica no Brasil no final dos anos 50 (MORAES, 2008, p. 57). No livro Problemas Educacionais Brasileiros de 1963, Bassi publicou alguns artigos que discorriam sobre a situação do ensino primário da época e sobre as possíveis providências a serem adotadas para a eliminação do analfabetismo. Esses artigos foram publicados no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro nos dias 1, 4, 6 e 7 de fevereiro de 1962 (BASSI, 1963). Em 1965, o professor Bassi começou a se dedicar aos estudos de História da Matemática, centralizando seus estudos na vida e obra de Galileu Galilei o que gerou a publicação de duas obras: Galileu Galilei: Análise do homem e de sua obra no IV centenário do seu nascimento publicado em 1965 e Significação da obra de Galileu Galilei de 1966. A primeira das obras foi um pedido da Diretoria da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, em comemoração ao IV centenário do nascimento de Galileu Galilei. O livro de 1965, lançado em Belo Horizonte, foi dividido em duas partes: a primeira parte, que segundo o autor constituiu a Aula Inaugural dos Cursos da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais proferida em 9 (nove) de março daquele ano, trata da vida e das obras de Galilei; e a segunda parte, que trata da importância e influência da obra de Galileu, constituiu resumidamente uma conferência realizada em Belo Horizonte no dia seguinte. Já o segundo livro, intitulado Significação da Obra de Galileu Galilei, foi lançado pelo Instituto Italiano de Cultura em 1966, no Rio de Janeiro. Pode-se observar que as duas obras na verdade são as mesmas com uma única diferença: na primeira obra há uma nota no rodapé do prefácio explicando que o livro é um produto da aula inaugural e da conferência realizada pelo autor, citadas anteriormente. Pode-se observar que as datas das publicações das obras contidas na listagem da USP não coincidem com as datas das publicações das obras aqui mencionadas, o que nos leva a concluir que ocorreram outras edições da mesma obra, porém, a numeração da edição não consta nos livros consultados. Achille Bassi como pesquisador Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 12 Ainda na Itália, Bassi produziu e publicou alguns artigos e obras listadas no documento de contagem de tempo de serviço para sua aposentadoria, tais como: 1. Sulla Riemanniana dell’ Sn proiettivo publicado pela revista Rendiconti del Circolo Matematico di Palermo em 1932. 2. Un problema topologico di esistenza publicado pela Reale Accademia d’Italia como Memorie della classe di Scienze Fisiche, Matematiche e Naturali em 1935. 3. Su di una notevole operazione topologica tra complessi publicado pelo Giornale di Matematiche di Battaglini em 1935. 4. Su alcuni modelli topologici del Poincaré publicado pela Reale Accademia d’Italia como Memorie della classe di Scienze Fisiche, Matematiche e Naturali em 1935. 5. Su di una formola topologica del Vietoris publicado pelo Reale Istituto Lombardo di Scienze e Lettere em 1935. 6. Alcune osservazioni su di un'affermazione del Dehn circa la decomponibilità in celle delle varietà topologiche ad n dimensioni publicado pelo Bolletino dell’Unione Matematica Italiana em 1935. 7. Su di alcune formole di geometria delle varietà algebriche publicado pela revista Renticonti del Circolo Matematico de Palermo em 1936. 8. Su alcuni nuovi invarianti delle varietá topologiche publicado pelos Annali di Matematica Pura ed Applicata em 1937. 9. Recenti ricerche nel campo della topologia delle varietà publicado pela Società Italiana per il Progresso delle Scienze em 1938. Além destes, ao realizar pesquisas na internet, encontramos mais trabalhos publicados por Bassi e que não se encontram na listagem da USP. São eles: Esercizi e problemi di algebra complementare, ad uso dei secondo biennio degli istituti tecnici. Vol I (per la 3e classe), parte I e II, Del teorema di Stewart relativo ai triangoli sferici e sue consequenze, Risoluzione dei trianguli piani; norme ed esempi, Appunti di geometria metrica: tetraedro a faccie uguali; tetraedro ortocentrico, Equazioni e sistemi irrazionali reducibili ai primi due gradi, Sui raggi dei cerchi ex-inscritti ad un quadrangolo inscrivibile, 51ª quistione a concorso, Teoria della rotazione per la risoluzione dei problemi di costruzione geometrica, Di alcune notevoli relazioni metriche fra gli elementi di un quadrangolo, e Sezioni circolari del cilindro e del cono obliqui; assi del cono. Esta lista de obras publicadas por Bassi pode ser Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 13 verificada no sistema Jahrbuch Database - Electronic Research Archive for Mathematics através de pesquisa. Já no Brasil, Bassi publicou em ambos os países, mas a maioria de seus trabalhos ainda estavam em língua italiana. Segundo o documento da USP, foram publicadas as seguintes obras antes de se tornar docente do Departamento de Matemática da Escola de Engenharia de São Carlos: 10. Sopra l’indipendenza di alcuni invarianti topologici publicado pela revista Rendiconti delle Academia Nazionale dei Lincei em 1948. 11. Sopra l’esistenza di una varietà topologica con numeri del Betti essegnati publicado pelos Anais da Academia Brasileira de Ciências em 1949. 12. Sul concetto di complesso e di equivalenza combinatoria publicado pela Annali di Matematica Pura ed Applicata em 1949. 13. Dualità nelle varietà con contorno e varietà contorno completo di altre publicado como nota prévia pela Revista Científica em 1951. 14. Sistemas matemáticos com axiomática fraca publicado como nota prévia no Anuário da Escola de Minas e Metalurgia de Ouro Preto em 1951. Em São Carlos, segundo o documento, seus trabalhos de pesquisa realizados e publicados foram: 15. Dos movimentos a Poinsot de um corpo rígido em tôrno de um ponto fixo (Tese) de 1959. 16. A dualidade nas álgebras de Boole topológicas e suas consequências (Tese) de 1961. 17. Proprietà di monotonia nelle algebre del Boole. 18. Sui polinomi in um algebra del Boole com topologia publicado pela Revista Rendiconti da Accademia Nazionale dei Lincei em 1967. 19. Polinomi e dualità in un’algebra del Boole com topologia publicado como nota prévia pela revista Rendiconi di Matematica. 20. Polinomi e dualità in un’algebra del Boole com topologia como memória aceita para publicação nos Annali di Matematica Pura ed Applicata. Por fim, classificados como “outros trabalhos” de Bassi no documento da USP, ainda temos: 21. L'Università e la Scuola di Matematica di Princeton em 1938 publicado pela Conferenza di Fisica e Matematica em 1938. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 14 22. Da importância da topologia na Matemática Moderna publicado pelo Instituto Iátalo- brasileiro de alta cultura em 1941. 23. A Matemática Moderna e a Necessidade de sua Difusão de 1948 publicado pela Kriterion em 1948. 24. Elementos de Geometria Projetiva (Mimeografia). Belo Horizonte: 1951. 25. Elementos de Geometria Projetiva das curvas algébricas (Mimeografia): Belo Horizonte: 1951. 26. Determinismo mecânico e livre arbítrio resultado da Aula inaugural dos cursos da Escola de Minas e Metalurgia de Ouro Preto de 1952. O livro intitulado Da importância da topologia na matemática moderna publicado em 1941 tratou-se de uma conferência realizada por Achille Bassi na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil como instruções prévias ao curso de Geometria Superior (BASSI, 1941, p. 7). No texto, Bassi cita os personagens que contribuíram “eficazmente para o progresso da topologia” como Betti, Poincaré, Cantor, Peano, Brower, Fréchet, entre outros (BASSI, 1941, p. 8). Também relembra sua viagem aos Estados Unidos ocorrida em 1935, dizendo que o objetivo da mesma foi “conhecer os últimos passos da topologia” (BASSI, 1941, p. 11). Além de destacar a seu ver, a importância a topologia: Assim, eu creio que, para todo o jovem que queira apoderar-se dos conhecimentos vivos da matemática moderna, seja de suma importância familiarizar-se, em primeiro logar, com a topologia. Conhecida esta, então, muitas outras teorias parecerão quase familiares, mesmo antes de iniciar o seu estudo, porque se apresentarão numa transparente perspectiva que deixará compreender os seus segredos e, portanto, nas condições mais favoráveis para serem possuídas com facilidade. Penso que não exagero dizendo que a aquisição de muitas outras teorias modernas fará, então, o efeito de uma fácil descida e não o de uma penosa ascensão (BASSI, 1947, p. 11-12). O texto A Matemática Moderna e a Necessidade de sua Difusão de 1948 foi o resultado de uma aula inaugural proferida por Bassi aos estudantes da Universidade de Minas Gerais, ocorrida no dia 3 (três) de março de 1945. No texto, Bassi afirmou que não faria somente uma resenha com o objetivo de divulgar “os novos resultados e aspectos do pensamento científico [...], que me proporciona um desejado ensejo para combater alguns preconceitos, referentes a minha ciência”, mas que também lançaria “uma palavra de encorajamento às pessoas que pleiteiam participe o Brasil, em proporção maior do que no passado, do trabalho internacional de pesquisa” (BASSI, 1948, p. 1). Esse trecho mostra, mais Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 15 uma vez, a importância dada por Achille Bassi à pesquisa, pois “para ele, o ensino estava estreitamente ligado à pesquisa e era o aspecto mais importante a ser considerado” (SILVA, 2002, p. 117). Além dos já mencionados, entre os anos de 1935 e 1936, Achille Bassi esteve na Universidade de Princeton como professor visitante e, posteriormente, como membro do Instituto de Estudos Avançados (BASSI, 1961, p. 5). Enquanto esteve em Princeton, Bassi também escreveu um artigo intitulado On some new invariants of a manifold que foi publicado pelo próprio Instituto de Princeton em 1936. Segundo o memorial escrito por Bassi, referente à sua formação intelectual, à vida e à atividade profissional ou científica, anexado ao seu processo de contagem de tempo de serviço, o período em que permaneceu no Rio de Janeiro está datado de 1939 a 1947, entretanto, encontramos um Diário Oficial do dia 5 de janeiro de 1952, em que se aprovou a contratação de Achille Bassi pela FNFi como professor da disciplina de Topologia da Cadeira de Matemática e Análise Superior. Essa aprovação de contrato encontrada no diário oficial corrobora com a informação, mencionada anteriormente, de que Bassi atuava em Universidades localizadas tanto no Rio de Janeiro (FNFi), como também em Belo Horizonte (UFMG). Analisando o período de 1939 a 1947 – intervalo em que o personagem estudado classificou como “o passado no Rio de Janeiro” - Bassi pouco produziu como pesquisador. Este fato pode ser verificado por meio da observação das datas de publicações de seus textos. Podemos, então, conjecturar alguns motivos para justificar essa baixa produção científica. Primeiramente, logo após sua chegada para atuar na FNFi, Bassi recebeu a notícia de que sua cadeira de Geometria tinha sido suprimida pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) e, portanto, não poderia propor a nomeação de assistentes. Além desta, outra dificuldade enfrentada por Bassi, que o impediu de fazer “uma verdadeira escola científica (viveiro por assim dizer, de novos cientistas)” no Rio de Janeiro, foi a falta de uma “biblioteca matemática, por modesta que fosse, orientada para a investigação” (BASSI, 1961, p. 7). Problemas enfrentados durante a guerra também podem ter interferido na sua produção intelectual? Desde que chegou ao Brasil, Bassi tentou implementar uma biblioteca, o fez no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, entretanto, seus projetos fracassaram (BASSI, 1961, p.7-9). De forma a sanar esse problema, em São Carlos, Bassi não somente conseguiu verba para a criação e manutenção de uma biblioteca, como também orientou alguns projetos de pesquisa, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 16 embora esses projetos fossem interrompidos por um período devido a necessidade de revalidação de seus títulos (BASSI, 1961, p. 10). Ainda sobre a implementação de uma biblioteca orientada à investigação em São Carlos, “na época, havia no Brasil uma só biblioteca matemática com estas características, situada na cidade de São Paulo”. Entretanto, em apenas 3 (três) anos conseguiu-se montar “uma biblioteca boa, também em sentido internacional, que permitisse um sério trabalho de investigação científica”, graças aos esforços tanto de Bassi como também do governo estadual (Processo USP, p. 1). Segundo Loibel (2000), Bassi era defensor da ideia de que o Departamento de Matemática da EESC “necessitaria de verba equivalente ao salário de um professor catedrático em tempo integral para a manutenção dessa biblioteca, para as aquisições”, entretanto, essa ideia nem sempre foi bem sucedida (LOIBEL, 2000). Além disso: Ele lutava pela biblioteca, ia atrás de livros, comprava livros em sebo, tinha amigos livreiros. Era italiano, então tinha conhecidos na Itália [...]. Ele comprava coisas que ninguém pensava em comprar. A biblioteca tem uma coleção de obras clássicas, que são muito valiosas, são coisas importantes, tem obras de 1700 e pouco, livros de Bernoulli. Tem livros raríssimos e coleções de revistas muito boas (TÁBOAS, 2000). Desde 1947, Achille Bassi tinha preconizado uma nova Teoria – A Teoria dos Grupos Topológicos – que foi por seu conselho, desenvolvida por seu assistente Loibel para obtenção do título de doutor apresentada à Escola de Engenharia de São Carlos em 1959. Podemos verificar essa informação no prefácio da tese A Dualidade de Boole Topológicas e suas Consequências, de Achille Bassi, publicada em 1961, que foi sua Tese de concurso à cadeira de Geometria da Escola de Engenharia de São Carlos. “Sua tese de cátedra representa uma mudança na orientação dos seus estudos de investigação, que até então foram principalmente dedicados à Topologia Algébrica” (AROUCA, 1973, p. 4). A partir de 1960 Bassi se dedicou aos estudos de Álgebra Moderna e, consequentemente, elaborou duas teorias: “Teoria da Dualidade Geral da Matemática”, tratada em sua tese de cátedra e, “Teoria dos Polinômios Topológicos” que foi elaborada durante um estágio realizado por Bassi no IMPA (AROUCA, 1973, p. 4). Segundo o prontuário de Bassi, a concessão expedida pelo Reitor da USP para que pudesse desenvolver suas pesquisas junto IMPA, foi publicada no dia 12 de julho de 1963, sendo concedido o prazo de afastamento de um ano e meio, sem prejuízos de vencimentos. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 17 Além desta, também está listada em seu prontuário outra concessão de afastamento para realizar trabalhos de investigação junto ao IMPA, publicado em 5 de maio de 1971 e concedendo um afastamento de um ano. Ao retornar do IMPA, Bassi fez uma breve exposição de suas pesquisas realizadas e destacou a importância da teoria por ele desenvolvida, dizendo: No mês passado alcancei, com o auxílio desta teoria, a rigorosa demonstração de um teorema sôbre os Operadores Topológicos, que permite resolver completamente um importante problema das Álgebras de Boole, proposto há 25 anos e, até agora, não resolvido. (A determinação de todos os Operadores Topológicos que, como aquêle clássico, do Fecho, sejam capazes de introduzir uma Álgebra de Boole geral, ou seja, não completa, uma Topologia) (BASSI, 1964, p. 2). No documento que trata das Realizações do Departamento de Matemática da Escola de Engenharia de São Carlos desde sua fundação até 31/12/1966, encontramos a seguinte citação que trata da atividade de investigação do Departamento de Matemática do qual Achille Bassi era o diretor: Atualmente, a atividade de investigação do Departamento vai centralizando- se em três direções distintas. Uma na Álgebra Moderna, consistindo no estudo de sistemas matemáticos novos (Álgebras de Boole e Reticulados com Operadores) e das funções nêles existentes. Estudo de notável interêsse para a Matemática, a Lógica Moderna e, talvez, em vista da opinião de alguns, também para a Eletrônica. Direção desenvolvida nestes últimos anos pelo Prof. Bassi. Uma outra direção é na Topologia Algébrica e Diferencial, confiada ao Prof. Loibel que, iniciado na investigação pelo Prof. Bassi, está agora por sua vez endereçando para a investigação alguns instrutores e bolsistas (Processo USP, p. 2 - 3). Achille Bassi como divulgador No dia 11 de setembro de 1965 foi concedido à Achille Bassi o afastamento no prazo de 75 dias para que o mesmo proferisse uma conferência no Instituto de Alta Matemática em Roma, além de viajar para os Estados Unidos com o objetivo de estabelecer contatos com os cientistas (Prontuário). Ao retornar da viagem, Bassi escreveu um relatório das atividades realizadas durante esse período. Primeiramente, participou, em Roma, do Simpósio Internacional de Geometria Algébrica que foi organizado pela Academia dos Lincei, pelo Instituto de Alta Matemática e Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 18 pela International Mathematical Union. Nesse Simpósio Bassi fez uma conferência de uma hora, onde expos suas recentes pesquisas. Terminado o Simpósio, visitou os Institutos de Matemática de algumas Universidades italianas tais como: Pisa, Bologna, Turim, Milão e Gênova, nas quais também proferiu conferências (BASSI, 1965). Na carta enviada ao Diretor da Escola de Engenharia de São Carlos (Dr. Theodoro de Arruda Souto), Bassi evidenciou o quão prazeroso foi para ele saber que na Itália foram criadas cátedras de História da Ciência em várias Universidades. Em suas palavras: Vejo isto com muito prazer, porque é meu convencimento ser a História das Ciências não mera erudição, mas arma indispensável para valutar de maneira mais profunda, afora das tendências de modas passageiras, também o valor dos problemas da ciência de hoje (BASSI, 1965). Antes de retornar ao Brasil, Bassi foi aos Estados Unidos onde visitou o Instituto de Matemática da Columbia University e também Princeton. Nessas visitas estabeleceu contato com alguns pesquisadores, além de reencontrar seu orientador do período em que esteve como professor visitante e membro do Institute for Advanced Study de Princeton, o Professor Solomon Lefchetz (BASSI, 1965). Na mesma carta, Bassi aproveitou para criticar o salário dos professores da Universidade de São Paulo que, segundo o que havia constatado na Itália, era cerca de metade do salário de um professor italiano (BASSI, 1965). Analisando o prontuário do professor Bassi, vemos que o mesmo realizou poucas viagens com o objetivo de divulgação científica. Além da já mencionada viagem à Itália e aos EUA, também encontramos uma concessão de afastamento de 20 (vinte) dias para que o professor participasse do I Colóquio Brasileiro de Matemática que ocorreu na cidade de Poços de Caldas - MG em 1957. Dois anos depois, em 1959, também foi concedido uma licença de 14 (catorze) dias para que pudesse participar do II Colóquio Brasileiro de Matemática que ocorreu na mesma cidade que o anterior. E, finalmente, em 1966 conferiu-se a Bassi a dispensa de 3 (três) dias para que o mesmo realizasse uma conferência na Universidade do Paraná sobre suas recentes pesquisas. O convite para realização da conferência partiu do próprio Departamento de Matemática da referida Universidade (Prontuário). Embora em seu prontuário não conste, no prefácio de algumas de suas obras publicadas encontramos a especificação de que se tratavam de conferências realizadas por Bassi em aulas inaugurais de alguns cursos de Universidades. É o caso do livro Significação da Obra de Galileu Galilei de 1966, resultado da Aula Inaugural dos Cursos da Faculdade de Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 19 Filosofia da Universidade de Minas Gerais, a obra Da importância da topologia na matemática moderna publicado em 1941 que se tratou de uma conferência realizada por Achille Bassi na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil e, por fim, A Matemática Moderna e a Necessidade de sua Difusão de 1948, resultado de uma aula inaugural proferida por Bassi aos estudantes da Universidade de Minas Gerais. Achille Bassi como gestor da Matemática O papel social desempenhado por Achille Bassi de maior relevância para consolidação de um espaço de ensino e pesquisa em Matemática no Brasil foi o de gestor do Departamento de Matemática da EESC e posterior Instituto de Matemática da USP de São Carlos. Esse papel teve início no dia 7 de março de 1953, quando Bassi assumiu pelo prazo de 3 (três) anos o cargo de Professor Catedrático correspondente à Cadeira nº12 de Geometria, formada pelas disciplinas Geometria Analítica e Elementos de Geometria Projetiva e Geometria Descritiva, com Desenhos (Prontuário). O cargo assumido por Bassi foi prorrogado por algumas vezes, até que efetivou-se por meio de concurso e, no dia 20 (vinte) de setembro de 1961 assumiu o cargo de professor catedrático de Geometria em caráter vitalício (Prontuário). No dia 4 (quatro) de fevereiro de 1972 Bassi foi designado para exercer a função de Diretor pró tempore do Instituto de Matemática de São Carlos e, no dia 11 (onze) de janeiro de 1973 assume o cargo de Diretor do Instituto de Ciências Matemáticas de São Carlos (Prontuário). Embora não encontramos no seu prontuário nenhuma anotação ou data referente a sua designação de estar a frente do Departamento de Matemática da Escola de Engenharia de São Carlos, este fato pode ver verificado por meio dos vários documentos anexados ao processo de contagem de tempo de serviço do Professor Bassi, também nos depoimentos dos professores referentes à comemoração dos 30 (trinta) anos do ICMC (Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP, além de constar no documento de Realizações do Departamento de Matemática da Escola de Engenharia de São Carlos desde sua fundação até 31/12/1966. Nesse documento afirma-se que os primeiros anos de Bassi a frente do Departamento foram dedicados a organizar a biblioteca que: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 20 Constituiu uma árdua tarefa, dificultada pela destruição, na Europa, devido à guerra, de importantes depósitos de livros e pela fortíssima competição aquisitiva dos Estados Unidos que, na mesma época, estava equipando numerosas bibliotecas novas de várias universidades (Processo Usp, p. 1). Como chefe do Departamento, Bassi também se preocupou em contratar professores estrangeiros para lecionar e realizar investigação científica. Foram, então, contratados os professores Jaurès Cecconi e Ubaldo Richard, ambos analistas que tiveram seus trabalhos de pesquisa publicados em revistas italianas. O Professor Jaurès Cecconi também foi orientador de Ubiratan D’Ambrosio em seu doutorado, cuja tese intitulou-se Superfícies generalizadas e conjuntos de perímetro finito que lhe conferiu o título de Doutor em Ciências pela Escola de Engenharia de São Carlos em 1963 (VALENTE, 2007, p. 55). Posteriormente, o Professor Cecconi se afastou do Departamento de Matemática por ter vencido concurso para uma cadeira efetiva e o Professor Richard por obter a direção de um Instituto de Cálculo, ambos na Itália (BASSI, 1961). Sob a direção de Achille Bassi, “o Departamento [de Matemática da EESC] produziu entre 1955-1960 mais de vinte trabalhos científicos, dos quais a metade aproximadamente de autoria de jovens capazes que aqui se educaram” (BASSI, 1961). Bassi também teve uma importante participação no Conselho Universitário. Sua nomeação para a função de membro representante da EESC junto ao Conselho deliberativo do Instituto de Pesquisa e Matemáticas ocorreu no dia 9 (nove) de novembro de 1960 de acordo com seu prontuário. A participação de Bassi no conselho foi de importância crucial para a criação do Instituto de Ciências Matemáticas de São Carlos no dia 28 (vinte e oito) de dezembro de 1971, constituindo-se dos Departamentos de Matemática e de Ciências de Computação e Estatística, desvinculados da EESC (ICMC). Segundo o professor Arouca: Sem descurar de suas atividades científicas, na qualidade de representante da Egrégia Congregação da Escola de Engenharia de São Carlos, desenvolveu brilhante atividade no Conselho Universitário na época da Reforma, tendo, entre outras realizações, contribuído decisivamente para a criação de mais duas unidades da USP em São Carlos: o Instituto de Ciências Matemáticas e o de Física e Química (AROUCA, 1973, p. 5-6). Considerações finais Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 21 Esse excerto com foco na historiografia brasileira da ciência teve como objetivo a divulgação junto à comunidade científica brasileira da vida e obra de Achille Bassi. Desta forma, o objeto de análise tratou-se de uma descrição principalmente de sua atuação profissional e produção científica. A partir do exposto acima, podemos verificar que o professor Bassi pode ser encarado como um personagem múltiplo, que contribuiu não somente para o desenvolvimento da Matemática como disciplina, mas também como área de pesquisa. Suas atitudes não foram lineares, assumindo os quatro papéis sociais aqui expostos de forma descontínua, com rupturas, assim como a história. Também podemos verificar que Bassi centralizou seus estudos em Matemática Pura, entretanto, no decorrer de sua trajetória também publicou livros que se referiam à Educação Básica e livros didáticos como é caso de Elementos de Geometria Projetiva de 1967. Podemos, então, concluir que este professor contribuiu para a efetivação de um espaço de pesquisa e ensino de Matemática no Brasil não somente por seus estudos na área, mas por proporcionar a ampliação desse espaço no decorrer de sua trajetória e, principalmente, durante o período que esteve na direção do Departamento de Matemática e posterior Instituto de Matemática da USP de São Carlos. Referências Bibliográficas AROUCA, M. Discurso pronunciado nos funerais do Professor Achille Bassi. São Carlos: 1973. BASSI, A. A dualidade nas álgebras de Boole topológicas e suas consequências. São Carlos: USP/Escola de Engenharia de São Carlos, 1961. [Tese de concurso à Cadeira nº12 – Geometria]. BASSI, A. A Matemática Moderna e a Necessidade de sua Difusão. Separata da Revista Brasileira de Estatística, Rio de Janeiro, n. 32, 1948. BASSI, A. Alcune osservazioni su di un’affermazione del Dehn circa la decomponibilità in celle delle varietà topologiche ad n dimensioni. 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ISBN 978-85-62707-52-0 25 HISTORIOGRAFIA SOBRE SAÚDE DOS ESCRAVOS Alisson Eugênio Universidade Federal de Alfenas Professor Adjunto 3 [email protected] Resumo: este texto apresenta um esboço historiográfico sobre a saúde dos escravos no Brasil, com o objetivo de mostrar como este tema, a saúde dos escravos, vem sendo investigado e quais os avanços conquistados, quais impasses persistem e quais possibilidades de novos estudos podem ser construídas. Palavras-chave: historiografia, escravidão, saúde. Abstract: This paper presents an outline historiography on the health of slaves in Brazil, aiming to show how this theme, the health of slaves, which has been investigated and the advances made, which persist impasses and possibilities of new studies which may be constructed. Keywords: historiography, slavery, health. Há muito tempo os historiadores estudam a história da saúde da população escrava. Nos EUA desde pelo menos o estudo de Ulrich Phillips e no Brasil desde pelo menos o estudo de Octávio Freitas (1935). Entre os norte-americanos o interesse por esse assunto cresceu consideravelmente ao longo do século XX, como indica sua copiosa produção historiográfica. 1 Entre nós, somente na última década verifica-se aumento expressivo de trabalhos sobre o mesmo assunto. Ambos países formam, junto com o Caribe, as maiores áreas concentradoras de negros submetidos ao cativeiro nas Américas. Por essa razão, muito útil será como referência um levantamento de algumas das diversas pesquisas, que contemplam direta ou indiretamente a história das condições de saúde dos seus cativos, desenvolvidas no Brasil. O avanço historiográfico norteamericano sobre esse assunto ainda está longe de ser atingido por nós. E isso talvez seja efeito do fato de o conhecimento histórico acadêmico brasileiro ter se desenvolvido muito tarde e lentamente em relação ao dos EUA. Afinal, a moderna historiografia brasileira somente foi inaugurada entre as décadas de 1930 e 1940, com a publicação e repercussão de três dos seus maiores clássicos: Casa-grande e senzala 1 Ver a bibliografia alguns dos principais autores e obras. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 26 (1933) de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do Brasil contemporâneo (1942) de Caio Prado Júnior, 2 quando a organização do ensino profissional e da pós-graduação em história estava sendo ainda iniciada. Acrescente-se a isso o fato de que entre a conclusão dessa organização e a consolidação do amadurecimento da pesquisa histórica no país, com a formação de uma geração de arquivo a partir de finais dos anos 1970 (isto é, que abandonou a tendência até então predominante de estudos interpretativos respaldos na maioria das vezes apenas em fontes primarias transcritas em revistas especializadas, como a do IGHB), decorreu tempo insuficiente para ampliação de oferta de historiadores que pudessem investir em pesquisas tão tematicamente variadas e necessitadas de uma base historiográfica ainda então em construção. Diante desse quadro, eles optaram pelo esforço de responder a questões mais básicas de nossa história nacional, para posteriormente tentar alargar o seu horizonte de estudo, o que vem ocorrendo desde o final dos anos 1980 em ritmo acelerado. Por essa razão, antes do final da década de 1970, quando os historiadores começaram a lidar mais diretamente com o tema em discussão, havia pouca coisa disponível para o seu entendimento. Um deles é o livro de do médico Octávio de Freitas, Doenças africanas no Brasil, publicado em 1935, no qual, ao descrever causas de diversas enfermidades mais comuns dos negros, defende a hipótese de que um dos principais males da escravidão foi o de trazer, junto com os escravos, uma série de patologias estranhas ao país que muito contribuiu para agravar a sua constituição nosológica, tornando-o mais insalubre. Sua hipótese, fundamentada em uma visão racial e naturalizada da doença, tem sido bastante criticada por autores responsáveis pelo surto historiográfico sobre tal tema no Brasil na última década, como Diana Maul de Carvalho, que condena tal visão por nela estar embutida a ideia de um paraíso degradado pela colonização, conforme sugere o título do primeiro capítulo de Octávio Freitas “Bons ares; maus colonos”; ideia falsa, responsável pela construção de um entendimento deturpado da história biológica e dos povoadores espontâneos e forçados da Colônia, porque ignora o fato de que a disseminação de uma enfermidade “exportada” depende de condições naturais pré-existentes do território onde ela é inserida e das formas de interação entre seu portador e o meio, conforme esclarece a referida autora. 2 Um dos decanos da intelectualidade brasileira que considera tais clássicos a tríade fundadora da moderna historiografia e sociologia em nosso país é Antônio Cândido. Tais considerações ele teceu no prefácio das edições de Raízes do Brasil elaboradas pela Cia das Letras, na de 1997 por exemplo. Consideração análoga é feita por MOTTA (2008) p. 69-72. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 27 (CARVALHO. In: PORTO 2007, p. 6). Outro estudo dedicado ao tema, mas não de forma exclusiva, é o livro de Gilberto Freyre, Os escravos nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, publicado em 1963. Esse autor buscava dados, em fontes até então pouco utilizadas para o estudo da escravidão, para conhecer o cotidiano dos escravos e algumas de suas características sociais. Com essa inovação metodológica, ele recuperou muitas informações sobre a vida dos negros submetidos ao cativeiro, entre elas, marcas ou sintomas de doenças ou ferimentos que pudessem ajudar a identificar escravos fugidos. Com esse tipo de informação, foi possível fazer um quadro dos problemas de saúde mais evidentes nos corpos dos fugitivos e, com isso, conhecer alguns indicadores das condições de vida no cativeiro. Seguindo o seu método, Márcia Amarantino elaborou uma pesquisa, nas edições de 1850 do Jornal do Comércio, para conhecer os mesmos indicadores relativos à realidade da capital do Império no auge da escravidão no Brasil. Dos 409 anúncios observados (como o seguinte: “R$ 500 se dará de gratificação a quem levar ao dar notícia ... de um preto de nome Pedro, nação rebolo, sem barba, estatura regular, com sarnas pelos braços”) ela descobriu que os problemas mais identificados nos corpos dos fugitivos anunciados são doenças infecciosas (34,96%) e traumáticas (30,58%) (AMARANTINO, 2007). Depois do estudo Gilberto Freyre, somente na segunda metade da década de 1970 que outras pesquisas começaram a surgir. Uma delas foi conduzida por Iraci del Nero da Costa dedicada à análise da morbidade em Vila Rica entre 1799 e 1801. Essa análise foi feita a partir dos assentamentos de óbitos registrados na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da antiga e populosa freguesia de Antônio Dias. Segundo seus cálculos, a mortalidade da população escrava girava em torno de 20% e era 76% maior em relação à dos livres, com destaque alarmante para a mortandade infantil (238 mortes por 1000 nascimentos, sendo 31,42% delas ocorridas no primeiro mês de vida e 37,15% ocorridas entre dois meses e um ano de vida). Em relação às doenças mais comuns, observou que as doenças do aparelho respiratório, principalmente tuberculose e pneumonia, foram as mais mortíferas, seguidas pela hidropisia e gangrenas (COSTA. In: LUNA 2009. O artigo foi publicado originalmente em 1976. Os dados acima apresentados estão, respectivamente nas páginas 243, 247 e 250). Sua pesquisa, embora baseada em um curto recorte cronológico e em apenas uma localidade de Vila Rica, traz importante contribuição dos indicadores das condições de saúde da população escrava em uma antiga área mineradora. No entanto, depois de mais de três Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 28 décadas da publicação original do seu trabalho, ainda não sabemos se os dados obtidos por ela entre 1799 e 1801 dizem respeito à apenas esse biênio e à mencionada freguesia, ou se pode ser generalizado para todo o período e espaço colonial mineiro, devido à ausência de estudos complementares para essa região. Em 1978, na coletânea organizada por Roberto Machado, foi publicado um capítulo avaliando a preocupação médica e governamental sobre a saúde da população escrava, usando como estratégia de abordagem o levantamento de textos dedicados ao assunto. Como seus autores encontraram pouquíssimos, concluíram que esse tema não era relevante nas reflexões médicas da época em que vigorou a escravidão (MACHADO, 1978, p. 370). Tal capítulo teve o mérito de iniciar uma discussão relevante sobre a história intelectual da medicina dedicada ao cativeiro e de divulgar fontes médicas muito ricas sobre a história da saúde dos cativos, que acabaram sendo usadas para os mais diversos fins na historiografia especializada no campo de estudos em pauta. E essa sua conclusão manteve-se quase inquestionada enquanto novas pesquisas não foram desenvolvidas, ou seja, por longo tempo. Porém, no recente impulso aos estudos sobre a saúde dos escravos, promovido pelos pesquisadores identificados com os objetos de pesquisa do campo historiográfico conhecido como história da saúde, da doença e da medicina, há pouco tempo consolidado no Brasil, surgiu o trabalho de Silvio Cezar de Souza Lima: O corpo escravo como objeto das práticas médicas no Rio de Janeiro (1830-1850). Trata-se de uma tese defendida em 2011, no programa de pós-graduação em história das ciências e da saúde da Fundação Oswaldo Cruz, que mostrou que, apesar de haver pouca publicação médica dedicada diretamente à saúde da população cativa, esse tema não pode ser considerado secundário nas reflexões médicas, pois em muitas edições de periódicos e teses de medicina há incontáveis exemplos de análise médica sobre moléstias dos cativos. Mais do que refutar o mencionado trabalho inserido na coletânea de Roberto Machado, o autor revela o quanto, involuntariamente, o corpo escravo foi fundamental para a construção do saber médico brasileiro, ao ser investigado nas suas instituições imperiais de ensino e pesquisa (LIMA, 2011. A crítica do autor ao estudo de MACHADO (1978) encontra-se na p. 2 e uma síntese de seu principal argumento está entre as páginas 148-149 e 190 -192). Em 1979 Douglas Cole Libby defendeu a sua dissertação intitulada Trabalho escravo na mina de Morro Velho. Grande parte de sua pesquisa foi destinada a analisar as condições de vida, trabalho e saúde dos escravos em um complexo aurífero, localizado na antiga Nova Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 29 Lima-MG, pertencente à companhia inglesa Saint John del Rey Mining Company. Embora seu objetivo maior é o de mostrar que a escravidão não foi incompatível com o capitalismo em tal empreendimento, ao revelar que o trabalho escravo era mais lucrativo (em termos de mais valia absoluta) do que o assalariado, ele dá importante contribuição ao estudo das condições de saúde da população escrava, ao descrever a rotina de trabalho, da vida e da salubridade na mina de Morro Velho, analisando o empenho de seus administradores para reduzir a mortalidade escrava em tal mina. O ensaio elaborado por esse autor a respeito das condições de saúde dos escravos da mina de Morro Velho ainda não havia sido revisto e aprofundado até a publicação deste presente artigo, devido ao fato de nossa historiografia sobre tal tema ter sido impulsionada apenas recentemente. [ Por isso, senti-me motivado a enfrentar documentação produzida pela Saint John del Rey Mining Company (de difícil leitura por se tratar de inglês oitocentista), e empreendi uma análise inspirada no estudo do governo dos escravos nas Américas, elaborado por Rafael de Bivar Marquese (2004), objetivando comparar as conclusões desse autor para as propriedades rurais com um empreendimento urbano. Assim, com base nos relatórios que os administradores daquela mina enviavam para Londres anualmente e no estudo pioneiro de Douglas Cole Libby, inicialmente observei, no penúltimo capítulo deste livro, que (depois de pressões dos abolicionistas de seu próprio país, da dificuldade prevista de adquirir mão de obra escrava com os debates em torno do fim de fato da importação de africanos para o Brasil nas vésperas de1850 e dos conselhos divulgados por letrados e médicos a respeito do manejo mais eficaz da população cativa) em Morro Velho houve grande esforço para se colocar em prática um conjunto de preceitos, há muito tempo conhecidos, mas até então pouco praticado, que acabaram contribuindo para disciplinar o enorme contingente de trabalhadores servis e reduzir a sua mortalidade. Entre os preceitos encontra-se a utilização do saber médico para preservar preventivamente ou restaurar a saúde dos escravos, com a contratação de médicos e enfermeiras, a construção de um hospital e a elaboração de quadros estatísticos anuais para se conhecer as doenças que mais afetavam a mão de obra, com o objetivo de combatê-las. A eficiência do capitalismo britânico, sua longa experiência com a escravidão em outros espaços coloniais e a reforma na forma de governar os escravos fizeram alguma diferença na demografia destes indivíduos em Morro Velho? Em parte sim, pois os índices de mortalidade na mina eram um pouco menos aterradores quando comparados com estatísticas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 30 do século XVIII, mas a baixa fertilidade das escravas e a mortalidade infantil não permitiriam a população escrava crescer naturalmente como ocorreu nos EUA. Em 1982, Maria das Mercês Somarriba publicou sua dissertação Medicina no escravismo colonial. Nela reiterou a tese de Roberto Machado, de que havia uma quase inexistência de uma reflexão médica sobre a saúde dos escravos, e se propôs “avançar na explicação para a não existência, em escala significativa pelo menos, de uma medicina do escravo e de uma política de saúde voltada especificamente para a mão de obra escrava”. Usando o conceito de escravismo colonial de Jacob Gorender, ela apoiou-se em uma das principais lógicas do escravismo apontadas por esse autor (a de que quanto mais alta a rentabilidade conjuntural da produção escravista no mercado, tanto mais vantajoso estafar o escravo para obter dele o máximo de sobreproduto em curto prazo) para explicar os altos índices de mortalidade da população cativa. Até aí ela contribui para a compreensão da lógica senhorial empregada na administração de sua escravaria. Em outros termos, ela mostra que algumas variáveis, como preço do trabalhador servil, rentabilidade e a capacidade de trabalho dele, foram fundamentais para determinar o comportamento senhorial em relação a aspectos que muito influenciavam a saúde no cativeiro, como o tempo de trabalho exigido dos indivíduos a ele submetidos. Afinal, no cálculo dos senhores, muitas vezes era mais lucrativo substituir um negro desgastado por excesso de horas de trabalho, do que encurtar a sua jornada e fazer investimentos adicionais para prolongar sua vida produtiva. Assim, quando tal lógica se impunha em determinados contextos, não havia lugar para preocupação mais profunda e sistemática com a saúde dos escravos, o que explica, na visão da autora, a quase ausência de interesse médico na abordagem intelectual de temas a isso ligado; interesse que, segundo ela, somente ocorreu a partir do fim do tráfico transatlântico de africanos para o Brasil e da ampliação da demanda de externa pelos seus produtos agrícolas, notadamente o café (SOMARRIBA, 1982. A lógica do escravismo colonial gorendiana da qual ela se vale encontra-se nas páginas 7, 8 e 11. A sua conclusão de que com o fim do tráfico algumas iniciativas para melhorar a situação sanitária dos escravos começaram a ser praticadas estão entre o final da página 11 e a 13). Esse estudo, apesar de corroborar uma tese (a de Roberto Machado acima sintetizada) recentemente contestada pelo citado estudo de Silvio Cezar de Souza Lima, é de grande importância por ter sido o primeiro a utilizar a lógica da rentabilidade dos empreendimentos Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 31 coloniais para explicar o porquê das condições de saúde dos escravos terem sido tão ruis de um modo geral. E também por ter sido o primeiro estudo que mostrou uma tendência de mudança em tais condições ao final da importação de negros para o Brasil, revelando novas fontes de estudo (manuais de medicina prática especializados em doenças de escravos) para outras questões relativas a esse tema. Mesmo com toda essa contribuição, seu trabalho foi quase ignorado pelos historiadores da escravidão e quase não é citado pelos que promoveram esse surto historiográfico sobre o tema em análise; sintoma do caráter incipiente e de algumas fragilidades da historiografia brasileira sobre esse tema. Outro estudo relevante relacionado com o mesmo tema foi publicado por Pedro Carvalho de Mello em 1983, dedicado ao exame da estimativa da longevidade dos escravos na segunda metade do século XIX. Seu ponto de partida historiográfico é o debate sobre a Abolição após a promulgação da Lei do Ventre Livre. Uma das controvérsias, entre emancipacionistas (os grandes fazendeiros eram seus principais protagonistas) e abolicionistas, a respeito do processo gradual do fim da escravidão, girou em torno da seguinte questão: haveria a necessidade de medidas adicionais para acelerar esse processo? A resposta que conduziria a decisão do Estado dependeria da quantidade média de vida produtiva dos escravos. Sabe-se que os abolicionistas venceram o debate, levando o governo imperial a aprovar leis que culminaram na Lei Áurea (13 de Maio de 1888). O argumento principal dos vitoriosos foi o de que as melhorias das condições de saúde poderiam prolongar a longevidade da população cativa, estendendo dessa maneira o trabalho servil por muito mais tempo além do tolerável. Partindo dessa controvérsia, o autor procurou analisar as fontes demográficas e os testemunhos de estimativas de vida da escravaria para investigar qual era de fato a sua expectativa de vida. Com isso, acabou observando alguns indicadores (sobretudo o de mortalidade e fertilidade) que permitem avaliar as condições de saúde dos escravos. Sua principal fonte é o Censo de 1872, no qual encontrou resultados que o levaram a concluir que, entre 1850 (data do fim do tráfico transatlântico de africanos para o Brasil) e o ano do referido Censo, a fertilidade e a longevidade escrava não aumentaram significativamente. Pois, como entre uma data e outra havia transcorrido pouco mais de 20 anos, o impacto da extinção do tráfico no cálculo econômico dos senhores não teve tempo suficiente para operar seus efeitos no investimento da reprodução natural da população cativa, e, com decreto da Lei do Ventre Livre (1871), que possivelmente freou os ânimos dessa investida, não se poderia esperar que Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 32 houvesse alguma melhora naqueles indicadores (MELLO, 1986, p. 162-163). Sem julgar o mérito dessa conclusão (pessimista demais, uma vez que no intervalo das duas datas acima citadas, 22 anos, havia 611 451 escravos de 0 a 19 anos), os dados gerais daquele censo mostram que a demografia escrava tinha condições de crescer naturalmente (sobretudo porque havia considerável equilíbrio entre os sexos, e mais 277139 escravos entre 20 e 29 anos), caso outras condicionantes (principalmente os ligados à saúde) favorecessem e a Lei do Ventre Livre não existisse. Embora tendo lidado com tema em exame indiretamente, preocupado com um problema da história demográfica, o estudo de Pedro Carvalho de Mello mostra que houve melhorias nos indicadores de saúde no cativeiro após 1850, e mesmo que se para ele a melhora não tivesse sido a ideal, devido ao pouco tempo para a produção dos efeitos do fim do tráfico, está implícito na sua conclusão que havia uma tendência nesse sentido, a qual foi freada inicialmente em 1871 e posteriormente com a vitória dos abolicionistas em relação à aceleração do processo gradual do fim da escravidão. Enquanto os historiadores brasileiros ainda estavam lidando com a saúde dos escravos apenas eventualmente e, na maioria das vezes, de maneira indireta, uma das mais esclarecedoras pesquisas sobre esse tema foi desenvolvida por Mary Karash ao abrigo da Universidade de Princeton, onde foi publicada em 1987. Focada no Rio de Janeiro entre 1808 e 1850, ela dedicou três longos capítulos ao estudo de aspectos demográficos e das condições de vida, trabalho e saúde da população escrava. As suas principais conclusões sobre o assunto foram as seguintes: 1) as taxas de óbitos dos negros submetidos ao cativeiro, principalmente a infantil, eram ainda muito altas; 2) as doenças mais mortíferas em tal população eram as mesmas que dos EUA e da Europa (as ifecto-parasíticas, seguidas pelas gastrointestinais e pelas respiratórias), sendo as mais comuns, nessa ordem, a tuberculose, disenteria, diarreia, gastroenterite, pneumonia, varíola, hidropisia, hepatite, malária e apoplexia. Assim, ela pode afirmar: Os historiadores tenderam a culpar as moléstias tropicais pela alta mortalidade de escravos no Brasil, mas o material da Santa Casa contesta, ao menos para a cidade do Rio de Janeiro, a suposição de que essas moléstias sozinhas dizimavam a população escrava, ou que os donos de escravos pouco podiam fazer para preservar sua propriedade diante de doenças endêmicas e epidêmicas (...). Exceto a malária e a varíola, que não respeitavam posição social, as outras doenças podem refletir os baixos Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 33 padrões socioeconômicos de vida da população escrava. Em outras palavras, os escravos morriam em maior número de moléstias cuja incidência diminui à medida que os padrões de um grupo populacional melhoram. [Assim] o resultado era uma inevitável despovoação dos escravos. (KARASH, versão brasileira 2000, p. 258). Suas conclusões revelam que, no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, a vida do escravo era, do ponto de vista da saúde, muito ruim. Por isso continuavam morrendo em grande quantidade e por causas na maioria das vezes evitáveis, resultando numa dramática despovoação que somente foi impedida pela reposição de novas importações de africanos. Como o recorte cronológico da autora compreende o período de intensa atividade do tráfico negreiro internacional na capital do Império, dificilmente se poderia esperar outra realidade, dada a fartura de negros ofertada quase sem interrupção por essa modalidade comercial. Dessa maneira, os dados encontrados por Mary Karash indicam que os grandes proprietários ainda continuavam motivados pela lógica econômica colonial de maximização da exploração do trabalho escravo, com o menor custo, visando à satisfação da ampla e crescente demanda externa por monocultura e ao aumento de sua rentabilidade. Depois desse passo decisivo na historiografia da saúde dos indivíduos submetidos à escravidão dado pela referida autora, veio a público em 1988 um artigo da pesquisadora Ângela Pôrto, dedicado ao estudo da assistência médica a tais indivíduos, que apresenta informações muito importantes para a compreensão do tema em discussão. Uma delas é a criação de uma companhia de seguros, a Cia União, em 1845 na cidade do Rio de Janeiro, cujos serviços foram contratados já no seu primeiro ano de funcionamento por uma centena de proprietários. Com essa descoberta ela abriu caminho para relativizar a ideia corrente entre os historiadores de que os grandes senhores eram de um modo geral negligentes com a saúde dos escravos. Pelo menos na capital do país, em meados da última década de vigência do tráfico transatlântico de africanos para o Brasil, o seu trabalho mostra indicadores, como o acima revelado, de que havia centenas de fazendeiros que mostravam grande preocupação com seu investimento em mão de obra compulsória. Afinal, no caso de morte de escravo o seguro não era pago se ela ocorresse por maus tratos e descuido em matéria de saúde (PÔRTO, 1988, p. 9). Durante quase duas décadas após a publicação do seu artigo, a autora retornou ao assunto com textos ora de caráter historiográfico, ora de divulgação de documentos, ou de Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 34 apresentação de novas pesquisas, como a coletânea intitulada Doenças e escravidão: Sistema de saúde dos escravos no Brasil do século XIX, organizada ao abrigo da Fundação Oswaldo Cruz e publicada em 2007. Essa coletânea pode ser considerada um marco importante do processo de construção de uma historiografia especializada no tema em análise, ao promover pela primeira vez a reunião de tantos estudos direta e indiretamente ligados a ele que vale como um esforço inicial de síntese, a qual será melhor avaliada mais adiante. Antes é necessário retornar à década de 1990 e recuperar contribuições de mais duas pesquisas relevantes que a antecederam. A primeira delas é a da professora Ilka Boaventura Leite, que investigou aspectos da vida de escravos e libertos em Minas Gerais do século XIX, a partir dos relatos de viagem dos “viajantes” em uma pesquisa publicada em 1996. Embora esses relatos compõem uma fonte muito controversa, ainda assim ela procurou abordá-la em busca das percepções dos seus autores sobre a realidade da escravidão na maior região escravista do país. E encontrou impressões diferentes entre eles sobre os mesmos objetos, como o tipo, a qualidade e a quantidade de alimentação dada os escravizados. Não obstante, seus relatos lhe serviram para, em um capítulo, examinar a vida cotidiana no cativeiro: dieta, vestimenta, trabalho, folga e saúde foram os itens examinados. Em relação a esse último, ela recuperou nos textos dos viajantes (no total de 18) suas observações sobre as doenças mais comuns dos negros e montou um quadro das que mais foram por eles abordadas. Dessa forma, proporcionou um conjunto de dados, muito útil para confrontar com outras percepções (dos médicos e das autoridades públicas, por exemplo) para ampliar a compreensão do quadro nosológico da população cativa (LEITE, 1996. O referido quadro está na p. 170). No mesmo ano Sidney Chalhoub publicou um estudo sobre cortiços e epidemias na capital do Império, no qual abordou algumas questões relativas à saúde dos escravos. Uma delas diz respeito ao problema da identificação das classes pobres com determinados problemas, na ótica das elites, que as faziam ser percebidas como classes perigosas. Um desses problemas era a proliferação de doenças epidêmicas, consideradas oriundas das suas moradias e de seu rústico estilo de vida avesso ao ideal sanitário, que então servia de justificativa às políticas públicas antipopulares na segunda metade do século XIX e início do XX, como a derrubada de cortiços e vacinação obrigatória. No caso das políticas de saúde pública, nesse contexto de expulsão dos pobres (a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 35 maioria de negros) para longe do centro da cidade que então se pretendia “civilizar” e de incentivo à imigração europeia, para substituir os escravos e ampliar a oferta de trabalhadores no incipiente mercado de trabalho assalariado nacional, houve também, segundo o autor, um deslocamento do foco governamental e médico para as doenças que mais poderiam afetar os imigrados do que os escravos remanescentes CHALHOUB, 1999, p. 92-96). Dessa forma, ele revela: 1) uma relação entre racismo, doença e sanitarismo que ajudou a tornar o Rio de Janeiro muito mais socialmente explosivo nas últimas décadas do Império e no início da República; 2) um descaso público para com a saúde da população escrava, incentivado pela Lei do Ventre Livre e pela enorme quantidade de imigrantes que começaram a vir para o país. Até o fim do século passado, nos estudos sobre saúde dos escravos predominaram abordagens que lidaram com esse tema de forma indireta (isto é, sem tomá-lo como objeto central de investigação) e, mesmo assim, não eram abundantes, conforme vários autores que se empenharam na elaboração de balanços historiográficos específicos sobre esse assunto já observaram (PÔRTO, 2006, p. 1024 e BARBOSA e GOMES ,2008, p. 237). Daí em diante a realidade historiográfica começa a mudar, pois, além da continuidade dos estudos indiretos, há um surto de pesquisas dedicadas diretamente sobre tal tema que vem aumentado consideravelmente a compreensão dos objetos a ele ligados. Entre 2001 e 2003, quando iniciei meu interesse pelo assunto, publiquei dois artigos sobre a tradução publicada em Lisboa em 1801 feita pelo cirurgião Antônio José Vieira de Carvalho, atuante em Vila Rica, do manual médico de Jean Barthelemy Dazille, atuante em São Domingos, Observações sobre enfermidades de escravos, publicada em Paris em 1776. Foi minha estreia. Havia percebido que os poucos estudos que usaram esse manual não se debruçaram sobre as razões pelas quais ele foi traduzido e o porquê de ambas as monarquias terem patrocinado as suas publicações. E descobri que não se tratava de apenas um esforço para divulgar conhecimento útil para a prosperidade colonial, como interpretou Maria das Mercês Somarriba (1982, p. 14). Era também uma forma de responder aos apelos humanitários dos iluministas e de demais críticos à escravidão para que se melhorasse a vida dos escravos, a começar cuidando melhor da saúde deles. Pude aprimorar essas conclusões em 2009, depois de alguns anos de experiência com esse objeto, em outro artigo em que procurei aprofundar a compreensão do sentido histórico da publicação do referido manual e de outros do mesmo gênero no Novo Mundo, aproveitando as contribuições da pesquisa de Rafael de Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 36 Bivar Marquese, sobre a qual passo a falar a seguir, e explorando algumas de suas lacunas. 3 O seu estudo trilhou os caminhos da história intelectual para abordar os conselhos e debates em torno da administração ou governo dos escravos nas Américas, entre os séculos XVII e XIX, usando textos de diversos campos de conhecimento (agronômico, jurídico, médico, teológico, entre outros) para analisar o processo histórico das formas de concepção da escravidão e os meios mais eficazes de seu manejo. Em relação a esse último ponto, um dos documentos mais interessantes de seu trabalho são os manuais escritos por fazendeiros ou seus prepostos. Neles há um conjunto de medidas destinadas a tornar a produção escrava mais eficiente. Uma delas é melhora na forma do tratamento dos escravos, incluindo nisso maior cautela para com a saúde deles. Ao fazerem propostas dessa natureza, seus autores buscavam, entre outras coisas, responder às pressões contra o fim do tráfico de africanos para o Brasil que culminaram em uma lei, “para inglês ver”, de 1831, mostrando para os grandes proprietários rurais como era possível atender à crescente demanda por produtos agrícolas, explorando a escravaria de uma forma que ela não fosse desgastada predatoriamente e se reproduzisse naturalmente. Em outras palavras, eles estavam tentando ajudá-los a se prepararem contra uma possível escassez e consequente subida abrupta de preços dos cativos, o que de fato aconteceu, mas somente após uma lei de 1850 que realmente extinguiu o desembarque de escravos em portos brasileiros MARQUESE, 2004, p. 284). Lendo esse inovador estudo fica, porém, uma dúvida: o ideal de administração da população escrava, promovido pelos letrados que lidaram com o assunto, foi seguido pelos proprietários dos grandes empreendimentos das décadas finais do Império? Ou, colocada em outros termos, as condições de saúde dos escravos melhoraram quando se tentou implantar tal ideal? Foi o que tentei responder no penúltimo capítulo deste livro para o caso da Mina de Morro Velho. No ano de 2004 ainda surgiram mais dois estudos a respeito desse tema. Um deles é o de Miridan Britto Falci dedicado às doenças de escravos em Vassouras. Investigando principalmente documentação seriada, com ênfase nos inventários de bens, a autora elaborou um quadro estatístico com indicadores demográficos que ajudam a avaliar as condições de 3 Os artigos inaugurais a que me refiro foram publicados nas seguintes revistas: Varia História; revista do depar tamento de história da UFMG (2000, n o 23) e Revista História Social da UNICAMP (2003, n o 10). O artigo de 2009 foi publicado na Varia História; revista do departamento de história da UFMG (2009, n o 41). Em 2010, também publiquei outro texto, discutindo as condições de saúde dos escravos no Brasil do século XIX, Afro- Ásia; revista do centro de estudos afro-orientais da UFBA (2010, n o 41). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 37 saúde da população escrava de tal próspero município cafeeiro do Vale do Paraíba Fluminense e os males que mais a afetavam. E por ele pôde concluir que os indivíduos dessa população no município enfrentavam as mesmas dificuldades de outras regiões, apresentando nível de mortalidade tão alto e incidência de moléstias de mesma natureza que demais regiões já conhecidas (FALCI, 2004, p. 24). Esse estudo aponta para uma tendência (a de produção de estudos com recortes geográficos concentrados em cidades, ou em um de seus distritos, necessarios para ampliar análises comparativas) que se for consolidada contribuirá para ampliar o entendimento historiográfico sobre as generalidades e particularidades da vida que os escravos levavam nos cativeiros deste vasto país e as enfermidades que mais os atacavam. Seguindo essa tendência alguns estudos já foram concluídos, como os publicados em 2009 e 2010 por Carolina Bitencourt Becker, Jaqueline Hans Brizola, Natália Pinto e Paulo Roberto Staudt Moreira dedicados a cidades de Rio Grande, Alegrete e Porto Alegre, nos quais mostram como eram as condições de saúde no cativeiro em tais cidades (ruins de um modo geral) e quais doenças mais os afetavam (as mesmas já conhecidas, mais ou menos na mesma ordem de importância encabeçadas pelas infecciosas, em particular as que afetavam o aparelho respiratório) (BRIZOLA 2010 e BECKER 2010). Um desse estudos, por exemplo, mostra que, diferentemente do que se pensava, a maioria dos cativos internados na Santa Casa era composta por uma faixa etária dos 12 aos 35 anos entre as vésperas do fim do tráfico em 1850 e os primeiros anos posteriores, com um percentual que variou entre 57 e 64%, o que mostra que o hospital não era uma sala de espera para o cemitério e que e muitos senhores pagavam para recuperar a saúde de seus negros (afinal a Santa Casa somente atendia de graça as pessoas pobres de condição livre e alforriada) (BRIZOLA 2010, p. 37) Retornando a 2004, nesse ano foi publicada o volume inaugural de Uma história brasileira das doenças, no qual há um capítulo dedicado ao estudo da saúde dentária dos escravos em Salvador assinado por três autores. Além de inovarem em relação ao objeto, também usaram um recurso metodológico novo em termos de estudo historiográfico sobre o tema no Brasil: a paleopatologia, que consiste em estudar os vestígios de doenças em fósseis. Nesse caso, investigaram esqueletos de escravos exumados da Igreja da Sé, e descobriram que muitos deles apresentavam doenças bucais das mais variadas, provenientes de baixa ou nenhuma profilaxia, e grande incidência de cárie provocada possivelmente pelo maior consumo de açúcar de trabalhadores servis de uma região açucareira (SILVA et Al. In: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 38 NASCIMENTO e CARVALHO 2004). Trata-se de uma inovação que demanda um diálogo intenso entre campos científicos diferentes, cuja aproximação e esforço conjunto poderão dar grandes contribuições ao esclarecimento sobre os problemas mais enfrentados pela população escrava na longa época do cativeiro. Em 2006, outro volume com igual título trouxe em suas páginas o artigo de Betânia Gonçalves Figueiredo, As doenças de escravos: um campo de estudo para a história da doença e a da saúde. Texto de natureza historiográfica, com sugestões de pesquisa para avançar esse tema considerado pela autora pouco explorado, apresenta algumas considerações a cerca da sua história. Uma das mais esclarecedoras é a de que os cuidados para combater as doenças da população cativa não eram motivados apenas pela necessidade de manutenção da força de trabalho, mas também pelas exigências das transações comerciais que envolviam cativos. Conforme suas próprias palavras, “escravos com boas condições de saúde vão atingir um preço no mercado distinto daqueles combalidos fisicamente” (FIGUEIREDO. In: NASCIMENTO, CARVALHO e MARQUES 2006 p. 253-254). Essa hipótese faz sentido muito mais para os comerciantes de trabalhadores servis (inclusive, havia pessoas especializadas em comprar escravos doentes, por preços irrisórios, para tentar recuperar sua saúde e recolocá-los no mercado) do que para os senhores, uma vez que estes normalmente não adquiriam negros para negociá-los. Todavia, quando a necessidade de envolvê-los em negociações se impusesse, não resta dúvida de que uma das primeiras precauções dos seus proprietários era exatamente a melhorar seus aspectos físicos. Em 2007, a professora Ângela Pôrto organizou ao abrigo da Fundação Oswaldo Cruz Doenças e escravidão: Sistema de saúde dos escravos no Brasil do século XIX. Trata-se do primeiro conjunto de estudos (primeiro grande esforço de divulgação de pesquisas) publicado sobre esse tema. São quatorze artigos dedicados a objetos diferentes (práticas de cura dos escravos, enfermidades do tráfico, amas de leite, entre outros) (PORTO, 2007). Um deles é o de Rosilene Maria Mariosa, que investigou o tratamento de escravos da Fazenda de Santo Antônio do Paiol entre 1850 e 1888. Nele sintetizou a sua dissertação concluída em 2006, na qual apresenta descobertas muito reveladoras sobre a postura senhorial em relação às condições de saúde dos cativos na mencionada fazenda. Situada em Valença (um dos municípios cafeeiros até então mais prósperos do Vale do Paraíba Fluminense), aquela propriedade chegou a abrigar em 1879 mais de trezentos escravos. Para melhorar o tratamento da sua escravaria, seu proprietário montou uma Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 39 farmácia, aproximadamente às vésperas da extinção definitiva da importação de africanos no Brasil, administrada por um farmacêutico diplomado na Escola de Farmácia de Ouro Preto, para suprir as necessidades do hospital que na fazenda havia para cuidar dos negros. A sua montagem, a contratação de profissional especializado para manipular os seus remédios, a visita periódica de médicos ao referido hospital e a internação de escravos na Santa Casa de Misericórdia local e até mesmo em clínicas particulares permitiram a autora concluir que, ao menos na propriedade por ela examinada, houve grande esforço para melhorar as condições de saúde da população cativa. E um dos indicadores de que esse esforço produziu efeitos benéficos na demografia escrava da propriedade é o batismo de 155 crianças entre as décadas de 1860 e 1880 (MARIOSA, 2006, p. 113. Segundo a autora, farmácia contendo vários medicamentos e receitas assinadas pelos médicos que visitaram o hospital dos negros na fazenda encontra-se preservada). Na mesma coletânea foi publicada a pesquisa de Cláudio de Paula Honorato, O controle sanitário dos negros novos no mercado do Valongo. Trata-se de uma prévia do seu estudo apresentado em 2008 na dissertação intitulada Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro. Esse estudo analisa a história do maior mercado de escravos construído abaixo do Equador, as suas condições e as dos indivíduos nele comercializados, as razões de sua criação, reforma, ampliação e encerramento de suas atividades tendo em vistas as vicissitudes da escravidão e do tráfico que a abastecia. A necessidade de um estabelecimento dessa natureza revela a preocupação das autoridades públicas da cidade com a saúde de seus habitantes, uma vez que elas sabiam, em face de longos anos da experiência com tal tipo de comércio, que suas mercadorias poderiam espalhar peste (epidemia de doença mortífera altamente contagiosa). Além disso, o autor mostra que houve um esforço, com resultados modestos, mas relevantes, de vacinar os escravos recém-desembarcados contra a varíola, pois essa era uma das enfermidades pestilentas mais temidas e que mais estragos faziam na população (HONORATO 2008) p. 120-122). Assim, procuraram proteger os vacinados e reduzir as chances da cidade ser contaminada com tão medonha moléstia. Ainda em 2007 foram publicados pelo menos mais dois trabalhos além dos que estão inseridos na coletânea organizada por Ângela Pôrto. À flor da terra é o título de um deles. Seu autor, Júlio César Medeiros da Silva Pereira, revela a demografia das mortes no cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro, especializado em enterrar escravos, sobretudo os que desembarcavam mortos ou morriam no mercado do Valongo. Sua pesquisa confirma que entre Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 40 os desembarcados havia grande índice de morte, em sua maioria de homens jovens, e que uma das suas principais causas eram as gastroenterites, como observou nos atestados médicos de muitos dos que lá foram despejados (PEREIRA, 2007. As confirmações acima citadas encontram-se respectivamente nas p.133 e 126). Outro deles é o estudo de Ana Maria Galdini Raimundo Oda sobre banzo e outros males dos escravos na memória de Luís Antônio de Oliveira Mendes, que foi lida originalmente em 1793 na Real Academia das Ciências de Lisboa e publicada em 1812. Uma das moléstias mais comuns na população escrava, o banzo, conhecida como doença da melancolia (sintomatizada por um profundo abatimento que normalmente culminava na morte), provocava dolorosas feridas na alma. Ao debruçar-se sobre esse assunto, a autora mostra como era percebida uma enfermidade silenciosa e como, ao abordá-la, o autor da mencionada memória identifica-se com o ideário abolicionista que então se formava a partir das críticas iluministas à escravidão. Assim, ela apresenta um quadro muito angustiante em torno de um objeto até então bastante comentado pelos estudiosos, mas ainda sem um estudo profundo, talvez devido ao ainda quase inexistente diálogo entre a história e psicopatologia, do qual depende o aprofundamento da investigação de doenças psíquicas. Suas conclusões preliminares, seguindo os preceitos da história intelectual e tributária do já comentado estudo de Rafael de Bivar Marquese, mostram que a percepção do autor da referida memória estava pautada nas visões trágicas, que circulavam em relatos médicos e de viajantes, a qual serviu de referência para a produção de imagens e discursos anti-escravistas de um abolicionismo em plena formação (ODA, 2007, p. 350). Em meio a esse despertar historiográfico sobre o estudo das condições de saúde da população cativa, começaram a surgir trabalhos mais pontuais, além do acima abordado, com base em estudo de um texto específico que contêm informações elucidativas a esse respeito, como o de Maria Regina Cotrim Guimarães, dedicado ao estudo das doenças de escravos no Dicionário de medicina popular de Chernoviz (1842). Nele, ao procurar descrições sobre as enfermidades desses indivíduos, observando a maneira como elas são explicadas e as proposições de remediá-las, acabou descobrindo um médico crítico à situação em que se encontrava a maioria dos escravos e ao caráter clandestino do comércio de importação de africanos. Em relação a esse último ponto, sua pesquisa revela um personagem um tanto contraditório, pois, apesar da sua crítica a tal comércio, ele admitia ser o cativeiro ainda Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 41 melhor do que a vida na África, reiterando o que os agentes justificadores da manutenção do tráfico africano de negros para o Brasil argumentavam (GUIMARÃES 2008 p. 5-6). Na virada da última para a atual década o interesse dos historiadores sobre tema em análise continua a aumentar. Entre os estudos publicados nesse período destaca-se a dissertação de Keith Valéria de Oliveira Barbosa voltada para o exame da mortalidade escrava no Rio de Janeiro entre 1809 e 1831. Usando registros de óbitos e inventários das freguesias de Irajá e Candelária, a autora mostra que, devido à precariedade das condições de vida dos escravizados, seus índices de morte eram muito altos, principalmente entre as crianças, sendo as doenças dos aparelhos respiratório e digestivo, junto com as epidérmicas e parasitárias, as mais comuns entre eles. Além de mostrar que o lugar e o período analisados também expressam em escala reduzida a situação geral do país, ela se vale de uma pesquisa na qual a autora divulga um inventário, de Bento de Oliveira Braga, feito em 1839, e outro de seu pai, com detalhadas informações sobre escravos doentes e como eram tratados. Entre elas destaca-se o arrolamento de uma casa desde fins do século XVIII para cuidar dos enfermos, o cuidado especial que se teve com um escravo tísico, mandado para uma região de clima mais propício para a sua cura e as precauções tomadas com as crianças recém-nascidas. Pode ser um exemplo extraordinário, mas como a pesquisadora parte do procedimento metodológico da micro-história praticada por Carlo Ginzbourg em seu clássico O queijo e os vermes para conduzir sua pesquisa, subentende-se que ela defende a hipótese de que tal exemplo é expressão microscópica de uma realidade mais ampla. Assim, seu estudo abre uma perspectiva para trabalhos dedicados ao estudo comparativo de inventários produzidos em espaços e tempos diferentes, de forma que se for encontrado neles percentual significativo de propriedades com as mesmas ou similares informações, será possível avançar consideravelmente a historiografia sobre a saúde dos escravos no Brasil (BARBOSA, 2010, p. 56. A pesquisa da qual ela retirou as informações sobre o inventário de Bento de Oliveira Braga é de SILVEIRA, Alessandra da Silva. Sacopema, Capoeiras e Nazareth: estudos sobre a formação de família escrava em engenhos do Rio de Janeiro do século XVIII. Dissertação, Campinas, 1997, p. 130). Recentemente, no final de 2012, a História, Ciências, Saúde-Manguinhos publicou um suplemento, dedicado à relação saúde e Escravidão, que pode ser considerado um atestado do começo do amadurecimento da historiografia especializada nesse tema, por reunir treze Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 42 artigos, decorrentes de ensaios, resultados parciais de teses e estudos avançados, que ajudam a ampliar o conhecimento da dura realidade dos escravos, ao apresentar novas informações e interpretações sobre as suas condições de saúde. Um deles foi escrito por vários pesquisadores que investigaram a mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro ocorrida entre 1855 e o ano seguinte. Combinando dados estatísticos do hospital e cemitérios administrados pela Santa Casa de Misericórdia com depoimentos de médicos e textos jornalísticos, os seus autores mostram que a epidemia fez mais estragos na população escrava, principalmente a africana, do que na livre, devido às suas precárias condições de vida e higiene (KODAMA et al, 2012, p. 60, 62 e 65. Os gráficos entre a p. 69 e a p. 74 são usados para comprovar a maior incidência do cólera nos escravos). Outro deles é dedicado ao tétano; uma doença que afetava em grande parte os recém- nascidos, devido à infecção no umbigo ocasionada pela falta de maiores cuidados com a assepsia durante e após o corte do cordão umbilical, aumentando ainda mais a elevada mortalidade infantil na época. Segundo o seu autor, Ian Read, essa doença, verdadeiro flagelo silencioso da demografia escrava durante séculos, declinou consideravelmente após 1850, devido ao melhor tratamento recebido, em geral, pelos escravos, pelo avanço do saber médico e pela expansão do serviço público de saúde. Isso o levou a defender que a redução dos índices de óbitos desses indivíduos nas últimas décadas da escravidão deve-se em grande parte ao maior controle da mencionada doença (READ, 2012, p. 108-109. A tabela da p.113 e os gráficos da p. 125 e p. 127 mostram comprovam o declínio das mortes causadas por tétano no Brasil, em particular na cidade de Porto Alegre). Há também mais dois estudos focados em recortes regionais, Pelotas e Belém, de cujas realidades quase nada se sabia em relação à saúde no cativeiro, que apresentam resultados muito relevantes para o progresso historiográfico desse assunto. Em relação à primeira cidade, Beatriz Ana Loner e demais pesquisadores que assinaram o artigo revelam as condições de trabalho e saúde dos escravos nas charqueadas. Em uma das atividades mais tensas (devido à maior vigilância necessária aos escravos que, para conduzirem suas tarefas, precisavam portar equipamentos cortantes para esquartejar o gado) e árduas, o trabalhador escravizado dos charques estava submetido a muitas doenças relacionadas com ambientes insalubres, como os matadouros das charqueadas, entre as quais se destacam as infecções pulmonares, parasitoses, reumatismo e moléstias do sistema digestivo, além é claro das DSTs comuns aos escravos de todas as regiões. Uma das informações mais importantes desse estudo é persistência de mau Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 43 tratamento aos escravos e a insensibilidade de senhores até mesmo em casos de comoção pública. Os autores recuperaram na edição de 6 de novembro do jornal Onze de Junho o caso de Paulo, “infeliz pardo”, escravo de Rodrigues Condeixa, que estava gravemente doente dos pulmões, e mesmo assim não pode se tratar devido à intransigência de seu senhor. O caso repercutiu, favorecido pelo contexto abolicionista então em formação, levando à intervenção do clube abolicionista local. Em represália, o proprietário deu-lhe quatorze palmatórias e ainda o obrigou a cumprir suas tarefas em seus últimos momentos de vida. No entanto, esse já não era mais o comportamento predominante na época, pois a recorrência de internações dos mesmos escravos, o aumento da quantidade de internados e a redução dos que saíam vivos do hospital indicam nova tendência, próxima das propostas ilustradas do governo dos escravos que vinham sendo publicadas desde o fim do século XVIII (LONER 2012. A história do escravo Paulo encontra-se na p. 134. Os casos de escravos reinternados várias vezes pelos seus senhores e a tabela que mostram queda aumento da quantidade de internações e diminuição de mortes dos pacientes estão na p. 149). Em relação à segunda cidade, Márcio Couto Henrique estudou o perfil dos indivíduos confinados no leprosário do Tucundubá e descobriu que quase a totalidade deles era composta de escravos abandonados pelos seus proprietários. Construído em 1815, a instituição destinava-se a confinar as pessoas afetadas pela lepra, que geralmente tinham origem nas camadas pobres da população e, por isso, ficavam à mercê da caridade pública. O fato de o maior número dos confinados serem escravizados, segundo o autor, não indica uma predisposição deles a essa então considerada medonha e intratável enfermidade, e sim porque, dada sua condição servil, eram alvos preferenciais da segregação imposta aos afetados por males altamente repugnantes (HENRIQUE, 2012, p. 158). Enfim, a expansão recente da quantidade e da qualidade de textos sobre as condições de vida, trabalho e saúde da população escrava ampliou tão expressivamente a produção historiográfica desse tema, que já se pode dizer que estamos próximo de consolidar um novo campo de estudos históricos, resultante da interseção da escravidão com a história da saúde, da medicina e da doença. Em outras palavras, já temos uma boa base construída para edificação de uma historiografia especializada que, ao ser fomentada por novas pesquisas, poderá dar grande contribuição para maior elucidação da experiência histórica dos indivíduos submetidos ao cativeiro, dos seus problemas de saúde e da maneira como eles foram enfrentados. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 44 Referências Bibliográficas AMARANTINO, Márcia. 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ISBN 978-85-62707-52-0 50 ALGUNS CAMINHOS CIBORGOLÓGICOS André Lira História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE/UFRJ) Doutorando em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia [email protected] Resumo: Discutiremos pressupostos fundamentais no processo de humanização e transformação do real, em seu atual estágio de técnica planetária, conforme apontam Martin Heidegger, Emmanuel Carneiro Leão, Hans-Georg Gadamer e outros. Muitos cientistas, ao longo do século XX, problematizaram em seu fazer questões como a linguagem, o método e a verdade. Porém, nos parece que tais reflexões ainda não modificaram, essencialmente, o projeto humanista de progressivo controle, previsão e intervenção no real. Ao se aceitar o ser humano como uma realidade já-dada, surge, paralelo ao desenvolvimento tecnológico, o plano de “aprimorá-lo” (como a um ciborgue), de elevá-lo a uma nova (e preferível) dimensão. Ora, desde antes e muito além de qualquer implante tecnológico, a condição ontológica humana é a de “ser uma ponte e não um ponto final”, como apontou Nietzsche. Nossa tarefa, portanto, será a de denunciar e expor tais pressupostos, num diálogo interdisciplinar entre filosofia, ciência e poesia. Palavras-Chave: Ontologia, Ciborgue, Técnica. Abstract: In this article, we will discuss fundamental assumptions about the humanization and transformation of reality, in its present state of planetary technique, as said by Martin Heidegger, Emmanuel Carneiro Leão, Hans-Georg Gadamer and others. Many scientists, throughout the twentieth century, problematized, in their practices, questions like language, method and truth. However, it seems that such reflections have not yet modified, in its essence, the humanist project of progressive control, prediction and intervention on reality. By accepting human being as a reality given beforehand, arises, parallel to the technological development, the plan of “enhancing” him (like a cyborg), of elevating him to a new (and preferable) dimension. On the other hand, before and way beyond any technological implant, the ontological human condition is “being a bridge and not a goal”, as Nietzsche signaled. Our task, therefore, will be of denouncing and exposing those assumptions in an interdisciplinary dialogue between philosophy, science and poetry. Keywords: Poetic Ontology, Cyborg, Technique. I – Introdução No curso de minha formação em Letras, fui conduzido por diversas investigações, principalmente nos campos da Literatura e da Filosofia: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 51 a) Embora seja uma questão universal, de todos os tempos, por que a cultura ocidental, especialmente a moderna, retira a experiência e a reflexão da morte de seu sentido cotidiano? Por que busca afastá-la e circunscrevê-la? b) Como se configura o antigo dualismo corpo e alma ou corpo e mente numa era de hipervalorização do corpo? Qual a origem dessa valorização? c) Terá a nova dimensão do corpo alguma relação com o movimento moderno de repulsa com a morte? d) Quais os pressupostos e objetivos da ciência e da intervenção técnica perante tal panorama? Estaríamos tentando superar a morte na figura do ciborgue? Será essa empresa mesmo necessária ou desejável, e por quê? e) Poderíamos obter encaminhamentos para tais questões ao pensar a literatura, ou melhor, o fenômeno poético? II – Sobre o corpo, o ciborgue e a técnica Com tais indagações, chegamos, de forma decisiva, com Hans-Georg Gadamer e Francisco Ortega, a uma reflexão cuidadosa da ciência médica e, posteriormente, à questão do ciborgue, à área da Cibernética, da Inteligência Artificial e da Filosofia da Ciência. Cyborg, ou cybernetic organism, foi um termo cunhado pelo neurocientista Manfred Clynes e pelo psiquiatra Nathan Kline em 1960 para designar as interações entre homem e máquina (sistema homem-máquina), e que posteriormente se tornou um conceito popularizado pela ficção científica, a designar seres humanos com partes ou habilidades aprimoradas por implantes não-orgânicos. O termo ganha novas feições ao ser desenvolvido por Donna Haraway em 1985 e, posteriormente, por outros teóricos da antropologia e da sociologia, na esteira do pensamento pós-moderno, ao questionar a dualidade homem e máquina, natureza e cultura, afirmando que todos nós somos ciborgues, pois, com nossas ideias e práticas contemporâneas, nosso corpo já seria híbrido. O entendimento desenvolvido até então não nos pareceu suficiente. O conceito de Clynes, em sua gênese, se referia a um contexto astronáutico bastante restrito; já o de Haraway não se detinha sobre a questão da morte, nem tampouco do poético, e o colocava a serviço de uma crítica (feminista) da cultura. Mais importantes nos foram as reflexões de Norbert Wiener e Alan Turing, que lançaram as bases efetivas para o processo de matematização e logicização não só dos seres humanos, mas também de todo o real. Em Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 52 Wiener e Turing encontramos uma transposição do reino abstrato da matemática para a interface humana, uma definição do papel central da informação e da comunicação para definir a relação entre homem e máquina. Nos textos “Computing Machinery and Intelligence” (1950), de Turing, Cybernetics: Or Control and Communication in the Animal and the Machine (1948) e The Human Use of Human Beings (1950), de Wiener, pudemos observar uma crença dos autores no poder libertador da tecnologia, embora também alguma preocupação com sua exploração inadequada, rumo à desumanização. Se Turing apontou que “podemos esperar que as máquinas eventualmente concorram com os homens em todos os campos puramente intelectuais” (1950, p. 460), Wiener defendia que o desenvolvimento das máquinas não só poderia competir com o nosso, mas o colocaria em xeque, pois elas poderiam escapar ao nosso controle – algo prejudicial, já que as máquinas não possuem os nossos “valores”. O controle é um dado fundamental, a nosso ver, por ser uma decorrência do que o filósofo Martin Heidegger (1967) diagnosticou como a doutrina do humanismo. A necessidade de controle adviria, para Heidegger, do processo de entificação do real pelo “ponto de vista” humano. Tal ponto de vista, que atualmente chamamos de subjetividade, porém, não seria capaz de contemplar e objetificar plenamente aquilo que é mais próprio do ser humano, que os pais da cibernética e da computação tendem a identificar, em grande parte, com a inteligência, a consciência e a reflexão. Daí nos dizer o filósofo alemão: Que a fisiologia e a química fisiológica possam investigar o homem, como organismo, à maneira das ciências naturais, ainda não prova que a Essência do homem esteja nesse “orgânico”, isto é, no corpo explicado cientificamente. (...) Pois pode muito bem ser que a natureza esconda sua Essência precisamente no lado em que se presta ao controle técnico do homem. Assim como a essência do homem não consiste em ter ele um organismo animal, assim também não se pode eliminar ou compensar essa determinação insuficiente da Essência do homem, dotando-o de uma alma imortal ou da força da razão ou do caráter de pessoa [grifo nosso] (1967, p. 42). Nessa preciosa passagem, Heidegger ressalta um dos pressupostos básicos do humanismo: o de que o homem é um organismo animal, que é um ente observável e analisável como qualquer outro. Também é criticada a definição aristotélica de que o homem é a soma da parcela animal (orgânica) à razão. O que permanece em questão é justamente que a ordem imperativa de melhorar e aprimorar o ser humano o toma como um organismo, daí mesmo o nome cib-orgue – e talvez já estivéssemos partindo de uma confusão fundamental, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 53 historicamente construída, que confunde o corpo humano com o que pode ser representável organicamente. Nossa suspeita do dito de Haraway, de que não haveria diferença fundamental entre homem e máquina, se baseia na assunção de que a interpretação orgânica do ser humano é apenas uma de suas compreensões possíveis. Ainda dentro do que estamos denominando “visão orgânica”, o filósofo Peter Pál Pelbart chama atenção, de maneira bastante crítica, para os seus contornos na “cultura do espetáculo”: Por um lado trata-se de adequar o corpo às normas científicas da saúde: longevidade, equilíbrio. Por outro, trata-se de adequar o corpo às normas da cultura do espetáculo, conforme o modelo da celebridade. Essa obsessão pela perfectibilidade física, com as infinitas possibilidades de transformação anunciadas pelas próteses genéticas, químicas, eletrônicas ou mecânicas; essa compulsão do eu para causar o desejo do outro por si mediante a idealização da imagem corporal, mesmo que isso custe o bem estar do sujeito, mesmo que isso o mutile, substitui facilmente a satisfação erótica por uma espécie de mortificação autoimposta. O fato é que nós abraçamos voluntariamente essa tirania da corporeidade perfeita, em nome de um gozo sensorial, cuja imediaticidade torna ainda mais surpreendente o seu custo em sofrimento (2007, p. 62). A partir da disseminação dessa “idealização da imagem corporal” observada por Pelbart, pudemos encontrar uma articulação com a crítica de Heidegger: se o organismo humano pode e está sendo constantemente modificado, estudado e dissecado para, entre outros fins, satisfazer a um “gozo sensorial”, então é plausível pôr em questão se efetivamente a metodologia científica consegue, mesmo pela soma de diferentes áreas, abarcar o conjunto do que é essencial no ser humano, o seu sentido de unidade e acontecimento. Além disso, encontramos nesse ponto mais um indício para a repulsa à morte na contemporaneidade: na promessa de que, pela renovação do corpo orgânico, procurando mantê-lo jovem e saudável pelos conhecimentos e intervenções técnicas, poder-se-ia retardar ou mesmo escapar à morte. III – Do ciborgue ao corpo poético Consolidamos, passo a passo, nossa intuição inicial: a de que, a despeito de todos os mecanismos de controle, previsão e bem-viver, não estaremos realizando nada de especial retirando as sanguessugas da velhice. Apenas vamos demonstrar uma insistência tenaz e terrível em pensar que somos importantes, e que a razão é o destino manifesto para controlar e Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 54 assegurar nossa permanência, nossa bela e indispensável permanência. Chegará esse dia idílico em que tudo controlaremos? Será que controlaremos o destino, a manhã dos amanhãs? Esta cultura, que chamamos de pós-moderna, que em realidade possui uma história bastante longa, está em estado de euforia consigo mesma. Essa euforia será caracterizada como a euforia das possibilidades técnicas. Enquanto suporte, a técnica faz-se tecnologia; e limita-se a ser suporte enquanto se restringir à sua funcionalidade. Como mostra Antonio Jardim em seu Música: vigência do pensar poético (2005), não se pode confundir a representação com o representado, o suporte com a presença. Faz-se necessário discutir como e em que medida o ciborgue toma o corpo humano como suporte (de suas ideologias, de suas manifestações subjetivas, de suas próprias realizações). A tecno-logia, quando aplicada ao âmbito do corpo e da vida humana, compreende-os de maneira inteiramente positiva, querendo preservá-los a todo custo e eliminar suas imperfeições, vistas como maléficas, “sujas”. A morte, em última instância, é vista como imperfeição, pois é a negação das possibilidades do sujeito; sujeito tal que dedica boa parte de sua vida cotidiana a assegurar meios de levar a cabo suas possibilidades, que vê emanando apenas de si mesmo. Daí se agarrar a todas as ofertas de preservação e manutenção de sua corporeidade, sua memória, suas características mentais, sexuais e orgânicas. Tal imobilidade pueril exige ser exposta como prejudicial, a-histórica, própria de uma máquina, do virtual, pois quer conservar para sempre todas as possibilidades, sem levá-las a cabo no jogo do real concreto, podendo ser des- feitas e re-feitas, reversíveis e inconsequentes. Dentro da tradição ocidental, que renegou o soma (corpo) platônico, passando por Descartes, é compreensível que o corpo tenha se “reabilitado” como questão, nos dias de hoje, com o desenvolvimento da ciência e suas técnicas, capazes de decifrar o corpo, controlar seus mecanismos e manifestações, prever e tratar suas doenças. Tal herança platônico-cartesiana, ao compreender-se subjetivamente teorética, culmina em pôr debaixo do braço todo o real, entendido como realidade material, estabelecendo-se como seu fundamento determinante. Com ela e por ela, vem se acentuando a separação entre corpo e alma, entendida de modo já bastante diferente da psyché em Homero, por exemplo. Combatemos o entendimento do homem como a soma dessas esferas, assim como a soma da esfera animal com a racional, como dissemos antes. Não sendo corpo “e” alma, o que é o homem? “A corporeidade deve ser deslocada e transferida para a existência” [grifos do autor], diz-nos Heidegger. 1 O ponto de partida para pensarmos o que é o homem, portanto, 1 HEIDEGGER, Martin. Da essência da verdade. In: Ser e verdade. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 187. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 55 deve ser seu princípio, sua existência. Não por termos o raciocínio teorético e subjetivante, mas sermos o que somos. O corpo humano é mais do que um organismo: é dimensão ontológica. Não há nada, em nenhum momento, que fazemos sem ou fora do corpo. Nosso corpo é nossa história. Como a citação anterior de Heidegger ressalta, a natureza talvez nos esconda a essência humana (e o corpo humano, portanto) por nos colocarmos diante dela para conhecê-la, com pretensões generalizantes e totalizadoras. Talvez a natureza nos esconda a essência humana por, kantianamente, a termos descartado como algo passível de ser pensado. Talvez, portanto, o conhecimento científico ou filosófico, enquanto objeto e também método, seja insuficiente para arregimentar e dar sentido à complexidade não só de todos os corpos, humanos ou não, mas de cada corpo, no que cada um tem de mais próprio. Sublinharíamos a origem filosófica da ciência, em que melhor se situam as palavras do filósofo Emmanuel Carneiro Leão: A filosofia não é, primordialmente, uma construção de conhecimento, é uma experiência de pensamento, do mesmo nível ontológico da religiosidade, da mitologia, da poesia, da vida e da morte e de toda mentalidade, no sentido de todos os processos mentais e não mentais do homem (2006, p. 10). Para pensarmos o corpo filosoficamente, nesse sentido de uma “experiência de pensamento” e não da “construção de conhecimento”, teríamos que situar o pensar e o corpo numa mesma dimensão ontológica, dimensão religiosa, mitológica, poética – de vida e morte, enfim. Pensá-lo em suas possibilidades e não-possibilidades, questionar a adequação do conceito rígido à verificação observatória. Num movimento próprio da hermenêutica ontológica, o método para o objeto se constrói pela meditação e reflexão constantes da objetividade do objeto, da metodicidade do método, ou seja, pela interrogação constante dos fundamentos – não para reafirmá-los, mas os colocar em questão. A vida é um mistério 2 . Decerto, não há nada que nos dê segurança: o nada dá insegurança, motivo pelo qual o dia de amanhã é outro e não o mesmo dia de hoje, motivo pelo qual as revoluções científicas se aproximam tanto do que é a vida quanto um animal de estimação conhece a casa de seu dono – sabe formas de se orientar nela, mas não muito mais. Por que é que dentro desse mistério julgamos que descobrimos, enquanto homens, a melhor 2 Descobrir o mistério da vida não é descobrir o sentido da vida em geral, porque isso daria razão ao argumento humanista de que o homem é um ente dotado de razão e destinado a compreender e dominar o universo. A cada homem resta a experiência de como o nada da vida se presenteia nele. Experiência nada subjetiva ou científica, porque nada sabemos sobre o nada que somos – nossa única hipótese –, nada, entretanto, que é tudo. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 56 forma de se viver? Isso significaria que desvelamos o mistério da vida e descobrimos o que somos. Porque o mistério da vida e o que somos é o mesmo. A morte destroça o ser humano de tantas maneiras quanto, em primeiro lugar, o possibilita. Sentimentos, palavras, ideias, vontades, hábitos, histórias, crenças, aparência: todas essas dimensões da individualidade estão na morte, em diferentes aspectos. Como diz o mito latino de Cura, o divino nos formou da terra, isto é, do nada, e nos deu nome (humanos); sendo assim, o nada continua, como princípio, sendo a essência constituinte. Não há prática do desapego que dê ideia do nada que somos. Continuamos sendo nada no máximo ou mínimo apego. Porque o homem é a modalidade de real que pode cultivar a terra como casa, daí ter ética – morada. É paixão, vizinhança vigilante, insistente e admirada com o acontecimento do ser, do nada. Para ele, o nada negativo só pode vir, justamente, por uma negação: do nada que já aparece e comparece. Se o que somos é que é o nosso corpo, e somos informados e conformados no misterioso nada que nos dá à vida e conduz à morte, nada que é tudo, faz-se necessário pensar o que, justamente, vem a ser essa dinâmica de nada, vida e morte e como ela desdobra nossa existência. Dessa forma, pensamos que o corpo pode ser compreendido poeticamente, no sentido grego da palavra poíesis: como algo que se dá, algo que vem a ser, sempre, implicitamente, portanto, a ideia de movimento, ou melhor, de surgimento, aparecimento e, consequentemente, desaparecimento. Sobre isso, nos esclarece o filósofo Gilvan Fogel, a respeito da frase do poeta Píndaro “Vem a ser o que tu és”: Ao lermos ou ouvirmos esta frase, se compreendemos o “és” entitativo- substancialisticamente, então, a frase se torna extravagante, absurda – ilógica. Com efeito, seria um absurdo que algo ou alguém, que já é, viesse a tornar-se isso mesmo que já é, pois, se já é – assim pensa a lógica, logicamente – não é possível e muito menos necessário ou imperioso vir a ser isso que já é. (...) A frase, no entanto, começa a ficar interessante, eloquente, se nela o sentido de ser, anunciado no “é”, estiver co-dizendo poder-ser. O sentido de ser, contido na frase, é poder-ser, melhor ainda, o vir-a-ser do poder-ser. A frase, então, soa: “Vem a ser o teu poder-ser” (1998, p. 175). O corpo poético é, pois, bastante concreto, já que diz respeito às nossas possibilidades e como as realizamos (ou não), isto é, à maneira como estamos no mundo. Poeticamente, o corpo pode ser compreendido como nossa própria casa, onde somos. Daí ser o maior desafio conviver com a própria casa, conviver conosco, pois a todo momento essas possibilidades se colocam em jogo – ser o que podemos-ser. Às vezes, possuíamos a impressão de poder Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 57 controlar ou guiar essas possibilidades – outras vezes, vemos os nossos esforços caírem por terra. É com essa mesma intuição que o narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, tempera a sua narrativa, pois, do ponto de vista de um personagem- narrador morto, a história e a aventura de cada vida singular não podem parecer senão acontecimentos trôpegos, não-lineares, confusos e sem sentido, mesmo para essa própria vida. A nossa premissa-guia: a morte se confunde, na existência humana, com a experiência do nada e do ser. A partir de questões norteadoras como destino, memória e tempo, entre outras, veremos não só como o nada e o “não” são inalienáveis, mas são o princípio e sentido do ser. A angústia humana perante a morte não é, portanto, passível de solução (nem mesmo técnica), pois a angústia se refere tanto ao fato de existirmos e sermos o que somos quanto deixarmos de ser. Não há cirurgia plástica para a morte. Pelo contrário, ela é a realização do sem-forma, a realidade de não-ser-possível. Quando é que foi que nos demos a tarefa de resolver os problemas do real, em especial a morte? Quando ela se tornou problema? Para quem sobrevive, nunca deixou de ser espantosa. Era acontecimento público, momento sagrado e ritual. Na morte acidental ou serena, era sempre extraordinária. Mas como admitir a morte numa vida complexa, com um forte senso de individualidade e mil atribulações diárias com que se confrontar? Ela não vai contra todo o estabelecimento “cultural” que organiza e orienta as vidas humanas? Originária, vai sempre contra e a favor do que é. A morte põe tudo por terra, e tudo que dela se erige também é na morte. No mundo da assepsia, da limpeza e do descartável, estamos ainda fadados a comer poeira de cemitério. Não há avanço que mexa nisso. O que vem da terra é toda a terra, quer dizer, ela é princípio que, concretamente, mantém e provém tudo que origina. Claro, apontarmos um princípio ontológico que reúna todos os seres em sua terra-condição está longe de ser pacífico. Por todos os cantos, há muitas eras, o homem transforma a morte em instrumento para punir seu semelhante. Admitir a terra-condição, sempre e em primeiro lugar, desfaria qualquer justificativa para isso, seja ela ideológica, política, religiosa etc. Tudo o que podemos fazer é destino entre céu e terra, mesmo quando saímos da atmosfera terrestre. É o homem, ponto de húmus no nada, carregando suas desesperanças mais para cima no céu. Um dia, em Marte, ele perceberá que também lá ele cultiva sua vida na terra, que cresce sob o amparo do céu. E ainda lá terá tão poucas respostas quanto tem aqui. Se a morte é o acontecimento do nada, o que somos e o que não somos, ela não se distingue, em termos essenciais, da vida. Daí também ser um absurdo falarmos em vida Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 58 humana. Como não podemos admitir a “morte humana” (e também nos parece absurdo reduzir a especificidade humana a meia dúzia de comportamentos), o conceito de vida humana só pode ser aceitável, justamente, no plano das representações. A nosso ver, o que existe é vida-morte, ser-não-ser, vigência e ausência do que é. A seguinte pergunta nos é feita com frequência: pensar a morte? Considerá-la, genuinamente, uma questão digna de pensamento e aceitar o desafio de confrontá-la? Como fazer uma experiência da morte, sob uma pesquisa acadêmica, conforme nosso estudo se propõe, se precisamos morrer para fazê-la, mas, assim, a possibilidade de pensá-la se esvai de nós? Será que estamos fadados a enxergar apenas as manifestações ônticas da morte, como os ritos funerários, o apodrecimento dos cadáveres, o medo instintivo de morrer, as notícias de mortes pela mídia...? Ao longo da história, morreu todo tipo de ser vivo, das mais variadas maneiras. Como tema, a morte, assim como a vida, é a mesma. Os seres humanos, de maneira especial, lidam historicamente com a sua finitude. Como nos templos de Ísis, nos ensinamentos de Pitágoras ou nas igrejas cristãs, os homens formam, a partir de sua experiência de con-vivência, uma sabedoria em torno de si mesmos, a dizer, de sua mortalidade. Também nas obras de arte podemos localizar tal experiência consolidada. Por exemplo, a tragédia grega e as epopeias homéricas são repletas de passagens em que se entrelaçam ética e finitude. Dos casos mais conhecidos, podemos ressaltar o do rei Príamo, na Ilíada, que implora desesperadamente ao guerreiro Aquiles para reaver o corpo morto de seu filho, e o de Antígona, na tragédia homônima, que morre por enterrar o corpo de seu irmão, um inimigo do Estado. A morte e o corpo de quem morre são retratados com extrema dignidade, a que os personagens se agarram firmemente, mesmo que isso lhes tome a vida. Além dos cultos religiosos e das obras de arte, os homens de todos os tempos, em suas atividades, “trabalham para viver, não vivem para trabalhar”. 3 Se trabalhamos para viver, o que é isso que alcançamos com o trabalho, isto é, a vida? Como pensar a morte sem a vida, se todo momento que nos é concedido ter é um momento de sobre-vivência? Nesse sentido, podemos pensar que a morte está em todo lugar, e ao mesmo tempo em nenhum. Ela é, precisamente, nada. Que a morte seja nada e ainda assim vigore em todo vivo, de maneira a se con-fundir com cada coisa que seja e exista: e voltamos à nossa premissa. 3 LEÃO, Emmanuel Carneiro. A terceira margem do rio. Revista Terceira Margem. Rio de Janeiro, ano XIV, n. 22, jan.-jun. 2010, p. 43. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 59 Será, mesmo, que toda nossa ideia de o que é viver já não é um ir-contra-a-morte? Não conseguimos conceituar algo que esteja vivo sem recorrer à sua finitude, ou seja, aos seus limites espaço-temporais. Nem que algo esteja morto sem ter vivido ou estar orientado para vir à vida. O enigma da morte surge hoje, embora o mesmo, com outra face: a figura do ciborgue, do trans ou pós-humano. Da última nomenclatura, já se percebe que o humano encontra-se como algo a ser superado, aprimorado. Verifica-se a prevalência da via técnica não só em seus produtos (a tecnologia), mas no modo como estamos e lidamos com o real. Na doutrina do ciborgue, o corpo humano torna-se apenas mais um ente moldável e transformável para ser aperfeiçoado, inteiramente funcionalizado. Não se encontrando mais em casa, ao não se perceber ético, confere à técnica a chancela (aparentemente) absoluta de construir-lhe uma casa “melhor”. Academicamente, a questão da morte vem ganhando relevo nas mais diversas áreas e correntes de pensamento, muito embora seja, desde sempre, uma questão originária para a humanidade, como mostra a descida de Gilgamesh aos infernos se perguntando o sentido e a fórmula da vida, ou as descrições homéricas, que apresentavam o ato de morrer como fuga do “sopro” de vida, psyché. Tanto na dimensão mítica quanto a literária ou artística de forma ampla, a morte comparece de forma insistente. Lembremos o excelente filme A partida (2008), de Yojiro Takita, que discutimos em trabalhos anteriores (LIRA, 2012); a Ilíada homérica, ponto de convergência da cultura grega por séculos, que apresenta a fúria de Aquiles como virtude (areté) – à medida que suas ações o trazem mais próximo da morte, também o trazem mais próximo da vida; o romance As I Lay Dying, de William Faulkner, cuja linha diretriz é a morte de uma matriarca, perspectivamente trabalhada em cada membro da família, que experiencia o fenômeno de maneira distinta – ironicamente, a obra mostra não uma história dos vivos com uma morta, mas a permanência e a determinação da morta sobre o destino dos vivos, isto é, o mesmo entrelaçamento entre morte, vida, destino e ética familiar às epopeias e tragédias gregas. De que forma o nosso destino aparentemente cibernético nos aprofunda ou distancia do que somos? Será mesmo que aprofunda e distancia? O narrador machadiano, com sua ironia ímpar, nos diz, no seu conto “O imortal”, que, conquistada a vida eterna, morreríamos de tédio, e até desejaríamos a morte – é a mesma tônica do poema de Carlos Drummond, “O homem: as viagens”: “Restam outros sistemas fora do solar a col-/ onizar./ Ao acabarem todos/ Só resta ao homem/ (estará equipado?)/ a dificílima dangerosíssima viagem/ de si a si Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 60 mesmo” (s. n. t.). Sem pessimismos ou louvacionismos, insistimos na dimensão ambígua da tecnologia, cujo domínio e extensão planetária persistem em nos deslumbrar, mas que, talvez por sua própria ambiguidade enquanto téchne, consegue conservar, por proveniência, a poeticidade do real e suas possibilidades de resistência. Referências bibliográficas ANDRADE, Carlos Drummond de. O homem: as viagens. Internet. Disponível em: < http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/drummond.htm>. Acessado em 07/12/12. FOGEL, Gilvan. Do fundamento. In: Da solidão perfeita: escritos de Filosofia. Petrópolis: Vozes, 1998. HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. LEÃO, Emmanuel Carneiro. A fenomenologia de Edmund Husserl e a fenomenologia de Martin Heidegger. Revista Tempo Brasileiro, n. 165. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006. PELBART, Peter Pál. Biopolítica. Sala Preta, 2007, n.7. TURING, Alan. Computing machinery and intelligence. Mind, 1950, n. 59. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 61 A INSUSTENTABILIDADE DA CONSTRUÇÃO DE HIDRELÉTRICAS NA AMAZÔNIA Aureni Moraes Ribeiro Universidade Federal de Rondônia Mestranda em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente [email protected] Artur de Souza Moret Universidade Federal de Rondônia Professor Dr. do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente (PGDRA) e Coordenador do Grupo de Pesquisa Energia Renovável Sustentável (GPERS) [email protected] Resumo: Analisa-se a evolução do conceito de sustentabilidade, destacando-se o tratamento atual deste tema no contexto de construções de hidrelétricas na Amazônia. O conceito tem sido empregado inclusive como discurso ideológico para obras de infraestrutura, como exemplo as hidrelétricas. Os empreendedores agregam o termo às obras como forma de legitimação e cooptação da sociedade de que não oferecem danos ao ambiente, bem como as populações tradicionais. O objetivo deste artigo, amparado em recurso bibliográfico e documental, é demonstrar a falácia de ser considerar estes empreendimentos como sustentáveis. Palavras-Chave: Impactos, hidrelétricas, Amazônia Resumen: Examina la evolución del concepto de sostenibilidad, destacando el tratamiento actual de este tema en el contexto de la construcción de la hidroeléctrica en la Amazonia. El concepto ha sido empleado como un discurso ideológico, incluso para proyectos de infraestructura, tales como la energía hidroeléctrica. Los empresarios añaden el término a las obras como una forma de legitimación y la cooptación de la sociedad de lo cual las obras no ofrecen ningún daño medioambiental y ni las poblaciones tradicionales. El propósito de este trabajo, con el apoyo de la literatura y el documental, es demostrar la falacia de estos acontecimientos como sostenible. Palabras clave: Impactos, hidroeléctrica, Amazonia Introdução A intervenção de obras de infraestrutura tem causado profundo impacto socioambiental na Amazônia, considerada uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta. O que a historiografia dos grandes empreendimentos hidrelétricos tem mostrado é que sequelas do passado se refletem até hoje. Muitas das populações que foram deslocadas compulsoriamente tiveram seus direitos violados. O setor elétrico, ou como podemos chamar Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 62 a indústria elétrica, foi omissa com relação aos afetados quando não apenas os veem como entraves na hora das negociações. Hoje no Brasil estão em construção 38 grandes hidrelétricas, entre elas está a Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, em Porto Velho Rondônia, na Amazônia ocidental brasileira. O custo do mega empreendimento está orçado em R$ 15,1 bilhões de acordo com o consócio construtor Santo Antônio (CCSA). Considerada uma das principais obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), terá potência de 3.150,4 megawatts (MW). A previsão é que as 44 turbinas da obra estejam em funcionamento até 2016. Financiado com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) faz parte do consórcio construtor da hidrelétrica as empresas: Odebrecht, Andrade Gutierrez, Fundo de Investimentos e Participações Amazônia (FIP), sócios quotistas: Banco Santander, Banif e Fundo de Investimento do FI-FGTS e completando a Cemig e a Eletrobrás Furnas 1 . Também faz parte do complexo hidrelétrico do rio Madeira à usina hidrelétrica de Jirau, que está localizada no rio Madeira a montante de Porto Velho, distante aproximadamente 120 km da capital de Rondônia. Tem capacidade instalada de 3.750 megawatts (MW) é uma obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Federal. O custo da obra está orçado em R$ 10 bilhões segundo a ESBR. O Consórcio construtor é a Energia Sustentável do Brasil S. O Consórcio formador da Energia Sustentável do Brasil (ESBR) é formado pelas empresas GDF Suez, Eletrosul, Chesf e Camargo Corrêa 2 . Moret e Ferreira (2008) apontam que na montante dos dois empreendimentos, localizados no município de Porto Velho, há inúmeros conglomerados populacionais: Santo Antônio, Engenho Velho, São Domingos, Jatuarana, Macacos, Amazonas, Teotônio, Morrinhos, Joana D’Arc, Jaci-Paraná, Mutum-Paraná, Abunã, Fortaleza do Abunã, Ponta do Abunã e entroncamento. O mais importante ainda é que em toda a extensão do rio há famílias residindo, tendo como atividade econômica predominantemente a agricultura de subsistência e a pesca. 1 Dados retirados do site institucional da Santo Antônio Energia < http://www.santoantonioenergia.com.br/site/portal_mesa/pt/usina_santo_antonio/obra/obra.aspx> Acesso em 10 de setembro de 2011 2 Dados do site institucional do Consórcio construtor Energia Sustentável do Brasil S. A <http://www.energiasustentaveldobrasil.com.br/empresa.asp> acesso em 06 de novembro 2012. Mapa 1 – Localização das usinas de Santo Antônio e Jirau Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 63 A construção da hidrelétrica de Santo Antônio inundou uma área de cerca de 350 km² e deslocou pelo menos 1.762 pessoas de acordo com o consórcio Santo Antônio 3 , sendo que grande parte destas consideradas ribeirinhas, ou seja, que tiram do rio sua principal fonte de subsistência o peixe. Além de ocasionar desagregação social de populações tradicionais da Amazônia e de impactos irreversíveis ao ambiente o que este modelo energético tem mostrado é que negligência peculiaridades regionais e que apenas atende a interesses econômicos voltados para o extrativismo dos recursos naturais para a exportação. De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) 4 desde o anúncio da construção das usinas, as empresas apresentavam incertezas em relação ao número de atingidos. Na UHE Santo Antônio, o Projeto Básico Ambiental (PBA) de (2008) estimava 561 famílias. Em 12/08/2009 o consórcio afirmou publicamente que 1.145 famílias integraram o programa de remanejamento. Em agosto/2011 o número divulgado pela empresa era de 1.729 famílias. Hoje, o número de atingidos pode ultrapassar 2.000 famílias. Em Rondônia, o MAB sempre alertou da possibilidade da possibilidade das duas usinas do madeira atingirem 5.000 famílias. Pelo menos mais 274 propriedades podem ser atingidas pelo reservatório da hidrelétrica de Santo Antônio. De acordo com o documento “Otimização Energética da UHE Santo 3 Dados retirados do site institucional da Santo Antônio Energia < http://www.santoantonioenergia.com.br/site/portal_mesa/pt/usina_santo_antonio/obra/obra.aspx> Acesso em 10 de setembro de 2011 4 Dados retirados da página do MAB Amazônia disponível em: < http://www.mabnacional.org.br/amazonia/santo_antonio_e_jirau/sobre_a_barragem_santo-antonio> Acesso em 2 de abril de 2013. Fonte: EIA-RIMA Complexo Hidrelétrico do rio Madeira – Santo Antônio e Jirau TOMO A volume 1- página v-2 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 64 Antônio – Alteração do NA Máximo de Operação (elevação em 0,80 metros)” 5 de março de 2013 que apresenta a avaliação de impactos ambientais que poderão ocorrer com a elevação do nível máximo de operação da usina em 0,80 metros, para a instalação de 6 turbinas adicionais no leito do rio Madeira, totalizando 50 turbinas e adicionando um potencial de geração de 418 MW (passando de 3.150 MW para 3.568 MW de Potência Instalada). Os imóveis seriam atingidos devido ao aumento da cota de 70,2 para 71,3. Dados do relatório da Comissão Mundial de Barragens – CMB (2000) sugerem que entre 40 e 80 milhões de pessoas já foram deslocadas pelas barragens no mundo. Destas, muitas não foram reassentadas e nem indenizadas. Quando houve o estudo de remanejamento, este quase sempre se mostrou inadequado. Muitos dos que foram devidamente cadastrados não foram incluídos nos programas de reassentamento e os que foram reassentados raramente tiveram seus meios de subsistência restaurados, pois os programas de reassentamento em geral concentram-se na mudança física, excluindo a recuperação econômica e social dos deslocados. Problemas socioambientais: Complexo Madeira Os projetos de desenvolvimento para a Amazônia sempre estiveram ligados à exploração da natureza e geralmente se constituem em ciclos de curta duração. Hoje vivem na Amazônia 20,3 milhões de habitantes de acordo com o IBGE (2000), muitos destes de outros Estados são atraídos para a região pelas oportunidades de empregos durante cada ciclo. Entre os ciclos podemos citar: o da borracha, da cassiterita, do ouro, a construção da BR- 364. Em 2008 começa um novo ciclo, do qual podemos chamar de ciclo de construção das hidrelétricas do rio Madeira. Quando se especula a implantação de grandes projetos de investimento, como a hidrelétrica logo ocorre o que podemos chamar de pluralidade de opiniões. As opiniões se dividem acercar dos pontos positivos e negativos acerca dos empreendimentos nos âmbitos sociais, econômicos e ambientais. Representantes dos interesses econômicos tais como os empreendedores, empresários, pequenos comerciantes, entre outros, defende que a instalação dos empreendimentos beneficiaria a população e traria crescimento e empregos para região. Grupos políticos na intenção de ganhar votos e garantir seu espaço eleitoral apoiam a 5 “Otimização Energética da UHE Santo Antônio – Alteração do NA Máximo de Operação (elevação em 0,80 metros) disponível na sessão de licenciamento do site institucional do Ibama <http://www.ibama.gov.br/licenciamento/ > Acesso em: 20 de maio de 2013 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 65 instalação de tais projetos, e usam o discurso de que as obras trazem desenvolvimento para a região. Parmigiane (2006, p. 110), diz que é preciso ter muita coragem para se contrapor a algo que, ao menos em tese, se apresenta como uma das poucas oportunidades de se ter um “aumento da renda” e uma “melhoria da qualidade de vida da população”. Como energia elétrica se transforma em sinônimo de desenvolvimento econômico, aqueles que questionam essa política são acusados de serem contrários ao progresso e estigmatizados como “atrasados”, “tradicionais” ou “conservadores”. Ainda neste sentido Parmigiane (2006, p. 111), ressalta que uma prática comum para convencer os moradores da região sobre os benefícios da usina é fazer uma campanha publicitária no local, prometendo uma mudança na qualidade de vida das populações atingidas, dentre estas, a geração de empregos, saúde educação, saneamento, transporte, etc. Discurso falacioso para cooptar pessoas que por vezes são necessitadas de serviços básicos que o Estado deixa de oferecer. Quando as empresas construtoras chegam para se instalar em uma dada região, uma das primeiras coisas que fazem é bombardear a opinião pública com notas positivas sobre o empreendimento em: rádios, nas emissoras de televisão, imprensa, com boletins informativos e muita propaganda. Com o intuito de garantir o apoio da sociedade e demonstrarem que não acarretam prejuízos, utilizam lemas de “Compromisso com a sustentabilidade”, “energia limpa e renovável”, entre outros. A Santo Antônio Energia, consórcio construtor da hidrelétrica de Santo Antônio, utilizou e utiliza os mesmos artifícios propagandísticos podemos verificar isto no seu último slogan “Nasce uma nova geração na Amazônia” 6 . Almeida (2003) diz que “O mote do discurso é o mesmo, desenvolvimento da região, geração de renda, e outras cantigas de sereia que só servem para enganar pessoas aflitas e carentes de todos os serviços que o Estado deixa de oferecer”. Ativistas ambientais, artistas, pesquisadores, cientistas das mais diversas áreas, entre outros, contrários à construção das obras que causam grandes impactos na Amazônia, também utilizam os mesmos instrumentos de divulgação midiáticos para alertar a sociedade da insustentabilidade de tais projetos. A participação em audiências públicas dos movimentos sociais também é de grande relevância. 6 Propaganda de aniversário do primeiro ano primeiro ano de geração de energia da hidrelétrica de Santo Antônio no rio Madeira, que iniciou as atividades em março de 2012. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 66 Os debates sobre a construção ou não de hidrelétricas na Amazônia, acabam tornando- se quiméricos, pois não a democracia na hora da decisão. Travestidos de projetos de prioridade nacional, empreendimentos energéticos são decididos por grupos que tem interesse não apenas na geração de energia, bem como na região. As soluções convencionais propostas e implementadas de desenvolvimentos para a região Amazônica até o momento, não conseguiu atingir o ideal da sustentabilidade tornando-se danosa ao meio ambiente e ao bem estar da população. O Projeto Básico Ambiental (PBA) da Usina hidrelétrica de Santo Antônio, que em síntese deve mitigar e compensar os eventuais danos socioambientais decorrentes da construção foi aprovado pelo IBAMA no ano de 2008 em R$ 1,3 bilhão. Entretanto, de acordo com o consórcio construtor este valor foi superado chegando ao total de R$ 1,6 bilhões em compensações. Investimentos de R$ 1,6 bilhões em uma cidade que sofre com graves problemas de infraestrutura, seja na educação, na saúde, no trânsito, entre outros, foram bem vistos por muitos habitantes que acreditavam na melhora da qualidade de vida. Como exemplos há a questão do saneamento básico. O município de Porto Velho tem um dos piores índices com relação a saneamento no Brasil, em 2009 de acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) o índice era de 2%. A promessa inicial era de que Porto Velho teria 100% de saneamento básico com rede de esgoto e água tratada. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) destinou R$ 613 milhões para as obras que tiveram inicio em 2009, mas por falhas no projeto e irregularidades na licitação apontadas pela Controladoria Geral e pelo Tribunal de Contas as obras foram paralisadas em 2010. Hoje cinco anos após a construção da hidrelétrica a população portovelhense ainda sofre com problemas ocasionados pela falta de serviços básicos, o saneamento continua estacionado em aproximadamente 2%. Outro grave problema que aflige a população portovelhense é o trânsito. De acordo com o Anuário estatístico do Departamento de Trânsito de Rondônia (Detran) 7 de (2011) a frota de Porto Velho é de 187.899 veículos. De 2003 a 2011 foram registrados 30.162 acidentes. Sem preparo para receber a alta demanda, o trânsito se Porto Velho está caótico e a população sofre com as consequências. A cidade não tem um plano de mobilidade urbana. Os 7 Anuário estatístico do Departamento de Trânsito de Rondônia (Detran) de 2011. Departamento de Trânsito de Rondônia. Disponível em: <http://www.detran.ro.gov.br/2013/01/anuario-de-estatisticas-2011/ > Acesso em: 04 de maio de 2013 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 67 recursos oriundos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) deveriam em tese preparar a cidade para a demanda com a construção das duas hidrelétricas no município, Jirau e Santo Antônio. Entre as obras de infraestrutura para a cidade estava à construção de seis viadutos. A obra orçada em R$88 milhões e iniciada em 2009 sob responsabilidade da construtora Camter não foi finalizada. Reportagem do G1 Rondônia 8 de 06 de fevereiro de 2013 afirma que a obra inicialmente orçada em R$88 milhões recebeu aditivo de R$52 milhões de reais devido a revisões no projeto. Ainda de acordo com a reportagem as investigações do Ministério Público Federal (MPF), em parceria com outros órgãos, desencadearam a descoberta de uma série de irregularidades em obras da prefeitura de Porto Velho foram afastados dos cargos o então secretário municipal de Projetos e Obras Especiais (Sempre), Israel Xavier, além do ex- prefeito da capital Roberto Sobrinho e Valmir Queiroz, ex-coordenador de fiscalização das obras. No dia 9 de abril o ex-prefeito de Porto Velho, Roberto Sobrinho, empresários e funcionários da então Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano (Emdur) foram presos pela operação deflagrada pelo Ministério Público em parceiros com diversos órgãos contra a corrupção, a operação denominada Luminus estima que foram desviados mais de R$ 27 milhões de reais da Emdur. Com objetivo de desarticular organização criminosa também no Executivo municipal que articulava licitações fraudulentas a Polícia Federal em parceria com o Ministério Público e com o Tribunal de contas realizou a operação Vórtice em 6 de dezembro de 2012, que consistiu em mandados de prisão, busca e apreensão e afastamentos de cargos públicos. A Polícia Federal 9 estima que as fraudes em licitações superem R$100 milhões . Atrás de grandes obras de infraestrutura e de grandes obras de investimentos como as hidrelétricas que empregam vultosas somas de recursos, geralmente são acompanhadas de corrupção. A população assiste atônita ao desenrolar dos acontecimentos e sofre com as consequências. Porto velho comprovou a vocação da política brasileira pelo inconcluso. Sobre a passividade com que a população assiste a tantos casos de corrupção recorremos a explicação de Mia Couto, na palestra intitulada “Da cegueira coletiva à 8 Reportagem veiculada no G1 Rondônia em 06/02/2013 intitulada “Sob investigação, obra de viadutos consumiu mais de R$ 56 mi, em RO disponível em <http://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2013/02/sob- investigacao-obra-dos-viadutos-consumiu-mais-de-r-56-mi-em-ro.html > Acesso em 07/ 02/ 2013. 9 Dados coletados na página da Polícia Federal< http://www.dpf.gov.br/agencia/noticias/2012/12/pf-deflagra- operacoes-vortice-e-endemia-contra-fraudes-em-porto-velho> Acesso em 10/12/ 2013 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 68 aprendizagem da insensibilidade” 10 o escritor explica como fenômenos sociais tornam-se invisíveis. Segundo Couto, para muitos de nós, esse atentado contra o respeito e a dignidade passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se trata de um mal necessário dada a falta de alternativas. De tantos convivermos com o intolerável, existe um risco: aos poucos, aquilo que era errado acaba por ser “normal”. O que era resignação temporária passou a ser uma aceitação definitiva (...) está operação que banaliza a injustiça e torna invisível a miséria material e moral. Esta vulgarização faz perpetuar a pobreza e faz paralisar a história. Saímos todos os dias para a rua para produzir riqueza, mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança. De tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a nossa própria vida (...). A acomodação tem várias facetas. Sabemos que está errado, mas nada fazemos. Porque achamos que não tem haver conosco. Existe muita pesquisa, dados alertando sobre os impactos de grandes hidrelétricas, em especial na Amazônia, entretanto o engodo sobre a sustentabilidade das obras permanece e é cada vez mais difundido. A ganância desmedida de grupos econômicos gera tensões sociais, econômicas e ecológicas. O desenvolvimento tem que buscar a equidade social e o equilíbrio entre a economia e a conservação. Com a falha dos programas de compensações para minimizar os impactos ambientais e sociais é preciso redirecionar, repensar o desenvolvimento que está sendo posto em prática na Amazônia. Informações retiradas do Relatório Preliminar de Missão de Monitoramento da Plataforma Dhesca Brasil de 2011, intitulado “Violações de Direitos Humanos nas Hidrelétricas do Madeira” relata várias transgressões aos direitos humanos. De acordo com o relatório As obras das usinas hidrelétrica de Jirau e Santo Antonio estão sendo implementadas em prazo inferior ao previsto no leilão de venda de energia visando à maximização de lucros para os empreendedores, com a contratação de um contingente de trabalhadores superior ao previsto no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e no Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), com uso intensivo de horas extras, adoção de medidas de segurança patrimonial abusivas e cuidados insuficientes das condições de saúde e segurança do trabalho. De acordo com o relatório (2011), esse conjunto de fatores levou à eclosão da greve de 2009 em Santo Antonio e contribuiu para a revolta de março de 2011 em Jirau. Sobre a revolta o relatório diz que no final da tarde do dia 15/03/2011 ocorreu a primeira revolta dos trabalhadores de Jirau no momento que um trabalhador da Camargo Corrêa foi agredido por 10 Parte da aula inaugural a Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane (ECA/UEM), proferida por Mia Couto como é conhecido Antônio Emílio Leite Couto, em 2012. Disponível em < http://www.brasildefato.com.br/node/9326> Acesso em 15/04/2012. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 69 três motoristas dos ônibus que faziam o transporte dos trabalhadores. Segundo relatório do Corpo de Bombeiros de Rondônia, nesse dia foram incendiados 45 ônibus, 15 veículos de passeio e 65 instalações (alojamentos e área social do canteiro de obras). No dia 17/03/2011 a Polícia Militar de Rondônia realizou uma prisão no refeitório do acampamento da obra de Jirau no momento em cerca de 2.500 trabalhadores tomavam café da manhã e outros 3.000 aguardavam na fila do refeitório. Essa prisão terminou por provocar outra revolta dos trabalhadores, com maior intensidade que aquela ocorrida no dia 15/03. Nesse dia foram incendiados ônibus e alojamentos. Ao final do dia 70% das instalações do acampamento da obra de Jirau estavam destruídos pelo fogo, com a queima de 78 alojamentos. Foram realizadas 45 prisões nesse dia. Como não houvesse condições para a permanência dos trabalhadores, foram suspensas as atividades da obra de Jirau. Nesse mesmo dia a Rodovia BR-364 foi bloqueada pela presença de cerca cinco mil operários deslocando-se a pé até o distrito de Jaci-Paraná, um percurso de aproximadamente 35 km. Somente na noite de 17/03/2011 os trabalhadores foram transferidos para Porto Velho, onde foram precariamente acomodados no ginásio do Sesi, nos galpões dos clubes de shows Náutilus e Caipirão e na quadra da empresa Jauru. Somente após a concessão de uma medida liminar pela Justiça do Trabalho que determinou o embargo da obra e o envio desses trabalhadores para seus locais de origem, sob pena de multa de R$ 5 mil por trabalhador em caso de descumprimento, é que foram fretados ônibus e aviões para o transporte desses trabalhadores. Os trabalhadores denunciaram ainda o uso excessivo de força pela Polícia Militar de Rondônia, dirigido a trabalhadores que não participaram diretamente da revolta e mesmo após o fim dos incidentes. (Dhesca Brasil, 2011, p.16) O relatório Dhesca (2011) ainda relata que inspeção da Superintendência Regional do trabalho e emprego de Rondônia no canteiro de obra da usina hidrelétrica de Santo Antônio em 2010 que a Construtora Norberto Odebrecht estaria atuando com “acentuado grau de negligência”. Somente nessa ação foram registrados 267 autos de infração emitidos contra o Consórcio Santo Antonio Energia e/ou a Construtora Norberto Odebrecht. Nessa mesma ação foi registrado que não estaria sendo respeitado nem o intervalo mínimo intrajornada de 11 horas, nem o repouso semanal remunerado, com a prática de jornadas superiores a 10 horas diárias, o que viola a legislação trabalhista. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 70 Reportagem do Jornal Folha de São Paulo 11 do dia 23 de março de 2011, relata mais resultados negativos que a construção das hidrelétricas acarretou a cidade de Porto Velho. Segundo a reportagem a população de Porto Velho, onde estão as duas obras, cresceu 12,5% de 2008 a 2010. O número de homicídios dolosos na capital aumentou 44% no mesmo período. Outro dado alarmante é de que o número de estupros em Rondônia cresceu 76,5% de 2008 a 2010. A quantidade de crianças e adolescentes vítimas de abusos ou exploração sexual subiu 18% no período. Ainda sobre os impactos das obras outras reportagens expõem as várias facetas e a insustentabilidade das obras. Desde o início das obras da Usina Hidrelétrica de Jirau o consumo de crack vem crescendo de forma constante nesse distrito de Porto Velho com cara de cidade. Jaci Paraná nasceu há exatos 100 anos por conta da faraônica construção da Estrada de Ferro Madeira- Mamoré. Distante apenas 20 quilômetros do principal canteiro de obras da usina hidrelétrica, a cidade é uma espécie de parque de diversões dos quase 20 mil trabalhadores que estão construindo as mais modernas usinas hidrelétricas do Brasil. Em seu núcleo central, composto por três ruas de 700 metros de comprimento cortadas por seis perpendiculares, contam-se exatos 62 prostíbulos, 18 salões de beleza e cinco igrejas (...). Foi no ano passado [2011] que o frágil equilíbrio que rege um universo calcado em sexo, álcool e drogas começou a sair de órbita. Pequenas cracolândias bem ao estilo paulistano começaram a aparecer. Logo cenas de craqueiros sujos, quase zumbis, catando latas pelas ruelas barrentas ou vivendo nas ruínas da ferrovia foram sendo incorporadas ao cotidiano de Jaci. (iG, 27/02/2012) 12 . Reportagem do jornal Época “A Usina que explodiu” 13 também denunciou as mazelas ocasionadas pelas obras. Cerca de 45 mil pessoas migraram para Porto Velho em busca de oportunidades. A população da cidade cresceu em pelo menos 30%. A violência explodiu. O trânsito ficou caótico (cerca de 1.500 carros são 11 Reportagem do jornal Folha de São Paulo edição online do dia 23/03/2011. Intitulada Usinas “Hidrelétricas levam criminalidade a Rondônia”. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/mercado/892719-usinas- hidreletricas-levam-criminalidade-a-rondonia.shtml> Acesso em 23/03/2011. 12 Reportagem iG “O crack avança nos canteiros e corrói empregos e sonhos dos operários do PAC” Disponível em: < http://economia.ig.com.br/na-esteira-do-pac-o-crack-toma-conta-de-vilarejo-as-margens-do- r/n1597651377933.html>. Acesso em: 28 de fevereiro de 2012. 13 Reportagem da revista Época “A Usina que explodiu” publicada em 27/03/2011. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI221328-15223,00.html>. Acesso em: 27 de março de 2011. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 71 emplacados por mês). Os serviços da rede pública ficaram ainda mais saturados. A média de espera por uma internação é de 40 dias. Na recepção do principal pronto-socorro de Porto Velho há doentes deitados debaixo de macas porque não existe sequer chão livre. Na última semana, dois homens se esticavam ali sobre pedaços de papelão. Quem tem um pouco mais de dinheiro compra o próprio colchão. Em vários aspectos, a promessa do Eldorado trouxe mais miséria (...). Marcada no passado pelos ciclos da borracha e do garimpo de ouro, a Rondônia futura será reflexo do ciclo econômico concebido pelas hidrelétricas do Madeira. Teremos uma geração inteira de filhos das usinas, convivendo com as inclemências e os lucros do progresso. As obras não deixam herdeiros só no sentido figurado. Elas geram também filhos de carne e osso. Está havendo, segundo profissionais da área de saúde, um aumento expressivo do número de mães solteiras. Especialmente jovens e adolescentes (...). Quando a maternidade foi inaugurada, em 2006, os partos de meninas de 10 a 19 anos representavam 28% do total. Uma taxa alta, diante dos Estados Unidos (6%), do Japão (1,3%) ou mesmo da média brasileira (23%). Depois de três anos de trabalho, muita campanha e conversa, esse índice chegou a 25% em março de 2010. Ida e a equipe comemoram. Um ano depois, no pico das obras com seus quase 40 mil homens, a estatística pulou para 33%. (Revista época, 27/03/2011) Segundo Sevá (1990) nas localidades das obras, a desestruturação social tem sido a regra, e as centrais e seus “lagos” foram se tornando símbolos de problema ambientais, de incertezas ou até de convulsão social, de prejuízos e de corrupção. Em várias destas situações, o que mais marcou o empreendimento foi o acirramento da questão fundiária, da questão indígena, em outros foi à resistência difusa e persistente às relações salariais e mercantis. Sobre Sustentabilidade O termo desenvolvimento atualmente se popularizou e está impregnado de conotações além de ser usada indiscriminadamente inclusive em discursos políticos. Desenvolvimento é um termo tomado de empréstimo da biologia. Foi por volta do século XVIII que os cientistas começaram a usar evolução e desenvolvimento como sinônimos. De acordo com Esteva (2000) é Jusus Moser, que transfere a palavra para a esfera social, e a utiliza como significado de um gradual processo de mudança social. Depois disso vários teóricos inclusive das Nações Unidas fazem uso do termo, mas sem grande apelo. Esteva (2000), diz que o termo ganha um novo sentido em 1949 quando o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, faz seu discurso de posse. O que Truman fez de acordo com Esteva (2000), foi colocar o subdesenvolvimento como o oposto do desenvolvimento e destacar os Estados Unidos como um modelo. A industrialização seria o estágio final de um caminho linear para a evolução social. Truman reduz o termo a crescimento econômico, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 72 crescimento este que era apontado como única forma para escapar do subdesenvolvimento. Teóricos críticos da estratégia desenvolvimentista norte-americana afirmavam que o subdesenvolvimento não é o oposto do desenvolvimento e sim criação do modelo de desenvolvimento implantado. Alegaram que países industrializados cresceram a custas dos subdesenvolvidos, e muitos países estavam em situação de atraso ou pobreza por causa do processo de imperialismo do qual sofreram. O conceito ainda hoje é muito confundido com crescimento, evolução, maturação. A palavra sempre tem um sentido de mudança favorável, de um passo do simples para o complexo, do inferior para o superior, do pior para o melhor. Indica que estamos progredindo por que estamos avançando segundo uma lei universal necessária e inevitável, e na direção de uma meta desejável. (ESTEVA, 2000, p. 64). De acordo com Esteva (1999), o desenvolvimento sustentável, difundido depois da publicação “Nosso Futuro Comum” 14 e também conhecido como “Brundtland”, seria aquele que “satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades” nada mais é do que uma estratégia para sustentar o “desenvolvimento”, não para dar apoio ao florescimento ou a manutenção de uma vida natural e social infinitamente variada. Nesse contexto, Sachs (2000, p. 121), diz que o Relatório das Nações Unidas reconhece que não há desenvolvimento sem sustentabilidade e que não há sustentabilidade sem desenvolvimento e que os conceitos de meio ambiente e desenvolvimento deixaram de ser considerados antagônicos e passaram a ser complementares. Surgindo assim o desenvolvimento sustentável. O livro do agrônomo e economista José Eli da Veiga “Meio Ambiente & Desenvolvimento” editado em 2006 pela editora Senac São Paulo, analisa a relação entre desenvolvimento e meio ambiente, bem como a transição para o chamado desenvolvimento sustentável, conceito este que cada vez mais vem sendo incorporado pelos mais diversos campos. Veiga (2006), afirma que o mundo continuara desfrutando indefinidamente do crescimento intensivo e acelerado da produção que se iniciou desde a Revolução Industrial em uma taxa superior a que a biosfera é capaz de suportar. Mesmo diante de tantas evidências sobre a decadência ambiental, muitos economistas preferem ignorar tais dilemas. 14 Nosso Futuro Comum (Our Common Future) documento publicado em 1987 elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, criada pelas Nações Unidas e presidida por Gro Brundtland, primeira-ministra da Noruega Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 73 José Eli da Veiga (2006) reafirma que o crescimento é muito importante para o desenvolvimento, mas para isso deve ficar bem claro que crescimento é mudança quantitativa e que no desenvolvimento a mudança é qualitativa. Segundo Veiga (2006), o conceito de desenvolvimento sustentável está sendo usado na linguagem coloquial como sinônimo de durável e para qualificar o crescimento econômico como estável e permanente. Para a Agenda 21 brasileira o desenvolvimento sustentável ainda é um conceito que está em construção. O compromisso seria compatibilizar as necessidades de crescimento com a redução da pobreza e a conservação ambiental. Este documento ampliou o conceito de sustentabilidade para sete dimensões da vida: a econômica, a social, a territorial, a científica, e tecnológica, a política e a cultural. Veiga (2006) discorda da visão ampliada e progressiva do documento, segundo ele perde o foco. O Conceito surgiu para tentar reverter o caráter antagônico do crescimento e da conservação. O uso teórico do termo desenvolvimento sustentável adotado e amplamente defendido por ambientalistas, como um desenvolvimento ambiental correto e ético a ser seguido, está sendo legitimado e absorvido pelo capitalismo o que podemos chamar de economia verde. O termo tem sido empregado inclusive como discurso ideológico para obras de infraestrutura, como exemplo as hidrelétricas na Amazônia. Os empreendedores agregam o termo às obras como forma de legitimação e cooptação da sociedade de que não oferecem danos ao ambiente, bem como as populações tradicionais. (industriais), fosse monopolizada por multinacionais sediadas em países industrializados.” (SACHS, 2008, p. 95). Desta forma o crescimento econômico promovido pela força do mercado resulta em imensas diferenças sociais e aumento da concentração de renda nas mãos de uma minoria, enquanto que grande parte da população permanece marginalizada. Segundo Clóvis Cavalcante (2012), falar em desenvolvimento sustentável é redundar, pois se não for sustentável não é desenvolvimento. Desenvolvimento implica em evolução, transformação e a promoção da arte da vida, viver melhor, expansão das liberdades. (Informação verbal) 15 Considerações Finais 15 Informações fornecidas por Clóvis Cavalcanti no I Encontro de Ensino e Pesquisa em Administração da Amazônia (EnEPA) na palestra “ Impactos dos grandes projetos de desenvolvimento e a governança ambiental”, realizado no auditório do faculdade Uniron no Porto Velho Shopping, 3 de agosto de 2012. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 74 É irrefutável que a energia em suas variadas fontes é indispensável para produção e para satisfação das necessidades humanas. Entretanto, outra verdade é que a geração energética em suas diversas formas gera impactos na sociedade e no meio ambiente. O tamanho deste impacto tem que ser levado em conta em uma discussão sobre planejamento energético tanto nos aspectos: econômicos, sociais e ambientais. As decisões para o enfrentamento das mudanças climáticas ainda ficam reservadas ao plano das ideias e pouco do que se discute é colocado em prática em virtude da política adotada por cada nação. A política energética atual é totalmente insustentável, novas alternativas precisam ser buscadas. Alternativas estas que, conciliem necessidades humanas e preservação do meio ambiente. Os empreendimentos hidrelétricos se apropriam de recursos naturais como terra, água e território, sendo que estes estão ocupados historicamente, no caso da Amazônia por populações tradicionais como os índios e os ribeirinhos. Um projeto desta dimensão pode desalojar centenas de pessoas e causar dezenas de prejuízos. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Rogério. Avança, Brasil. Planos de governo reedita velhas práticas de colonização na Amazônia. In: Escritos sobre a água. São Luis/ MA. 2003. Fórum Carajás. COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS – CMB. Barragens e desenvolvimento: um novo modelo para tomada de decisão – Um sumário. Comissão Mundial de Barragens. 2000. ESTEVA, Gustavo. Desenvolvimento. In: SACHS, Wolfgang (ed.) Dicionário do Desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 2000. MORET, A. S.; FERREIRA, I. A. As hidrelétricas do Rio Madeira e os impactos socioambientais da eletrificação no Brasil. Revista Ciência Hoje. V, 45, nº 265. 2009. PARMIGIANE. Jacqueline. Apontamentos para uma história de uma luta: os atingidos pela barragem de Salto Caxias/ PR. In: Tempo da Ciência. 107-123. 2006. Projeto Básico Ambiental. Aproveitamento Hidrelétrico de Santo Antônio. Volume III. Madeira Energia S.A. Fevereiro. 2008. Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) das Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau. 2005. Disponível em: <http://www.santoantonioenergia.com.br/upload/portal_mesa/pt/usina_santo_antonio/licencia mento/RIMA%20-%20Relat%C3%B3rio%20de%20Impacto%20Ambiental.pdf> Acesso em 2 setembro, 2011. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 75 Relatório preliminar de missão de monitoramento. Violações de direitos humanos nas hidrelétricas do rio Madeira. Plataforma Dhesca Brasil. 2011. SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável sustentado. Ed. Garamond. 2008. SEVÁ Filho, Arsênio Oswaldo. “Intervenções e armadilhas de grande porte” um roteiro internacional dos dólares e seus argumentos, e dos prejuízos dos cidadãos nas obras hidrelétricas. In: TRAVESSIA. Revista do migrante. Publicação do CEM. Ano II n°6. Janeiro –Abril/1990. A Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 76 RUMO A BRASÍLIA: AS TRANSFORMAÇÕES NA CAPES (1973-1978) Caio Fernandes Barbosa Universidade Federal da Bahia Mestre em História Social – linha de Sociedade, Relações de Poder e Região. Bolsista da Capes [email protected] I Os capítulos sobre a história da Capes tem uma relação profunda com a história da pós-graduação no Brasil. Cada vez mais a Capes passa a ser vista não só como órgão fomentador que atua decisivamente na viabilização de projetos e pesquisas em todo território brasileiro, mas também como objeto de pesquisas. A busca pela melhor compreensão da história da Capes contribui para o entendimento do funcionamento das instituições de fomento a Ciência e Tecnologia, além de refletir sobre a comunidade científica. Como a historia da Capes está situada na interseção entre a historiada da administração publica, historia da educação e história das ciências, faze-la é um desafio. Por isso, faz-senecessário compreender e conhecer um conjunto de estudos diversificados que podem contribuir para a melhor compreensão dos caminhos percorridos pela Capes. Entre este conjunto de trabalhos historiográficos sobre a Capes está Fernando César Ferreira Gouvêa (2012). Gouvêa analisa o contexto da criação da CAPES em 1951 e sua primeira década de funcionamento, remontando a Capes nos tempos de Anísio Teixeira. Para o autor, a Capes é fruto do contexto amplamente influenciado pelo modelo nacional- desenvolvimentista dos anos 1950. Essa preocupação justificável com o contexto de criação da Capes é muito importante até porque Anísio Teixeira se tornou um desses monumentos de memória para a instituição. No entanto, como afirmou Marc Bloch, só os estudos sobre a origem não bastam para explica o crescimento institucional da Capes. Seu posicionamento na rede de ciência e tecnologia dependeu de uma série de articulações e movimentações políticas. Sendo assim, analisaremos a seguir, não a instituição da Capes e o contexto dos anos 1950, mas o momento que a instituição dá seu “Grande Salto” (SCHWARTZMAN, S. 2001), em outras palavras, o momento de maior institucionalização da Capes na rede de ciência e tecnologia e no sistema nacional de pós-graduação. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 77 Esse processo de institucionalização ocorreu nos anos 1970, justamente durante a Ditadura, em meio à conjuntura da “Distensão”.Sob o controle do Ministro da Educação Ney Braga e a condução do professor Darcy Closs, então diretor da Capes, a instituição se imbuiu de um forte desenvolvimentismo. Se a instituição da Capes ocorreu influenciado pelo nacional-desenvolvimentismo da década de 1950, também é verdade que o momento de maior institucionalização se aconteceu justamente em meio ao desenvolvimentismo conservador apresentado pelo governo Geisel. Entre os anos de 1973 e 1978 a pós-graduação brasileira rumou em direção a Brasília, literalmente – a transferência da Capes para a Capital do país – e simbolicamente, maior aproximação com o MEC e maior aproximação do centro decisório do governo ditatorial. II A grande novidade desse período em relação ao sistema de pós-graduação foi o I Plano Nacional de Pós-graduação (I PNPG). Em 1974, as políticas do governo brasileiro são marcadas pela elaboração de planos que buscavam definir uma nova racionalidade para os mais variados setores, revendo as metas competências e principalmente os recursos. Esses planos eram desdobramentos do planejamento das ações de governo, materializados no I PND e depois no II e no III. A pós-graduação não foi excluída desse processo de planejamento. Com o desdobramento dos PND´s na área da educação foram criados o I Plano Setorial de Educação e Cultura, I Plano Básico de Desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia e o I Plano Nacional de Pós-graduação. Todos esses planos se tornaram marcos importantes que nortearam as políticas de pós-graduação e a atuação da Capes. O desenvolvimentismo conservador dos PNDs casou-se muito bem com a política de expansão da pós-graduação em todo o território nacional. Era preciso chegar a todo o Brasil e promover o desenvolvimento nos mais distantes quinhões do país, na área da pós-graduação isso significava que era necessário criar centros de pesquisa e produção de conhecimento formal mais distante do sudeste. Apesar de ter sido feito isso não alterou a posição de hegemonia do sudeste no sistema de ciência e tecnologia no Brasil. No âmbito do “sistema universitário brasileiro” se afirmava a importância estratégica da pós-graduação para seu desenvolvimento. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 78 A principal preocupação era referente à qualidade da pós-graduação. Obalanço que os responsáveis pela política de pós-graduação fizeramapontava que o salto dado na instalação dos cursos gerou a necessidade de organiza-los e dar mais força institucional. A proliferação e a diversificação assistemática de cursos, especialmente no últimos cinco anos, e as conseqüências imediatas e mediatas resultante, levaram os órgãos governamentais a estabelecer mecanismos para disciplinar os seus desenvolvimentos. (...) O exame crítico da situação desde logo evidenciou a necessidade premente da fixação de uma política nacional de pós-graduação, integrada nos Planos de Desenvolvimento Nacional (I e II PND) e articulada ao Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. (CAPES, 1975, p.11) Essa preocupação com a qualidade dos cursos de pós-graduação somados à necessidade de articular a atuação das entidades responsáveis pelo tema ao Plano Nacional de Desenvolvimento (I e II) e o Plano Básico de Desenvolvimento científico e tecnológico, gerou as condições para se discutir e elaborar um documento que definisse as linhas mestras da política de pós-graduação no Brasil. Esse documento veio a público sobre a insígnia de Plano Nacional de Pós-graduação. A formulação do Plano Nacional de Pós-Graduação foi concebido sobre a chancela do Conselho Nacional de Pós-Graduação – PNPG. O CNPG era uma entidade que congregava, sob a presidência do Ministro da Educação e Cultura, o Ministro-Chefe da Secretaria de Planejamento da Presidência da Republica, o Secretário Geral do MEC, o Presidente do Conselho Federal de Educação, o Diretor do DAU, o Diretor da CAPES, o Presidente do CNPq, o Secretário Executivo da FINEP, o presidente do BNDE, os Reitores da UnB, da UFMG, UFPE, PUC/RJ e USP. Estavam pois, ali presentes ou representadas, as principais entidades responsáveis associadamente, pelo que, na linguagem muito em voga à época, se denominava ‘Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia’ e ‘Sistema Universitário Brasileiro’, articulados pelo MEC e financiados pela SEPLAN. Este grande e graduado colegiado tinha funções operativas a cargo de um Grupo Técnico de Coordenação (GTC) composto pelo Diretor do DAU (Como Coordenador), mais um Diretor adjunto do DAU, um representante da FUNTEC (Orgão do BNDE), um representante da FINEP/FNDCT, um representante do CNPq e o Diretor da Capes. (CORDOVA. 2003, p.153) Nele também está descrito essa crescente papel da pós-graduação; O conjunto de análises e estratégias contido neste documento servirá como referência para as medidas a serem tomadas em todos os níveis institucionais de coordenação, planejamento, execução e normalização das atividades de pós-graduação, durante 5 (cinco) anos, a partir de 1975. Sua implantação se Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 79 concretizará através da participação e do compromisso entre o Ministério da Educação e Cultura, os demais órgãos governamentais nas áreas de recursos humanos, ciência e tecnologia, e as instituições de ensino superior e de pesquisa, públicas e privadas. Com tal política, pretende-se evoluir para uma nova etapa do sistema universitário, durante a qual as atividades de pós-graduação assumirão importância estratégica crescente. (BRASIL. 1974, p.119) O Plano reafirmava a necessidade de “transformar as universidades em verdadeiros centros de atividades criativas permanentes” (BRASIL.1974, p.20) cabendo à pós-graduação a função de dinamização, compreendida como espaço onde deveria ser formados docentes e de pesquisas em todos os áreas e temas do conhecimento. Ou seja, seria no nível da pós- graduação que se formaria docentes para o magistério superior, formar trabalhadores para a pesquisa científica e técnicos para atividades em empresas. O Plano tinha três diretrizes. A primeira dela versava sobre a Institucionalização do sistema de pós-graduação. A segunda Elevação dos padrões de desempenho. A última era Planejamento e expansão. A institucionalização necessitava de uma definição nítida das atividades de pós- graduação e da composição do sistema com especificação das funções das instituições nela envolvidas. As definições das atividades de cada instituição contribuiu para diminuir as sobreposições, os conflitos entre os órgãos (CNPG, CFE, DAU, Capes, CNPq, FINEP, etc.) e melhorar a racionalidade da rede, consequentemente a distribuição dos recursos. Para dar conta desses desafios, visando àelevação dos padrões desempenho, a segunda diretriz, era necessário montar uma sistemática operacional de controle e avaliação; transformar realmente os cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrados e doutorados) em núcleos sólidos de formação de pessoal qualificado para o ensino superior e a pesquisa. A Terceira e ultima diretriz afirmava que o planejamento da expansão tinha como objetivo evitar a continuidade ou reprodução de um crescimento “espontâneo e desordenado”, como o que ocorrera até então. Para domar esse espontaneísmo desordenado, propunha-se, convictamente, uma maior “integração” da expansão das pós-graduações com as políticas de desenvolvimento econômico tal como formuladas no II PND e no II PBDCT. Essa busca pela integração entre o processo de expansão e as politicas de desenvolvimento econômico presentes nos II PND e no II PBDCT, contribuíram para transmutar a política de pós- graduação, antes seguindo uma dinâmica supostamente “meritocrática”, concentrada no sudeste, para uma política mais presente em estados do Nordeste e Norte. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 80 Especificamente, essas propostas descritas na diretriz Planejamento da Expansão buscavam articular os mais vários níveis institucionais para promover o desenvolvimento, conjunto, de ferramentas de apreciação das iniciativas previamente à sua implementação, organizando iniciativas “segundo as necessidades próprias do processo educacional- científico”; Esse repertório de medidas eram considerados fundamentais para um planejamento que buscava a expansão. Como afirmou Córdova, que; Essas considerações gerais, referentes à institucionalização, elevação dos padrões de desempenho e planejamento da expansão, até agora consideradas ao nível central, isto é, das agências governamentais, eram igualmente, sucessivamente e operativamente, traduzidas, para o plano da universidade e para o plano ou nível dos cursos. (CORDOVA. 2003, p.157) III Durante o processo de construção do PNPG, no interior do CFE, a participação de Darcy Closs, como diretor da Capes, gabaritou-a para assumir um papel mais central no seio do sistema de ciência e tecnologia. “O novo contexto institucional promove uma redefinição das atribuições das agências e a Capes assume um papel de relevo na implantação da nova política.” (CORDOVA. 2003, p.157) Nas palavras do professor Edson Machado de Souza 1 : Consolidou-se uma forma pela qual a política de pós-graduação tinha que estar vinculada á política universitária, á política de ensino superior do governo, o que era absolutamente natural e lógico. Em 1975 apresentamos o I Plano Nacional de Pós-Graduação, com a Capes já reestruturada, seu diretor passou a ter mais presença e numa esfera mais alta, interministerial; com isso se fez o renascimento da Capes. Nessa época, implantou-se a ideia de fazer a avaliação dos programas de pós-graduação, que começa em 76, ainda em caráter experimental. (CORDOVA. 2003, p.157) A Capes deixa de ser uma “mera agencia de concessão de bolsa de estudo, utilizando uma sistemática de trabalho extremamente complicada. A bolsas eram concedidas caso a caso, por seu Conselho Deliberativo; uma instância muito pouco produtiva, para dizer o 1 Matemático formado pela UFPR, foi dirigente da Capes de 1982 a 1989. Antes deste período á tin!a oc"pado di#ersos cargos em o"tras instit"i$%es go#ernamentais, como a &AU'M(C. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 81 mínimo, e que não estava ensejada nenhuma formulação mais forte de política de pós- graduação” (FERREIRA. 2003, p.107), para assumir novas atribuições. Dentre as atribuições da Capes definidas no PNPG estavam à organização, implantação, acompanhamento e avaliação dos Programas Institucionais de Capacitação de Docentes; ampliação do programa de bolsas, no país e no exterior; melhoria dos cursos de pós-graduação, stricto e lato sensu, através do programa de auxílios; integração com os demais órgãos para facilitar a absorção de mestres e doutores titulados, bem como abrir novos horizontes e oportunidades de doutoramento no exterior, criando, juntamente com as demais agências governamentais, novas oportunidades de bolsas. Seguindo a diretriz de institucionalização, a Capes deveria atuar de maneira sintonizada em relação ao DAU para, juntos, cumprirem as obrigações do MEC relativamente à pós-graduação. Pós-graduação que passa a está quase que exclusivamente sob a responsabilidade institucional da Capes. Além dessas mudanças gerais que visavam diminuir as sobreposições entre as agências governamentais, a Capes passou se orientar em suas ações por uma dinâmica que priorizava o institucional. Na prática, a agência iria reservar quantidades de bolsas aos programas de pós- graduação, diferente do processo individualizado em que a instituição se relacionava diretamente com os candidatos. Como as relações tornam-se entre as instituições, os convênios passam a ser feitos de maneira global, transferindo os recursos para um órgão central de coordenação da pós-graduação nas universidades e outras instituições. Na maioria das universidades esse órgão foi chamado de pró-reitoria de pesquisa e pós-graduação. Essa forma descentralizada de concessão de bolsas foi fruto do debate sobre a ação integrada por parte das agências. Simultaneamente criou-se, em âmbito nacional, um Programa Institucional de Capacitação de Docentes – PICD. Este programa oferecia às instituições de ensino superior – IES quotas de bolsas para capacitação pós-graduada de seus professores. Em relação à elevação do desempenho do Sistema Nacional de Pós-graduação, a Capes deveria contribuir nas melhorias das condições de trabalho, das atividades educacionais e da produção científica. Para isso seria preciso conceber bolsas que possibilitassem a dedicação integral dos estudantes às atividades da pós-graduação, propiciando condições para melhor desempenho acadêmico, qualidade de formação e redução do tempo necessário à obtenção do título. No entanto, não há uma mudança significativa sobre o aumento das bolsas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 82 de pesquisa, afastando ou atrasando os alunos que mesmo recebendo a bolsa ainda precisavam trabalhar para garantir o sustento de suas famílias. Essa exclusividade econômica que passou a ser exigida pelos programas reafirmaram o elitismo na pós-graduação. Além da dedicação exclusiva, havia uma tentativa de melhorar as condições de estudo por meio de adequada infra-estrutura física, administrativa e recursos bibliográficos. A ampliação do quadro de docentes em tempo integral efetivo, para que os orientadores ficassem à disposição dos alunos, particularmente na fase de elaboração de tese era outra preocupação considerada importante para a Capes. Outra medida era o estímulo a maior participação dos alunos nos projetos de pesquisa e atividades profissionais mantidos pelos programas de pós-graduação. As atividades científicas compreendiam tanto a organização de linhas regulares de pesquisa, a produção de tese, a realização de trabalhos profissionais, atividades de intercâmbio e estudos sobre temas culturais, científicos e técnicos, quanto preparo e execução de projetos técnicos e organizacionais, assessoramento e desenvolvimento de sistema produtivo e gerencial bem como à formulação de planos e políticas governamentais. Os bons programas eram reconhecidos, inicialmente, pelo número e qualidade dos alunos que chegaram a completar o curso. Mas também os que apresentavam boa estrutura física e menor distância entre proporção docentes/discentes. A nova política de pós-graduação para ser desenvolvida de maneira satisfatória necessitava de uma ação coordenada entre a Capes e o CNPq. A reafirmação de uma atuação coordenada demonstra, de alguma forma, a busca pela sincronia do sistema de ciência e tecnologia. A cooperação já praticada entre as duas entidades precisava ser ajustada, melhorada, isso de fato ocorreu, não por boa vontade dos dirigentes ou porque essas entidades não competiam entre si. O fator que possibilitou uma melhora na atuação das entidades do sistema de Ciência e tecnologia foi justamente a definição das funções das entidades. Mais nítidas evitavam as sobreposições e conflitos. A relação entre o I PNPG e o II PBDCT quanto à formação de recursos humanos e a íntima interrelação entre pós-graduação e pesquisa fizeram com que o CNPq e a Capes atuassem de forma mais sincrônica. Reconhece-se que uma das principais bases de sustentação do desempenho da pós-graduação está na promoção sistemática de docentes e pesquisadores às diferentes categorias de titulação e remuneração, cuidando também dos procedimentos de complementação e incentivos aos projetos desenvolvidos na instituição (BRASIL. 1974, p.54) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 83 As funções das duas agências foram bem definidas, reservando para cada uma um papel significativo dentro da rede de ciências e tecnologia. Enquanto o CNPq seria o fomentador de pesquisa, o Capes atuaria apoiando à formação e ao aperfeiçoamento de pessoal de nível superior. Apesar de estarem atuando sobre um universo “parcialmente superpostos, a clara diferença de atribuições e de objetivos não era conflitante, antes devendo ser complementares” (BRASIL. 1974, P.55). A semelhança dos objetivos, tanto da Capes quanto do CNPq, com relação a pós-graduação está justamente no fato de que neles, “a pesquisa é componente indispensável”. Essas atribuições diferentes entre as duas entidades deveriam se somar, possibilitando “uma avaliação do desempenho do sistema de pós-graduação”. Essa avaliação seria feita através da coleta periódica de dados estatísticos enviados pelos órgãos e agências federais através das assessorias especializadas. Sobre a supervisão conjuntamente da Capes e do CNPq. Sendo assim, o CNPq e a Capes trabalharão em conjunto na análise para identificação daqueles programas de pós-graduação qualificados, segundo parecer de Comitês Assessores Técnico-Científicos integrados por designação das duas instituições. Além disso, CNPq e Capes, em conjunto, procurarão identificar as áreas carentes de recursos (BRASIL. 1974, P.55) É no aprimoramento e na busca pela sincronia da atuação das duas entidades que vai ser desenvolvida e aprimorada a avaliação da pós-graduação, que vai dar notoriedade a Capes dentro da comunidade científica brasileira. A responsabilidade no processo avaliativo dos cursos de pós-graduação tornar a Capes não só uma agencia de fomento, mas uma espécie de agência reguladora. O contexto elaboração do I PNPG, possibilitou pela primeira vez que houvesse uma unificação, ou melhor, um reconhecimento de um método avaliativo que deveria fica sobre a responsabilidade da Capes. Longe de ser perfeito, o processo de avaliação da Capes promoveu uma adequação tanto dos programas de pós-graduação quanto das pesquisas científicas. A avaliação da Capes foi fundamental na construção de uma cultura acadêmica brasileira. No período de 1974 até 1978, como desdobramento do aumento nos recursos orçamentários, houve uma multiplicação das ações da Capes. Seus programas passam a ser aplicados numa escala até então inédita. Sendo esse também um fator de aumento do protagonismo da Capes, dentro e fora do MEC. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 84 O crescimento no volume de bolsas no país e no exterior nos permite afirmação que mesmo após o fim do chamado milagre econômico o investimento na pós-graduação continuou ascendente. É a partir de 1975 que a crescente no número de bolsas torna-se significativa, não por acaso 1975 é o ano de apresentação do I PNPG. O aumento da oferta de bolsas veio articulado com a nova forma de distribuição de bolsas e o acompanhamento dos programas de pós-graduação, interferindo diretamente na melhora de qualidade desses programas de pós-graduação. Os planos de desenvolvimento formulado durante a Ditadura junto com as mudanças e proposições da Capes contribuíram profundamente para a institucionalização da comunidade cientifica e o aumento da racionalidade das ações governamentais. Prova disso foi o lançamento no início do ano de 1977 do Catálogo do Banco de Teses de Pós-Graduação. Este catálogo continha referências básicas de 3.016 teses. O MEC atuou durante o governo Geisel no sentido de promover o “tecnicismo necessário” à rede de ciência e tecnologia no Brasil. No entanto, não foram apenas os problemas de organização e falta de racionalização que o MEC precisou enfrentar. O legado dessa gestão frente a Capes é muito importante para moldar, dar forma, a comunidade científica brasileira. O aumento no número de bolsas provocou um impacto na produção e no incentivo de carreiras acadêmicas. Além disso, os bolsistas que tiveram a oportunidade de ter uma experiência acadêmica no estrangeiro trouxeram novos elementos e um pouco da tradição de pesquisa destes países para o Brasil. O planejamento, a articulação das pró-reitorias de pós-graduação, a mudança nos critérios de distribuição de bolsas de pesquisa da Capes, bem como a definição de um método de avaliação da pós-graduação, tornou mais nítida e profissional as regras no interior da comunidade científica. IV Podemos afirmar que o desenvolvimentismo conservador articulado a uma forte tendência de racionalização e planejamento presentes no governo Geisel foram fatores fundamentais para a ampliação do sistema de pós-graduação brasileiro. A buscar por levar desenvolvimento a regiões fora do Sudeste contribuíram para uma maior capilaridade do sistema de pós-graduação e consequentemente do aumento de importância das agências de fomento, dentre elas a Capes. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 85 Medidas propostas pelo I PNPG como a descentralização de bolsas de pesquisa foi adotada a partir da necessidade dessa rede de programa de mestrados e doutorados em franco crescimento. Essa descentralização possibilitou que a Capes pudesse ter maior alcance nas suas ações, o que acabou por proporcionar um fortalecimento da Capes e um reconhecimento da comunidade científica da importância no âmbito do sistema de Ciência e tecnologia. Referências Bibliográficas BRASIL. I Plano Nacional de Pós-Graduação. Brasília, DF: MEC/CNPG, 1974. CORDOVA, Rogério Andrade. CAPES; Origem, realizações, significações (1951-2002). Brasília, 2003. GOUVÊIA, F.; MENDONÇA, A. W. P. C. A contribuição de Anísio Teixeira para a institucionalização da pós-graduação no Brasil: Um percurso com os boletins da CAPES. Revista Perspectiva, Florianópolis – publicação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), v. 24, n. 1, p. 111-132, 2006. GOUVÊIA, Fernando César Ferreira. “A institucionalização da pós-graduação no Brasil: o primeiro decênio da Capes (1951-1961)” in RBPG, Brasília, v. 9, n. 17, julho de 2012. p.373 – 397. GUIMARÃES, Jorge Almeida; ALMEIDA, Elenara Chaves Edler de; A pós-graduação e a evolução da produção científica brasileira. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2013. P. 61- 74. MATHIAS, Suzeley Kalil. A militarização da Burocracia: A participação militar na administração federal das comunicações e da Educação (1963-1990). São Paulo, Editora Unesp, 2003. SCHWARTZMAN, Simon. Um espaço para a Ciência: a formação da comunidade científica no Brasil. Brasília, DF: MCT/CEE, 2001. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 86 A BELA APODRECIDA: DISCUSSÃO SOBRE O USO DE LINGUAGEM DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA VOLTADA PARA EDUCAÇÃO AMBIENTAL Caio Vinicius Hashimoto Venancio Universidade Federal do ABC - Pró-Reitoria de Extensão Graduando do Bacharelado em Ciência e Tecnologia [email protected] Ana Maria Dietrich Universidade Federal do ABC Doutora em História Social - FFLCH-USP [email protected] Resumo:O presente trabalho tem como objetivo discutir os usos da linguagem de divulgação científica sobre Educação Ambiental voltada para um público infantil. Discutiremos como será plausível a adequação da linguagem para se transmitir conceitos científicos que envolvem a temática central da “poluição atmosférica” como aquecimento global, chuva ácida e doenças causadas por gases tóxicos, dentro da narrativa da Literatura infantil. Para isso analisaremos como estudo de caso a obra A Bela Apodrecida e a poluição doar (UFABC, Coleção Batuclagem, 2013) de autoria de André Luiz Rosa e ilustrações de Marcy Rock. Nessa obra os conceitos de poluição e degradação do meio ambiente (com enfoque na poluição atmosférica) são abordados em uma linguagemapropriada para crianças como no trecho a seguir que se refere à chuva ácida: “Os gases ajudavam a provocar uma misteriosa chuva que destruía as flores, os lagos e fazendas.”Além disso são utilizados desenhos que se articulam com a linguagem escrita facilitando o entendimento da mensagem e músicas que sensibilizam as crianças para a temática em questão. Assim, podemos investigar estratégias de divulgação científica voltada para o público infantil, levando-se em consideração que a formação cidadã aliadas à uma difusão científica consciente deve começar desde cedo as tenras idades. Palavras-chave: educação ambiental, infantil, linguagem. Abstract:This paper aims to discuss the uses of language science communication on Environmental Education for a children's audience. Will discuss how plausible the adequacy of language to convey scientific concepts that involve the central theme of "smog" as global warming , acid rain, and diseases caused by toxic gases within the narrative of Children's Literature . For this case study will analyze how the work Rotting Beauty and air pollution (UFABC , Collection Batuclagem 2013 ) authored by André Luiz Rosa and graphics Marcy Rock . In this work the concepts of pollution and degradation of the environment (focusing on air pollution) are addressed in a language appropriate for children as in the following passage that refers to acid rain: "The gases helped trigger a mysterious rain that destroyed the flowers, lakes and farms".Furthermore designs that articulate with the written language facilitates the understanding of the message and songs that sensitize children to the theme in question are used. Therefore, we investigate strategies for science communication aimed at children, taking into consideration that the civic education combined with a conscious scientific dissemination should start early the tender ages. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 87 Introdução No presente trabalho são destacadas as diferentes formas de linguagem utilizadas pelo Projeto Batuclagemcom o objetivo de inserção de conceitos de meio ambiente e sustentabilidade no processo de educação infantil. Este foi realizado através do estudo de caso da historia intitulada A Bela Apodrecida e a Poluição do Ar, a qual busca adequar uma linguagem facilitadora para introduzir a temática de poluição atmosférica e todos os outros conceitos como gases tóxicos, chuva ácida e degradação do meio ambiente. A criança desde o momento do seu nascimento é envolvida por um universo de linguagens, dentre as quais está fundamentalmente à linguagem verbal. Os componentes da linguagem verbal podem ser explicados em três fatores, sendo eles o conteúdo, a forma e o uso. O conteúdo refere-se ao conhecimento, às experiências e relações significativas e pessoais estabelecidas e transmitidas por palavras ou frases que a criança convive durante seu crescimento. A forma abrange os aspectos que conferem estrutura, como a organização dos sons de uma língua (fonologia) e suas regras (sintaxe). Finalmente, o componente uso se refere aos aspectos funcionais da comunicação, isto é, à intenção do falante, à suas expressões linguísticas. O uso incorpora todos os aspectos da linguagem, conforme ocorrem no contexto. Depois de desenvolvido o processo da fala, linguagem verbal, pela criança começa-se então a trabalhar e desenvolver a alfabetização. Para iniciar a alfabetização da criança, podem-se utilizar linguagens lúdicas, onde se misturam princípios de sonoridade, visualidade e discursividade verbal. O processo de aquisição da leitura e escrita dos estudantes de forma lúdica possibilita aos alunos, com maiores dificuldades para ler e escrever, um maior contato com textos de diversos gêneros literários, jogos que visem estimular a aprendizagem e momentos em que possam ser também direcionados a desenvolver a escrita de forma prazerosa. A contação de história, utilizada pelo projeto, é desenvolvidas com crianças em processo de alfabetização ou até mesmo já alfabetizadas, buscando desenvolver o prazer da leitura através da chamada arte-educação. Na figura 1 membros do projeto contam a historia a Bela Apodrecida, utilizando alguns objetos para chamar a atenção do publico infantil. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 88 Figura 01: Cena da historia A Bela Apodrecida e a Poluição do Ar. Sobre o projeto O projeto de extensão Batuclagem nas Escolas realiza oficinas de Educação Ambiental com crianças de 7 a 13 anos por meio da metodologia da Arte-Educação. Entre as práticas estão a contação de histórias, jogos e brincadeiras e a introdução de noções musicais com ensino do canto, treino de ritmo e a elaboração de instrumentos musicais com material reciclável. É fomentado pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do ABC desde 2011. Herbert Read (1982) afirma que a arte e a educação são dois conceitos indissociáveis, sendo que a primeira deveria ser a base da segunda como um todo. Na mesma linha, Platão (2002) afirma que “uma educação estética é a única educação que dá harmonia ao corpo e enobrece a alma”. Tais autores não veem distinção entre ciência e arte, sendo a primeira a explicação de uma realidade e a segunda a expressão desta. Unir educando pela arte seria uma estratégia bem sucedida uma vez que há a preservação orgânica do homem e de suas faculdades mentais, respeitadas as diversas faces do desenvolvimento humano. O resultado são indivíduos mais críticos, valorizados do ponto de vista humanístico, intelectual, moral e estético e principalmente, integrados, ao grupo social que fazem parte. No mundo atual, regido pela sociedade da informação e cultura de massa, a arte traz elementos perdidos nesse processo, ela privilegia o indivíduo, sua sensibilidade e conscientização de sentidos. Quando se trata de crianças, a preocupação da educação pela arte deve ser ainda maior. O maior desafio da humanidade é prepará-las para a vida adulta da melhor forma Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 89 possível levando-se em conta que vivemos em sociedades complexas contemporâneas. O ser humano é questionador por natureza, há que se formar alunos com capacidade de perguntar. Formular uma boa pergunta resulta de observação e compreensão do mundo. A arte vem como poderosa arma branca. Amplia os sentidos, aguça as curiosidades. Abre janelas e portas no cérebro das crianças. Quando crescem com esses recursos, são capazes de elaborar melhor suas dúvidas, buscar explicações, demonstrar sentimentos. Trazem felicidade e alegria. É comprovado que pessoas felizes aprendem mais, são mais dedicadas e se envolvem em menos conflitos. No presente projeto observamos tais problemáticas e pudemos partir para o segundo estágio que Freire – denomina como transformador – modificando a realidade por meio de uma ação cultural criativa e libertadora. Educação Ambiental De acordo com a definição da Agenda 21, o objetivo da educação ambiental é "desenvolver uma população que seja consciente e preocupada com o ambiente e com os problemas que lhe são associados, e que tenha conhecimentos, habilidades, atitudes, motivações e compromissos para trabalhar individual e coletivamente na busca de soluções para os problemas existentes e para a prevenção de novos". A Educação Ambiental (EA), no discurso dos processos sociais instituintes, nasce da sensibilidade de aliar conhecimento científico, tecnológico, artístico e cultural com uma nova consciência de valores de respeito aos seres humanos e aos recursos naturais (SOARES et al., 2013); Educação Ambiental, deve também resgatar valores, até então, esquecidos na educação clássica formal, como a amizade, a lealdade, a responsabilidade, o respeito à vida, a democracia e, desta, visar uma sociedade mais justa (NEIMAN,2007); Estudo de Caso: É importante ressaltar que esta história é uma adaptação do conto infantil, A Bela Adormecida, um grande clássico das historias infantis. Esta adaptação facilita a aceitação, e assim, desperta o interesse do publico infantil. Nessa obra os conceitos de poluição e degradação do meio ambiente (com enfoque na poluição atmosférica) são abordados em uma linguagem apropriada para crianças, facilitando a compreensão da temática envolvida e todo o seu conteúdo cientifico. Como por exemplo: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 90 “Os gases ajudavam a provocar uma misteriosa chuva que destruía as flores, os lagos e fazendas.” “Substituíram carros por bicicletas e ônibus, plantaram árvores, reciclaram o lixo, evitaram as queimadas da natureza.” Além de linguagem apropriada para crianças, para abordar o tema de forma clara e lúdica são utilizadas outras formas de linguagem, como: musicas e ilustrações. Figura 02: Ilustração do livro A Bela Apodrecida e a Poluição do Ar Figura 03: Ilustração do livro A Bela Apodrecida e a Poluição do Ar. Era uma moça bela e querida Era feliz onde vivia Tinha saúde bem delicada E uma inimiga das bem malvadas Um belo dia onde vivia Houve uma festa que todos iam Mais a malvada queria não E promoveram a poluição Tudo mudou em sua cidade A alegria não tinha não Ela ficou muito engraçada Tinha pereba unha encravada E seu amado com pena dela Mobilizou todos ali Limparam os rios e as florestas Tudo ficou melhor então Mas é uma luta que continua} 2x Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 91 Você faz parte dessa parada Paródia sobre a música “A Casa” de Vinicius de Moraes Considerações Finais Educar para a problemática ambiental, em todas as suas vertentes, não é fazer publicidade, não é obrigar, forçar ou persuadir. É o mesmo que ensinar e criar umoutro cidadão que pense e age de outra maneira; Para educar para o meio ambiente é preciso montar estruturas de comunicação entre as crianças e os projetos ambientais para que a adesão a esses seja maior. Referencias Bibliográficas: NEIMAN, Z. A educação ambiental através do contato dirigido com a natureza.São Paulo: Curso de Pós-graduação em Psicologia Experimental/Universidade de São Paulo.(Tese de doutorado), 2007. SOARES, A. D; OLIVEIRA, L.T; PORTILHO, S.E; CORDEIRO L.C; CAVALCANTE K.D. Educação ambiental: construindo metodologias e práticasparticipativas. Disponível em:http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT10/ana_maria_dantas.p df Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 92 ENSAIO SOBRE A HISTÓRIA AMBIENTAL: PERSPECTIVAS PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS Camila Martins da Silva Bandeira Universidade de São Paulo Mestranda [email protected] Ermelinda Moutinho Pataca Faculdade de Educação - Universidade de São Paulo [email protected] Resumo:Gerar futuras mudanças requer novas posturas. Acreditamos que uma das possibilidades é a educação. Espaço que pode contribuir para entendermos a nossa cultura e a natureza em sua totalidade. Nesse sentido, a história ambientalé uma das estratégias que auxiliaa conscientização histórica da relação entre homem e meio ambiente. Para tanto, apresentaremos em síntese a história ambiental e seus pressupostos com a intenção de refletir sobre essa nova concepção e indicar o inicio de ações educacionais que ocorreram em nosso paíscomo forma de disseminar essa área embrionária, mas que consideramos frutífera quando pensada no âmbito do ensino de ciências. Palavras-chave:história ambiental, ensino de ciências, educação ambiental. Abstract: Generate future changes requires new attitudes. We believe that one possibility is education, that can contribute to understand our culture and nature in its entirety. In this sense, environmental history is one strategy that assists historical awareness of the relationship between man and environment. Therefore, we present a brief environmental history and its assumptions with the intent to reflect on this new design and indicate the beginning of educational activities that occurred in our country as a way to disseminate this brand new, that we consider fruitful within the science education. Keywords: environmental history, science education, environmental education. Introdução O presente artigo possui dois objetivos específicos. O primeiro é o de trazer para o trabalho uma breve síntese do que se trata a História Ambiental (HA). O segundo possui o intuito de refletir como esse campo recente de estudo pode estar relacionado com o ensino de ciências. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 93 Para que as duas dimensões de aproximem (ensino e HA) acreditamos que é relevante pensar em nosso contexto atual, tanto no que diz respeito às questões ambientais, quanto às reflexões que permeiam a nossa realidade educacional. O meio ambiente hoje se tornou um dos assuntos de maior destaque, seja no âmbito científico, político, civil ou nas áreas de comunicação. Percebe-se esse fato, por exemplo, quando quantificamos as pesquisas científicas, as leis discutidas no senado, novos hábitos cotidianos e as propagandas veiculadas na mídia que abordam sobre temas ambientais. Entretanto, o que podemos perceber é que o assunto é tratado de modo pontual e ausente de conexões entre diferentes áreas, o que nos impede de ligar essas questões com a nossa realidade local e global. O mesmo se percebe quando nos direcionamos ao ensino de ciências. Esse, mesmo com tantas discussões acadêmicas pertinentes, ainda na prática, em sua maioria, ocorre por meio de assuntos engavetados e distantes das nossas questões sociais. O seu currículo pensado em blocos isolados, que se encontram nas séries, escolares contraria a sábia ideia de Match (1943) de que é necessário ensinar-se menos para se aprender mais (MATTHEWS, 1995, p.169),em prol de programas sobrecarregados de conteúdos. Em ambas as dimensões, são perceptíveis o hábito cultural que a nossa sociedade tem de separar assuntos que essencialmentepoderiam estar conectados. Fato natural que para muitos não é motivo de grandes preocupações, adverte Latour (1994). A ausência de articulações nos faz pensar que a história também é anulada. Pois para construirmos relações uma das premissas é retomar o passado. Caso contrário, as discussões se tornam ingênuas e não promovem êxito algum, aprisionando e mantendo as contradições histórias da nossa sociedade, de acordo com o pensamento de Saviani (1999). Para muitos de nós, a questão ambiental é bastante nova. Mas o que devemos saber é que elucidações acerca do meio ambiente,o que nos arriscamos a dizer, estão presentes na nossa sociedade desde a origem da espécie humana, uma vez que dependemos diretamente da natureza para a nossa sobrevivência e, portanto, a necessidade de se pensar e criar estratégias mais adequadas e produtivas de se relacionar com o ambiente é essencial para o nosso sucesso evolutivo. Sob esse olhar, a HA nos fornece contextos históricos amplos para que possamos compreender de que forma o percurso de influências naturais e sociais compuseram a nossa sociedade. E assim auxiliar na articulaçãodos conteúdos de ensino de ciências, para uma consciência história e voltada a compreensão da realidade de hoje e de amanhã, com a intenção Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 94 de gerar mudanças que signifiquem melhorasna vida coletiva, a partir do convívio harmônico e cooperativo do homem com o seu meio ambiente. Uma breve explicação sobre História Ambiental De acordo com os trabalhos publicados sobre o tema, o campo de estudo se destaca na década de 70, o que nos convida a dizer que essa área é embrionária e, portanto, merecedora de discussões que consolidem os seus pressupostos. Em épocade grandes mudanças ideológicas e culturais, a HA obtém espaço quando o papel da natureza começa a ser repensado e valorizado. A partir disso os estudos começam a rejeitar a ideia de que o homem está isento das ações da natureza e é uma espécie singular. Não mais permite uma visão ingênua da experiência humana, abdicada das influências ambientais. E nos permite evidenciar que nem todos os movimentos que ocorrem em nosso meio são derivadosexclusivamente do homem (WORSTER, 2003). Com a intenção de construir uma nova história, não mais presa aos trâmites políticos, o olhar para o passado se expande e inclui o meio ambiente como um dos pilares para se entender a historicidade humana. De acordo com Drummond (1991), a HA recoloca o fator tempo. Em detrimento ao tempo social, possui como pressuposto o tempo geológico, o que torna a espécie humana apenas mais uma peça de um grande quebra-cabeça. Nessa nova direção, em que a ação humana não consegue ser explicada por si só, o homem não ocupa o papel do único responsável pela formação social. As características e influências naturais também são fatores considerados para se compreender um determinado contexto. Por ser o espaço natural a construção de distintas áreas do conhecimento, busca-se em variadas fontes elementos que subsidiem o entendimento das inúmeras relações existentes no meio, caracterizando uma interdisciplinaridade aparente. Essa proposta é essencial para iniciar a compreensão do passado através da paisageme entender as causas e consequências das transformações que fazem parte de temas significativos da história humana. Nesse sentido, a HA expande a nossa visão do passado. Nos tira do papel central da história e nos convoca a colocar a espécie humana em conjunto com outros fatores, que em rede se tornam concomitantemente responsáveis por tecer uma narrativa da nossa sociedade. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 95 A História Ambiental como estratégia para o ensino de ciências O ensino de ciências, além de possuir um caráter fragmentado, fortalece a visão da ciência como atividade à margem da sociedade. Isto é, sem interesses e alheio àsquestões políticas, culturais e econômicas. Pois o que mais salta aos nossos olhos éa concepção de cientistas como grandes homens da nossa história, isolados do mundo real e que, depois de determinado acontecimento, descobre uma grande teoria. Um exemplo bastante representativo é a imagem de Isaac Newton ao formular a teoria da gravidade, após uma maça cair em sua cabeça. Quando renegamos a história da ciência contribuímos para tal situação. A atividade, que é uma prática essencialmente humana e, portanto, munida de aspectos culturais e construída a partir de inúmeros e coletivos trabalhos, desprovida de sua história se torna no mínimo insipiente. A história da ciência no ensino não tem a pretensão de formar cientistas, muito menos que os estudantes se tornem capazes de resolver os embates científicos. Pelo contrário, espera-se que se construa uma reflexão acerca das perguntas que ainda devem ser feitas, das respostas que consideramos como válidas e das evidências que nortearam as respostas e que podem incitar outras perguntas (MATTEWS, 1995). Mas como ir a favor de tais premissas sem se valer de uma história linear e produto de um apanhado de datas e fatos? Um instrumento interessante que pode redimensionar a história dentro do ensino é a HA. Visto queseu objeto de estudo é o ambiente, diferentemente da história tradicional que limita seu estudo a um período político. Também parte do pressuposto de que colher aspectos das diversas áreas do conhecimento é relevante para se formular compreensões. Portanto as ciências humanas e naturais interagem, abrindo espaço para um novo sentido. A atividade científica se torna humana e, consequentemente, associada a cultura, aos jogos de poder, aos interesses econômicos e a todo o contexto que envolve a comunidade científica (PATACA, 2010, p. 164). Outro aspecto fundamental para destacar é a necessidade de aproximar o ambiental e o social. E, deste modo, incluir em nosso estudo os aspectos culturais do homem, principalmente investigar os significados que foram sendo construídos sobre a natureza e que caracterizam as práticas humanas (WORSTER, 1991), as quais foram sendo modificadas ao longo do tempo e que são reflexos diretos das distintas formas de interpretar o mundo (MARTINEZ, 2006). Consequentemente o exercício científico se configura de acordo com tais transformações. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 96 Acreditamos, com base no exposto, que a HA auxilia na construção de uma nova concepção da ciência e de sua história. Investigam-se dados sociais e ambientais para entender, por exemplo, a exploração da Mata Atlântica e o papel das instituições científicas nesse contexto, como muito bem formulado por Dean (1996). Gerando novas perspectivas para o ensino e para a construção do conhecimento em ciências. A História Ambiental em prática A primeira questão que merece ser apresentada é a de que, por ser a HA ainda um campo embrionário, não consideramos ser possível determinar qual prática contempla ou não com precisão a HA. A intenção de exemplificar com estudos o que acreditamos ser um possível caminho para a HA no ensino, é gerar reflexões futuras de como essa estratégia pode ser significativa para o ensino de ciências. No artigo de Martinez (2004), o autor apresenta o projeto “História e Meio Ambiente: estudo das formas de viver, sentir e pensar o mundo natural na América portuguesa e no Império do Brasil (1500-1889)”.Em síntese, o trabalho, em uma de suas etapas,constitui-se na investigação das relações entre natureza, ser humano e sociedade dentro do período proposto. A metodologia empregada se baseia na coleta de dados sobre o clima, paisagens, minerais, flora e fauna. E que comportavam três variantes: maneiras de pensar, de viver e de sentir.Em que dados sobre legislação, culinária, crenças, medicina, entre outros, eram contemplados. As informações foram obtidas por meio das percepções presentes nos relatos de viajantes e cronistas dos séculos XVI ao XIX, memória coletiva e História Oral (MARTINEZ, 2004). Com o olhar para o procedimento desenvolvido, como esse encaminhamento pode nos ajudar a pensar no ensino de ciências? A favor do argumento de que o ensino de ciências deveria ser,simultaneamente, em e sobre ciências (MATTHEWS, 1995, p. 166)o modo como o projeto se articulounos ajuda a compreender o período por meio de diferentes óticas. Nos insere em um entendimento local e temporal.Logo, partindo do pressuposto de que são as concepções dos sujeitos que orientam suas práticas, podemos nos aproximar da ciência realizada naquele período e região, sem nos valermos de definições anacrônicas. Caminho fecundo quando desejamos provocara conscientização temporal, espacial e cultural para o homem emergir e cada vez mais intervir em seu mundo ativamente e com responsabilidades (FREIRE, 1997). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 97 O artigo de Bacci e Pataca (2008) relata a proposta do curso "Educando nas águas do Pirajuçara: uma proposta de Educação Ambiental" desenvolvido pelo grupo TEIA 1 .O projeto propõe percorrer o entorno do rio Pirajussara, por meio de quatro módulos: 1) Educação ambiental, sustentabilidade e participação.2) Ciclo da água no planeta – aspectos teóricos e metodológicos.3) Aspectos sociais, institucionais e econômicos da água.4) A água: aspectos históricos e geográficos. Avaliamos que o percurso escolhido, é bastante rico para novas estratégias no ensino de ciências. Devido a metodologia empregada se beneficiar de aspectos sociais e ambientais para a discussão sobre a água, tema que classificamos como estruturante para o ensino de ciências. Nos convida a percorrer conteúdos históricos e atuais, políticos e culturais de específica área ambiental, procedimento adotado na HA. Nos fornece a oportunidade de ultrapassar o ensino conteúdista, quando deixa prevalecer uma temática de relevância social e percorre diferentes dimensões para discutir e refletir sobre determinada problemática(AULER, 2007). Esse andamento possibilita evidenciar a complexidade que nos é intrínseca e a necessidade de promover visões integradas de nosso mundo. Para os dois trabalhos, presumimos que é possível construir discussões acerca da natureza da ciência e a influência simultânea entre o homem e o meio em nossa formação cultural e ambiental. Deste modo, estratégias como essas podem auxiliar os educadores a reformularem os seus currículos de ciências com temas que fomentem o desenvolvimento de novas posturas. E a educação poderá retomar o seu papel de encarar a realidade atual no espaço escolar para gerar mudanças sociais. Nossas considerações Tivemos a intenção depensar em novas possibilidades para o ensino de ciências por meio de estratégias históricas. Incitar a discussão em relação a HA e ciências para gradualmente inserir práticas que se voltema contextos mais próximos dos alunos e que os possibilitem a olhar criticamente o mundo, por meio de conteúdos significativos para as suas realidades. Nesse 1 TEIA – USP Laboratório de Educação e Ambiente formado por professores e alunos da Faculdade de Educação (FE), do Instituto de Geociências (IGc) e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades Universidade de São Paulo (EACH). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 98 sentido, é que julgamos que o ensino possibilitará a formação de indivíduos que construam ações coletivas para a melhoria social e ambiental, repensando valores e participando politicamente de atividades concretas que envolvam a sociedade e a prática científica de um modo geral. Referências Bibliográficas AULER, D. Enfoque ciência-tecnologia-sociedade pressupostos: para o contexto brasileiro. Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, 2007. BACCI, D. C. e PATACA, E. M. Educação para a água. Estudos Avançados, v. 22, n. 63. 2008. p. 211 - 226. DEAN, W. A ferro e fogo – A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Companhia das letras. 1996. 486 p. DRUMMOND, J. A. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 4, n. 8. 1991. p. 177 – 197. FREIRE, P. Pedagogia da esperança. Um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 127 p. 1997. MARTINEZ, P. H. Laboratório de História e meio ambiente: estratégia institucional na formação continuada de historiadores.Revista Brasileira de História, v. 24, n. 48. 2004. p. 233 – 197. MARTINEZ, P. H. História ambiental no Brasil – Pesquisa e ensino. São Paulo: Cortez Editora. 2006. 120 p. MATTHEWS, M. R. HISTÓRIA, FILOSOFIA E ENSINO DE CIÊNCIAS: A TENDÊNCIA ATUAL DE REAPROXIMAÇÃO. Cad. Cat. Ens. Fís, v. 12, n. 3. 1995. p. 164 – 214. PATACA, E. M. A natureza sob um olhar histórico: possibilidades de articulações entre saberes na educação ambiental. In: TRISTÃO, M. e JACOBI, P. R (org). Educação ambiental e os movimentos de um campo de pesquisa.São Paulo: Annablume. 2010.p. 163 – 186. SAVIANI, D. Escola e democracia.Campinas. Coleções polêmicas do nosso tempo. 1999. 104p. WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 4, n. 8. 1991. p. 198 – 215. WORSTER, D. Transformações da terra: para uma perspectiva agroecológica na história.Ambiente e sociedade. v. VI. n. 1. 2003. p. 23 – 44. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 99 PELO FIM DA FALSA DICOTOMIA ENTRE NATUREZA E SOCIEDADE: O AGENCIAMENTO RECÍPROCO Carlos Alvarez Maia Universidade do Estado do Rio de Janeiro Professor de Teoria da História e de História da Ciência Doutor em História [email protected] O conceito de agenciamento recíproco é um conceito fundamental para a solução de duas dificuldades da pesquisa contemporânea em história das ciências. Uma delas é a que provém da dicotomia sujeito-objeto usual nas antigas teorias do conhecimento. E a outra é a que decorre da ruptura entre as coisas da natureza e as da sociedade, uma separação que já orientou a distinção entre ciências sociais e naturais. Inerente a essas duas dificuldades encontra-se, sub-repticiamente, uma idealização sobre o que é o humano. A exaltação do homem racionalista tornava-o um ser mítico, com propriedades excepcionais que lhe davam uma existência particular e separada do mundo. Ele era extraído de sua prática que efetivamente o constituía no devir interativo cotidiano com os demais humanos e com a materialidade, a natureza. Assim criou-se uma entidade que configurava um autor com plena autonomia de ação e decisão frente a qualquer intervenção exógena. Esse é o sujeito de arbítrio do Iluminismo, um senhor de si, um senhor de seu destino e, quiçá, senhor do mundo. Tal idealização fortalece a separação entre sujeito (os humanos) e objeto (as coisas do mundo) dando-lhes funções radicalmente diferenciadas: o sujeito – o senhor – é ativo e o objeto, inerte, é passivo. A interação entre eles é desequilibrada. O sujeito é o agente de toda atividade e a coisa material é incapaz de agenciar. As coisas do mundo, animadas ou inanimadas, interagem com os humanos por sofrerem as agências dos indivíduos. São indivíduos com vontade e capacidade de reflexão que fornecem à agência humana uma característica particular: ela é intencional. A relação cognitiva, nessa perspectiva, é centrada no sujeito que extrai das coisas seu conhecimento sobre o mundo. O saber é um instrumento do sujeito para interagir e transformar as coisas do mundo. Temos aí o modelo representacional: o sujeito interpreta os eventos, através de representações mentais, que servem de guia para suas ações. Nessa figuração idealista, a relação dicotômica sujeito-objeto torna-se paradigmática e, ao se generalizar, expande seu valor metafísico e promove a separação entre aquilo que é das Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 100 relações humanas e o que pertence às demais entidades do mundo. Assim fica estabelecida a ruptura entre sociedade e natureza. A primeira seria o território das interações intencionais que solicitam o olhar compreensivo e, a segunda, o lócus da causalidade material que implica no modo explicativo. Como decorrência desse mesmo vício construiu-se a separação cognitiva – uma distinção teórica e metodológica – entre as disciplinas acadêmicas: ciências compreensivas (Geisteswissenschaften, ciências do espírito) e ciências explicativas (Naturwissenschaften, ciências da natureza). Essa divisão impõe à história das ciências uma posição ambivalente e orientações problemáticas para seu ofício. Aonde a história das ciências se situa? Por ser história, ela pertence a um dos setores da cognição – a compreensão – e, por se dedicar à atividade científica, ela também deve se submeter ao outro – a explicação. Assim, a história das ciências tornou-se uma entidade bicéfala, ela deve obediência a dois patrões. Com esse duplo pertencimento, os dilemas conceituais acirram-se e aquela dicotomia sujeito-objeto – outrora pacificada pelo mito cognitivo do racionalismo – mostrará suas graves inconsistências. Vejamos. (1) Por um lado, pelo pertencimento à área das humanidades “compreensivas”, o foco dos estudos concentra-se em atos de volição individuais ou coletivos que se distribuem em jogos e movimentos de interesse que regem conflitos, negociações, acordos e consensos. O que há de comum nas ciências humanas aí situadas é a promoção de teorias da ação centradas na intencionalidade do(s) autor(es). O conceito de agência elaborado nessas teorias de ação é caracterizado por atos intencionais e o agente da ação típico é o indivíduo. A agência é um ato exclusivo do sujeito. (2) Por outro lado, obediente à lógica da natureza, a história das ciências deveria acatar uma estrutura explicativa causal típica das relações entre os elementos naturais. Aqui não há intencionalidade a ser compreendida, há causas e seus efeitos a serem explicados. As teorias de ação nesse caso restringem-se às relações materiais. “O campo gravitacional terrestre define o movimento dos projéteis”. “A presença de bactérias condiciona a fermentação”. Assim, a interação entre os objetos materiais dá-se na instância físico-química e a “agência” que ocorre – por um abuso de linguagem, suponha que aqui também ocorra um agenciamento – é de natureza totalmente diversa da agência humana, sem suas intenções. Consistente com esse olhar (2), o sujeito foi banido para o exterior das relações e tornou-se um observador, “objetivo”. O sujeito não participa das relações entre as coisas materiais. Assim se construiu a ficção de uma “ciência sem sujeito” na qual pouco há para a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 101 história fazer. Bastante razoável que uma história das ciências desse tipo seja, em geral, uma história de historiadores ausentes. Ela é uma extensão da ciência assim “historiada”. O sujeito observador extrai das relações causais, através do olhar e do pensamento, uma narrativa na qual ele se omite como figurante. Essas relações causais entre os objetos são por ele estabelecidas como tais pelo uso da sua razão e observação. O sujeito produz representações das coisas e do mundo, mas não agencia os objetos. Por (1) e (2) reafirma-se a separação entre os sujeitos, humanos, e os objetos naturais. A coerência dessa partição gerou desafios explicativos-compreensivos para a história das ciências. Por (1), todas as ciências sociais desembocam no relativismo interpretativo. Cada indivíduo, ou cada coletivo, produz uma interpretação baseada em sua vontade – ou em seus condicionantes histórico-sociais. Nesse relativismo, o sujeito é o único elemento ativo e o objeto, um participante passivo. Já por (2), as representações realizadas pelos sujeitos simplesmente atestam as relações entre as coisas, são retratos de “fatos” reais, concretos. Os autores da descrição não participam da cena retratada. Produz-se uma imagem estrita do real, sem a figuração do sujeito. Somente os objetos são ativos, são agentes. E aqui a historiografia das ciências desemboca no realismo. Como sair desse imbróglio? Realismo ou relativismo? Entramos em um labirinto de becos sem saída. Nesse emaranhado idealista somente encontramos armadilhas conceituais e equívocos explicativos. O conceito de ação, um agenciamento típico das relações humanas, torna-se insuficiente para dar conta das interfaces do homem com o mundo material. Além dessa, há outras questões insolúveis. Sujeito ativo ou passivo? E a agência material, dos objetos, como fica? Como incluir os objetos em uma teoria da ação? Apresento uma solução para esse imbróglio, rigorosa e bastante simples. Ela observa mais criteriosamente os conceitos fundamentais que abastecem as práticas humanas que produzem conhecimento na história e na ciência. A orientação aqui defendida parte de uma perspectiva pragmática na qual o jogo societário é considerado como uma interação múltipla: dos agentes sociais entre si e deles com o mundo que os cerca. Há confronto entre pessoas e delas (como sujeitos históricos) com a materialidade do mundo (como objeto, percebido historicamente). O maior obstáculo à compreensão dessa perspectiva talvez seja a percepção da existência das agências materiais. Mas as agências materiais estão aí no mundo, em nosso cotidiano. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 102 A agência material Estamos tão habituados a entender o agenciamento como um ato volitivo de humanos – mas, insisto, a agência não se define pelas intenções, e sim pelos efeitos de sentido produzidos –, que as mais óbvias e cotidianas ações materiais, tal como a exercida pelo ar que respiramos, passam despercebidas, tornam-se invisíveis. Ou as mais impactantes coerções realizadas pelo mundo natural – como as produzidas pelo sol e pelos elementos climático- meteorológicos. A rotina do movimento solar aparente no horizonte é uma das mais primárias determinações dos ciclos diários do nosso metabolismo e da vida em geral. O sol é o agente responsável pela sucessão de estados de alerta diurno e de adormecer noturno para grande parte das formas de vida. Além desse agenciamento vital, há ainda os promovidos pelo clima. O tipo de sociedade que se ergue em uma dada região é extremamente dependente das condições geoclimáticas e meteorológicas, das interações com seu ambiente físico. Lucien Febvre, Fernand Braudel e muitos outros historiadores já haviam observado essa pertinência da agência material na constituição da história humana. Ao lado da sociologia ambiental de Lisa Asplen, uma história ambiental trataria – dentre outros aspectos – das precondições que condicionam o evolver histórico, dos agenciamentos materiais sobre a sociedade e da ação dela sobre o meio ambiente. Além desses aspectos mais gerais de intervenção e que são constituintes básicos do mundo material, há outros mais sutis, que afetam (Derrida, 1999, p. 13) inesperadamente os viventes em seus fazeres cotidianos. São interações situadas em cenas específicas da vida, nas quais o ambiente físico oferece soluções para o viver. Imagine-se o homem primitivo em suas andanças e que se depara com uma gruta protetora ao cair de uma noite fria e chuvosa. Esse abrigo imprevisto é o resultado de uma agência material sobre o indivíduo nômade. A natureza afetou, apresentou sua sugestão de uso, fez sua indicação de uma aplicação prática para aquela gruta, sugeriu-lhe uma função. Cabe ao indivíduo captar a “recomendação” feita e simplesmente usá-la. 1 Essa interação homem–natureza não solicita espaço para ações 1 Essa talvez seja a origem para a significação imaginária que os tempos futuros deram ao conceito de “lar”, de “casa”. Essa “casa” não surgiu de uma representação, de uma ideação intencional de um “arquiteto” primitivo e, sim, do encontro contingencial de uma gruta, que permitiu uma percepção para sua utilização. A mesma situação ocorre com a descoberta súbita de um rio piscoso, de uma árvore frutífera, de uma manada de ruminantes. Todas sugerem um tipo de atividade, de prática, que implica em uma forma de vida, em trabalho para facilitar a sobrevivência, como a pesca e a agropecuária. Uma forma de vida é condicionada pelo ambiente. Um grupo social passa de nômade a sedentário impulsionado por certas condições materiais. A pecuária e a agricultura foram recomendações de possibilidades ofertadas pela natureza. Lisa Asplen (2006, p. 327) dá ênfase a essa noção de “recomendação”, observando, porém, seu caráter não determinístico. Ela cita o trabalho de Kate Soper: “Como Soper (1995) explica, uma agência material “pode recomendar” certos tipos de ação, e ela sempre terá Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 103 intencionais – nem do homem nem da natureza – e oferece um claro exemplo de como a agência material ocorre, estimulando certas práticas e estilos para a ação adotada pelas formas de vida. Nesse caso, vemos que a materialidade do mundo estabelece não só coerções e limites, mas apresenta também novas possibilidades para o agir e viver humanos; o meio ambiente se apresenta como recurso material para sustentar a sociedade. A agência material “recomenda” seletivamente algumas transformações para o viver social. Outra expressão forte da agência material é a envolvida nos processos de alimentação. Os hábitos alimentares decorrem de interações milenares que acumularam múltiplas “recomendações” da natureza para comporem os diversos registros culturais. Cada alimento assim se constituiu ao sugerir seu uso como tal, como ocorre com as frutas que já se apresentam, pela cor e aroma, como algo comestível. Outros produtos exigem uma longa cadeia histórica de experimentações que afetaram os sentidos. É o que acontece com o patê de foie gras francês ou com a tortilla mexicana. Em geral, todos os hábitos e costumes sintetizam esse acúmulo de experiências trazidas pelas agências materiais. As diversas habilidades técnicas foram desenvolvidas a partir do que é oferecido pelo ambiente. Parece-me evidente que se deva considerar a ação das coisas sobre as pessoas ao lado da típica intervenção dos “humanos” sobre os objetos. Afinal, a situação que avaliamos é a de uma interação da qual tudo e todos participam: pessoas e coisas, natureza e sociedade. Contudo é uma ofensa à descrição etnográfica supor – tal como Latour apresenta – uma simetria idealizada e preexistente à cena que se tenta descrever. O grande desafio para uma descrição mais fidedigna à historicidade do saber científico é mostrar como as coisas atuam sobre as pessoas, como efetivamente ocorre uma agência material sobre os “humanos” e como os agentes naturais interferem na produção do saber. Ou seja, como portas, lombadas na estrada, moluscos e bactérias agenciam e participam dessa construção. Agenciamento como ato também simbólico Além disso, o que vimos até agora sobre a agência material já mostra que essa agência é algo que vai além de um mero agenciamento físico, como o contato entre as partes do agenciamento. O agenciamento é algo que ocorre na instância simbólica. Esse é um registro uma palavra a dizer na determinação dos efeitos de nossas ações.” (“As Soper (1995) explains, material agency ‘may recommend certain types of action, and it will always have its say in determining the effects of ours actions’.”). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 104 fundamental a ser considerado. As agências se dão no registro concreto da ação física e também no registro abstrato da significação simbólica, como ocorre nas “recomendações”. Certamente o esquema sujeito–objeto é incompleto e ineficiente para retratar esse embate interativo, pois nele se perde o essencial, ou seja, a reciprocidade da interação. O sujeito interage com algo, o seu objeto, ao reconhecê-lo como tal. Em cada interação, o sujeito adiciona e extrai significações 2 do objeto. Ocorrendo interação, o objeto torna-se um significante para o sujeito e, dessa forma, atua sobre ele. Há reciprocidade nesse agenciamento entre sujeito e objeto. Se o sujeito aceita a “recomendação” de uma fruta como algo comestível e a adota como algo com significado para sua sobrevivência, então a fruta e o sujeito se transformarão através do cultivo e consumo continuados dessa fruta. Essa interação parte das significações instituídas e que, em seguida, serão reconstituídas. Um objeto comparece ante um sujeito sempre vestido de significações. Não há nem sujeito nem objeto isolados, despidos. Há ação recíproca em um processo contínuo de significação no devir histórico. 3 As interações são traduzidas nas e pelas significações. Toda interação humana possui uma aspecto material, dado pelo confronto físico, e outro simbólico, dado pela acareação das significações. E esses aspectos estão imbricados, são dois registros inseparáveis. Os agenciamentos interativos ocorrem como sobreposições do simbólico e do material. As percepções humanas estão condicionadas pelo regime de significações aposto à materialidade. Dessa maneira, todo intercâmbio material é acompanhado por uma significação historicamente constituída. Se algo interage com o sujeito, mesmo sendo um objeto inanimado, ele já apresenta para o sujeito sua face simbólica, seu pertencimento ao mundo histórico. Ocorrem, assim, dois impactos no enfrentamento do realismo absolutista: • no caso da atividade científica, essa compreensão acarreta a consideração de que os objetos naturais já chegam ao cientista vestidos de significações históricas. Social e natural não se separam – da mesma forma como os registros simbólico e material se encontram amalgamados –, e deixa de ter sentido pensar em Sociedade e Natureza como duas entidades ontológicas. Com isso, a ontologia dos objetos fica 2 Uma significação é um ato simbólico que envolve sujeito e objeto. E as práticas discursivas estão definidas pelas significações envolvidas. Dessa forma caracterizo linguagem, em sentido lato, como tudo aquilo que porta significações. Uma noção que expande a de linguagem, em sentido estrito, como um sistema de sinais. 3 Já Marx caminhava nessa direção quando se fundamentava nos conceitos de “trabalho” e de “modo de produção”, conceitos que se apoiam no intercâmbio – obviamente recíproco – entre sociedade e natureza. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 105 comprometida e deixa de confundir uma entidade qualquer, social ou material, com o Ser metafísico; • toda narrativa é uma articulação de significações historicamente produzidas, e isso retira das narrativas quaisquer pretensões a expressarem condições absolutas. Há uma estrutura simbólica de significações estabelecida socialmente que fornece valores relativizados. E mais uma vez a ontologia é desafiada com novas doses de relativismo. Trabalho como prática discursiva Contrariando a visão do mentalismo racionalista, traço um esboço inicial da presença da linguagem, em sentido lato, na interação entre pessoas e coisas. Entramos no território das práticas simbólicas, discursivas. Assim convoco o conceito marxista de trabalho, associado às ferramentas, para mostrar as práticas discursivas como base do agenciamento simbólico- material interativo, vale dizer, recíproco, no qual sujeito e objeto são simultaneamente constituídos durante a interação. Isso é, através do trabalho e das ferramentas os indivíduos transformam as coisas enquanto eles mesmos são igualmente transformados. Para tanto, é fundamental a concepção de que a instância simbólica integre os agenciamentos materiais típicos, o que acarreta estarem sociedade e natureza amalgamadas em um agenciamento simbólico-material. Não faz nenhum sentido, nessa proposição, temer o relativismo do construtivismo sociológico por sua aparente e enganosa redução do saber científico a um jogo dos “humanos entre si”. O conceito de “social” encontra-se expandido aqui para tratar de forma inclusiva natureza e sociedade ao reunir o material com a instância simbólica. Dessa maneira, não encontro motivo algum de alarme contra a sociologia e o fantasma de seu relativismo. Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeças e mãos –, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica a sua própria natureza. (MARX, 2002, p. 211) Uma clara evidência de como a agência material atua é observada ao se analisar o trabalho em sua interatividade material e agenciadora. Desde a mais arcaica pré-história Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 106 humana há trinta mil anos, o trabalho solicita aparatos materiais para a sua efetivação, aos quais Marx denominou de meios de trabalho: “O uso e a fabricação de meios de trabalho, embora em germe em certas espécies animais, caracterizam o processo especificamente humano de trabalho” (Marx, 2002, p. 213). 4 Esses meios são encontrados, ao lado da própria terra e de animais domesticados, em cada ferramenta e utensílio fabricado desde os tempos mais remotos. O mesmo pode ser dito dos instrumentos e aparelhos técnicos mais recentes. Cada artefato produzido é uma consequência, um produto acabado do agenciamento ocorrido. A ferramenta decorre da interação homem–natureza, ela é uma produção humana, porém também é simultaneamente um produto natural. Cada ferramenta captura sentidos do mundo como também inscreve significações nesse mundo. 5 São significações preexistentes no trabalhador: Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá- la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. (MARX, 2002, p. 211-212) A unidade das palavras e das coisas e as práticas discursivas Como as coisas do mundo são apreendidas pelos sujeitos falantes? Como a materialidade veste-se em literalidade? Como as coisas encontram as palavras? Vamos em busca da cena originária hipotética que envolve o encontro das coisas com as palavras, vamos para esse tempo anterior ao da palavra. Focalizemos a cena corriqueira na qual esse encontro misterioso ocorre. Esse evento se materializa em inúmeras situações em nossas práticas diárias, seja pelo impacto inesperado – antes de sua nomeação – de uma gota de chuva no rosto, ou por um ruído súbito não identificável, ou por um aroma incógnito, ou pelo surgimento de uma sombra imprevista... Algo, ainda desconhecido e enigmático, aconteceu, mas aconteceu o quê? Ainda não se sabe, somente percebe-se que ocorreu um algo 4 “O meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto do trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto.” (Marx, 2002, p. 213) 5 Como as ferramentas decorrem de uma interação com o mundo, isso implica que cada ferramenta deva capturar do mundo a maneira correta de interagir. A função específica de uma ferramenta deve obedecer às necessidades que lhe são dadas – esse é o sentido capturado do mundo. Assim, a diferença de design entre a chave de fenda e o martelo reflete essa captura de sentido diferenciado que o uso de cada um obriga. Evidentemente que o uso da ferramenta produz significações as quais são o resultado desse uso: o serrote produz um corte na madeira, uma transformação. Esse corte é também uma significação inscrita na madeira, o sentido de seu uso. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 107 diferente. Esse algo é um simples traço perceptível. Aquelas percepções são traços que afetam. Eis aí e assim o momento em que o mundo real surpreende e invade a cena de vida de cada sujeito, eis como o real – não simbolizado, não verbalizado – mostra-se à realidade humana, histórica. Lacan faz uma útil distinção entre real e realidade, na qual o real precede a linguagem e a letra, e até resiste à simbolização. Já a realidade – historicamente constituída – suga o real para dentro da linguagem, para o interior dos signos destinados a escrevê-lo e, dessa maneira, neutraliza-o. Porém o real hipotético está sempre lá, fora da linguagem, “separado de nossa realidade” (Fink, 1998, p. 44), pronto para invadi-la. 6 Assim, eis a fábula do evento primordial: “E no princípio, antes do Verbo, era um simples traço diferencial...”, no qual a coisa mostra-se apenas como diferença, um rastro sem a presença de qualquer significação – tão somente a sua diferença é percebida. É um algo, uma coisa, que afeta nosso aparelho sensório. E esse fabular cênico é estritamente relacional, entre o traço e o sujeito afetado. O traço tão somente marca uma diferença; ele não remete a nada. O traço “real”, um vestígio do Real, atravessa a realidade historicamente constituída e pode ser percebido pelo agente nessa realidade. No entanto, o traço se encontra aquém das palavras, é simplesmente uma diferença que “se anuncia como tal” – declara Derrida, “é preciso pensar o rastro antes do ente” (1999, p. 57). 7 Ao considerar de maneira mais concreta essa invasão do real do mundo “extralinguístico” no cenário das ações humanas, permaneço aqui, agora, refletindo ao escrever essas palavras, enquanto observo uma ultrassonografia preenchida por manchas desiguais, por traços, rastros derridianos, na qual as manchas de claros e escuros não me remetem a nada. Para a minha observação leiga, esses traços só mostram diferenças visuais, de tons. Um especialista, contudo, delineou com sua caneta um contorno e anexou-lhe uma designação: “feto no quinto mês”. Ele nomeou uma diferença exposta pelo traço; a diferença constituída no traço tornou-se significante. As formas de significação partem da captura da 6 Uma síntese desse olhar lacaniano encontra-se em Fink, 1998, especialmente no capítulo três, “A função criativa da palavra” (p. 43-52). Ver também essa discussão em Derrida, 1999, p. 79. 7 Derrida utiliza o termo “la trace” que foi traduzido por “rastro” em Gramatologia. Parece-me pertinente a observação de Claudia Rego, que prefere o termo, já consolidado em psicanálise, “traço”. Rastro sugere uma relação figurativa com a marca deixada por um animal, o que não é o caso para o conceito “la trace”, que não figura, não remete a nada, somente marca a diferença: “a partir do rastro ou pegada de um animal, você pode, pela forma do rastro, que decalca a pata, saber de qual animal se trata” (Rego, 2006, p. 151). Eu preferi seguir a indicação de Rego e uso preferencialmente o termo “traço”. Ver, por outra parte, a justificativa dos tradutores de Derrida da escolha de “rastro”, “pois [trace] se refere a marcas deixadas por uma ação ou pela passagem de um ser ou objeto” (Derrida, 1999, p. 22); ver também seus empregos, especialmente em Derrida, 1999, p. 56-58, 77- 81 e 86-89. “O rastro é a diferença que abre o aparecer e a significação” (Derrida, 1999, p. 80). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 108 diferença, do traço que se institui (Derrida, 1999, p. 80). Após a nomeação, a coisa se fez um ente – uma presença, um objeto. Porém, para que o traço se faça uma presença é solicitada a participação de um sujeito. De um sujeito afetado pelo traço. Ante a ultrassonografia, o leigo naquela prática é afetado por manchas: ele vê manchas. Já o especialista na prática que produziu aquele artefato, a ultrassonografia, é afetado por um “contorno fetal” que lhe é visível: ele vê um feto. Ele vê o feto, por ser sujeito em uma prática discursiva, uma prática na qual a palavra “feto” já circula semanticamente em um estilo de pensamento fleckiano. Esse estilo, por sua vez, já conduz uma taxonomia para o mundo, taxonomiza a realidade histórica constituída naquela prática, naquele coletivo de pensamento, por intermédio do Gestaltsehen 8 – essa a sua condição sine qua non, isto é, a condição para nomear o traço, para identificar o traço no protocolo de sua prática discursiva, a qual o submeterá à sua gramática. Aquele traço afeta tanto o leigo quanto o especialista, como pura diferença percebida como tal, porém cada um desses sujeitos resolve essa percepção – essa afecção/afeição 9 – dentro do seu próprio universo discursivo, de sua semântica, de seu léxico, enfim, de suas condições históricas de subjetivação. São sujeitos históricos que trabalham no interior de suas respectivas historicidades constitutivas, de seus coletivos/estilos de pensamento. O leigo nomeia “mancha”, o especialista, “feto”. Uma percepção para cada Gestaltsehen. O real do traço é conduzido para o interior da realidade simbólica, ele invade e atualiza a realidade histórica. Assim o traço ingressa na linguagem: torna-se uma inscrição; recebe o batismo simbólico, das palavras. Por meio do Gestaltsehen, o traço “abre o aparecer e a significação” (Derrida, 1999, p. 80). Eis o salto de coisas a palavras. A coisa-objeto, ativa, irrompe na cena 8 Em Fleck, essa maneira de “ser afetado” é apresentada pelos conceitos Gestaltsehen (“ver formativo”, o perceber orientado) e pelos conceitos Sinnbilder (“imagem-sentido”, ilustração visual, imagética de certas ideias e sentidos) e Sinn-Sehen (“ver-sentido”, uma percepção visual do sentido). As percepções sensórias são condicionadas pelo coletivo do pensamento que define um ver direcionado e produz sentido. Em termos da semiologia atual, diríamos que, em Fleck, o consenso intersubjetivo é estabelecido em torno dos efeitos de sentido produzidos nos “leitores” pelos afetantes, pelas sensibilizações. Assim, cada coletivo fleckiano padroniza o mesmo modo de “ver”, de perceber o mundo, de ser afetado pelas coisas do mundo. “A percepção da forma (Gestaltsehen) imediata exige experiência numa determinada área do pensamento: somente após muitas vivências, talvez após uma formação prévia, adquire-se a capacidade de perceber, de maneira imediata, um sentido, uma forma e uma unidade fechada. Evidentemente, perde-se, ao mesmo tempo, a capacidade de ver aquilo que contradiz a forma (Gestalt). Mas essa disposição à percepção direcionada é a parte mais importante do estilo de pensamento. Sendo assim, a percepção da forma é uma questão que pertence marcadamente ao estilo de pensamento” (Fleck, 2010, p. 142). 9 Como já mencionado, Derrida utiliza “affection” jogando com o duplo sentido afecção/afeição do termo. Ver alerta de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro (Derrida, 1999, p. 13, nota), tradutores de Gramatologia, ao proporem o uso do termo afeção. Derrida, em sua crítica ao logocentrismo fonológico, descreve situações nas quais esse fonologismo entre o som e a produção do sentido se dá por meio das afeções da alma, base para o sentido pensado no logos (Derrida, 1999, p. 14). Independentemente da crítica derridiana, o que realço aqui é a circunstância do termo como mediador para a produção de sentido. Ao referir-se a Hegel, Derrida menciona as impressões sensórias da visão e da audição como formas de “affection” (Derrida, 1999, p. 14), tal como situa no ato de ouvir o som da própria voz: “o sujeito afeta-se a si mesmo” (Derrida, 1999, p. 15). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 109 e mostra-se ao sujeito passivo. Esse é o fracasso do relativismo: há um agenciamento material concreto dado pelo traço. Recupera-se, aqui, algo comum ao realismo científico. Porém, agora, com uma distinção fundamental em relação a esse realismo: o sujeito também atua ao inscrever o traço na realidade. O sujeito, submetido à coerção de seu estilo de pensamento, “vê” o sentido dado por aquela inscrição ao estar ante o traço. Ao contrário da compreensão realista, a inscrição – realizada pelo sujeito – obedece ao código do relativismo, é subjetiva. Realismo e relativismo misturam-se e se descaracterizam. Enquanto estivermos no momento de um puro traço, o sujeito é afetado e o traço detém a ação, o sujeito encontra-se inerte e sofre o agenciamento do traço. Porém, ao completar o processo que se inicia com a emergência do traço e termina com a inscrição, as funções de agenciamento se invertem. O sujeito torna-se o elemento ativo, ele atua por intermédio de seu estilo de pensamento, um estilo que demarca a especificidade histórica e sociológica desse sujeito. Na produção do conhecimento, tal como é descrita aqui, sujeito e objeto alternam-se em seus papéis de ativo e passivo, como Fleck (2010) também propõe em sua “teoria do ativo–passivo”. 10 E essa teoria fundamenta nossa hipótese do agenciamento recíproco. No entanto, a captura da “afecction” do traço para o interior da linguagem não é a reprodução do dueto metafísico sensível-inteligível. Ao contrário, há a sua quebra, a sua demissão. As próprias percepções sensórias estão condicionadas pelo seu contexto de realidade. 11 O ingresso do traço na realidade solicita três componentes: um traço diferencial (que afete um sujeito), uma linguagem (que já constitua uma prática discursiva) e um sujeito da linguagem (que seja afetado pelo traço). Fleck considera os mesmos três componentes. 12 A mera designação ou indicação gestual de um traço do mundo já lhe imprime significação, um uso, uma função, uma aplicação, uma classificação. Uma nomeação é seletiva, recorta e focaliza, seleciona um dentre muitos, designa a diferença do traço, destaca- o de seu entorno de contrastes. Já o veste de cultura, impõe-lhe uma nomenclatura, declara-o 10 O sujeito que se encontra “livre” – sujeito ativo – depois de sofrer a afecção dada pelo traço está, entretanto, sob a coerção de seu estilo, ele está obrigado a “ver” naquelas manchas a presença de um feto e, assim, retorna a uma posição passiva. Essa é a compreensão de Fleck da disputa entre realismo cientificista (sujeito passivo, natureza ativa) e relativismo sociológico ou linguístico (sujeito ativo, mundo passivo). 11 O traço pode não agenciar, não enlaçar nenhum sujeito; o traço é a invasão do real na realidade histórica que já lhe seja sensível. Um enólogo detecta sabores e aromas indistinguíveis ao não iniciado, que não é afetado por aqueles traços sutis. Somente no coletivo dos enólogos desenvolve-se a capacidade de sua percepção. O mundo sensório não se desvincula de um estilo de pensamento. A noção de traço desmonta os pilares da distinção entre um conhecimento sensível e um inteligível. Derrida argumenta que a diferença entre duas ordens de expressão, como a fala e a escrita convencionais, é que “funda a oposição metafísica entre o sensível e o inteligível” (1999, p. 77). 12 Ou seja, o saber já constituído, o sujeito e o “real” (Fleck, 2010, p. 50-51, 81, 83 e 136). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 110 objeto e lhe inscreve um sentido, uma taxonomia. 13 Torna-o uma presença: presença objetal, presença textual. E essa inscrição, doravante, será inseparável daquele objeto. O objeto nomeado não mais se apresentará em seu “estado de natureza”, despido, incógnito, amorfo. Estará situado na contraluz de diferenças e semelhanças taxonomizadas que o evidenciam. Será visto, percebido, reconhecido, utilizado, pensado com e por meio de sua inscrição. Essa inscrição retira aquele objeto do anonimato silencioso na multidão e lhe dá distinguibilidade; sua inscrição torna-o visível, audível, torna-o um significante que grita sua diferenciação inscrita para o ouvinte, torna-o um falante. Instaura-se uma cena dialógica, um enlace. Não há palavras em oposição a coisas, objeto de um lado e palavra do outro, há uma unidade: uma coisa-objeto-palavra que produz laço, que afeta. Enlaça em sua unidade aquele/aquilo que foi afetado. Para ver o objeto é necessário distingui-lo. E sua distinção inscrita acena para o leitor, torna-o um signo. O mesmo ocorre com a impressão de uma forma diferencial sobre um objeto, como a modelagem de uma peça de cerâmica compondo um vaso. Torna-se uma inscrição para o sujeito usuário de utensílios, não há mais argila em si, de um lado, em “estado de natureza”, e a forma ideal platônica “vaso”, de outra. Eles compõem agora uma unidade, um objeto com inscrição, ainda que não literal. A forma – o design, a sua atribuição utilitária, a sua função – está inscrita na argila, é inseparável dela. E essa forma percebida que afeta o sujeito, justamente por afetar o sujeito, é transcrita literalmente no termo “vaso”. A forma que afeta – o design – e a designação literal “vaso” são, ambas, inscrições. A fidelidade dessa transcrição, de uma inscrição não literal para uma literal, é garantida pela continuidade do sentido estabelecido pela affection derridiana, naquela relação do sujeito com a inscrição da coisa. Tanto o design quanto a palavra “vaso” portam o mesmo sentido para o sujeito afetado. O traço é a ignição para a produção de sentido, para a significação estabelecida pelos leitores da inscrição. 14 Os objetos do mundo eclodem pelas inscrições que lhes dão sentido, sejam elas literais ou não. São significantes que passam a povoar o mundo, e o mundo torna- se uma imensa escritura e deve ser lido logo que seus traços afetem algum leitor, invadam a sua realidade: “os próprios objetos poderão transformar-se em fala se significarem alguma 13 Essa vinculação do simbólico com o mundo concreto é aplicável amplamente, para todas as coisas, manufaturadas ou ditas da natureza. Um gesto, uma ferramenta ou um utensílio são formas significantes, signos materializados; o mesmo ocorre em relação a um animal qualquer, cuja nomeação classificatória já estabelece uma materialidade para o signo – mamífero, equino, zebra, por exemplo –, forjado como um objeto semiológico, isto é, conduz um sentido. Uma taxonomia é em sua essência uma fôrma de materialização de sentidos: ela enforma e encorpa significantes. 14 “O rastro pertence ao próprio movimento da significação” (Derrida, 1999, p. 86-87); ver também o traço “abre o aparecer e a significação” (Derrida, 1999, p. 80, já citado). Sobre o sentido, ver Derrida, 1999, p. 335, nota dos tradutores. Afinal o sentido é a base, a razão de ser de todo projeto semiológico. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 111 coisa” (Barthes, 1989, p. 133). O débito com os atrevimentos derridianos é impagável, por desconstruir a tradição que se atém à linguagem fonológica – na qual a escrita seria mera consequência, uma representação, da fala, e na qual o conceito “idealizado” antecederia a sua expressão gráfica. Ao demitir o primado do fonocentrismo, Derrida expande a noção de escrita, e ela deixa de ser subalterna: “a linguagem é primeiramente escrita” (1999, p. 45), “a língua oral pertence já a esta escritura” (1999, p. 68). Nessa subversão, abrem-se possibilidades de leitura das inscrições postas no mundo, nos traços do mundo – leitura que interligará os leitores em uma cena histórica, societária. No cenário da realidade histórica, tudo e todos estamos vinculados pelo agenciamento que nos afeta. Lemos e somos lidos, nossas ações afetam coisas e nos enlaçam com outros agentes leitores-inscritores. Dessa forma, a escritura-leitura das inscrições cumpre uma função promotora dos laços constitutivos da historicidade, da realidade histórica. A narrativa histórica e as significações inscritas Habitamos a semiosfera, diz Iuri Lotman (1996), um mundo permeado de significações. É o modo fashion de ser de tudo e de todos, que se encorpam em vestes semióticas. Não há nudez, nada se apresenta em seu estado de “pureza” em si, em seu singelo “estado de natureza”, anônimo e despido de inscrição. Não há corpo sob o texto, mas corpos- textos. As formas fundidas em conteúdos. O mundo e suas coisas, humanas ou não, expressam-se como vestimentas imaginário-simbólicas, com suas texturas de significação, o literal inscreve formas esculturais, o gesto indicial e o uso de signos literalmente inscrevem sentidos, somente há esculturas semiológicas. E a escultura é forma e conteúdo, inseparáveis: letra inscrita em matéria, enformando-a. E mais, como foi dito, essa morfologia é taxonômica: a forma imprime sentido à coisa material, classifica-a, dá-lhe valores, propriedades e qualidades, enfim, adjetiva-a. São adjetivos aplicados a substâncias, encontram-se substantivados e propõem uma nova ontologia para os substantivos. 15 Há uma semiologia que modula o existir, o estar e o devir do mundo; o mundo torna-se uma modulação deleuziana. Enfim, o mundo é um corpo-texto material de múltiplas inscrições. Daqui decorre o dizer renovado, revigorado, outrora expressão militante do construtivismo linguístico: “tudo é texto”, sim, mas textos mais que literais. Essa é a consequência mais direta da noção de 15 Os substantivos, ao nomearem coisas, dão-lhes uma ontologia, podem transformar um ente em ser. Os adjetivos qualificam a ontologia dando-lhe valores – são relacionais. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 112 inscrição de Derrida em Gramatologia, o primeiro instrumento que impõe uma gramaticalidade relacional – como toda gramática, ela expressa a articulação entre as coisas inscritas – para as inscrições esculpidas. A gramática das inscrições materializadas impede coisas em si, em seu “estado de inocência natural”, interdita o nudismo edênico dos seres e das coisas em um idílico mito naturista. 16 Aquilo que é anônimo é igualmente invisível, inaudível, impensável. Não há palavras de um lado e coisas em si de outro, aguardando o encontro. Não há mais como permanecer aprisionado ao idealismo da linguagem, que a separa do mundo, que a supõe um fruto da “razão criadora”. Linguagem como um produto da mente desenvolvido para designar as coisas do mundo real, anteriormente percebidas. Não há esse real, anterior e fora da linguagem. A realidade é o conjunto de coisas-inscrições, já reunidas. Essa é a “hipótese fundamental” de Flusser: “o caos irreal do que estamos acostumados de chamar de realidade surge à tona, aparece ao intelecto, organiza-se em cosmos, em breve: realiza-se nas formas das diversas línguas” (1963, p. 141) 17 . A linguagem não pode se conceber como o resultado de uma série de rebentos e botões, que sairiam de cada coisa. O nome não é como a cabecinha do aspargo que emergiria da coisa. A linguagem só é concebível como uma rede, uma teia sobre o conjunto das coisas, sobre a totalidade do real. Ela inscreve no plano do real esse outro plano a que chamamos aqui o plano do simbólico. (Lacan, 1986, p. 298-299; grifos meus) Com a noção de inscrição derridiana, enfim, ultrapassamos o eterno e insolúvel enigma de uma antiga bipartição metafísica: das palavras em confronto com as coisas, do literal mental e do objeto material; vencemos a aporia do referente: de como as palavras “se ligam” às coisas referidas. Misturamos e fundimos o natural com o social, o cultural. A inscrição é a presença do signo na coisa, a própria coisa como signo. Não há o “problema do referente linguístico”! Há, sim, um pseudoproblema produzido por uma ontologia essencialista, mentalista, idealista e alérgica a uma visão histórica e pragmática do mundo. Um falso problema gerado pela invenção de uma dicotomia que rompeu a unidade historicamente constituída: palavras-coisas. O “problema do referente” é o resultado do corte, 16 Essa produção de materialidade significante, com sentido, ocorre desde o mundo dito “primitivo”, na construção de ferramentas, na definição do clã, dos ritos e mitos, dos ídolos; dá-se como semiologia na agricultura, na caça e na coleta, enfim, ocorre em toda e qualquer relação dos seres entre si ou dos seres com as coisas do mundo. Tudo e todos estão marcados por inscrições. E, nesse sentido, são artefatos tanto reais quanto construídos, já sejam “inventados”, um automóvel saído da linha de produção, sejam “descobertos”, uma nova espécie botânica que entra na taxonomia semiológica, ou o ácido lático de Latour-Pasteur. 17 Nessa passagem, Flusser inclui também, analogamente, ao lado da realidade, o instinto e as impressões sensuais. Todos fazem parte do “caos irreal” que somente “realiza-se nas formas das diversas línguas”. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 113 esse sim problemático, que separou as palavras das coisas e apagou as suas inscrições. Uma visão outra que observe a linguagem em seu uso efetivo pelos agentes vivendo no mundo, em seu modo de agenciar o mundo, nas maneiras pelas quais afetam e são afetados, mostra-nos diferente possibilidade de entendimento. A instauração da linguagem, literal, associada a coisas, dá-se como efeito de sentido – transcrito –, gestado nas inscrições enformadas nas coisas e que afetam o sujeito. Se um toco de madeira sugere seu uso – por suas dimensões e forma constituírem uma inscrição que afeta – como um assento rústico então terá essa inscrição material transcrita literalmente pela palavra que designa aquele uso, aquela função: “banco”. A palavra “banco” se reúne à coisa que já apresentava a inscrição material originária. Essa palavra “banco” é uma tentativa de persistir com aquele sentido que afeta, é a transcrição literal daquela inscrição material. A visão daquele toco ou daquela palavra produz o mesmo efeito – se a transcrição for fidedigna ao sentido que afeta. Diremos, em generalização, que a leitura da inscrição naquele toco ou a leitura da palavra “banco” devem ser índices do mesmo sentido. Inscrição-transcrição compõem um binômio na contínua produção de escrituras. A reunião de coisas e palavras é o mero efeito de uma transcrição, de transcrever em termos literais o sentido inscrito materialmente na coisa. Passamos da coisa para o nome, para a designação literal da característica inscrita e capturada pelo olhar, pelo tato, pelo sabor; enfim, transcrevemos a inscrição em outra inscrição, transcrevemos literalmente aquilo que afeta os órgãos dos sentidos e, assim, produzimos uma nova modalidade de inscrição. Dela, novas transcrições se desdobram. A transcrição é incessante, está em ação contínua. De um fragmento de cerâmica encontrado em um sítio arqueológico, que por essa inscrição afetou o pesquisador, passamos para a inscrição literal “vaso asteca”, e, dessa inscrição, passamos a outras, como o texto desenvolvido em um tratado geral da cultura pré-colombiana – todas, meras transcrições. Reafirmo conclusivamente: a linguagem, em sentido lato, é gestada por qualquer tipo de inscrição, literal ou não. Ela é constituída por tudo aquilo que porta sentido, seja palavra ou objeto, e o sentido é a significação extraída de algo pelo sujeito – sujeito de uma prática discursiva em uma cena semiológica. O fato histórico: a inscrição em sua enunciação Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 114 A linguagem, literal ou não, gestual ou das formas históricas enformadas nas coisas está no mundo: é a humanidade do mundo, é a articulação que inscreve o mundo nos humanos e os humanos no mundo, a realidade é o mundo que se percebe como signo, como linguagem. A inscrição é o dêitico por excelência: aponta e localiza o objeto-palavra, mistura e funde palavra e coisa. Encontra-se aí e assim o que se designa como semiologia dos objetos – na esteira de Barthes –, que ampliou a semiologia para além do literal. E ainda mais, a inscrição é dramatúrgica, é performática, implica agentes em ação em uma cena, agentes que são afetados e produzem inscrições; e é performativa (Austin, 1990): a própria inscrição é um agente. Entramos, assim, no território da pragmática da linguagem, de seu uso, no qual a própria palavra constitui uma forma de ação, como Austin (1990) propôs. O que nos conduz ao segundo instrumento semiológico, complementar, da inscrição, e que nos apresenta à historicidade do texto, do enunciado: mostra-nos a maneira pela qual se dá a construção do texto, a produção das inscrições enunciadas, a linguagem em situação. É o momento e a cena em que se dá a inscrição. Trata-se da enunciação. Ela abre o palco para a ação, para os atores e a performance. Torna visíveis os agentes das inscrições, expõe a cena de agenciamento, os gestos indicadores, as formas literais indiciais, os atos de nomeação e decifração que possibilitam o enunciado. Mostra os enunciados com funções dêiticas que se explicitam nas cenas de enunciação. Ora, se o enunciado – qualquer enunciado, um documento letrado, um artefato, um “ser da natureza” – possui historicidade, então ele nos remete diretamente para as condições nas quais essa inscrição enunciada é produzida. Afinal, as inscrições não surgem do nada, decorrem de uma, de alguma situação de inscrição. Diremos com Benveniste (1989) e Barthes (1987), todo enunciado decorre de uma enunciação. É a relação entre o dito e o dizer. Enfim, trata-se de um “ovo de Colombo” declarado por Benveniste (1989): o enunciado é o produto que emerge de um processo de enunciação, de uma cena semiológica, histórica, na qual a inscrição se fez. E a enunciação é o cerne da questão histórica, é o evento histórico por excelência (Fiorin, 2001). 18 O enunciado aproxima-se do “fato”, do já acontecido, e a enunciação nos revela o momento e as condições em que tal “fato” ocorreu, revela quais as circunstâncias de tal acontecimento. É no ato de enunciação que o enunciado recebe o batismo do devir histórico; ele é forjado em historicidade. O enunciado é um produto histórico, entra 18 Em geral, para os linguistas, a enunciação é tratada somente pelos vestígios que deixa no texto, aos quais eles designam como enunciação enunciada. Para os historiadores, entretanto, além da importância desses vestígios documentais presentes nos textos, é prioritária a tentativa de reconstruir a cena originária mesma, na qual o enunciado-documento se fez, isto é, a meta é refazer o passado histórico. O que o historiador procura desvendar é justamente a cena histórica que deixou aqueles vestígios documentados, enunciados. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 115 na história justamente por advir de uma enunciação, a sua produção. Um enunciado sem enunciação é um produto sem produção, um algo que surgiria do nada, do vazio histórico. Um enunciado flutuante, isolado, é uma criatura historicamente inadmissível, que fundamentaria as arcaicas ontologias de seres em si, ótimo alimento para doutrinas criacionistas, mas para a história, que aposta em outra ontologia, relacional, a da enunciação, não há dito sem o seu dizer, não há escrito sem o seu escrever, não há enunciado sem a sua enunciação. O Verbo provém de uma verbalização, de suas condições de produção. O humano, como um enunciado, advém do processo de sua hominização / humanização, advém das suas cenas históricas de enunciação. O humano, como um artefato, emerge do seu vir a ser, o humano vem a ser, não é um ser no sentido ontológico de algo isolado, com propriedades em si, um invariante, não é um algo predicado pelo Ser, mas um ente no mundo. Nesse sentido, tomamos Lacan: “‘Ser falante’ [...] é um pleonasmo, porque existe apenas ser devido à fala; se não fosse pelo verbo ‘ser’, não existiria nenhum ‘ser’.” (Lacan, seminário 21, 15 de janeiro de 1974, apud Fink, 1998, p. 220). 19 A substância do ser é sua historicidade forjada em escrituras, em letramento. É justamente em sua enunciação que aquilo denominado “humano” recebe suas inscrições e advém. Torna-se sujeito – humano – por se sujeitar. Na enunciação, as inscrições se materializam, incorporam-se ao ser, produzem o ser. Na enunciação, o literal inscreve-se como material, e o humano se faz como texto, texto mais que literal: “o ser escrito” derridiano (Derrida, 1999, p. 22). O humano é uma qualidade modulada sobre o seu ser biológico, o humano é uma inscrição. Tanto em sua relação vivencial – sua historicidade sincrônica – quanto em sua herança cultural – sua historicidade diacrônica. Ambas formam a historicidade humana que inscreve os indivíduos na História. E isso merece uma altissonância: inscrevem a História nos indivíduos, em cada indivíduo, e os fazem humanos. Transformam aqueles indivíduos biológicos em seres históricos, qualificam-nos como humanos. Eles não eclodem humanos. Fora da sociedade e da materialidade, desarticulados de suas redes existenciais, só lhes resta uma essência orgânica, biológica, muito pouco humana, em estado de coma simbólico: são cegos, mudos e surdos. “O humano é um ser histórico”. Essa frase contém armadilhas lexicais: “é um ser” sugere uma ontologia estática, atemporal, entretanto, adjetivada pelo termo “histórico”, aquela expressão, “o humano é um ser”, ganha um sentido outro, dinâmico e processual, diferente do 19 Ver também em Derrida (1999, p. 25-28), a discussão sobre o ser e o uso do verbo “ser”, igualmente apoiada, tal como fizeram Lacan e Fink, nas discussões heideggerianas. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 116 típico entendimento – estático e definitivo – dado pelo verbo “ser” e por sua substantivação, “o ser”. A expressão “ser histórico” implica ação, devir, vir a ser. E sua substantivação desloca-se para o vir a ser, o devir. E como isso ocorre? Como o ser se transforma em vir a ser? Justamente pela enunciação. A enunciação é uma performance, é o ser em ação, é o desempenho dos agentes, é o dizer, é a cena na qual o enunciado é dito e cristalizado, e a inscrição é forjada. A enunciação é a entrada em um processo, em uma cena histórica na qual os enunciados ocorrem. A enunciação é o vir a ser do ser, é o advento do sujeito. É o processo do dizer, processo de produção dos ditos, dos enunciados, dos agenciamentos. E mais: não há uma enunciação, exclusiva e definitiva. Há enunciações, encadeadas, sucessivas e inter- relacionadas. São intertextualidades sincrônicas. E igualmente diacrônicas: a cada dia, uma enunciação se desdobra em mais uma enunciação, articulada com a anterior e que gesta a seguinte, em justaposição historicamente situada. A cada dia, uma etapa da metamorfose que liberta o ser-crisálida estático para os seus voos no devir. Cada experiência vivencial do ser (o vir a ser) é uma enunciação produtora de inscrição e de sentido no ser, produtora de “novo” ser, construtora do vir a ser – logo, a cada dia um novo vir a ser, em contínuo movimento. O “eu sou” é um enunciado que decorre das enunciações que permitam que “eu venha a ser”. O enunciado – aparente, concreto e definitivo – é resultado e produto da enunciação, da cena de produção, essa a genealogia histórica. Se a história se baseia em documentos-enunciados, é por esses documentos serem índices e conterem vestígios de um acontecimento que, por princípio fundante da história, efetivamente ocorreu: a cena de enunciação. “Realmente ocorreu”, tal suposição é a conjectura básica da disciplina história. Porém em geral essa enunciação está lá, mais além, no passado histórico incógnito. É a hipótese realista da disciplina história: supor a existência dos fatos enunciativos, das enunciações. Enunciações que produzem enunciados indiciais: os documentos históricos. E o que são documentos históricos? Ora, é toda e qualquer inscrição, 20 como nos ensina Roland Barthes: “É a história que transforma o real em discurso” (1989, p. 132). A enunciação, nessa hipótese de um real da história, comparece direta e discretamente no enunciado, sob a forma de traços indiciais: é a enunciação enunciada. São pegadas das presenças “acontecimentais” naquele documento, as marcas da enunciação, uma enunciação 20 Um fragmento de cerâmica, uma gravação rupestre, uma ferramenta, um utensílio, um texto literal, um monumento arquitetônico, todos são enunciados, isto é, inscrições historicamente produzidas. Essa é uma concepção de linguagem bem mais abrangente do que a convencional, restrita ao mundo literal. Temos uma linguagem que dá conta das inscrições mais que literais que abundam no mundo. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 117 que se apresenta como enigma, como diz Guimarães Rosa (1985, p. 95) em Ave, palavra: “toda língua são rastros de velhos mistérios”. E tais vestígios tornam-se pistas perseguidas, organizadas na recomposição de uma cena semiológica de produção – a enunciação-enigma – para aquele enunciado-documento. O historiador rastreia os sinais, os indícios, faz a perícia em uma cena documental com o objetivo permanente de reconstituir a hipotética cena de enunciação, de decifrar e aproximar-se da realidade histórica. 21 A distinção entre a narrativa histórica e a ficcional é estabelecida por tal situação de enunciação. É na enunciação que todo relativismo encontra, enfim, o seu contraditório, o destino de alguma certeza, a sua sanidade: a realidade histórica – as cenas de enunciação. Assim se resolve a aporia posta pelo “linguistic turn” que provocou a crise de realidade na história-disciplina. Infelizmente, porém, os profissionais da disciplina história e os dos estudos de ciência e tecnologia – Science and Technology Studies – não partilham a convivência, o diálogo não comparece, são vizinhos que pouco se falam. Soluções de um campo migram com dificuldade para o outro, mesmo quando os problemas são comuns, como é – ou foi – o caso com o relativismo linguístico, que, saído do “semiotic turn”, atingiu a ambos. Se a história resolve aquele imbróglio do referente – quando pensado estritamente no espaço linguístico – com a aposta na semiologia das inscrições mais que literais, como testemunhas documentais esculpidas em cenas de enunciação a serem reconstruídas continuamente como narrativas, os STS, especialmente por intermédio da “teoria ator-rede” – actor-network theory (ANT), como é conhecida –, enfocaram prioritariamente outro aspecto daquele relativismo. Entretanto, os STS trazem também ventos bastante favoráveis à percepção das práticas discursivas como constituintes dos agenciamentos. Fleck talvez seja o principal marco dessa postura. A “teoria” de Fleck critica a clássica dicotomia sujeito–objeto inserida na disputa realismo versus relativismo que caracteriza o entendimento da cognição humana. Uma alternativa à teoria do conhecimento, a dinâmica do ativo–passivo em Fleck propõe sujeito e objeto como duas entidades interdependentes e fornece uma compreensão diferenciada para o conflito entre realismo e relativismo. 22 Em Fleck, sujeito e objeto são agentes em movimento histórico, articulados entre si, interdependentes. 21 Paul Veyne (1987) é mestre em mostrar o pesquisador nessa investigação pericial, perseguindo por meio do documento a reconstituição do passado histórico, um passado suposto real: a disciplina história desvenda a História. 22 Uma síntese dessa “teoria” de Fleck é apresentada no Apéndice de Maia (2011). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 118 Mais recentemente, todos aqueles autores dos STS que abraçam a perspectiva de análise a partir da prática, como Barad, Pickering, Knorr-Cetina e outros, apresentam contribuições alinhadas com o que defendo aqui. Pickering (2001) ao traçar as linhas de uma história do conceito de agência, inicia seu texto anotando os autores que abriram essa senda. Ele cita Marx e Fleck como aqueles que mostram como a agência entre coisas e pessoas é essencial na história e é recíproca (isto é, sujeito e objeto são produzidos interativamente, um participa da constituição do outro). Em Marx, o trabalho e o modo de produção são pilares desse olhar. E sobre Fleck, ele menciona: “Fleck descreve isso [a reação de Wassermann] como um processo de ajuste recíproco de pessoas e coisas. ”23 Agenciamento recíproco: novos objetos para a história Com a agência abre-se um novo horizonte para a pesquisa. A cena histórica não se restringe mais à ação do protagonista humano. O palco dos eventos amplia-se. Não há protagonista isolado, há multiplicidade de agentes em interação recíproca. Clima, mosquito, lombadas “do Latour”, guerras e revoluções, conflitos e consensos – tudo e todos são atores semiológicos, são documentos para a história. São textos, textos mais que literais. Textos a serem lidos pelo historiador. São textos advindos de práticas discursivas escritos por múltiplos agentes interativos. A história é composta por essas práticas e a linguagem consolida-se em seu sentido lato. E o historiador passa a perseguir as cenas de enunciação desses textos mais que literais para compreender a interação que os motivou e a significação produzida. Referências bibliográficas AHEARN, Laura M. Language and Agency. Annual Review of Anthropology, Palo Alto, n. 30, p. 109-137, 2001. ASPLEN, Lisa. Decentering Environmental Sociology: Lessons from Post-Humanist Science and Technology Studies. In: ANNUAL MEETING OF THE AMERICAN SOCIOLOGICAL ASSOCIATION, 2006. Montreal: American Sociological Association, Aug. 10, 2006. Disponível em: http://www.allacademic.com/meta/p104647_index.html. Acesso em: 18 nov. 2008. AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BARAD, Karen. Agential Realism: Feminist Interventions in Understanding Scientific Practices. In: BIAGIOLI, Mario (org.). The Science Studies Reader. 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ISBN 978-85-62707-52-0 122 A CONTRIBUIÇÃO DO SABER MÉDICO PARA A CONSTRUÇÃO DE CEMITÉRIOS Caroline Rodrigues UNESP Campus Franca Mestranda em História e Cultura Social Bolsista CNPq Resumo: Em 1832, as cidades de Salvador e do Rio de Janeiro tornam-se sedes das primeiras Faculdades de Medicina do Brasil. O contato direto dessas sociedades com o saber médico que passou a ser produzido, transformou-as em um alvo privilegiado dos olhares e críticas dos agentes de saúde. Os novos doutores preocuparam-se com diversos problemas urbanos, entre os quais os sepultamentos, que até então eram realizados no interior das Igrejas. Tal prática, decorrente de uma longa tradição religiosa, foi colocada na contramão da perspectiva médica que irá se formular durante o Oitocentos, a qual passou a estabelecer normas sanitárias que os indivíduos deveriam seguir quando fosse necessário a inumação de algum corpo. Os atos fúnebres passaram a ser entendidos pelos médicos como um problema de saúde publica, tornando-se, assim, parte das inquietações e estudos desenvolvidos nas Faculdades de Medicina. Diante desse quadro, o objetivo da presente pesquisa é mapear como se deu o impacto do discurso médico e quais as alterações que esse conseguiu introduzir nas formas até então vigentes de sepultamento. Palavras-chave: cemitérios, medicina, secularização. Keywords: cemeteries, medicine, secularization. “Dá nova organização ás actuaes Academias Medico-cirurgicas das cidades do Rio de Janmeiro, e Bahia. A Regencia, em Nome do Imperador do Senhor D. Pedro II, Faz ou Faculdades de Medicina saber a todos os subditos do Imperio que a Assembléa Geral Legislativa Decretou, e Ella Sanccionou a Lei seguinte: TITULO I Das Escolas, Art. 1º As Academias Medico-cirurgicas do Rio de Janeiro, e da Bahia serão denominadas Escolas, ou Faculdades de Medicina.” 1 As palavras transcritas acima remontam à Lei de 03 de Outubro de 1832, proposta pela comissão da Sociedade de Medicina e Cirurgia e referendada pelo então Ministro do Império, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, que transformou as Academias do Rio de Janeiro e de 1 Lei de 3 de outubro de 1832. In: Collecção das Leis do Imperio do Brazil de 1832, parte I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 123 Salvador em Faculdades de Medicina. Essa alteração propiciou a implantação de novos parâmetros no ensino e na difusão do saber médico no Império, seguindo modelos baseados em estatutos e regulamentos da Faculdade de Medicina de Paris. Além disso, ocorreu uma reformulação na grade curricular - em que se destaca a introdução de uma matéria destinada á higiene -, um aumento no quadro de professores e melhorias nas estruturas físicas dessas instituições. As Faculdades de Medicina, nesse período, tornam-se um espaço privilegiado para as discussões científicas, bem como um meio propício para a circulação de ideias políticas e filosóficas vindas da Europa, as quais, aos olhos dos médicos, iriam impulsionar o progresso das ciências e as transformações sociais do Império. Destacam-se, neste processo, a partir de 1832, as cidades de Salvador e do Rio de Janeiro, justamente pela presença das Faculdades de Medicina, uma vez que proporcionaram a essas sociedades um contato direto com os projetos médico-higiênicos. As novas idéias médicas, no entanto, não foram privilégio desses centros urbanos, já que é possível dizer que, no decorrer do século XIX, o Brasil assistiu a algumas transformações no âmbito da medicina que, em linhas gerais, passou a incorporar “o urbano como alvo de reflexão” (RODRIGUES, 1997, p.56), ou seja, teria sido este o momento em que o objeto da medicina deslocou-se da doença para a saúde? Isso significaria uma mudança uma vez que não se pensaria mais apenas na ação direta sobre a doença; buscar-se-ia também atuar sobre os componentes naturais, urbanísticos e institucionais de modo preventivo. Dessa forma, o “novo projeto” médico, presente no Brasil e difundido pelos professores nas Faculdades de Medicina, visaria impedir o aparecimento da doença agindo diretamente sobre suas causas (RODRIGUES, 1997, p.56). A presença do saber médico no cenário brasileiro adquiriu novos moldes com a chegada da Corte bragantina, uma vez que a monarquia trouxe consigo hábitos e ideias europeias. Logo após 1808, foram criadas as primeiras instituições de ensino médico no Brasil, a saber: a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro e a Escola de Cirurgia da Bahia; ambas contribuíram para que o saber médico fosse difundido de forma regular. Além da preocupação com o ensino, a fundação dessas instituições revela a importância do saber médico para aquela sociedade, importância que transparece no texto escrito pelo médico Manuel Viera da Silva, em 1808, em resposta ao pedido do Príncipe Regente: A causa da saúde pública em todos os tempos tem merecido as primeiras atenções dos grandes legisladores [...] muda o seu objeto e, em Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 124 consequência, a natureza, que se deve ser relativa ao estado da população [...] (SILVA, 1998, p.69). Assim, a instalação da Corte e a criação das Escolas de medicina impulsionaram a projeção, na sociedade brasileira, de ideias médicas que já circulavam na Europa. As novas reflexões médicas não se limitavam a pensar apenas a doença; ao contrário, os médicos desse período visavam, basicamente, “proteger” o individuo modificando hábitos tidos como desordenados e irracionais. Em busca dessa proteção e se atendo à ideia de prevenção, as urbes transformaram-se em objetos de intervenção direta, principalmente cidades como Salvador e Rio de Janeiro, cuja “falta de ordenação” era apontada entre as causas das doenças. Nesse sentido, para o projeto da medicina social, mostra-se necessário, primeiramente, ordenar os espaços; assim, “nada do que é urbano lhe pode ser estranho, sob pena de sua intervenção se tomar precária ou ineficaz” (MACHADO, 1978, p.261). Os médicos, a partir de então, começam a avaliar, detalhadamente, os aspectos considerados higienicamente problemáticos nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador. Podemos destacar aqui, como objetos de intervenção médica, espaços como hospitais, portos, matadouros, habitações, escolas, dentre outros. No caso dessa pesquisa, nosso interesse recai sobre um objeto específico de intervenção dos médicos: os sepultamentos. Nesse sentido, procuraremos analisar as propostas e medidas relacionadas às formas de sepultamento, as quais teriam acarretado, posteriormente, na construção de cemitérios nos moldes do “novo projeto médico”. Não podemos dizer, no entanto, que foi somente a instauração das Faculdades de Medicina no Brasil que despertou a preocupação dos médicos com os ritos funerários e a produção de textos analisando os mesmos. No final do século XVIII, o médico José Correia Picanço, já demostrava preocupação com os ares mortíferos emanados pelos cadáveres; já em 1808, o médico Manuel Vieira da Silva, a pedido do Príncipe Regente, escreve o texto “Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro”, documento no qual há passagens sobre as formas de sepultar e os riscos apresentados por tais práticas. Porém, apesar desses escritos apontarem problemas referentes aos hábitos funerários, destinavam-se a analisar aspectos diversos da sociedade local, não se aprofundando, assim, no assunto. Pode-se, no entanto, afirmar que esses escritos produzidos até a década de 30 do Oitocentos auxiliaram na introdução das ideias médicas. Foi, porém, a partir de 1832, com a publicação da obra do médico Manuel Mauricio Rebouças, intitulada “Dissertação sobre as inhumações em geral, seos dasastrosos resultados, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 125 quando as praticam nas Igrejas, e no recinto das cidades, e sobre os meios de a isso, remediar- se mediante cemitério extra-muros” (REBOUÇAS, 1832), que o tema dos sepultamentos passou a merecer reflexões mais detidas; é o inicio da produção de escritos críticos sobre o tema (REIS, 1991). Apesar de ter sido escrita em 1831, em Paris, onde Rebouças morou e estudou, o texto faz referência ao cenário brasileiro, sendo publicado na Bahia, em 1832, onde o médico lecionou. As Faculdades de Medicina, como mencionamos, tornaram-se, nesse momento, um ambiente propício para as discussões científicas e propagação de idéias políticas e filosóficas vindas da Europa, assim médicos, como o citado Rebouças, influenciaram na introdução das idéias médicas-higienistas nessas sociedades, principalmente nos novos médicos que se formavam e consequentemente em suas produções. Por tal motivo utilizamos a tese de Rebouças como marco inicial nas produções e reflexões acerca do tema, uma vez que, além de ser o primeiro estudo específico sobre o assunto, é também considerado o mais completo, além de ter servido como principal modelo e base para os trabalhos publicados posteriormente (REIS, 1991). Rebouças, ao longo de seu trabalho, busca construir a imagem do médico patriota, partindo da afirmação de que “Todo homem deve, antes de cuidar em si, cuidar em sua Pátria” (REBOUÇAS, 1832, p.1). Através de apelos por uma construção e identificação patriótica, a obra objetivava romper com a passividade dos médicos e autoridades perante o que considerava como abusos funerários, e, assim, esclarecer as pessoas “menos ilustradas” (REBOUÇAS, 1832, p.1) sobre o perigo apresentado pelas praticas eclesiásticas vigentes até o momento (REIS, 1991): Nenhum Medico ignora que as sepulturas feitas nos lugares pouco arejados são perigosas; e não he pois a sua classe que cumpre prova lo. Esclarecer nossos Concidadãos sobre este objecto importante, he o fim que eu me proponho, e para pôr as pessoas menos instruídas em estado de apreciar os motivos que de vem empenha-las á proscrever o uso de enterrar no recinto das Cidades, e nas Igrejas[...] (REBOUÇAS, 1832, p.37) Após a publicação da obra de Rebouças, outras teses são escritas na Bahia e no Rio de Janeiro sobre o tema. Além das teses produzidas nesse período, periódicos como a Revista Médica Brasileira começaram a divulgar artigos relacionados ao assunto, visando difundir a visão médica e criticar as práticas eclesiásticas vigentes: Si pois não são sem grandes desvantagens para a saúde consentidas as sepulturas dentro das igrejas, porque delas nascem frequentes males; si há Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 126 meios fáceis e possíveis de obster e fazer que desapareçam tais causas de moléstias, cumpre que os homens menos egoístas , mas amigos de si mesmos as adptem, e fazendo valer huns, sua importância, e vontade, e outros seo dinheiro deem impulso forte á effectuação desses remédios, e de coração os abracem. E quaes são eles? Um, e bem simples; a edificação de hum cemitério. (REVISTA MÉDICA BRASILEIRA, 1842, p.214) Através dos periódicos, principalmente daqueles voltados à medicina ou à ciência médica, as ideias e preocupações que circulavam entre os médicos começaram a sair das Faculdades. A imprensa representava neste momento um veículo de transmissão desses conhecimentos, porém, cabe salientar que estamos falando de uma sociedade com baixos índices de letramento, ou seja, mesmo saindo das Faculdades, as discussões circularam entre uma pequena parcela de indivíduos letrados. Nesse período, como vimos, houve um aumento do interesse médico pelos aspectos urbanos e pelas questões referentes à salubridade pública. Buscamos entender se com a criação das Faculdades de medicina, ocorreu uma intensificação na produção e da difusão da produção acadêmica, por meio dos periódicos que circulavam pela sociedade, em textos que continham, com alguma regularidade, críticas médicas direcionadas às formas de sepultamentos vigentes, realizados nos interiores das igrejas. Passou-se a acreditar que estes eram prejudiciais à saúde dos indivíduos, em função dos miasmas produzidos pelas emanações cadavéricas; em função disso, as sepulturas deveriam ser eliminadas do interior e das proximidades das igrejas. Questionamo-nos se o desenvolvimento desta concepção contribuiu para a formação e difusão do medo da contaminação dos vivos pelos mortos, que culminou na transferência dos sepultamentos para longe dos vivos, com a criação, em 1850, de cemitérios extramuros, que viriam a ser utilizados nos anos seguintes (RODRIGUES, 1997). Abordamos, até o momento, as formas de difusão do saber e das ideias médicas, contudo, é importante compreender também sua penetração e recepção nas sociedades baiana e fluminense. O marco do recorte temporal (1832-1860) visa justamente analisar o ápice do discurso médico higienista referente às formas de sepultar no século XIX. Durante esse período, temos alguns fatores que contribuem para argumentação dos médicos e, consequentemente, para efetivação de suas propostas – a principal é a criação e utilização dos cemitérios públicos. As décadas delimitadas são marcadas por surtos epidêmicos desconhecidos até aquele momento no Brasil. Com o surto de febre amarela e cólera a população e as autoridades se depararam com índices de mortalidade altos, o que causou Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 127 temor e motivou campanhas e medidas higiênicas que estavam diretamente relacionadas com os sepultamentos intramuros. O medo dos vivos, gerado pelas epidemias, representou o "empurrão" final dos mortos para fora das igrejas e das cidades (REIS, 1991). A partir da década de 50, o discurso médico ganha maior vulto e apoio em decorrência das epidemias enfrentadas pelos centros urbanos. Nesse cenário, a concretização dos projetos médicos começou a ganhar novos moldes, principalmente a partir do decreto 583, de 5 de setembro de 1850 (VASCONCELLOS, 1879, p.13), que autorizava o Governo a determinar o numero e a localização dos Cemitérios públicos que deveriam ser estabelecidos. Entre os anos de 1850 e 1860 foi crescente o numero de decretos e leis que buscaram implementar e regularizar os hábitos funerários, visando sanar os problemas de higiene e os riscos epidêmicos. Neste período, não apenas foram criados diversos cemitérios, mas passou a ocorrer uma utilização efetiva dos mesmos por parte da população. Por tal motivo, demarcamos a década de 60 como o período final da nossa analise. Nesta altura, os médicos, em busca da incorporação de suas propostas, começam a “penetrar na Câmara e agir no seu interior” (MACHADO, 1978), é o momento em que as preocupações médicas começam a ganhar maior espaço político, sendo durante a década de 60 que as propostas sobre a necessidade da construção e utilização dos cemitérios, nos moldes médicos, adquirem intensidade nos debates legislativos incitando o inicio do processo de secularização dos mesmos. Referências Bibliográficas Fontes: REBOUÇAS, Manuel Maurício. Dissertação sobre as inhumações em geral, seos dasastrosos resultados, quando as praticam nas Igrejas, e no recinto das cidades, e sobre os meios de a isso, remediar-se mediante cemiterios estra-muros. Imprenta:Bahia: Na typ. do Orgão, 1832. SILVA, Manuel Vieira. Reflexões sôbre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima na cidade do Rio de Janeiro. Imprensa Régia, 1808. Collecção de Leis do Império do Brazil .Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. Anos de; 1832 – 1860. Obras de referência: ÁRIES, Philippe. Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média. Lisboa: Editorial Teorema, 1989 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 128 ____________ O Homem Perante a Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, vol I. ____________O Homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, vol II. COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 3ª ed., 1989. CORBIN, Alain. Saberes e Odores. O olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente, 1300-1850. São Paulo:Companhia das Letras, 1989. FOUCAULT, Michel. O nascimento da Clínica. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980. ___________ Microfisica do Poder. Trad.e org de Roberto Machado. 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Estas teorias pretendiam apontar a existência de “diferenças” entre os seres humanos, por meio das quais poderia se estabelecer uma hierarquia humana, colocando as pessoas em uma escala onde uns eram considerados inferiores e outros superiores. No Brasil, esse debate científico aconteceu através do impacto de ideias positivistas que norteou o sanitarismo nos séculos XIX e XX. Para os defensores do saneamento, a questão da saúde e da educação eram elementos cruciais na construção da nacionalidade. Belisário Penna, médico sanitarista, acreditava que o saneamento e a educação higiênica para todo o Brasil era a solução para que se construísse uma identidade nacional, gerando uma nova sociedade adequada aos ideais de produtividade capitalista e a erradicação de doenças, já que para ele, o Brasil estava doente e improdutivo. Penna se filiou a Ação Integralista Brasileira em 1932, tornando-se membro da Câmara dos 40, órgão supremo do movimento. A Ação Integralista Brasileira, como movimento político de direita, teve início no ano de 1932 em São Paulo, com o lançamento do Manifesto de Outubro, redigido por Plínio Salgado, o líder maior do movimento. Palavras-chave: eugenia, sanitarismo, integralismo. Resumen: EnelsigloXIX ,lasteorías y prácticas científicas que surgierontenían como objetivo "mejorar" y " distinguir " lo que se llamó de laraza humana. Estas teoríastrataban de señalarlaexistencia de "diferencias" entre los seres humanos por intermedio de lascuales se podríaestablecer una jerarquíahumana ,poniendo a la gente en una escala donde algunoseran considerados inferiores y otros superiores . En Brasil, este debate científico se llevó a cabo a través del impacto de lasideas positivistas que guiaronelsanitarismolossiglos XIX y XX. Para los defensores delsanitarismo, lacuestión de lasalud y laeducaciónson elementos crucialesenlaconstrucción de lanacionalidad. Belisario Penna, médico de salud pública, cree que elsaneamiento y laeducación de la higiene en todo el Brasil fueralasolución a laconstrucción de una identidad nacional, lacreación de una nuevasociedadadecuada a losideales de laproductividad capitalista y laerradicación de lasenfermedades, ya que para él, Brasil estaba enfermo e improductivo. Penna se unió a laAcción Integralista Brasileñaen1932 ,convirtiéndoseenunmiembro de laCámara de los 40, elórgano supremo delmovimiento. La Acción Integralista Brasileña , como movimiento político desde laderecha, se inicióen 1932 en São Paulo, conellanzamientodelManifiesto de Octubre, escrito por Plinio Salgado, el más grande líder delmovimiento. Palabras clave:eugenesia, sanitarismo, integralismo. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 131 Entre o final do século XIX e início do século XX, diversas teorias evolucionistas cresciam no interior nos debates que atravessaram o contexto do avanço imperialista, nas disputas por territórios que abrangessem os domínios dos Estados-Nação que se auto- definiam em termos de cultura e civilização em contraste com outras identidades sociais e étnicas. Dessa forma, a criação de teorias eugênicas alcançou sucesso entre cientistas e intelectuais de diversos países. Essas teorias tinham como objetivo demonstrar as diferenças entre os seres humanos pautando-se em critérios físicos e em influências ambientais. E, neste sentido, a geração de cientistas que se formava no Brasil compactuava com tais ideias. A partir desta perspectiva, a História das Ciências no Brasil é também parte da história das teorias eugênicas criadas no século XIX na Europa. O termo Eugenia foi criado por Francis Galton em 1883. Seu significado “bem-nascido” propunha representar as distinções dentre a raça humana, ainda não percebida em sua unidade e diversidade interna. Baseando-se nas teses evolucionistas de Charles Darwin, essas teorias defendiam a existência de raças humanas, distintas por graus evolutivos, e iriam encontrar eco no pensamento econômico e social que justificariam o comportamento humano em sociedade e forneceriam a base científica para o controle e permanência no poder da burguesia industrial, como exemplo da supremacia branca diante do restante da humanidade. Conforme Nancy Leys Stepan (STEPAN, 2005), no Brasil e no restante da América Latina, a receptividade às teorias eugênicas se manifestaram desde fins do século XIX e se mantiveram, até à época pós-colonial, na esteira dos estudos e práticas científicas no “Terceiro Mundo”. No sentido de incorporar o “novo mundo” à “velha civilização”, o darwinismo social se apropriou das ideias e propôs aplicá-las nas sociedades humanas. Procurava-se explicar a pobreza provocada pelas consequências da revolução industrial, com a formação de um proletariado urbano e desprovido das mínimas condições de vida, em termos de habitação, higiene e alimentação. Seguindo essa mesma linha de pensamento, também, considerava-se as diferenças culturais entre os povos que a empreitada neocolonialista queria incorporar ao mundo capitalista. Afirmava-se, dessa maneira, que pobres e etnias africanas, asiáticas e latino-americanas eram inferiores, pois não teriam a habilidade e/ou, a capacidade necessária para se adaptar e evoluir de forma a se habituar ao novo sistema, com a nova sociedade, que estava surgindo. Dessa maneira, esses evolucionistas contribuíram para a “biologização” da sociedade e, no Brasil, dadas as características sociais e ambientais distintas do “mundo civilizado” Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 132 europeu, suas teorias obtiveram, aqui, interpretações peculiares, sendo recebidas e recriadas a partir de perspectivas e experiências diversas. Na trajetória dos estudos eugênicos brasileiros, vindas dos oitocentos, para um grupo de médicos da “Escola Nina Rodrigues”, ligada à Faculdade de Medicina da Bahia, 1 a miscigenação era impedimento para o desenvolvimento do país, pois a mistura proporcionaria a loucura, a criminalidade e a doença. Ao mesmo tempo, no Rio de Janeiro, médicos dedicavam-se ao combate das doenças tropicais, como a doença de Chagas e a febre amarela e ao desenvolvimento de políticas sanitaristas encabeçadas pelo Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos, que em 1908 se transformou em Instituto Oswaldo Cruz. As pesquisas eugenistas e dos sanitaristas muitas vezes convergiam e confundiam-se nos projetos de constituição da nação brasileira. E, assimilando e incorporando dados das teorias evolucionistas, os pesquisadores eugenistas nacionais elaboraram suas análises a partir de experimentos que visavam explicar, em bases científicas, a formação “racial” do povo brasileiro. No Brasil, o principal porta-voz da eugenia foi Renato Kehl que, em sua obra Lições de Eugenia, no qual afirmava que a nacionalidade brasileira só embranqueceria “à custa de muito sabão de coco ariano”. Em sua opinião, o Brasil não teria progresso devido a sua diversa composição racial. Neste sentido, o acompanhou parcela da intelectualidade brasileira. O entusiasmo a partir da conferencia intitulada “Eugenia”, realizada por Kehl em 1917, impulsionou a fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo (SESP), que contou com a participação de médicos e membros de vários setores da sociedade interessadas em discutir a nacionalidade a partir de questões biológicas e sociais. A SESP publicou os Annaes de Eugenia em 1919, onde constam uma série de conferências realizadas por seus associados, além de artigos, que discorriam sobre a intervenção direta no corpo dos indivíduos a fim de mudar o “corpo coletivo”, tendo em vista a formação da nacionalidade brasileira. Neste interim, em 1918, foi fundada a Liga Pró-Saneamento do Brasil (LPSB), unindo médicos e outros intelectuais, como Belisário Penna, Carlos Chagas, Arthur Neiva, Monteiro Lobato, Miguel Pereira, Vital Brasil e Afrânio Peixoto, em torno das propostas de centralização administrativa dos serviços de saúde e a implantação de projetos na área. Mas, o foco principal desta reunião de importantes cientistas e de parte da intelectualidadedo país, era 1 Conforme alguns estudiosos, como Fernando Azevedo e Simon Schwartzman, participantes da “Escola Nina Rodrigues” forjaram a Antropologiabrasileira da primeira metade do século XX. Em AZEVEDO, Fernando, 1954; S. SCHWARTZMAN, 1979. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 133 a formação do povo brasileiro, a partir da constatação de que suas mazelas se relacionavam às características “raciais”. Belisário Augusto de Oliveira Penna, nascido aos 29 de novembro de 1868, em Barbacena, Minas Gerais. Filho homônimo do visconde de Carandaí, importante benfeitor da cidade, e de Lina Leopoldina Lage Duque. Matriculou-se, em 1886, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, mas concluiu o curso na Faculdade de Medicina da Bahia, em Salvador, onde se casou com Ernestina Rodrigues Chaves, filha do conselheiro João Rodrigues Chaves, fundador e diretor da faculdade de direito local. Voltou a Barbacena, trabalhando como médico da Colônia Rodrigo Silva, formada por agricultores de origem italiana. Também tentou clinicar em localidades próximas, acabando por se fixar em Juiz de Fora, em 1896, onde assumiu as funções de médico da Hospedaria dos Imigrantes, demitindo-se por motivo do não atendimento de suas reivindicações de melhorias nos serviços que prestava. Com a nomeação de Oswaldo Cruz, em 1903, para dirigir os serviços federais de saúde pública, realizaram-se concursos para as campanhas sanitárias. Aprovado, Penna tomou posse como inspetor sanitário no Rio de Janeiro, em maio de 1904. No ano seguinte, foi transferido para o Serviço de Profilaxia da Febre Amarela. Depois de estudar o desenvolvimento das larvas do mosquito transmissor da doença, propôs a diminuição do intervalo de visitas a cada seção da zona, para destruição dos focos, o que surtiu efeito e foi adotado como procedimento geral da campanha. Sua atuação destacada nas campanhas sanitárias levou o diretor Oswaldo Cruz a parabenizá-lo oficialmente, o que aproximou os dois médicos. Comissionado por Oswaldo Cruz, Penna partiu em 1906 para combater o impaludismo (malária) entre os operários que construíram uma ferrovia, no norte de Minas Gerais. Ali permaneceu por três anos, participando da principal descoberta médica do período: a descrição da etiologia de uma moléstia ainda desconhecida, a tripanossomíase americana (Doença de Chagas). Caso raro na história da medicina, Chagas descreveu todo o ciclo evolutivo da doença: o microrganismo causador da moléstia, os hospedeiros, como o tatu e o gambá, o inseto vetor, chamado barbeiro, e as manifestações clínicas no homem. Designado por Oswaldo Cruz, Penna percorreu, junto com Arthur Neiva, do IOC, em 1912, o norte da Bahia, sudeste de Pernambuco, sul do Piauí e nordeste de Goiás, com o objetivo de estudar as condições sanitárias e enfrentar os problemas de saúde existentes nessa Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 134 região. Viajaram durante sete meses, registrando não apenas as doenças encontradas, mas também aspectos sociais, econômicos e culturais da vida das populações locais. Em 1913, Penna solicitou licença de seis meses e, por conta própria, percorreu os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, para estudá-los, como fizera em relação aos estados do Norte. Depois reassumiu o cargo de inspetor sanitário no Rio de Janeiro. Em 1916, o relatório da viagem pelo Nordeste e Centro-Oeste foi publicado nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, trazendo para a opinião pública a realidade da saúde no interior do país. No mesmo ano, Penna iniciou, pelo Correio da Manhã, uma campanha pelo 'saneamento do Brasil'. O livro Saneamento do Brasil influenciou a decisão do presidente Wenceslau Brás de criar o Serviço de Profilaxia Rural, em maio de 1918, e de nomear Penna para dirigi-lo. O cargo permitiu-lhe instalar dez postos sanitários nas zonas rurais do Distrito Federal e realizar várias conferências em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A Liga Pró-Saneamento do Brasil editou, nos seus dois anos de existência, o periódico Saúde – Mensário de Higiene, Assuntos Sociais e Econômicos. O editorial do último número afirmava que a agremiação havia alcançado seu objetivo com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Para dirigi-lo foi nomeado o cientista Carlos Chagas. A partir de então, os sanitaristas brasileiros ganharam maior poder no território nacional. Penna instalou serviços de profilaxia rural em 15 estados durante sua gestão no DNSP. Exonerou-se em 1922, por não concordar com interferências políticas no departamento. No ano seguinte, a pedido do presidente de São Paulo, Washington Luís, escreveu dois trabalhos sobre higiene: o primeiro foi publicado – Higiene Para o Povo. Amarelão e Maleita, em 1924 – e um segundo (inédito) dirigido aos profissionais de educação. Neste mesmo ano em carta aberta, apoiou a revolta tenentista que irrompeu em 5 de julho daquele ano, em São Paulo. Penna retornou em 1927 à administração pública, como inspetor de Propaganda e Educação Sanitária. Percorreu então os estados de Minas Gerais, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, até ser requisitado pelo presidente do estado do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, para organizar o serviço local de higiene. No Sul, iniciou um período de trabalho intenso, proferindo conferências e indicando providências relativas a problemas de saúde. Merece destaque seu engajamento na Revolução de 1930. Após a vitória do movimento, foi nomeado diretor do DNSP. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 135 Em 1932, Penna filiou-se Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada por Plínio Salgado, tornando-se membro da Câmara dos 40, órgão supremo do movimento. Sua adesão ao Integralismo foi justificada em uma carta: Do exposto posso responder que sou integralista, porque já o era desde mais de vinte anos; porque creio em Deus e pratico a moral cristã; porque não sou um instintivo e quero o primado do espírito sobre a matéria; porque não sou regionalista e amo com igual afeto os patrícios de todas as regiões do nosso Brasil, que quero unidos, integrados numa só aspiração, num só sentimento; porque amo a família, célula mater da sociedade, que, sem ela, não passa de um rebanho de animais, como ora acontece na Rússia; porque, finalmente, tenho plena e absoluta confiança em Plínio Salgado, o criador e o chefe nacional do integralismo, predestinado por Deus para libertar o Brasil do regionalismo destruidor da pátria, da sua escravização ao capitalismo internacional e da calamidade da peste bolchevista. (PENNA, 1937) Penna faleceu em 4 de novembro de 1939. Os debates sobre a composição “racial” do povo brasileiro alcançavam todos os níveis da intelectualidade nacional, entre ciências físicas, biológicas e sociais, entre literatos e pensadores autodidatas. Estudiosos da Antropologia, da Sociologia e da História incorporavam às suas explicações sobre a organização social do Brasil as “tendências” comportamentais das “raças” que compunham a “Nação brasileira”. No decorrer dos primeiros quarenta anos da República, as questões sobre raça e ciência no Brasil foram tomando rumos definidos, muitas vezes discordantes, pelos debates internos, quanto à especificidade brasileira em termos de ordenação social e composição étnica. Esses debates acompanham, muitas vezes reproduziam os que aconteciam na Europa e no restante da América Latina e América do Norte. Neste sentido, o uso de critérios eugênicos reforçavam as leituras sobre as distinções entre as “raças brasileiras” e as estrangeiras. Compartilhado no senso comum e no pensamento brasileiros, o mito das “três raças” explicitava as características particulares de cada uma destas: a branca, portuguesa; a negra africana e a indígena americana. Cada qual definida, entre qualidades e vícios morais. Na visão da eugenia negativa, a mestiçagem provocava a degeneração humana. Na positiva, a junção das “raças” reforçava, no seu conjunto, os aspectos “benéficos” da “mistura” racial. E, nestas linhas, a mestiçagem tratada já desde o XIX pelos “antropólogos” e “sociólogos” fundadores da nossa Antropologia e Sociologia, era vista por prismas antagônicos e mesmo contraditórios. Como escreve Lilia Moritz Schwarcz: “No Brasil - raça Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 136 e mestiçagem jamais foram termos neutros. Ao contrário, associaram-se com frequência a uma imagem particular do país.” (SCHWARCZ, 2012) E, no decorrer das quatro décadas que se seguiram à proclamação da República, novos Partidos Políticos se organizavam, com definições mais especificamente ideológicas que regionais e classistas dos que os sucederam. Neste período dois importantes partidos, totalmente antagônicos surgem: o Partido Comunista e a Ação Integralista Brasileira. O contexto político em que surge a AIB é o do fim da Primeira República, com o movimento insurrecional das oligarquias dissidentes, a “Revolução e 1930”, e da reação paulista às decisões de governo da primeira fase da Era Vargas, levara ao levante conhecido como Revolta Constitucionalista em 1932. Este é o ano em que a AIB lança seu Manifesto de Outubro, defendendo os valores do trabalho e o “sacrifício em favor da Família, da Pátria e da Sociedade”. No Manifesto ainda se proclama que o homem “vale pelo estudo, pela inteligência, pela honestidade, pelo progresso nas ciências, nas artes, na capacidade técnica, tendo por fim o bem-estar da Nação e o elevamento moral das pessoas.” Sobre a questão racial, o mesmo Manifesto culpa o cosmopolitismo, trazido ao país como costume burguês, como influência estrangeira, pela morte do nacionalismo brasileiro. Para o integralismo, os lares brasileiros estavam impregnados de estrangeirismos e seria preciso resgatar o modo de vida tradicional que teria raízes na vida interiorana, onde viveria o verdadeiro povo brasileiro, com todas as dificuldades e heroísmos, todos os sofrimentos e aspirações. Ainda conforme o Manifesto, o mundo cosmopolita, além de não conhecer este “povo”, também se envergonharia do caboclo e do indígena. A proposta do movimento era, sobre a base das tradições nacionais, como acúmulo das heranças étnico/culturais das “três raças”, instalar o Estado Integral. Para isto defendiam um Estado autoritário “capaz de tomar iniciativas em beneficio de todos e de cada um; capaz de evitar que os ricos, os poderosos, os estrangeiros, os grupos políticos exerçam influencia nas decisões do governo, prejudicando os interesses fundamentais da Nação.” De acordo com o projeto integralista, a Nação brasileira comportaria todas as diferenças, as diversidades, impondo os “equilíbrios morais no mundo material, concebendo o Homem como criatura de Deus, e a Nação e o Estado como criatura do Homem.” Nestas condições: “A ciência não é renegada, mas passa a ser a servidora do Homem, em vez de ser o tirano que o subjuga.” (SALGADO, 1995). Assim, durante os cinco anos seguintes, a chamada Doutrina do Sigma foi sendo costurada, com a adesão de intelectuais das mais diversas linhas e vertentes ideológicas e do Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 137 pensamento científico. Parecia-lhes que não era impossível defender a tradição sem negar benefícios da Ciência. E assim, julgando contribuir para a “melhoria” do povo brasileiro, também, alguns personagens ligados à Comissão Central de Eugenia Brasileira incorporaram- se às fileiras da AIB, dentre estes, Belisário Penna. O sanitarista Belisário Penna, acreditava que o saneamento e a educação higiênica para todo o país era a solução para que se construísse a identidade nacional, acontecesse a integração nacional, gerando uma nova sociedade adequada aos ideais de produtividade capitalista e a erradicação de doenças, já que para ele, o Brasil estava doente e improdutivo. A proposta de Penna para se efetivar esses objetivos era a educação higiênica nos lares, escolas e cidades, valorizando as questões morais, erradicando maus hábitos, modelando assim o trabalho e a família. O integralismo buscava a formação de um novo homem, comprometido com Deus, a Pátria e a Família, logo era imprescindível modelar esse novo homem, e a educação higiênica faria esse papel, pois controlava a saúde e as atitudes dos indivíduos. Dessa maneira, esta pesquisa reflete no âmbito da História das Ciências, acerca dos debates sobre raça, povo, nação, cultura e civilização, incluídos nas perspectivas das questões eugênicas e higienistas que circularam entre setores intelectuais no início do século XX no Brasil e que refletiram no movimento integralista brasileiro em ascensão na década de 1930. São analisadas as propostas e atuações do movimento eugênico e higienista no Brasil nos primeiros anos do século XX e suas implicações nos projetos de povo brasileiro, entre os aspectos que se referem â formação da raça, às questões das políticas públicas de saúde e à construção da cidadania republicana. Também são investigados os movimentos eugênicos no interior da Ação Integralista Brasileira e os debates sobre a constituição do povo brasileiro quanto à diversidade racial e à miscigenação. No decorrer da pesquisa está sendo analisado um corpo documental composto, por 15 artigos que o médico escreveu e foram publicados no jornal integralista A Offensiva. Neste sentido, busca-se fazer uma análise das influências do discurso científico da eugenia/sanitarismo no integralismo, tendo como principal problemática questionar se esse discurso foi apropriado pelo integralismo. Referências Bibliográficas AZEVEDO, Fernando. Princípios de Sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1954. CARNEIRO, Márcia Regina da S. R. Do sigma ao sigma. – entre a anta, a águia, o leão e o Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 138 galo – a construção de memórias integralistas. Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2007. GADELHA, Paulo. A trajetória da Liga Pro-Saneamento no Brasil (1918-1920): concepções, propostas e atuação política – relatório final. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz; 1992. MANIFESTO INTEGRALISTA DE 1932. http://www.integralismo.org.br/?cont=825&ox=3. Acesso em 19/11/2013. SÁ, Dominichi Miranda. A Ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. SALGADO, Plinio. A Quarta Humanidade. São Paulo: GRD, 1995. SCHWARTZMAN, Simon. A formação da comunidade científica no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, Rio de Janeiro: Financiadora de Estudos e Projetos, 1979. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SKIDMORE, Thomas O preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1976. STEPAN, Nancy Leys. 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A nossa proposta é analisar as matérias que fazem difusão científica como forma de legitimar as normas de conduta para o comportamento feminino. Para isso, fizemos uma contextualização histórica relacionando o público-alvo do jornal, a região do ABC Paulista e a Ditadura Militar; percebemos, nesse sentido, aumento das matérias direcionadas as mulheres nesse período, e nossa hipótese é que estão atreladas ao avanço da ditadura militar e o contexto tecnológico do ABC Paulista. Encontramos duas rupturas fundamentais no discurso: uma em 1964,com a criação do suplemento feminino “Entre Nós... as mulheres”, e outra em 1967, com a reformulação do suplemento “Ela”. Palavras-chave: Mulher, mídia, história das ciências. 1. O News Seller O jornal News Seller iniciou suas atividades em 11 de maio de 1958, fundado pelos sócios: Ângelo Puga, Edson Dotto, Fausto Polesi e Maury Dotto. Nasceu como um semanário publicado, geralmente, aos domingos e entregue por seus próprios donos aos assinantes, com o crescimento tornou-se bi-semanário passando a ser entregue também as quintas-feiras. Possuía três cadernos, e entre os anos 60 e 70 a tiragem girou em torno de 220 mil exemplares. O News Seller teve grande importância no ABC Paulista, em 1968 foi rebatizado de “Diário do Grande ABC”, que ainda se encontra em circulação na região. Os primeiros exemplares não possuíam referências as mulheres, entretanto, logo no mês seguinte, em junho de 1958, o jornal passou a contar com uma coluna chamada “página feminina”, tinha o padrão tradicional de cadernos femininos, com moda, beleza, etiqueta e receitas. A mulher também Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 140 passou a fazer parte do jornal com publicação de fotos de mulheres na capa, nas colunas sociais e em outros trechos do jornal. O News Seller seguiu como um jornal de distribuição gratuita até 1961, quando passou a ser vendido, nesse período a coluna feminina passou a não ser publicada em alguns exemplares, sendo extinta 1962, mas o local ainda prevalecia mantido, na pagina quatro, mesmo sem título continha matérias para mulheres. Nesse período foi inserida, esporadicamente, alguma matéria que relacionasse a mulher e pesquisas científicas. Em 1963, esse espaço sem nome foi extinto, e a mulher não tinha mais lugar no jornal, só era vista, basicamente, nas colunas sociais ou em alguma matéria sobre mulheres, mas nada fixo ou semanal, esse padrão se manteve até o golpe militar em trinta e um de março de 1964. A questão central dessa pesquisa surgiu quando percebemos que o jornal fazia muitas referências a questões científicas em suas matérias, seja com divulgação ou difusão científica. E nesse sentido, começamos a nos questionar sobre como esse “conhecimento científico” era levado para as mulheres. Fizemos levantamentos de trabalhos que tratavam sobre a imprensa feminina e sobre a divulgação científica para mulheres, mas percebemos que existem algumas questões que são fundamentais e que diferenciam o News Seller das outras publicações e que tornam relevante esta pesquisa. Dulcília Buitoni (2009) já apresentou no livro “Mulher de papel” alguns padrões encontrados na imprensa feminina, discutiu sua ambiguidade, pois tanto teve um papel importante na discussão e democratização de algumas questões, tais como, a “revolução sexual”, quanto auxiliou no processo de encarceramento do corpo feminino, quando alimenta, por exemplo, padrões rigorosos de beleza que as mulheres devem seguir. E esses padrões podemos encontrar no News Seller, então qual seria a relevância de estudar mais um jornal que contém suplementos femininos que seguem modelos semelhantes aos descritos pela autora? Os pontos são vários e tentaremos demonstrar parte deles ao longo do texto, mas o ponto que podemos destacar, inicialmente, veio com a ditadura militar e as mudanças ocorridas com a criação de uma coluna e suplementos femininos. 2. As rupturas e o controle dos corpos femininos Apontamos essa relação com a ditadura militar no tópico anterior por se tratar de uma proposta genealógica de lidar com os fatos e nesse sentido, Foucault (2009) entende que precisamos apontar inicialmente as rupturas, pois nosso objetivo não é tratar do conhecimento Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 141 histórico de forma tradicional, que o autor entende que se trata de uma história feita a partir do macro, das continuidades. Nesse sentido, lidar com a história de forma genealógica é fazer uma história dos detalhes, das minúcias, buscando os silenciamentos e as rupturas, entretanto, em nosso trabalho não procuramos elencar os silêncios, entendemos que o que foi dito tem um motivo para ser dito, mas optamos por trabalhar com as rupturas e apontar alguns direcionamentos do não-dito. Foucault (2008a) entende que ao fazer essa história dos detalhes não se tem a pretensão e nem a possibilidade de dar conta de todas as possibilidades possíveis, de dar conta do todo. Nesse contexto, nos debruçamos sobre o News Seller em busca de suas rupturas, e a principal delas, que é relevante para lidar com essa pesquisa, encontramos com a instauração do golpe militar em 31 de março de 1964. O cenário do News Seller mudou com a ditadura, antes existiam matérias que eram direcionadas às mulheres, embora a maioria delas citavam as normas de condutas, o que era adequado a uma mulher, Podemos citar como exemplo a matéria intitulada “Comportamento da mulher na rua ou em local público”, foi publicada em 02 de fevereiro de 1964, no 1º caderno, na página 13. Que diz respeito a uma matéria editorial – não assinada – que tem como temática o comportamento feminino, e defini algumas regras que devem ser seguidas para que as mulheres não fiquem mal faladas. (NEWS SELLER, 02/02/1964, p.13) O texto inicia com a afirmação que não cai bem à mulher que ela discuta com o companheiro em locais públicos, assim como não deve ter qualquer tipo de exibicionismo “onde haja aglomeração”, sendo assim, não pode passar batom em público, cruzar as pernas com cigarro na boca, no cinema “empurrar os demais, procurando abrir caminho para a sala de espetáculo”, ou no restaurante chamar o garçom. E finaliza chegando à conclusão de que seguindo essas regras ela agirá como deve, “colocando-se em seu devido lugar”. (News Seller, 02/02/1964, p.13) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 142 (Fonte: NEWS SELLER, 02/02/1964, 1º Caderno, p.13) Esse modelo segue até o dia 05 de abril de 1964, quando inicia a coluna Mulher e lar, mas apesar das matérias serem inseridas em um mesmo local, elas não mudam o discurso e nem o formato. Por isso, entendemos que esse é um período de transição que iniciou junto com a ditadura militar e que caminha para uma ruptura em agosto de 1964. O golpe militar foi dado em 31 de março de 1964, e na semana seguinte a coluna inicia. Selecionamos a seguinte matéria “Desvendar os "mistérios da atração física" sempre foi preocupação dos cientistas” para ilustrar que o formato do discurso não mudou, a única coisa, nesse momento, que mudou foi o agrupamento das matérias que passaram a integrar uma única página. (NEWS SELLER, 05/04/2964, p. 4) A matéria sobre os “mistérios da atração física” diz que “numerosos cientistas” e “estudiosos leigos” já tentaram descobrir os motivos pelo qual as mulheres e homens se sentem atraídos por determinadas pessoas e não por outras, e questiona: por que uma mulher olha pra um homem e sente uma “paixão avassaladora” por um homens específico? A conclusão que apresenta é a que homens e mulheres são diferentes fisicamente, mas o “sex- appeal” vai depender de quem olha, pois uma pessoa não é mais ou menos atraente do que a outra. Mas apesar disso, dois cientistas americanos fizeram pesquisas quantitativas para tentar desvendar o mistério, e chegaram à conclusão de que as mulheres se preocupam mais do que os homens em parecer atraentes e os homens prestam atenção primeiro ao olhar, mas que este é algo que surge naturalmente, então às mulheres não precisariam se preocupar. (NEWS SELLER, 05/04/2964, p. 4) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 143 (Fonte: NEWS SELLER, 05/04/1964, Mulher e Lar, 1º Caderno, p. 4) No nosso entendimento não foi uma coincidência a criação do Mulher e lar ter ocorrido logo após o golpe, pois esse período nos parece uma transição para a ruptura que acontece alguns meses depois, dando a mulher um local específico do jornal. A ruptura ocorre em 23 de agosto de 1964 com a criação do suplemento feminino, Entre nós... as mulheres, que é assinado pela Jornalista Eulina Cavalcante, que é mulher do comandante Sidney de Oliveira. O discurso muda neste momento, pois antes se tratava de matérias informativas, com um texto mais distanciado, fazendo, muitas vezes, alusão a pesquisas científicas. As mulheres recebiam informações diversas, mas em um discurso que é visivelmente de autoridade, entretanto, com o Entre nós... as mulheres o tom muda, é como se elas estivessem recebendo conselhos de uma amiga com mais “conhecimento”; esse discurso não deixa de ser de autoridade, mas é uma autoridade suavizada. Um elemento que pode corroborar com a nossa interpretação é o próprio nome do suplemento, que cria um discurso de papo entre amigas, pois tudo estaria “entre nós”. A estrutura do Entre nós... as mulheres é sempre a mesma com algumas mudanças que parecem ser tentativas de manter um padrão. O suplemento inicia com um editorial, que é seguido por uma foto de mulher ou mulheres, depois as temáticas são quase sempre as Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 144 mesmas, e são elas: moda, testes, receitas, etiqueta, beleza, saúde, alimentação. A temática comportamento é sempre abordada nos editoriais, mas também pode ser encontradas nas matérias de moda, beleza, etiqueta, testes, entre outras. O suplemento que vamos analisar é o “Ela”, criado em 1966 sob a editoria da Eulina Cavalcante, ele manteve um discurso “mais leve 1 ”, bem nos moldes do que a Dulcília Buitoni (2009) aponta da imprensa feminina, com matérias frias que poderiam ser publicadas em qualquer momento sem que ocorram problemas no entendimento, pois não se trata de questões conectadas com a atualidade, mas de temas que envolvem penteados, maquiagens, moda, receitas. O suplemento é reformulado em 1967 e passa a ter um discurso “científico” mais próximo das leitoras, com um maior número, por exemplo, de matérias de saúde, com dados nutricionais dos alimentos, indicação de procedimentos que possam fazer as pessoas viverem mais ou detalhes sobre doenças, vacinação das crianças e detalhes sobre métodos de cuidados médicos. Foucault (2007; 2008b) aponta o nascimento da clínica e da medicina científica no século VIII como um marco importante para o controle dos corpos, pois a partir desse momento uma série de procedimentos são instaurados e estabelecem a medicina científica como controle disciplinar. Para que a experiência clínica fosse possível como forma de conhecimento, foi preciso toda uma reorganização do campo hospitalar, uma nova definição do estatuto do doente na sociedade e a instauração de uma determinada relação entre a assistência e a experiência, o socorro e o saber; foi preciso situar o doente em um espaço coletivo e homogêneo. (FOUCAULT, 2008b, p.216) Essa medicina científica (FOUCAULT, 2007, p.79), surgiu como algo coletivo, que trata dos corpos, inclusive do proletariado, e garante o nível da força produtiva, pois controle social inicia pelo corpo, que se torna uma massa corpórea de trabalho. Com o capitalismo, o controle do corpo passa a ser fundamental, e aí está a chave para entender o papel da medicina social em nossa sociedade (Foucault, 2007, p. 80). Mas, junto com essa medicina científica surge também o hospital como instrumento terapêutico (Foucault, 2007, p. 99). Muito dessa “nova” forma de organizar os hospitais, vêm dos hospitais militares e marítimos, e por meio 1 Aparentemente leve, pois a Buitoni (2009) afirma que a imprensa feminina é aparentemente isenta, mas isso é só no primeiro olhar, pois ao observar com mais atenção podemos perceber que se trata da imprensa mais ideologizada de todas. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 145 dessa tradição apropriam-se de uma tecnologia que passa a ser ela o fator determinante para essa reorganização: a disciplina. (FOUCAULT, 2007, p.105) A disciplina é uma ferramenta do poder operada 24 horas na vida dos indivíduos, pois não basta observar se os sujeitos seguiram as regras, mas é preciso vigiá-los durante todos os momentos, inclusive sobre todo o seu tempo de trabalho. Os sistemas disciplinares estão atrelados a uma hierarquia, ou seja, um soberano que é instituído em todos os locais, seja nas igrejas, famílias, cidades; nesse caso, o poder atua por meio de núcleos. “A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua singularidade”. (FOUCAULT, 2007, p.106-107) Na medicina, essa trajetória nos leva a manutenção do saber médico enquanto mecanismo disciplinar, pois caberia ao médico ter o domínio do controle disciplinar, e ao hospital a função de “assegurar o esquadrinhamento, a vigilância, a disciplinarização.” (FOUCAULT, 2007, p.108). Sendo assim, a institucionalização da medicina se mostrou como um segundo meio ou estratégia de buscas para legitimação das relações de poder, por outro lado também é uma prática considerada “essencial” ao fazer científico, pois é por meio dela que o cientista pode divulgar suas pesquisas à sociedade. E é por meio dessa divulgação que os indivíduos conhecem o que é “certo” e “errado”, e o que é “saudável” para o seu corpo. É através da prática médica e do controle do corpo que os discursos machistas (RAGO, 2001, SOIHET, 2004, SWAN, 2001) são perpetuados também, sejam na definição do que é saudável ao corpo feminino, nas práticas obstetrícias e em alguns casos na “normalização” da violência. O corpo masculino é considerado o “modelo universal de humano”, e o da mulher o outro. O problema dessa forma de lidar com o corpo e a saúde está na naturalização dos discursos, esse conflito pode se tornar ainda maior se levarmos em consideração que a constituição do gênero não é binária (AQUINO, 2006). 3. A ciência nas matérias sobre saúde e o ela Os temas científicos sempre estiverem presentes no News Seller, antes da ruptura que apresentamos em 1964 essas matérias estavam lado a lado dos artigos sobre as mulheres ou para o público feminino; depois do golpe militar as mulheres passaram a ter um local específico, que, inicialmente, foi a coluna “Mulher e Lar”, depois o suplemento “Entre nós... as mulheres” e o “Ela”. Para as mulheres as matérias tratavam de difusão científica, que Luíza Massarani (1998, p.18) define como “o envio de mensagens elaboradas em códigos ou Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 146 linguagens universalmente compreensíveis para a totalidade das pessoas.” Um outro significado também apontado pela autora que pode ser vinculado a forma como o News Seller trata a ciência para mulher é “o envio de quaisquer mensagens com o conteúdo científico, especializadas ou não.” Acreditamos que esta última definição que a autora apresenta seja a que mais se encaixa com as matérias que apresentaremos abaixo. Quando o jornal foi criado, não possuía nenhuma coluna feminina, ele continha matérias de “interesse” feminino ou sobre mulheres, mas estas eram publicadas de forma aleatória, sendo a maior parte delas, editoriais (não assinadas). A partir de 1964, foi criada a primeira coluna feminina, intitulada Mulher e Lar, que mantinha o mesmo formato das matérias publicadas anteriormente. Ainda neste mesmo ano, o Mulher e lar deu lugar ao Entre nós... as mulheres, suplemento feminino assinado pela jornalista Eulina Cavalcante, conhecida também como esposa do comandante Sidney de Oliveira, chefe dos bombeiros na época. Essa coluna não se tratava de um suplemento 2 tradicional, pois não estava a parte do jornal, se situada, normalmente, no 1º caderno junto das matérias sobre educação, coluna social e cinema. A grande novidade desse suplemento era a incorporação das imagens, que traziam fotos de mulheres para ilustrar as matérias de Moda; as matérias também sofreram mudanças, pois não eram mais sobre temas aleatórios, agora tratavam de temas fixos, tais como: moda, etiqueta, decoração e receitas. O suplemento contava com um editorial, que dava o tom da edição, com linguagem mais próxima do cotidiano da leitora, versava, em grande parte, sobre comportamento. Em 1966, o Entre nós... as mulheres parou de ser publicado e teve inicio o suplemento Ela, que agora se encontra a parte do jornal, em forma de encarte. Um detalhe interessante é que o Ela é chamado de “suplemento do lar do jornal News Seller”, nos parece uma espécie de retomada, já que em 1964 a coluna feminina é batizada de Mulher e Lar e tem uma linguagem mais distante, muito diferente do Entre nós... as mulheres, que tem linguagem mais próxima de uma conversa de amigas, marcada pelos editoriais. O Ela, inicialmente, não tem editoriais, são em grande maioria matérias que falam sobre beleza e moda, ainda nesse ano as leitoras começaram a enviar cartas e a editora institui uma coluna para responder as perguntas das leitoras. 2 Usamos o termo suplemento nos referir ao Entre nós... as mulheres porque era o termo usado no News Seller. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 147 Em julho de 1967, o suplemento passa por uma reformulação e são nos dois meses seguintes que faremos uma breve análise das matérias de saúde. O objetivo da reformulação é trazer para o suplemento os grandes problemas das mulheres e dos homens que estariam ali para serem enfrentados e solucionados. E para a edição comemorativa a capa trouxe Dr. Jefferson G. Gonzaga, que segundo o jornal se trata de um professor de Hipnodontia e psicologia, também chamada de “hipnose clínica” da faculdade de odontologia de Lins e também conferencista internacional. Em entrevista, o Dr. esclarece que a pílula anticoncepcional não causa câncer e disserta sobre métodos contraceptivos que podem ser utilizados por homens e mulheres. De forma geral, as matérias que fazem uso de termos científicos abrangem a temática saúde, são matérias sobre os componentes nutricionais das frutas e verduras, sobre como viver mais e com saúde, detalhes sobre doenças, vacinas, procedimentos médicos e cuidados específicos para promover a saúde infantil (NEWS SELLER, 02/07/1967, p.1). Durante os meses de julho e agosto de 1967 foram publicadas dezenove matérias com a temática saúde, a metodologia que utilizamos para definir quais matérias pertencem a essa temática foi leitura dos títulos, lemos e separamos em um banco de dados as palavras que indicam isto, como exemplo, podemos citar uma matéria publicada em 02 de julho de 1967 cujo título é: vitamina antiestéril. O termo vitamina indica que a matéria é sobre saúde, após uma leitura mais minuciosa podemos ressaltar que o texto já inicia com o seguinte trecho “as pesquisa científicas conduzem com frequência a descoberta de fatos realmente notáveis” e descreve alguns alimentos que em falta podem afetar a esterilidade feminina. Na mesma página que essa matéria foi publicada, também há uma matéria sobre alimentação das crianças e uma nota com que apresenta a análise química da alface. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 148 (Fonte: NEWS SELLER, 02/07/1967, Ela, p. 6) Analisamos as dezenove matérias em busca de elementos de difusão científica, buscamos o uso da ciência nessas matérias. A conclusão que chegamos é que todas elas usam elementos de difusão científica conforme demonstramos em tabela abaixo: Data Título Uso da ciência Palavras-chave 1 02/07/1967 Métodos e Pílulas Sim Métodos anticoncepcionais; Ciências médicas 2 02/07/1967 Alimentação da criança Sim Doenças originárias da carência de vitaminas 3 02/07/1967 Vitamina antiestéril Sim Pesquisas científicas 4 02/07/1967 A alface Sim Análise química 5 02/07/1967 Alimento completo Sim Prótides, glúcides, sais, vitaminas 6 16/07/1967 Contra o fumo Sim Tratamentos, convulsoterapia 7 16/07/1967 Morte multiplicada Sim Enfermidade crônica dos sistema de condução cardíaca 8 30/07/1967 Ela amamenta há 22 anos Sim Dr. José Galuzzi; medicina Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 149 9 30/07/1967 De como viver cem ou mais anos Sim Revista soviética descobriu; saúde 10 06/08/1967 Médicos mineiros estudam serpentina Sim Comissão de médicos ginecologistas 11 06/08/1967 A falta, o que faz Sim Ergosterol; raquitismo 12 06/08/1967 O jejum Sim Acalórico; hipocalórico 13 06/08/1967 Best-seller: medicamentos hoje Sim Faculdade de Farmácia e Bioquímica da USP; farmacológico 14 06/08/1967 Pulseiras que ajudam a salvar Sim Diabetes; insuficiência corticosteróide; intolerância a antibióticos 15 20/08/1967 Nova droga Sim LSD; STP; químico 16 20/08/1967 O valor das frutas Sim Cálcio; fósforo; ferro 17 20/08/1967 A abóbora Sim Valor nutricional; medicinal 18 20/08/1967 Seu amigo, o limão Sim Vitamina C 19 27/08/1967 Cutia cura câncer Sim Instituto de antibióticos da Universidade de Pernambuco; Inibidor de tumores Conforme pudemos perceber, em todas as matérias são utilizados elementos que remetem a termos científicos, entretanto, não são matérias que aprofundam esta questão, elas pincelam esses elementos com o objetivo de legitimar seus discursos fazendo o uso da ciência. Embora em entrevista cedida ao Ela no dia 02 de julho de 1967, o “Dr. Jefferson G. Gonzaga” tenha afirmado que se trata de divulgação científico esse tratamento dado a ciência pelo suplemento, em nosso entendimento o jornal faz difusão científica por usar elementos científicos, mas sem aprofundá-los, fazendo uso da ciência no sentido foucaultiano, que diz respeito a ciência como legitimação dos discursos. 4. Conclusão Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 150 Concluímos que o News Seller apesar de inicialmente se enquadrar no modelos descrito pela Dulcília Buitoni (2009) como da imprensa feminina tradicional, com a reformulação do suplemento Ela esse padrão se modificou, tanto com a inserção de matérias de divulgação e de difusão científica, pois existia nos dois modelos, quanto por ter trazido notas de atualidade. Entendemos que esses temas mais próximos da realidade que passaram a ser publicados junto com as matérias frias sobre moda e beleza, se dão pelo fato que agora o suplemento feminino buscava alcançar o público masculino também, e para isso, precisavam modificar esse padrão tradicional da imprensa feminina. A ditatura militar, sem dúvida, foi um marco para as matérias femininas, tanto pela criação da coluna Mulher e Lar, quanto pela tentativa de manutenção dessa mulher dentro do lar. Em 1966, o suplemento Entre Nós... As Mulheres, passou a trazer algumas matérias de emancipação feminina em editoriais escritos pela jornalista Eulina Cavalcante, mas logo em seguida, esse suplemento foi extinto dando lugar ao “Ela, o Suplemento do Lar.” Os primeiros exemplares que tivemos acesso, não tinham mais os editoriais, as matérias tratavam de beleza, moda, livros e uma página infantil, eram oito páginas que relacionavam a mulher ao lar e ao cuidado dos filhos. Com a reformulação do suplemento Ela, pudemos tomar contato com essas matérias que analisamos no entretítulo anterior e que chegamos à conclusão que o uso da ciência estava presente em todas elas. Essa ciência dava suporte tanto em questões relativas ao lar e cuidado dos filhos, quanto embasavam questões de comportamento. A grande maioria delas se trata de difusão científica, pois usam termos científicos para embasar seu discurso, mas sem ter qualquer conteúdo científico de fato. Referências Bibliográficas AQUINO, Estela M L. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Revista de Saúde Pública, n. 40 (número especial), p. 121-132, 2006. BUITONI, Dulcília S. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo, Loyola, 2009. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2007. __________. Arqueologia do saber. São Paulo: Forense universitária, 2009. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 151 ___________. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. São Paulo: Forense universitária, 2008a. ___________.O nascimento da clínica. São Paulo: Forense universitária, 2008b. MASSARANI, Luisa, A divulgação científica no Rio de Janeiro: Algumas reflexões sobre a década de 20. Orientadores: Lena Vânia Ribeiro Pinheiro e Ildeu de Castro Moreira. Rio de Janeiro. UFRJ/ECO/IBICT, 1998. Diss. RAGO, Maria Margareth. Adeus ao Feminismo? Feminismo e (pós) modernidade no Brasil, Cadernos do AEL, Campinas: IFCH/UNICAMP, p. 11-43, 1995/6. ____________________. Feminizar é preciso: Por uma cultura filógina. São Paulo em Perspectiva, v.15 n.3, p. 53-66, 2001. SOIHET, Rachel. Pisando no sexo frágil. Rio de Janeiro: Nossa História, no. 3, Ed. Biblioteca Nacional, 2004. SWAIN, Tânia Navarro. 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Pela grande carga afetiva que se depreende dessas memórias em particular - memória dos paladares - advinda de um sentimento, algumas histórias de vida mediadas por tecnologias favorecem o processo de construções de memórias individuais e coletivas em torno de práticas de alimentação e composição de sensações e paladares das comunidades às quais pertencem. Esse estudo analisará tais questões a partir de narrativas orais de alunos da UFABC e estudos de conteúdos diversos de redes sociais que fazem referência a esse tipo de memória. Nosso estilo de vida atual obedece de forma geral às regras da globalização, que nos tem imposto novas formas de consumo alimentar, novos padrões alimentares e aportes nutritivos, que inclusive, tem influenciado o paladar (DOS SANTOS, 2005). A alimentação, além de ser uma forma de disseminação cultural e uma necessidade fisiológica, também se relaciona com novas tecnologias culturais que estabelecem mudanças, uma ruptura do velho com o surgimento do novo. Palavras-chave: História da alimentação, Tecnologias culturais, Consumo. A memória propriamente dita ou de alto nível é essencialmente uma memória de recordação ou reconhecimento: aquela evocada deliberada ou mesmo involuntariamente. É associada a lembranças de experiências autobiográficas ou referentes à chamada memória enciclopédica da qual pertencem tanto saberes quanto crenças, sensações e sentimentos etc. Tal memória é feita igualmente de esquecimento, seu par dialógico. (CANDAU, 2011) Segundo Pierce (2010), memória é um complexo articulado e um produto acabado. Não existem corpos sem marcas de memória. A partir do desenvolvimento acelerado de novas tecnologias e descobertas científicas a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, não só as experiências vividas entre dois ou mais sujeitos, mas as permeadas pelas técnicas e Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 153 tecnologias, marcam de forma especial a memória. Em um sujeito, forjam-se marcas na qual a cultura que sua corporeidade está inscrita criou técnicas e tecnologias individuais e coletivas que envolvem, entram, atingem nossos corpos para marcar e externalizar ao corpo o que cada grupo ou sociedade considera que precisa ser lembrado, esquecido, vivenciado pelos sujeitos. Assim, nesse estudo, pensamos em tais marcas permeadas por um sentido em particular, o paladar, esse considerado complexo por envolver também o tato, o olfato e a visão, tornando- o, portanto, um agente rememorador por excelência. Associá-lo à trajetória da recém-criada Universidade Federal do ABC 1 , em especial, pelas experiências de um grupo de discentes, será nosso objetivo. O conceito de memória desse estudo fundamenta-se na obra de Pierre Nora. Segundo o historiador, há dois elementos intrínsecos da memória: ser afetiva e mágica. (NORA, 1993) Tal afetividade traz características que marcam um grande diferencial com o conceito de História. Enquanto a história é racional, feita por interpretações marcadas por um método científico que questiona o passado por meio de problematizações, a memória é fluída, inconstante e não linear. O que constrói o filtro, que separa o que é lembrança de esquecimento, são justamente marcos afetivos de nossas trajetórias (HALBWACHS, 1990). O componente “mágico” citado por Nora diz respeito ao elemento criativo da memória, pois a memória é reelaborada em cada grupo identitário, criada no tempo presente, e não apenas “resgatada” do passado, portanto, seria de grande ingenuidade se pensar como possível o mero “resgate” de um passado como um pedaço de pedra sólido e inquebrantável. Segundo o Nora (1993), o passado nunca voltaria, mas seria reelaborado, por meio da narrativa, na dinâmica e circunstâncias afetas tanto ao Tempo presente como à interlocução com os agentes da narrativa. Estaremos atentos nesse estudo à forma de elaboração de narrativas se faz por meio de particularidades que o próprio colaborador, o grupo ao qual pertence, seu tempo e espaço influenciam tanto no modo de narrar quanto no conteúdo de que narrar. Nosso modo de vida atual obedece de forma geral às regras da globalização, que nos tem imposto novas formas de consumo alimentar, novos padrões alimentares e aportes nutritivos, que inclusive, tem influenciado o paladar (SANTOS, 2005). O paladar é um 1 No ano de 2004 o Ministério da Educação encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 3962/2004 que previa a criação da Universidade Federal do ABC. Essa Lei foi sancionada pelo Presidente da República e publicada no Diário Oficial da União de 27 de julho de 2005, com o Nº 11.145 e datada de 26 de julho de 2005. Os primeiros aprovados no vestibular do ano de 2006 começaram as aulas em janeiro e maio de 2007. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 154 sentido químico, que juntamente com o olfato, está entre as capacidades mais primitivas do Sistema Nervoso Central, ambos relacionados às funções neurais e comportamentais (GUYTON & HALL, 2006). Muito antes e além de se constituir como uma das formas de disseminação cultural, a alimentação é uma necessidade fisiológica, e muitas vezes o alimento está relacionado a rituais e cerimoniais que marcam fases da vida, datas comemorativas e conquistas. Isso faz do paladar, o sentido responsável por distinguir tantos os sabores dos alimentos, mas também um sentido relacionado à memória afetiva (SANTOS, 2005). Assim, exemplificamos a nossa memória de paladares como uma memória carregada de subjetividades que dizem respeito a esse sentido em particular (o paladar) e outros sentidos em secundário que agem em consonância com este (o tato, a visão, o olfato, a audição). Tem- se a lembrança do gosto de determinado alimento aliado ao aroma por ele desprendido, aos sons que estão envoltos, à sua visão tanto do próprio alimento quanto das circunstâncias que o cercam, como, por exemplo, determinadas festividades e seus alimentos típicos, rituais que marcam tais “modos de fazer” (receitas e seus modos de fazer), viagens e seus alimentos singulares. O sentimento pode produzir uma memória e essa memória pode ser resgatada pela sensação do paladar e demais sentidos associados. De acordo com Pierce (2010) o sentimento é uma categoria de consciência que pode ser compreendida como um instante do tempo, passiva da qualidade, sem reconhecimento ou análise e, a sensação um sentimento imediato. Segundo Gibson (1950) apud Santaella (2009), as sensações são mecanismos ativos de busca e seleção de informações da sensibilidade simultânea dos órgãos sensores. Investigar e analisar a memória afetiva advinda de algum sentimento ligada em particular à sensação do paladar na linha de pesquisa da história das sensibilidades que usa a perspectiva das sensibilidades individuais como forma de chegar ao real em construção e às ideias que dele fazem parte. A sensibilidade faz parte das categorias que parecem abrir o discurso para o indizível. Uma das marcas de identificação do indivíduo moderno, nem por isso ela deixa de ser apreensível em sua dimensão social: ao contrário, revela-se instância estratégica na construção social e histórica da subjetividade, passando do singular ao plural ou a uma história das sensibilidades. (LOPES; LIMA, 2013) A história cultural ganhou espaço no interesse dos pesquisadores, dialogando com a antropologia, a psicologia, a semiologia, as novas tendências na história das ciências, as artes, os estudos de gênero e da diversidade cultural, os estudos de performance, entre muitas outras Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 155 áreas. Nesse sentido, cresceu também uma atenção mais específica a uma história das sensibilidades, capaz de perceber algo do que se perde diante do documento “frio” – a paixão, as fantasias, os desejos e os medos que movem homens e mulheres em suas ações. (LOPES; LIMA, 2013) Pesquisadores e extensionistas de áreas variadas observaram que a produção feita por muitas comunidades visava atender mais do que as necessidades econômicas consideradas básicas, de alimentação e moradia, posto que estavam carregadas de significações mais amplas sobre as formas de convívio e de sociabilidades entre sujeitos, famílias e grupos. Foi possível observar e registrar muitos desses processos produtivos e entender seus sentidos performáticos, ou seja, como comportamentos expressivos, algumas vezes ritualizados, que buscavam, além de garantir a segurança alimentar ou o território, fazer a manutenção e a reinvenção constante de noções de pertencimento ao tempo e ao espaço, forjando continuidades e descontinuidades identitárias das comunidades (BAUMAN apud SANTOS, 2012). Nesse âmbito que emergiram definições de tecnologias culturais, que se alinham com as de tecnologias sociais, no sentido de mapear e valorizar técnicas que visam garantir a qualidade de vida de sujeitos e grupos, para organizar, dar visibilidade e reunir saberes produzidos nas comunidades por pessoas comuns (CARRION, VALENTIM, HELLWIG, apud SANTOS, 2012). Tecnologias sociais e culturais são compreendidas como um conjunto de metodologias e técnicas desenvolvidas e transmitidas pelos sujeitos em torno de suas práticas cotidianas para garantir sua sobrevivência material e imaterial, simultaneamente econômica, social, artística e cultural. As tecnologias sociais e culturais estão nos discursos e documentos que foram criados a partir de entrevistas do Programa de Extensão/ Memória dos Paladares (PROEXT/ MEC 2011). E que, certamente, tratam sobre como tais tecnologias relacionam-se com as noções que os sujeitos possuem de corpo, velhice, juventude, constituindo um arquivo num centro de documentação na UFABC, como uma forma concreta de propor que instituições como a universidade façam a guarda e/ou divulgação dos vestígios produzidos pelos sujeitos e grupos, por exemplo, sobre a memória dos paladares, e assim contribuir em torno do que deve ser lembrado pelas sociedades, para problematizar e repensar propostas e dinâmicas de desenvolvimento social, econômico, cultural com políticas públicas pertinentes ao contexto em que serão implementadas, sintonizadas com os anseios dos diversos grupos sociais. (SANTOS, 2012) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 156 Será feito um estudo de caso das entrevistas de estudantes da UFABC elaboradas pelo Programa de Extensão/ Memória dos Paladares (PROEXT/ MEC 2011), que estão presentes no acervo homônimo no Laboratório-cozinha Memória dos Paladares da UFABC. No total são 20 entrevistas, já elaboradas, transcritas e tratadas durante a vigência do programa e que estão disponíveis para consulta. Tais entrevistas, que são de intensa riqueza tanto para memória institucional quanto para identificação de diagnósticos e possíveis problemas referentes a esse grupo identitário, ainda carecem de análise sistemática por meio das metodologias relacionadas às Ciências Humanas, em especial, a história das sensibilidades. Investigando e analisando a memória afetiva advinda de algum sentimento ligada em particular à sensação do paladar usando a perspectiva das sensibilidades individuais é uma forma de chegar ao real em construção e às ideias que dele fazem parte. Em complemento às fontes das narrativas orais, pretende-se analisar os conteúdos de dentro das redes sociais que façam referência aos hábitos alimentares dos estudantes. Uma pesquisa preliminar apontou que existem diversos conteúdos de caráter irônico com é o caso do perfil, criado pelos estudantes, da Lagartixa do R.U. que surgiu de uma polêmica situação: uma lagartixa no buffet de saladas do restaurante universitário que repercutiu com fotos da situação e várias outras montagens com a imagem. Acredita-se que a evocação da ironia e escárnio seja um modo de defesa encontrado pelos estudantes com relação às situações adversas que os mesmos enfrentam. Pretende-se, portanto, elaborar um levantamento de tais conteúdos, para analisar os motivos que páginas, grupos e caricaturas foram criados. A presente pesquisa permite aproximar esforços de áreas diversas, estimulando a interdisciplinaridade e o enriquecimento mútuo de metodologias e perspectivas variadas, buscando as relações entre o indivíduo e a sociedade, entre as representações e as práticas ou entre a subjetividade e a realidade. Referências Bibliográficas CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. HALL, J.E.; GUYTON, A.C. Tratado de Fisiologia Médica. São Paulo: Guanabara Koogan, 2006. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 157 LOPES, Antonio Herculano; LIMA, Nísia Trindade. As sensibilidades e a subjetividade na produção do conhecimento histórico sobre as artes, as ciências e o pensamento. Disponível em: <http://www.snh2013.anpuh.org/simposio/view?ID_SIMPOSIO=1079>. Acesso em: 16 de maio 2013. 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O surgimento das geometrias não- euclidianas e o processo de aritimetização da análise, ocorridos no final do século XIX, expuseram a limitação da lógica aristotélica em estruturar o raciocínio e a necessidade de uma nova representação dos objetos matemáticos. Algumas escolas de pensamento dentro da filosofia da matemática tentaram solucionar, ou contornar, esses problemas. Serão abordados neste texto o logicismo e o formalismo, dois importantes movimentos que, embora possuindo raízes históricas distintas, compartilhavam o mesmo ideal fundacionista para o conhecimento matemático. Palavras-chave: Logicismo, Formalismo, História da matemática Abstract: Two key features in ancient Greek mathematics were the description of mathematical entities by means of an intuitive geometric representation and the strictness of propositional deduction what would lead to the demand of absolute truths. These foundations of mathematics were shaken throughout Modernity due to several paradoxes arisen from the creation of calculus in the seventeenth century. The emergence of non-Euclidean geometries and the arithmetization of analysis that took place in the late nineteenth century showed the need for a new representation of mathematical objects and disclosed the limitation of Aristotelian logic as means of structuring the reasoning. Some schools of thought within the philosophy of mathematics tried to solve or avoid these problems. We will focus in this paper on logicism and formalism, two important movements that, despite of having distinct historical roots, shared the same foundational ideal for mathematical knowledge. Keywords: Logicism, Formalism, History of Mathematics Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 159 Introdução A crise da racionalidade, instaurada no final do século XIX, abalou os fundamentos do pensamento ocidental e provocou importantes mudanças no modo como concebemos o conhecimento científico. Com o advento da história das ciências como um campo autônomo de pesquisa, além do desenvolvimento da sociologia e antropologia do conhecimento, adquirimos um novo olhar sobre este tipo de saber proporcionado pela ciência: adquirimos um olhar histórico. A partir dessa nova perspectiva, tornou-se cada vez mais questionável a noção de um conhecimento científico universal e necessário, alicerçado em bases puramente racionais e que se desenvolveria de forma linear, por um acúmulo progressivo de conhecimentos. Essas novas ferramentas de análise histórica e social das ciências mostraram um conturbado processo no desenvolvimento das teorias, além de expor o importante papel de aspectos extracientíficos em sua elaboração e consolidação. O impacto dessa nova concepção do conhecimento se fez sentir não só nas ciências naturais, mas em todos os ramos do pensamento moderno, inclusive na matemática. A matemática, ainda alicerçada em fundamentos erigidos pelos gregos antigos, foi o último reduto do platonismo até fins do século XIX. A matemática grega era caracterizada, sobretudo, pela descrição geométrica intuitiva com a qual eles representavam os entes matemáticos e pelo extremo rigor empregado nas demonstrações de proposições. Partindo de premissas elementares e auto-evidentes, o método dedutivo guiaria os pensadores através de um caminho seguro, rumo ao encontro das verdades absolutas fornecidas pela matemática. No entanto, os pilares da matemática clássica se tornaram frágeis diante dos novos desafios a que eram submetidos. Os diversos paradoxos colecionados desde a criação do cálculo infinitesimal, que rompeu com o rigor nas demonstrações, e o surgimento das geometrias não-euclidianas, que trouxeram uma nova visão à teoria axiomática, mostraram a insuficiência do modelo clássico diante de problemas surgidos dentro da matemática na modernidade, além de expor a limitação da lógica antiga em estruturar o raciocínio. Esses fatos exigiram uma reestruturação dos fundamentos da matemática. Duas importantes escolas de pensamento que tentaram refundar a matemática em novas bases foram o logicismo e o formalismo. Pretendemos apresentar neste texto algumas das Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 160 principais ideias defendidas por esses dois movimentos e mostrar as razões da falha dos programas fundacionistas na matemática. Logicismo Historicamente, a matemática e a lógica se desenvolveram de forma independente. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) foi um dos primeiros a relacionar essas duas disciplinas. Afirmava que as proposições matemáticas se assemelhavam às proposições lógicas, sendo verdadeiras porque sua negação seria impossível logicamente. Segundo Leibniz, as proposições matemáticas seriam analíticas – ou como ele as denominava, “proposições idênticas” –, redutíveis a sentenças da forma sujeito-predicado. Neste tipo de proposição, o sujeito já conteria a informação dada pelo predicado, que, para Leibniz, poderia ser explicitado por um número finito de passos. Ao fazer essa associação entre duas disciplinas, matemática e lógica, que se desenvolviam separadas até então, Leibniz antecipou posicionamentos do movimento logicista moderno, ao conceber a matemática pura como parte da lógica. Desde que foi sistematizada por Aristóteles (384a.C.-322a.C.), a lógica clássica permaneceu praticamente intocada até o século XIX. Nesse período, problemas observados dentro da matemática expuseram as limitações da lógica antiga para o novo papel que ela estava ganhando: fundamentar a matemática. Para esse fim, a lógica clássica ganhou uma nova roupagem nas mãos de pensadores como Gottlob Frege (1848-1925), Alfred North Whitehead (1861-1947), Bertrand Russell (1872-1970) e Rudolf Carnap (1891-1970). Frege ampliou a representação simbólica do raciocínio dedutivo e, na tentativa de tornar a lógica mais precisa e confiável, tentou depurar suas bases, especificando quais leis fundamentais da lógica seriam aceitáveis como premissas. Além disso, estabeleceu os métodos de inferência que poderiam ser utilizados nas deduções. Essas mudanças pelas quais a lógica vinha passando visavam estabelecer um controle maior do raciocínio matemático. O objetivo do programa logicista era fornecer um fundamento seguro à lógica para restabelecer a certeza nas demonstrações matemáticas. Como para essa corrente de pensamento a matemática é dedutível da lógica, pensava-se que se tivéssemos como remeter às leis gerais da lógica todos os passos de uma demonstração, teríamos a garantia de uma cadeia de raciocínio sem contradições que nos levaria a conclusões indubitáveis. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 161 O modo logicista de explicar a matemática teve grande aceitação entre os matemáticos, pois trouxe a possibilidade de se contornar os problemas internos que vinham aparecendo nesse campo do conhecimento, além de restabelecer o status que historicamente a matemática ocupou dentro do pensamento ocidental. A antiga pretensão dos matemáticos de construir um conhecimento que estabelecesse verdades inquestionáveis parecia novamente possível. Entretanto, a aspiração de se solucionar todos os problemas da matemática fundamentando-a em uma lógica mais refinada não obteve êxito total, pois deixou algumas lacunas que continuavam provocando problemas na matemática e abriam espaço para os críticos do movimento logicista. Como apontado por Körner, um aspecto questionável no programa logicista é o fato de não terem delimitado o campo de ação da lógica. Além disso, os pensadores ligados a esse programa assumiram a posição clássica de divisão do conhecimento entre empírico e não- empírico, mas, para Körner, não foram capazes de indicar com clareza a distinção que faziam entre as proposições da matemática pura, que seriam a priori ou não-empíricas, e as proposições da matemática aplicada, que seriam a posteriori ou empíricas. Isso trouxe muitos problemas ao tentarem definir o conceito de infinito real, além de tornar incoerente a avaliação dos logicistas frente aos ramos da matemática aplicada. (KÖRNER, 1985) Outro problema do programa logicista surgia quando tentavam explicar a natureza dos axiomas matemáticos. Ao desenvolver uma teoria, o matemático define seus conceitos, justificando-os através de outros conceitos já definidos, e demonstra suas proposições, usando as regras da lógica, a partir de proposições já demonstradas anteriormente. A essas proposições demonstradas dá-se o nome de teoremas. Na definição de um conceito ou na demonstração de uma proposição, o matemático tem que se basear em outros conceitos definidos anteriormente ou em proposições previamente demonstradas. Contudo, não é possível um retrocesso ad infinitum aos conceitos e proposições primeiras. Portanto, para solucionar esse problema, ele aceita alguns conceitos sem definição (denominados conceitos primitivos) e proposições sem demonstração (chamadas axiomas) e a partir daí define e demonstra todos os outros conceitos e proposições. A questão que se levanta é que o conhecimento matemático, estabelecido dessa forma, estaria alicerçado sob bases puramente hipotéticas, ou seja, ainda estaria ligado a uma intuição empírica. Como os logicistas queriam deduzir a matemática a partir de princípios lógicos, a menos que pudessem mostrar que as premissas nas quais a matemática está alicerçada são de fato princípios lógicos, o programa não se realizaria. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 162 A todos esses problemas apontados dentro do método logicista, se somavam as críticas das escolas de pensamento que julgavam uma pretensão desnecessária assegurar a infalibilidade da matemática diante de qualquer novo desafio que pudesse surgir. Além disso, para alguns críticos do logicismo, seria impossível o estabelecimento de um conhecimento puro, totalmente abstrato, que não tivesse a mínima relação com o mundo empírico. Esse tipo de posicionamento, evidentemente, diminuía o alcance da matemática pura e a juntava às outras ciências. Era o início do reconhecimento efetivo dos limites do método matemático. Kant e a matemática Na modernidade, os debates entre filósofos empiristas e racionalistas na tentativa de explicar os fundamentos do conhecimento criaram duas perspectivas antagônicas que, por alguns séculos, guiaram o modo de se tentar explicar as ciências. A possibilidade da matemática sempre foi um dos principais temas nesses debates. Para os racionalistas, como Leibniz, por exemplo, a matemática seria um tipo de conhecimento analítico, dado a priori pelas propriedades essenciais da razão. Os empiristas concordavam quanto ao fato da matemática ser um conhecimento analítico, mas diziam que esse era um tipo de conhecimento vazio, que não trazia informações novas àquilo que já se sabia. Para esses filósofos, um conhecimento realmente efetivo deveria ser a posteriori – fundado na experiência – e sintético, ou seja, o predicado das proposições deveria trazer informações que não estivessem implícitas no sujeito. Immanuel Kant (1724-1804) trouxe uma nova perspectiva a esse debate, rompendo com a dicotomia racionalismo-empirismo para explicar os fundamentos do conhecimento. Assumido a mesma noção anterior de proposição analítica, Kant inovou ao propor uma distinção nas proposições sintéticas, que seriam de dois tipos: as empíricas, ou a posteriori, e as não-empíricas, ou a priori. Porém, diferentemente dos empiristas, para Kant, através de nossas noções perceptuais espaço-temporais, seria possível para o ser humano saber algo a respeito de um objeto, independentemente do contato com esse objeto, ou seja, situar algo no espaço e no tempo, seria condição necessária da nossa possibilidade de experiência objetiva. Assim sendo, uma proposição sintética a posteriori dependeria da nossa percepção sensorial e, por isso, teria um caráter contingente e singular. As proposições sintéticas a priori seriam possíveis, pois Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 163 descreveriam objetos no espaço e no tempo, que são categorias permanentes e imutáveis da percepção independentes de nossas impressões sensoriais, sendo então proposições necessárias e universais. Para Kant, o conhecimento obtido pela matemática não se limitava em explicitar algo que já se sabia através de procedimentos lógicos. A matemática produziria um conhecimento efetivo, que ele explicava afirmando que, ao mesmo tempo em que era a priori, também analisava fenômenos, ou seja, os enunciados da matemática seriam justamente sintéticos a priori. As proposições da matemática seriam uma síntese entre uma intuição pura (não-empírica) e a experiência (antes do contato com o objeto). Era esta intuição pura que tornava a matemática possível e juntava sujeito e predicado em uma proposição. Um ponto importante a ser observado é quanto ao papel da lógica na matemática. A posição kantiana quanto ao caráter lógico das deduções matemáticas era idêntica à dos racionalistas. No entanto, para ele, os axiomas e teoremas não eram, eles mesmos, princípios lógicos. Segundo Kant, eles descreveriam a estrutura de dois dados perceptuais, que são espaço e tempo. Portanto, elementos não pertencentes à lógica estavam intuitivamente presentes por trás de todo pensamento. Assim, enquanto para Leibniz a matemática poderia ser explicada e fundamentada através das relações lógicas entre proposições e conceitos, para Kant a possibilidade da matemática era explicada pela percepção. Essa afirmação quanto à natureza do conhecimento matemático lançou as bases para a formulação de dois importantes programas que visavam solucionar os problemas internos da matemática: os programas formalista e intuicionista. Uma diferença entre essas duas escolas, e que acabou se tornando substancial no desenvolvimento posterior da filosofia da matemática, é quanto aos objetivos finais de seus programas. Os intuicionistas reconheciam os limites do método matemático, não tendo por objetivo manter as ambições absolutistas da matemática clássica. Já os formalistas, como os logicistas, queriam resguardar as verdades matemáticas e construir um método capaz de continuar sempre oferecendo proposições verdadeiras, imutáveis e universais. Como estamos focando este estudo nos movimentos fundacionistas surgidos no século XIX, trataremos, a partir daqui, do programa formalista e sua tentativa de solucionar os problemas nos fundamentos da matemática. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 164 Formalismo Pensadores como John von Neumann (1903-1957) e Haskell Brooks Curry (1900-1982) foram alguns dos mais importantes proponentes do programa formalista, mas o principal nome ligado à essa corrente foi mesmo o de David Hilbert (1862-1943). Para os formalistas, a matemática se restringia à descrição de objetos concretos e às relações lógicas entre tais descrições. A partir dessa perspectiva, na visão desses pensadores, o principal objetivo do programa formalista seria resguardar o sistema de proposições matemáticas de possíveis inconsistências. A noção de consistência é um conceito fundamental para se entender as teses do movimento formalista. Um sistema de proposições é internamente consistente, quando ele não possui uma proposição da qual podemos deduzir uma outra ou não possui duas proposições tais que uma seja a negação da outra. As antinomias surgiriam, segundo essa corrente, por inconsistências no conjunto de hipóteses que fundamentavam a matemática. Outro conceito problemático na matemática era a noção de infinito. Mesmo não descrevendo nenhum objeto concreto, esse era um conceito fundamental dentro da matemática e os formalistas tinham que incluí-lo de alguma forma em seu programa. Para abarcar a matemática infinitista, Hilbert utilizou as ideias de Georg Cantor (1845-1918) e sua matemática transfinita. Cantor tentou resolver os problemas de manipulação de conjuntos infinitos com a noção de cardinalidade. Para esse pensador, todo conjunto cujos elementos podem ser colocados em correspondência biunívoca com os números naturais é dito contável e tem a mesma cardinalidade do conjunto dos números naturais. Cantor, comparando conjuntos com o dos naturais, criou meios para manipular essas quantidades infinitas introduzindo uma nova notação capaz de tornar a noção de infinito mais palpável aos matemáticos. Entretanto, em relação ao programa formalista, ao incorporar a matemática transfinita em seu corpo teórico, sua tarefa se tornou mais difícil, pois deveriam agora provar a consistência de um sistema formado pelas matemática finita, que trabalhava com noções concretas, e a matemática transfinita, com suas noções ideais. Não admitiam a suposição de conjuntos infinitos, mas utilizavam símbolos para representar essas entidades. Tentava-se justificar uma matemática abstrata, que abarcava totalidades infinitas, mediante uma prova finitista de consistência. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 165 Para assegurar a consistência de um sistema com essas características, o programa formalista propunha uma rígida regulação para a criação de fórmulas que representassem objetos perceptuais e para suas manipulações simbólicas. Isso se daria através de um novo campo de pesquisa, conhecido como metamatemática, que tomaria o próprio formalismo como objeto de estudo. Essa disciplina cuidaria de estabelecer as regras de manipulação simbólica dos enunciados matemáticos, ou seja, à metamatemática caberia o papel de proteger o sistema da inconsistência. Para os críticos do projeto formalismo, ao assumir o papel de tradutor de objetos perceptíveis para fórmulas abstratas, o programa não conseguia mais dar uma base empírica aos enunciados da matemática pura. Para eles, o formalismo teria convertido a matemática em um jogo vazio de análise de simples marcas no papel e manipulação de fórmulas que limitava a atividade matemática em prol do cumprimento de regras artificiais. Nesse sentido, as críticas feitas às pretensões do programa logicista, que se recusava a reconhecer os limites do método matemático, também podem ser estendidas a alguns aspectos do programa formalista. Para esses críticos, ao tentar fundar uma matemática totalmente livre de contradições e comprometida com a construção de proposições universais e necessárias, Hilbert e seus discípulos acabaram se perdendo nas abstrações do seu próprio método. O Teorema de Gödel Não obstante todas essas críticas e dificuldades que os pensadores encontraram em enquadrar a matemática em seu método, o mais duro golpe nas pretensões fundacionistas dos programas logicista e formalista ainda estava por vir. Como dissemos, um dos maiores desafios do programa formalista era garantir a consistência interna do sistema de proposições matemáticas. Para os logicistas, este também era um grande problema, mas eles acreditavam que conseguiriam assegurar a consistência pelo aprimoramento da lógica. Para conseguir a certeza da consistência, um dos passos fundamentais era demonstrar a completude das teorias matemáticas, ou seja, provar o fato de que dentro destas teorias, todo enunciado verdadeiro é demonstrável. Desde Euclides (325a.C.-265a.C.) este sempre foi um pressuposto do trabalho matemático. No entanto, a tentativa de uma formulação definitiva da Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 166 matemática proposta por formalistas e logicistas exigia uma demonstração formal da completude das teorias. Porém, em 1931, aconteceu algo inesperado na matemática. Em um artigo intitulado “Sobre as proposições formalmente indecidíveis dos Principia Mathematica e sistemas semelhantes”, um jovem e desconhecido matemático chamado Kurt Gödel (1906-1978) finalmente conseguiu dar uma resposta definitiva ao problema da completude. Isto foi inesperado não pelo fato de alguém ter conseguido “resolver” essa questão, mas pela conclusão a que Gödel chegou. Ele demonstrou, ao contrário de todas as expectativas, que as teorias da matemática não são completas. Isso quer dizer que, independentemente do conjunto de axiomas, a matemática sempre conterá proposições que, mesmo sendo verdadeiras, serão indemonstráveis! Gödel ainda provou que o surgimento de paradoxos dentro da matemática, como os inúmeros que apareciam na teoria dos conjuntos em sua época, é inevitável. Para manter a consistência do sistema, nós devemos excluir esses paradoxos e não tentar reformular a matemática a fim de evitá-los. Esses paradoxos, ao serem excluídos, se tornarão “indecidíveis” e mostrarão as limitações do sistema, que não terá como julgar se são verdadeiras ou falsas as afirmações trazidas pelos paradoxos. Enfim, o Teorema da Incompletude de Gödel não inviabilizou apenas a conclusão dos programas logicista e formalista, mas tornou inexequível qualquer outro movimento fundacionista que ambicionasse construir um conhecimento matemático totalmente livre de antinomias e capaz de fornecer verdades absolutas. Considerações finais As frustradas tentativas de edificar uma base sólida que restabelecesse a confiabilidade desfrutada pelo método matemático ao longo da história do pensamento ocidental acabaram retirando da matemática o lugar privilegiado que sempre ocupou, como único campo do saber capaz de fornecer verdades inquestionáveis. Com a falha dos programas fundacionistas, a filosofia da matemática, que tantos acalorados debates gerou desde a sistematização do raciocínio matemático pelos gregos antigos, estagnou totalmente após os anos 40 do século XX. Entretanto, o trabalho dos pensadores ligados à matemática aplicada não foi impactado por nenhum dos problemas nos fundamentos que tanto afligiam os filósofos e pesquisadores em matemática pura. Indiferentes, ou pouco preocupados com essas questões lógicas e metodológicas, físicos, químicos, engenheiros e matemáticos continuaram a criar novas aplicações para a matemática e a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 167 impulsionar o desenvolvimento tecnológico. A visão instrumentalista do conhecimento matemático permitiu a construção de uma matemática aplicada extremamente eficiente, que possibilitou o incrível avanço técnico observado no século XX. Porém, se o sucesso da matemática como instrumento das ciências foi suficiente para satisfazer os pensadores ligados à matemática aplicada, lógicos e pesquisadores em matemática pura não aceitaram bem essa perspectiva pragmática e, nas últimas décadas, vêm forjando novas tendências dentro da filosofia da matemática. Do movimento intuicionista, surgiram programas como o construtivista e sócio-construtivista que, propondo metas menos pretensiosas para os fundamentos da matemática, tentam estabelecer um caminho viável para a construção de novas bases à matemática que, justamente por serem menos rígidas, talvez sejam mais resistentes a futuros abalos. Bibliografia BERNAL, J. D. Ciência na história. Lisboa: Livros Horizonte, 1976. ____. Historia social de la ciencia. Barcelona: Península, 1976. BICUDO, I. Platão e a matemática. São Paulo: Letras Clássicas, Editora Humanitas - FFLCH/USP, número 2, 2002. BOYER, C. B. História da Matemática. São Paulo: Edgard Blücher, 1974. COSTA, M. A. As idéias fundamentais da matemática e outros ensaios. São Paulo: Editorial Grijalbo, Editora da Universidade de São Paulo, 1971. DOXIADIS, A. Tio Petros e a conjectura de Goldbach. São Paulo: Editora 34, 2001. ERNEST, P. The philosophy of mathematics. In: The philosophy of mathematics education. 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Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 169 A CIÊNCIA E A ASSISTÊNCIA NOS DEBATES DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE NEUROLOGIA, PSIQUIATRIA E MEDICINA LEGAL (1907-1933). Ede C. B. Cerqueira Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz Mestranda em História das Ciências e da Saúde Agência financiadora: Fiocruz [email protected] Resumo: A Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal (SBNPML) foi fundada no início do século XX por um grupo de médicos, no Rio de Janeiro, enquanto sociedade científica com o intuito de contribuir para o desenvolvimento das áreas médicas que a constituíam. As reuniões desta Sociedade eram marcadas por debates que envolviam questões referentes à prática médica, como o diagnóstico e terapêutica de casos clínicos, e também de assuntos mais amplos, como a assistência a “alienados” em vários estados do Brasil e em outros países, por exemplo. Nesta pesquisa procuro identificar os temas discutidos em suas sessões que dizem respeito à produção da ciência e a criação e funcionamento de instituições de assistência aos indivíduos considerados “alienados”. Palavras-chave: história, sociedade, psiquiatria. Abstract: The Brazilian Neurology, Psychiatry and Legal Medicine Society (SBNPML) was founded in the beginning of the 20 th century by a group of physicians, in Rio de Janeiro. It was established as a scientific society with the aim of contribute with the development of the medical areas that were in its name. The meetings of the society were marked by discussions about the medical practice, such as diagnostics and therapeutics of clinical cases, and also about bigger issues, like the structure for care of the “insanes” on several Brazilian states and on other countries, for instance. In this research, I want to identify the themes debated in its meetings that were related to the production of science and to the creation and operation of institutions for the care of those considered “insanes”. Keywords: history, society, psychiatry A Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal foi fundada durante uma reunião na Academia de Medicina, no Rio de Janeiro, em 1907, por um grupo de 40 médicos, dentre os quais destacam-se nomes como os de : Miguel Couto, Juliano Moreira, Fernandes Figueira, Carlos Eiras, Afranio Peixoto, Miguel Pereira, Carlos Seidl, Ulysses Vianna Filho, Antonio Austregésilo, com o propósito, que segundo seus fundadores, era de trabalhar em prol da maior difusão do estudo dos “ramos do conhecimento médico” que a nomeavam, assim como “fazer uma grande propaganda em favor da melhora da sorte dos alienados” e daqueles que a eles se dedicavam (ABPNCA, 1907: 435-436). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 170 Esta instituição teve como órgão oficial de divulgação o periódico Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal (1908-1918) enquanto uma sequência do periódico Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins (1905-1907), criado em 1905 por Juliano Moreira e Afranio Peixoto. Este primeiro periódico mudou de nome, recebendo o mesmo nome da Sociedade ao tornar-se o órgão oficial desta entidade em 1908, mantendo porém, a numeração corrente do primeiro periódico (Amarante, 2004: 18; Facchinetti; Cupello; Evangelista, 2010: s/p; Venancio, 2011: 414). Mas, quem eram os médicos que constituíram tal sociedade científica? A SBNPML reunia médicos de várias especialidades como pediatria, ginecologia, dermatologia, oftalmologia, otorrinolaringologia e cirurgia, que trabalhavam no Hospício Nacional de Alienados e em outros hospitais tanto da assistência pública como da privada, representantes da medicina legal e aqueles médicos que estavam especializando-se no tratamento das “doenças mentais e moléstias nervosas”, experimentando, construindo, legitimando e delimitando novos campos da medicina e novas identidades profissionais e sociais como psiquiatras e neurologistas (ou neuropatologistas). Médicos que estavam preocupados em delimitar as fronteiras, até então difusas, entre as especialidades médicas, recém criadas no Brasil, da psiquiatria e neurologia (neuriatria ou neuropatologia), diferenciando-as entre si e em relação às “ciências afins”, como medicina legal e psicologia 1 . Na primeira parte das sessões eram feitos comunicados que versavam sobre falecimentos de médicos da comunidade nacional e internacional, muitos destes também sócios daquela instituição; votos de congratulações era dedicados aos membros, que assumiam cargos em instituições médicas, ou recebiam títulos. Também havia informes sobre os congressos nacionais e internacionais para os quais os representantes da Sociedade estavam convidados a participar; falava-se sobre as revistas recebidas de outras comunidades científicas e notícias da assistência aos alienados, em outros estados do Brasil (ABNP, Ano II, 1ºTrimestre, 1920: 64-65). Na sequência as atas registram a segunda parte da reunião, ou “ordem do dia,” que no cotidiano das sessões significava iniciar as apresentações de casos clínicos por um ou dois médicos, que seriam debatidos pelos presentes; fazer uma comunicação sobre estudo desenvolvido por um dos membros; ou apresentar um relatório sobre visita a instituições 1 Artigos que tratam sobre a psicologia são encontrados em seu conteúdo desde a publicação dos primeiros números do periódico Arquivos Brasileiros em 1905 com o artigo de Maurício de Medeiros intitulado “O que é uma emoção?” ou do mesmo autor de 1908, o artigo “A questão dos métodos em psicologia”. Ver ABPNML, nº3-4, 1905:233/ ABPNML, nº1-2, 1908: 23. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 171 nacionais e internacionais de produção do conhecimento ou assistência médica, como universidades e hospitais. (ABNP, Ano II, 1ºTrimestre, 1920: 63-64). Analisando as atas do período aqui estudado, percebe-se que os casos clínicos geralmente eram referentes a pacientes do HNA, porém foram encontrados relatos de casos cujo paciente estava aos cuidados de outras instituições de assistência, do Rio de Janeiro ou de outros estados brasileiros como o Juquery em São Paulo. Em alguns casos o paciente estava presente à reunião, como previam os estatutos da Sociedade, sendo examinado por alguns dos médicos ali presentes, enquanto o relator do caso apresentava as informações que compunham o histórico familiar do paciente, a anamnese, diagnóstico, etiologia e terapêutica (Atas da SBNPML de 1908-1928). Geralmente os debates concentravam-se no quesito do diagnóstico, já que a maior parte dos casos consistia, segundo os médicos, em situações de definição difícil. Os casos apresentados nestas discussões não parecem ser os mais comuns da clínica médica, mas aqueles que trazem um elemento singular, que eles consideravam ser dignos da apreciação de seus pares, seja pela dificuldade na definição do diagnóstico ou da terapêutica. Ou seja, mesmo considerando que, alguns diagnósticos apareçam frequentemente nas reuniões, é preciso estar atento, pois, em cada um deles, existe um diferencial que possibilitou sua escolha, divulgação e discussão pelos médicos. Outro tipo de apresentação, relativo a clínica médica, eram as comunicações que versavam sobre estudos desenvolvidos pelos médicos, a respeito de determinado tipo de perturbação físico-moral e/ou forma de tratamento. No estudo dos debates referentes ao uso de categorias para diagnosticar perturbações físico-morais, é possível perceber a preocupação de alguns médicos, membros desta instituição, para “que se fizesse uma fusão das classificações existentes, de que resultassem uma que servisse de paradigma aos trabalhos da Sociedade” proposta apresentada por Antonio Austregésilo em sessão de 1908. Na ocasião o Dr. Henrique Roxo alertou sobre a impossibilidade da realização de tal ideia, “dada a divergência de base de cada classificação”. Porém, após discussões, a proposta do Dr. Austregésilo foi aprovada pela maioria dos membros presentes, ficando estabelecido uma comissão composta por Dr. Juliano Moreira, Carlos Eiras, Ulysses Vianna Filho, Afranio Peixoto, Henrique Roxo e Austregésilo para elaboração da classificação (ABPNML, n. 1 e 2 1908. Atas da SBNPML, Sessão de 05/04/1908: 212). Contudo, a elaboração desta classificação de “doenças mentais” pela comissão aprovada não se concretizou, o que levou Juliano Moreira, em 1910, a apresentar aos Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 172 membros da Sociedade uma classificação preparada por ele em conjunto com Carlos Eiras, a pedido da Repartição de Estatística, propondo que esta fosse adotada como padrão. Nesta ocasião Juliano Moreira solicita que os médicos façam a equivalência entre os termos utilizados nas “papeletas” dos seus pacientes com os daquela classificação, adotada pela Sociedade, utilizando-a nas estatísticas dos seus serviços (ABPNML, n. 1 a 4, 1912. Atas da SBPNML, Sessão de junho/1910: 382-384). Em 1920, dez anos depois de ter apresentado a classificação pela primeira vez à Sociedade, Juliano Moreira citava o apelo do demógrafo Bulhões Carvalho para que a Sociedade reiterasse junto aos Estados “o pedido de uniformização do agrupamento nosográfico dos distúrbios mentais, de acordo com o esquema” que a Sociedade aprovou e Bulhões adotou nos quadros oficiais da estatística (ABNP, 3º trimestre, 1920. Atas da SBNPML, Sessão de 17/11/1920: 328). Dentre os diagnósticos debatidos pelos médicos nas reuniões da SBNPML, escolhemos para análise preliminar nesta comunicação, o diagnóstico de paralisia geral que é um dos mais citados no período aqui estudado. Nos debates este diagnóstico é apresentado com variações nas formas de paralisia geral progressiva, juvenil e feminina, subtipos que não são mencionados na classificação adotada pela Sociedade em 1910. Moreira e Peixoto (1905), ao apresentarem a classificação de moléstias mentais elaborada por Kraepelin em 1904, tratam a paralisia geral como sinônimo de demência paralítica, podendo desenvolver-se nas seguintes formas: depressiva (hipocondríaca, ansiosa e persecutória); expansiva (paralisia clássica e circular); agitada (galopante, delirium tremens) e demente (Moreira e Peixoto, 1905: 214). Os casos abaixo citados são exemplos dos critérios adotados para diagnosticar as mulheres que apresentavam sinais de paralisia geral, levando em consideração que do total de mulheres diagnosticadas como portadoras desta enfermidade os diagnósticos de paralisia geral progressiva e juvenil em mulheres estão sempre enquadrados na categoria de paralisia feminina como um tipo específico de paralisia que só acometia mulheres. Na sessão de 05 de dezembro de 1909, Henrique Roxo apresenta uma doente recém- internada no pavilhão da clínica psiquiátrica da FMRJ, firmando o diagnóstico de paralisia geral progressiva, “amplamente comprovada por um exuberante delírio de grandeza, absurdo e pueril, um franco déficit demencial e pela existência de forte linfocitose raquidiana, com reação de Wassermann positiva”. Nesta sessão Juliano Moreira cita dois casos que tem no momento em observação, de duas irmãs, filhas de italiano, ambas com paralisia geral, considerando-as como casos típicos (ABPNML, 1911, sessão de 05/12/1909: 448-449). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 173 Sobre estes dois casos de paralisia geral “feminina”, Moreira volta a fazer referências na sessão de agosto de 1910, relatando que a “marcha” de um dos casos é “digna de nota” por se diferenciar dos casos comuns de “paralisia feminina”, pois “não só o delírio de grandeza é mais exuberante do que é habitual em tais casos, como ainda porque uma remissão chegou a pôr por alguns dias uma certa dúvida no diagnóstico”. Quanto à outra irmã, diagnosticada como “também francamente demente paralítica”. Como tratamento para as duas doentes ele relata ter feito uso de injeções mercuriais, porém sem “nenhum resultado digno de nota” (ABPNML, 1912, sessão de agosto de 1910: 384). Em dezembro do mesmo ano, Ernani Lopes cita um caso de paralisia geral juvenil de um rapaz solteiro, pardo, com 20 anos, funileiro, apresentando estigmas degenerativos, sinais cutâneos de sífilis, irritabilidade, dor na tíbia, forte disartria, tremor generalizado, testes positivos no líquido cérebro espinal para linfocitose e Wassermann e “puerilíssimo delírio de grandeza”. Nos casos acima citados, percebemos que os sintomas apresentados como característicos da paralisia geral eram praticamente os mesmos em homens e mulheres apesar destas serem enquadradas em um tipo específico de paralisia, a feminina. E que cada vez mais o uso de testes laboratoriais como o do líquido cérebro espinal para linfocitose e o de Wassermann para sífilis eram utilizados para confirmar diagnósticos clínicos de doenças mentais. Os debates sobre esta patologia são reveladores da tensão existente na Sociedade das divergências a respeito da importância atribuída à observação clínica ou aos exames de laboratório para fins de diagnóstico. Como também da convivência dentro da “psiquiatria moderna” de critérios físicos e morais, como os resultados orgânicos encontrados nos exames laboratoriais com conceitos morais de diferenciação por gênero para diagnosticar os pacientes suspeitos de “alienação mental”. Além dos temas referentes a clínica e a questões referentes ao funcionamento interno da Sociedade, também eram discutidas questões relacionadas com a criação e o funcionamento das instituições dedicadas aos “alienados” como: a criação de um projeto de reforma na Lei de Assistência a Alienados de 1903; as condições de assistência aos “alienados” em vários estados do Brasil e em outros países; assim como a situação dos egressos dos estabelecimentos da Assistência. 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Aquele prêmio foi uma pequena parte da sua vasta obra científica de seis décadas. Seu temperamento retraído contribuiu muito para que ele não ficasse muito conhecido. Ele é considerado por alguns o maior físico-matemático pós-Dirac. Sua visão pacifista o levou a não participar do Projeto Manhattan, que construiu as bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki. Este texto tenta mostrar parte do seu trabalho e da sua personalidade. Palavras Chaves: Julian Schwinger, História da Física, Renormalização da EDQ. Abstract: The extensive work of the physicist Julian Schwinger is not yet sufficiently well known. In general his name is associated with the Nobel Prize in Physics, awarded in 1965, or some techniques and methods that you created. That award was a small part of his vast scientific work of six decades. His retiring disposition contributed much to it would not be very well known. He is considered by some the greatest mathematical physicist after Dirac. His pacifist vision led him to not participate in the Manhattan Project that built the bombs that destroyed Hiroshima and Nagasaki. This text attempts to show of your work and your personality. Keywords: Julian Schwinger, History of Physics, Renormalization of QED. Introdução Julian Seymour Schwinger (1918-1994) foi um dos maiores expoentes da física do século XX. Ganhou, em 1965, juntamente com Feynman e Tomonaga o Prêmio Nobel de Física. Aos treze anos tinha como sua “bíblia” o livro recente de Mecânica Quântica, de Paul A. M. Dirac. Sempre se considerou um discípulo do Dirac. Com 27 anos foi para Harvard, e lá teria o ápice de sua carreira. Contribuiu fortemente para a elaboração da Teoria Quântica de Campos (TQC). Orientou 68 PhD(s), somente em Harvard, sendo que 4 destes também Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 177 ganharam o Prêmio Nobel. Durante décadas foi uma referência na física teórica, um dos maiores dos seus líderes nos Estados Unidos. Com uma brilhante carreira científica, defendeu isoladamente, a partir do final da década de 60, uma posição crítica contra o modelo-padrão das partículas elementares que é baseado na TQC. Criou sua própria alternativa a este modelo, a Teoria de Fontes. Faremos aqui um resumo da vida pessoal e científica de Julian Schwinger. Encontra-se disponível nas referências um vasto material sobre Schwinger, do qual escolhemos uma de pequena parte. Além disto, utilizamos alguns dos seus trabalhos científicos. Nosso objetivo foi entender melhor o processo que o levou a ficar dos anos 70 até o final de sua vida, em 1994, desenvolvendo de forma bastante singular a sua Teoria de Fontes. Por outro lado, veremos, na chamada “sociologia” dos eventos relacionados, claramente a rigidez das instituições científicas, que podem assumir posturas bastante ortodoxas ou mesmo agressivas. Um exemplo desta situação foi quando Schwinger resolveu investigar a possibilidade de fusão nuclear a frio, em 1989 (Mehra & Milton , 2000). Infância e Estudos Julian Seymour Schwinger nasceu em 12 de fevereiro de 1918 em Nova York. Sua mãe, Bella Schwinger, era natural da Polônia, assim como seu pai, Benjamin Schwinger. Ele havia migrado para os Estados Unidos em 1880 e devido a ter que trabalhar logo que chegou, somente fez a educação básica. Tornou-se um desenhista de roupa feminina de sucesso, e em pouco tempo passou a ter seu próprio negócio, prosperando bastante. Foi quando Julian nasceu. Em 1929, quando Julian estava com 11 anos, veio a grande crise econômica e sua família enfrentou dificuldades. Benjamin perdeu seu negócio e teve que ir trabalhar para outros, desenhando casacos femininos. Ficou rapidamente conhecido e com isto logo pôde retornar a uma vida confortável. O avô materno de Julian era judeu, fabricante de casacos. Benjamin trabalhava muito, pouco tempo tinha para as coisas de casa. Assim, a educação de Julian e de seu irmão Harold, sete anos mais velho, bem como a condução da casa ficavam por conta de sua mãe. Harold se tornou advogado, como era o anseio da família. Nele eram investidas as esperanças da família, e era idolatrado por Julian quando este era pequeno. Harold diria mais tarde que ensinara física a Julian até os 13 anos. Desde pequeno, o grande interesse de Julian Schwinger era por livros, ele lia muito. Não parecia que ele tivesse qualquer interesse por esportes, mas na realidade, nas ocasiões em que aparecia uma Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 178 oportunidade, revelava interesse e habilidade nos esportes, particularmente em esqui, tênis e natação. No futuro, em 1971, com 53 anos, iria para a Universidade da Califórnia em Los Ângeles (UCLA) devido, entre outras coisas, a poder praticar natação e tênis. A família sempre apenas tolerou seu interesse por física. Quando ele ganhou o Prêmio Nobel, seu irmão disse à sua mãe que ela deveria orgulhar-se dele. Dois episódios na sua infância chamaram muito a sua atenção, um para o desenvolvimento tecnológico e outro para a ciência. O primeiro foi a chegada do dirigível Shenandoah a Nova York, em 1923, quando tinha 5 anos de idade; o segundo foi o eclipse total do Sol de 24 de janeiro de 1925, quando tinha apenas 7 anos de idade. Estes fatos foram revelados pelo próprio Schwinger em 1988, em entrevista a Jagdish Mehra, um de seus biógrafos. Nesta entrevista revelou o quanto havia ficado impressionado com aquele incrível aparelho voando sobre NY. Com a crise econômica de 1929, Schwinger foi estudar em colégio público. Aos 13 anos, em 1931, lia o recém lançado “The Principles of Quantum Mechanics” de Paul Dirac. Posteriormente Schwinger declarou que este livro “fora de dúvida era minha bíblia”. Na biografia de Schwinger fica clara a enorme influência que Dirac teve sobre ele, não somente através do livro de Mecânica Quântica, como também pela leitura dos artigos de Dirac diretamente nas revistas de física. Estudou no Townsend Harris High School até 1934, e com 16 anos ingressou no City College of New York (CCNY). Seu maior interesse era seu próprio estudo. Interagia com seus instrutores, e. g., Lloyd Motz, que o apresentaria ao físico experimental Isidor I. Rabi (Prêmio Nobel de Física de 1944). Em sua primeira conversa com Rabi, o assunto foi o recém-saído trabalho de Einstein com Podolsky e Rosen de 1935, o famoso trabalho do EPR. Rabi ficou surpreso quando Schwinger, tão jovem, lhe explicou que uma questão relacionada ao trabalho poderia ser resolvida utilizando a relação de completeza. A partir de então Schwinger passou a ser o “protegido” de Rabi. Seus instrutores eram estudantes da Universidade de Columbia e da Universidade de Nova York, e lhe falavam de suas pesquisas em física. Seus professores, no City College, eram seus amigos, muito mais que seus próprios colegas. Schwinger gostava muito de conversar com eles, professores e instrutores, sobre as pesquisas que faziam nas universidades. Irving Lowen foi um dos que descobriu o talento de Schwinger, ao encontrá-lo na biblioteca pública lendo no Physical Review um trabalho do Dirac. Ao conversarem sobre o que lia, Schwinger lhe explicou o trabalho e ainda lhe disse o que poderia ser feito para completar o que Dirac havia feito. Começou, assim, a escrever seu primeiro trabalho científico, com 17 anos, o qual nunca foi publicado. Diria mais tarde que o havia feito para Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 179 seu próprio aprendizado em escrever artigos científicos. O título deste trabalho foi “On the Interaction of Several Electrons”, constando atual-mente do arquivo da Universidade da Califórnia. Em 1935 escreveu dois trabalhos (um com O. Halpern, e outro com L. Motz) que foram publicados no Physical Review, um tratava da polarização dos elétrons e o outro da radioatividade. Julian queria sair do City College, pois já estava muito aborrecido de permanecer ali. Rabi queria levá-lo para Colúmbia, entretanto, suas notas eram muito ruins, o que dificultava sua transferência. Detestava assistir a aulas, sua preferência era estudar tudo sozinho. Nada que o afastasse deste objetivo lhe chamava a atenção. Com a recusa da Universidade de Colúmbia ao ingresso de Schwinger, Rabi se sentiu bastante ofendido, e resolveu ignorar a recusa e pedir ajuda a Hans Bethe (Prêmio Nobel de Física de 1967). Ao ler os trabalhos daquele jovem de apenas 18 anos, Hans Bethe fez uma carta entusiástica recomendando-o para a Universidade de Colúmbia. As Universidades e o Período da Guerra Para a entrada de Julian na Universidade de Colúmbia, Rabi, sabedor da aversão de Schwinger a assistir aos cursos regulares, resolve conversar com ele e fazer um “contrato” para sua permanência na universidade: “.você vai entrar aqui e vai assistir a todas as aulas de graduação e tirar grau A em todos os cursos.” Schwinger aceitou este compromisso. Durante algum tempo cumpriu sua obrigação, mas inevitavelmente logo voltou ao seu estudo individual. Escrever relatórios de laboratório ou escrever textos para cursos de graduação era algo que não queria, pois o desviava de sua verdadeira vocação: estudar física. O fato de não assistir às aulas o levaria a algumas situações inusitadas. Por exemplo, quando teve que fazer um exame oral de mecânica estatística de curso dado por George Uhlenbeck, ao qual Schwinger não havia assistido a nenhuma aula. Após combinar um horário para o exame, Julian fez o exame oral e deixou o professor Uhlenbeck totalmente surpreso, era como se estivesse assistido a todas as aulas. Fez um excelente exame. Em outra ocasião, Rabi quis saber como ia seu “protegido” nos estudos em Colúmbia. Procurou saber com Hans Bethe. A resposta de Hans Bethe foi incrível, disse que Schwinger sabia 90% da física conhecida, e que os outros 10% ele poderia aprender a qualquer hora que assim o desejasse. Sua facilidade para entender as diferentes áreas da física era evidente. Certa vez, no “Astronomy Journal Club”, Motz sugeriu o nome de Schwinger para falar daquilo que estava Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 180 “quentíssimo” na época: estrelas de nêutrons. O assunto era gás degenerado de elétrons, estatística quântica, etc. Schwinger apresentou um seminário excelente, começando a escrever de um lado do quadro negro e acabando do outro. Escrevia com as duas mãos. Comentava-se que seu seminário tinha virtuosidade de uma “música de Mozart” (assim diria Motz depois). Nunca cometia erros. Qualquer pergunta que lhe fosse feita era respondida prontamente. Em 1937 Schwinger fez mais sete trabalhos, e agora, com apenas 19 anos, já tinha um total de nove trabalhos publicados, três dos quais havia feito sozinho. Sua tese de doutorado já estava, portanto, pronta. Teve, entretanto, que aguardar até 1939, já que a Universidade de Colúmbia exigia que estivesse lá há pelo menos dois anos. Defendeu a tese, em física nuclear, com 21 anos. Julian foi, após o doutorado, em 1939, para a Universidade de Berkeley, onde estava J. Robert Oppenheimer, do qual se tornou assistente. Nesta época começou a trabalhar na Eletrodinâmica Quântica (EDQ), área na qual faria seus trabalhos mais famosos. Conheceu Rarita, que foi um dos seus importantes colaboradores. Schwinger costumava referir-se a ele como o seu braço calculador, que o ajudou muito nas contas, e com o qual faria muitos trabalhos que ficaram bastante conhecidos; por exemplo, a famosa equação de Rarita- Schwinger, um trabalho sobre partículas de spin 3/2, que seria posteriormente considerado como o precursor da supergravidade. Foi nesta época que Schwinger supôs a polarização do vácuo (criação do par elétron-pósitron) para resolver problemas de decaimento. Após dois anos em Berkeley, em 1941, Oppenheimer e Rabi conseguiram para ele o emprego de instrutor da Universidade de Purdue. Logo depois passaria a ser professor assistente. Em 1943 veio a II Grande Guerra, que foi de 1939 a 1945. Os Estados Unidos entraram na guerra em 8 de dezembro de 1941, logo após o ataque japonês a Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941.O Projeto Manhattan, para a construção da bomba atômica, começou em junho de 1942. Em Los Alamos, Novo México, estava sediado o setor de pesquisas do Projeto, dirigido pelo físico teórico R. Oppenheimer. Schwinger foi recrutado para trabalhar no Massachusetts Institute of Technology - Radiaton Laboratory, ou MIT Rad Lab, onde foram fabricados diferentes tipos de radar de microondas para navios, aviões, e outros aparatos relacionados. Rapidamente se tornou o líder teórico do MIT. Enquanto tantos outros físicos, por exemplo, Oppenheimer, Feynman e Bethe, estavam no Projeto Manhattan, na construção da bomba nuclear, por que Schwinger, um físico nuclear Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 181 teórico, foi para o MIT Rad Lab ? Kimball Milton, um dos seus biógrafos, dá três razões para explicar este fato: repugnância moral ao que estava sendo fabricada em Los Álamos, preferência de Schwinger de trabalhar com eletromagnetismo e não com física nuclear, e o ambiente militar de Los Álamos que restringiria sua liberdade de trabalho, por exemplo, sua preferência de trabalhar no horário noturno. Permaneceu no MIT Rad Lab até ao final da Guerra. Casamento e Harvard Em 1944, com 26 anos, Julian conheceu Clarice Carrol, que seria futuramente Clarice Schwinger. Após a guerra, em 1945, foi para Los Álamos fazer uma conferência, e neste mesmo ano a Universidade de Harvard lhe ofereceu o cargo de professor assistente, o qual foi aceito prontamente, apesar das propostas recebidas de Berkeley, Colúmbia e outras universidades. Tornou-se o mais jovem professor de Harvard, ministrando brilhantes cursos de Eletrodinâmica, Mecânica Quântica, Física Nuclear, etc. Em Harvard permaneceria durante 26 anos, onde atingiria o ponto mais alto de sua carreira. O tempo que permaneceu em Harvard (de 1945 até 1971) foi o período em que orientou mais alunos de doutorado. No total foram 73 alunos, sendo que em Harvard foram 68, e na UCLA foram somente 5. Dedicava uma tarde por semana aos alunos, os quais sabiam que seu tempo era precioso e somente o procuravam quando era imprescindível. Quatro deles foram também ganhadores do Prêmio Nobel. Chegava a estar orientando mais de uma dezena de doutorandos concomitantemente. Os problemas que seus alunos tratavam, em geral, não eram relacionados com o que Schwinger estava trabalhando naquele mesmo momento. Apesar disto, seus importantes conselhos mantinham seus alunos com trabalhos para desenvolverem durante semanas, ou mesmo meses. Muitos destes, que ficaram famosos, dizem que seu trabalho com Schwinger fez com que logo se tornassem pesquisadores independentes. Mas poucos o conheciam mais intimamente. Era seu costume revelar suas novas descobertas nos cursos que ministrava muito tempo antes de serem publicadas. Muitas vezes certos resultados ficavam fazendo parte do curso durante algum tempo, até que ele os redigisse para publicação em algum periódico. Relutava em mandar publicar algo antes que considerasse completamente amadurecido. Com isto, muitas das suas idéias acabavam sendo atribuídas a outros, por exemplo, equação de Bethe-Salpeter, a qual M. Gell-Mann e F. Low escreveram que a primeira vez que esta Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 182 equação apareceu foi nas aulas de Schwinger em Harvard. Isto aconteceu também em diversos outros casos, como o conceito de estados coerentes, e a chamada Teoria de Campos Euclideana. Por quase duas décadas, Schwinger e seus alunos foram os grandes expoentes em Teoria de Campos. Eles foram os grandes precursores da busca para um novo entendimento para as interações fraca e forte. Mas, certamente a dificuldade de incorporar as interações fortes na teoria de campos levou Schwinger à criação de sua própria teoria para as partículas elementares. Julian Schwinger recebeu ao longo da sua vida vários prêmios, tais como: Prêmio Charles Mayer, em 1949, 1 o Prêmio Einstein, em 1951, Medalha Nacional de Ciência, em 1964, outorgada pelo presidente Johnson, Prêmio Nobel de Física, em 1965, Monie Ferst Medal, em 1980, outorgada pelo “Georgia Institute of Technology”. O Prêmio Nobel ele ganhou aos 47 anos, juntamente com Tomonaga e Feynman, pela renormalização da EDQ. Na conferência, ao receber do rei da Suécia o prêmio, Schwinger deu o prenúncio de uma nova teoria, fenomenológica, para descrever a interação forte. Esta teoria estaria desenvolvida em um ano, e seria chamada Teoria de Fontes. Seu primeiro trabalho na nova teoria foi “Particles and Sources'”, submetido ao Physical Review apenas seis meses após sua conferência do Nobel. Não houve uma boa recepção à nova teoria criada por Schwinger. Em parte devido a que muitas coisas estavam concomitantemente mudando na teoria de campos: 't Hooft estabelecia em 1971 a renormalização do modelo unificado SU(2) x U(1) para as interações eletrofracas, ou modelo Glashow-Weinberg-Salam. Com isto a teoria de campos parecia novamente viável. Depois o modelo de campos não-abelianos para as interações fortes, ou Cromodinâmica Quântica, proposto em 1972, foi prontamente aceito pela comunidade (.Milton, 2006). Sendo assim, uma nova teoria parecia ainda não ser justificada. Além disto, a Teoria de Fontes era uma grande ruptura conceitual com o passado, os teóricos de campos teriam que aprender tudo de novo, isto somente desencorajava as “conversões” para a nova teoria. Mas Schwinger já previa esta dificuldade, quando no prefácio no seu primeiro volume da Teoria se referiu à dificuldade que os vícios adquiridos pela teoria antiga (teoria de campos de operadores) podem trazer ao aprendizado da nova teoria. Com suas próprias palavras (Schwinger , 1970): “Penso que é de extrema importância que tal conhecimento das idéias liberalizantes da teoria de fontes ocorra antes que a exposição [do aluno] a uma das atuais ortodoxias o tenha entortado além do limite elástico.” Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 183 Seu Rompimento com a TQC Poder-se-ia dizer que Schwinger deixou Harvard, em 1971, devido à não aceitação de sua nova teoria, e que pensava que na Universidade da Califórnia (UCLA) ela poderia ter melhor aceitação. Além disto, após 25 anos de Harvard, necessitava de uma mudança. Com a publicação de seus trabalhos na nova teoria, começou também a não se sentir à vontade com seus colegas de Harvard. Entretanto, estas razões foram na realidade todas secundárias. A razão principal de sua ida para UCLA foi devida à preservação da sua saúde. Para Schwinger, a morte prematura de Pauli, com 58 anos, de câncer em 1958, já o havia alertado sobre a necessidade de cuidar de sua própria saúde. O clima quente da Califórnia, a possibilidade de nadar, e jogar tênis diariamente, influenciaram fortemente esta decisão. A Teoria de Fontes representava uma revolução profunda, nesta teoria não existem divergências nem renormalização. Sua finalidade era substituir a teoria de campos de operadores. Na Teoria de Fontes existem também campos, mas não são campos de operadores. O campo de fontes é um campo numérico, não um operador, é um conceito derivado, e que numa primeira abordagem pode ser visto como análogo ao potencial eletrostático. Ele nos informa a situação pré-existente naquele ponto. Segundo o próprio Schwinger, conforme sua conceituação que está presente nos escritos da Teoria de Fontes: “O conceito de renormalização é simplesmente estranho a esta teoria fenomenológica. Na teoria de fontes, nós começamos por hipótese com a descrição de partículas existentes, enquanto renormalização é um conceito de teoria de campos no qual se começa com operadores mais fundamentais, que são então modificados pela dinâmica. Enfatizo que nunca haverá divergências em uma teoria fenomenológica”. Robert Finkelstein (Milton, 2006) fez uma descrição interessante da Teoria de Fontes, compatível com os trabalhos de Schwinger. Na sua descrição afirma que a Teoria de Fontes parte com sólido conhecimento sobre os fenômenos em energias acessíveis para fazer previsões sobre fenômenos em altas energias. Contrastando com a teoria usual de campos, onde estes campos são campos de operadores, e que procedem de premissas implícitas sobre fenômenos desconhecidos em energias muito altas e inacessíveis para fazer previsões em baixas energias. Talvez o pensamento de Schwinger sobre as supercordas ajude a entender melhor a razão da criação da teoria de fontes. Dito por um de seus alunos (Kimball Milton), sua não aceitação da Grande Unificação e das Supercordas decorria não devido à sua Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 184 estrutura, mas pelas “absurdas” especulações baseadas na noção de que não há nada de novo para ser encontrado entre as energias de 10 3 GeV e 10 19 GeV. Acreditava que futuramente deveriam ser detectados novos fenômenos nesta faixa de energias. Apesar disto, ele apreciava a noção de supersimetria (veja adiante que um de seus trabalhos é considerado precursor da supersimetria). O espírito revolucionário da Teoria de Fontes, ou “evolucionário” como diz K. Milton, fica bem claro quando no preâmbulo do primeiro volume ele escreve: “Se não der para se unir a eles, destrua-os.” Mais Contribuições O alto nível de seus alunos de doutorado é evidente, principalmente se notarmos quantos deles se tornaram pesquisadores famosos no mundo inteiro. Sua época áurea de orientação foi mesmo em Harvard, já que após sua ida para a UCLA foram orientados menos de uma dezena de doutorandos. Vejamos alguns dos nomes mais conhecidos e a data de sua tese: Richard Arnowitt (1952); Gordon Alan Baym (1960); Stanley Deser (1953); Bryce S. DeWitt (1949); Sheldon Glashow (1952) - Prêmio Nobel de Física de 1979; Roy Glauber - Prêmio Nobel de Física de 2005; Walter Kohn (1948) - Prêmio Nobel de Química de 1998; Bernard Lippmann (1948); Eugen Merzbacher (1950); Ben R. Mottelson (1950) - Prêmio Nobel de Física de 1975. Julian dedicava aos seus alunos o tempo necessário para dar suas sugestões e conselhos, nem mais nem menos. Era evidente também a disparidade entre a capacidade e habilidade de Schwinger e a dos seus alunos, mesmo os mais brilhantes. Na década de 50, Oppenheimer criou uma unidade para medir a capacidade dos físicos, o “Schwinger”. Seus alunos desejavam estar no nível de pelo menos 1 mili Schwinger. Apesar de tudo isto, Schwinger era, em geral, bastante bondoso com eles; por exemplo, era comum ajudá-los na hora do exame de qualificação, livrando-os muitas vezes de situações embaraçosas (Mehra & Milton , 2000). Entre os pensamentos de Schwinger sobre a física estava uma séria restrição aos quarks. Não aceitava para estes a categoria de partícula elementar, já que não existiam fora dos hadrons. A renormalização da EDQ foi o que lhe deu o Nobel de 1965. Vejamos outras conhecidas e importantes contribuições de Schwinger: Método do Tempo-Próprio, Princípio Quântico da Ação, Técnicas da Ação Efetiva, Equação Rarita-Schwinger, Equação Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 185 Lippmann-Schwinger, Equação Tomonaga-Schwinger, Equação Dyson-Schwinger, Mecanismo de Schwinger. Muitas outras contribuições suas passaram a ser frequentemente utilizadas nos cursos de graduação por todo o mundo. São contribuições permanentes na física-matemática, e que hoje em dia fazem parte da cultura da física. Poucos sabem que foram suas. Em outubro de 1993, nove meses antes de sua morte, que foi em 16 de julho de 1994, Julian Schwinger escreveu seu último trabalho, “The Greening of quantum field theory: George and I”. Esta foi também sua primeira e única aparição na Internet (hep-ph/9310283). Contribuiu também na metodologia referente à função de Green (um de seus grandes ídolos foi George Green) que consta no tratado Mathematical Methods of Theoretical Physics, de Morse e Feshbach, onde os autores no final do prefácio escrevem um agradecimento. Outro texto clássico que expressa sentimento similar é o livro de Herbert Goldstein, Classical Mechanics. Hoje em dia, ao ser feita a retrospectiva, e ver como está a Física do século XXI, é impossível imaginá-la sem a contribuição de Julian Schwinger, um ser humano muito reservado, e espetacular. Enquanto Feynman e Einstein são físicos que não necessitam apresentações, Julian Schwinger tem a vastidão de sua obra muito pouco conhecida, mesmo entre os físicos. Entretanto, nenhum daqueles orientou tantos e importantes alunos quanto Schwinger. Diversos dos atuais eminentes físicos, e figuras que se tornaram líderes na ciência e na indústria, foram orientados por ele. Isto se deve em parte a sua vida retraída, dedicada à física, detestando ficar em evidência. Além disto, tinha um senso de dever bastante forte, contrastando com outros físicos de sua época, considerados efetivamente destrutivos em relação aos seus doutorandos (Mehra & Milton , 2000). Schwinger dava problemas específicos aos seus doutorandos e sugestões quando necessárias. Por tudo isto se atribui a ele o fato de haver criado um certo tipo de imortalidade, que irá gerações e gerações sendo passada adiante. Um exemplo disto é a declaração de Horwitz: “O estilo dedutivo sério de Schwinger teve uma profunda influência sobre mim e na maneira com a qual lido com meus próprios estudantes. Não há dúvida que todos os seus estudantes (mesmo Glashow) foram muito influenciados por ele neste mesmo sentido. Tanto o seu importantíssimo legado científico quanto sua influência viva, através dos seus alunos, fizeram com que ele adquirisse um tipo de imortalidade”. Após a guerra, em 1945, numa série de conferências em Los Alamos, foi que Schwinger encontrou Feynman pela primeira vez. Pelo menos é assim que o próprio Schwinger se recorda (Mehra, Milton, Rembiesa, 1999). Foi numa destas conferências, que Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 186 estão arquivadas na UCLA, que Schwinger abordou o problema do elétron produzindo radiação ao ser acelerado no bétatron. Estimava a energia do elétron neste processo. Desejava confirmar estas previsões em experiências a serem feitas. A parte mais interessante destas conferências abordava a provocativa idéia do acelerador, ou linear ou circular, que Schwinger o chamou de “mícrotron”, porque usava microondas. Eram cavidades de microondas. Ele desenvolveu ainda, em detalhes, a teoria da radiação síncrotron. Estas idéias foram elaboradas por Alvarez e outros e hoje em dia constituem os modernos aceleradores de partículas. A radiação síncrotron era tida na época como desprezível. Estes princípios foram a base para o Stanford Linear Accelerator Laboratory (Fermilab), e o mais recente Large Hadron Collider (LHC) do Cern em Genebra. Alguns trabalhos feitos por Schwinger foram visionários. Em 1957 Schwinger escreveu o trabalho “A Theory of the Fundamental Interactions” (Ann. Phys. NY, vol.2, p.407), que é considerado o precursor da unificação eletrofraca. Este trabalho de 1957, juntamente com os trabalhos posteriores de Salam e Ward (de 1961 e de 1964), Glashow e Gell-Mann (de 1961), foram os que levaram à unificação das forças eletromagnética e fraca. O Prêmio Nobel pela Unificação Eletrofraca foi ganho, em 1979, por Sheldon Glashow, Steven Weinberg e Abdus Salam. Sheldon fez seu doutoramento com Schwinger, e o modelo colocado em prática por ele levava os “ingredientes” elaborados por Schwinger alguns anos antes. Além disto, desde 1940 que Schwinger previa uma partícula que poderia existir e contribuir para a unificação do eletromagnetismo e as interações fracas. Esta partícula seria um bóson leve intermediário, tal idéia não foi apreciada na época. Conclusões Não há como em algumas páginas resumir a vida científica de Julian Schwinger e nem o impacto de seus trabalhos na física do século XX, e consequentemente do século XXI. A renormalização da eletrodinâmica quântica, que lhe conferiu o Prêmio Nobel, é apenas uma das mais importantes e famosas das suas contribuições, cuja lista é enorme, excluindo-se o que se perdeu. Sabemos que a física atual se encontra numa fase de transição. Os novos experimentos planejados poderão levar à confirmação do modelo-padrão das partículas elementares, ou a uma dificuldade no seu prosseguimento. Algumas teorias, que não têm confirmação experimental, começam a ser questionadas pelos seus próprios construtores (Smolin, 2006). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 187 A evolução da ciência sempre encontrou várias resistências “sociais”. Desde fatos como o “julgamento de Galileu”, pela Igreja da sua época, até a tempestade de protestos, dos próprios cientistas, quando Thomas Young, propôs experimentos que viriam a confirmar a teoria ondulatória da luz. Acreditamos ser necessária uma reflexão sobre a recente, vasta e fundamental, obra científica de Schwinger. Notamos, de forma comparativa, e.g., com a de R. P. Feynman, que a obra de Schwinger ainda não foi suficientemente assimilada e nem considerada. A Teoria de Fontes, por exemplo, raramente é citada na literatura, desconhecemos críticas embasadas, não preconceituosas, com avaliações detalhadas etc. Pode-se dizer que esta teoria permanece efetivamente ignorada. Devido ao fato de que ele foi um dos construtores da TQC, opinamos que seu posicionamento crítico sobre ela deveria ser mais considerado. Lembramos ainda, que seu livro de Mecânica Quântica, recentemente publicado, fornece uma abordagem bastante singular, consistente, e que apresenta importantes elementos novos para a discussão do tema. O seu Princípio Quântico da Ação (Schwinger, 2000), do qual se pode extrair toda a mecânica quântica, raramente é citado na literatura. Podemos dizer que desde as críticas veementes de Julian Schwinger ao modelo- padrão, ele passou para uma posição muito singular. Desde esta ruptura, e a subseqüente elaboração da Teoria de Fontes, que houve uma reação extremamente negativa da comunidade ao programa da nova teoria. Seus trabalhos posteriores deixaram de ser considerados como costumavam ser. Seu compromisso com a física investigativa, evidenciado, por exemplo, quando começou a estudar a possibilidade da “fusão a frio”, o levou a situação bem inusitada. O fato ocorreu quando submeteu, na década de 80, ao Physical Review Letters, um trabalho sobre o tema. O tipo de resposta negativa dada pelos árbitros do periódico foi de tal forma que Schwinger a considerou um insulto. Isto ocorreu mesmo tendo sido ele um dos grandes ícones da física do século XX. Este evento acabou levando-o a uma ruptura com a Sociedade Americana de Física. Além disto, suas críticas às teorias unificadas e às supercordas não repercutiram no ambiente teórico. Atualmente existem discussões (Smolin, 2006) sobre a possibilidade de que parte das teorias da física de altas energias esteja se distanciando do que chamamos de Física, conforme ela foi concebida desde a época de Galileu: uma ciência ligada diretamente com os resultados experimentais. Estas teorias se tornam com isto muito mais especulações do que teorias físicas, na sua acepção tradicional, Galileana, Newtoniana, Maxwelliana, Einsteiniana, Schwingerliana, etc. Conjeturamos que se os questionamentos de Schwinger houvessem sido Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 188 discutidos mais profundamente pela comunidade de física, hoje em dia já tivéssemos avançado mais no que se refere a uma teoria menos especulativa para a com-preensão das partículas elementares. Entretanto, ainda está em tempo destas discussões serem aprofundadas. Finalmente, acreditamos que fica evidenciado pela biografia de Schwinger, que a divisão existente (a partir da década de 80) da física teórica em teoria e fenomenologia, tem causado mais prejuízos à Física do que benefícios. Agradecimentos Agradecemos ao Filipe Pamplona por haver incentivado a apresentação deste trabalho. Referências Bibliográficas MILTON, K.A.. Julian Schwinger, arXiv: physics/ 0606153, 16 Jun 2006; MEHARA, Jagdish, MILTON; Kimball A.; REMBIESA, Peter, “The Young Julian Schwinger. I. A New York City Childhood”, Found. Phys. 29 1999 767; “The Young Julian Schwinger. 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Gell-Mann, “Gauge Theories and Vector Particles, Ann. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 189 Phys. (NY) 15 (1961) 437; A. Salam and J. C. Ward, “Electromagnetic and Weak Interactions” Phys. Lett. 13 1964 168; MILTON, K.; SCHWINGER. Source Theory and UCLA Years From Magnetic Charge to the Casimir Effect, hep-ph/9505293v1 (1995); SMOLIN, L. The Trouble with Physics, (A Mariner Book, New York, 2007); B. Schroer: String Theory and the crisis in particle physics, CBPF: CBPF-NF-024/06, Rio de Janeiro 2006 LYRA, A. Notas sobre Julian Schwinger, Ciência e Sociedade, Publicação CBPF: CBPF-CS- 005/06, Rio de Janeiro 2006. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 190 DISCURSO MÉDICO E A ATIVIDADE FÍSICA: GYMNASTICA NO ASYLO DE MENINOS DESVALIDOS * Eduardo Nunes Alvares Pavão Universidade do Estado do Rio de Janeiro Mestrando em História Política. Bolsista CAPES [email protected] Resumo: Este trabalho tem como objetivo identificar a emersão de práticas para a assistência da infância desamparada, na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, tendo o Asylo de Meninos Desvalidos (1875-1894), como efetivação desta política. Nos oitocentos ocorreu o incremento de políticas públicas, tendo como centralidade: como educar, proteger e cuidar da infância desassistida e para isto foram criadas diversas instituições que aumentaram consideravelmente as redes de sociabilidade e de circulação de saberes. Entre elas, o Asylo de Meninos Desvalidos para cuja criação estava o poder executivo autorizado por decreto desde fevereiro de 1854, e que no entanto, só foi finalmente criada vinte anos depois pelo decreto nº 5532 de 24 de janeiro de 1874, sendo inaugurada no dia 14 de maio de 1875, com 13 meninos, pelo então Ministro do Império João Alfredo Corrêa d’Oliveira, que o regulamentou por decreto n. 5849 de nove de janeiro de 1875. Palavras Chaves: Discurso, Atividade Física e Infância. Abstract: This paper aims to identify the emergence of practices for the care of abandoned childhood in the city of Rio de Janeiro , the second half of the nineteenth century, with the Asylum of Underprivileged Boys (1875-1894) , as the effectiveness of this policy . In eight there was an increase of public policy, having as central: how to educate, protect and care for underserved children and that were created several institutions which considerably increased sociability and circulation of knowledge. Among them, the Asylum for Underprivileged Boys for whose creation was the executive power authorized by decree since February 1854, which however, was only finally established twenty years later by Decree No. 5532 of 24 January 1874, being inaugurated on May 14, 1875, with 13 boys, by then Minister Empire João Alfredo Corrêa d' Oliveira, regulated by the decree. 5849 toJanuary 9, 1875. Keywords: Speech, Physical Activity and Childhood. Efetuar a análise do discurso médico e a atividade física na segunda metade do século XIX significou um grande desafio. Pois relacionar os escritos sobre as atividades físicas no internato, as teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, os ofícios dos diretores do Asylo de Meninos Desvalidos e os relatórios ministeriais dos ministros dos Negócios do Império requereu um levantamento das fontes, leitura e análise de um corpo documental que se encontra disperso por diversas instituições. * Artigo elaborado sob a orientação da Professora Doutora Marilene Rosa Nogueira da Silva Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 191 Diante do imenso acervo do Asylo de Meninos Desvalidos surgiram, então, algumas questões: Por que a criação de um Asilo para Meninos “desvalidos” na cidade do Rio de Janeiro em finais do século XIX? Quem eram, como eram e de onde vinham as crianças admitidas naquela instituição? Quais eram os critérios usados para a classificação de uma criança como desvalida? Depois de admitidas na instituição como era o cotidiano dessas crianças? E mais, aquela instituição seguia apenas o seu objetivo explícito de educar as crianças pobres e inseri-las no mercado de trabalho ou atendia a outros interesses como, por exemplo, o projeto de higienização dos espaços públicos e controle social na cidade do Rio de Janeiro no último quartel do século XIX? Foi diante de tais perguntas que surgiu o meu interesse em investigar as condições históricas que possibilitaram o surgimento de uma instituição como o Asylo de meninos desvalidos e suas políticas de ação cotidianas, marcadas por constantes relações de poderes e contrapoderes, disciplina e controle intensos. Além disso, me interessa, especialmente, compreender como estes poderes que incidem sobre os corpos dessas crianças agem não apenas sobre estes corpos, mas também sobre seus modos de subjetivação transformando, em grande medida, “corpos desvalidos” em “corpos úteis”. E úteis não apenas no sentido marxista de corpos potentes para o trabalho, mas dispostos a contribuir para o novo conceito de nação e cidadania a ser forjado pela elite brasileira no último quartel do século XIX, sobretudo a partir de 1889 quando os ideais republicanos entram efetivamente em cena. Afinal de contas, foi justamente no período em que o Brasil vivia um afrouxamento da ordem escravocrata e a reestruturação de novas formas de trabalho e inserção dos homens livres no meio social e, consequentemente, a necessidade da construção de uma nova noção de nação por parte da elite, principalmente intelectual, que surgiu esta instituição. Haveria alguma relação direta? Neste período, o tema infância ganha importância nas pesquisas acadêmicas. Foram registradas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de 1836 a 1870, 81 teses acadêmicas tendo como tema a criança. Sendo que 34 dessas se referiam à infância pobre; à exposição de órfãos na Santa Casa de Misericórdia; à prostituição infantil, à baixa frequência escolar, à higiene dos escravos, às altas taxas de mortalidade infantil - seja por doenças da puerícia, seja por abandono dos recém-nascidos. Por outro lado, a infância, sobretudo a infância pobre, passou a ser também um assunto de polícia. Em 1836, Euzébio Coutinho Mattoso de Queirós - Chefe de Polícia da Corte intencionava mobilizar a polícia para “caçar”crianças “pobres”, “vadias” e Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 192 “vagabundas” e encaminhá-las aos Arsenais de Marinha e Guerra e às Casas de Correção (ABREU & MARTINEZ, 1997, p. 2). Com a consolidação do Estado Imperial, a preocupação com as crianças e sua educação passou a envolver diferentes setores da sociedade. Em 24 de janeiro de 1874, pelo Decreto nº 5.532, são criadas dez escolas públicas de instrução primária na Corte. O ensino primário e secundário foi regulamentado pelos Decretos N° 630, de 17 de setembro de 1851, e N°1331-A, de 17-2-1854. As crianças pobres são contempladas por esses decretos. O artigo 57, de 1854, determina a admissão de “alunos pobres” em escolas da rede particular, mediante pagamento por parte do Governo, assim como a medidas quando estiverem pelas ruas em estado de “pobreza” ou “indigência”. A estes “se fornecerá igualmente vestuário decente e simples, quando seus pais, tutores, curadores ou protetores o não puderem ministrar, justificando previamente sua indigência perante o Inspetor Geral, por intermédio dos Delegados dos respectivos distritos” (VOGEL, 1995, p. 306). A partir de 1850, são regulamentadas as leis acerca de escravos e seus filhos. A chamada “Lei do Ventre Livre ou dos ingênuos”, Lei de n°2.040 de 28 de setembro de 1871, declarava livres os filhos de mulheres escravas nascidos após esta data. Estipulava obrigações para os senhores de escravos e para o governo, proibia a separação dos filhos menores de 12 anos do pai ou da mãe. Segundo Abreu & Martinez, a lei de 1871, tem como preocupação o futuro dos descendentes de escravos, tônica dos debates públicos da época (ABREU & MARTINEZ, 1997, p.25). A Lei 2040 obrigava os senhores a criarem os filhos das escravas até à idade de 8 anos, após este período poderiam receber uma indenização do Estado ou os usarem como trabalhadores até à idade de 21 anos. Num quadro econômico agroexportador, escravista e monocultor, a postura dos senhores de escravos tinha muitos defensores. Após 1871, descendentes de escravos libertos, menores em geral (imigrantes e mestiços) se tornaram objeto da elite pensante no Brasil. A partir desse período, os discursos dos homens públicos, dos reformadores e dos filantropos propunham a “fundação de escolas públicas, asilos creches, escolas industriais e agrícolas de cunho profissionalizante, além de uma legislação para menores”.Buscava-se inserir nas práticas jurídico-policiais o encaminhamento para Casas de Educação, Educandários e Reformatórios “para os chamados menores abandonados e delinquentes” (ABREU & MARTINEZ, 1997, p. 25). No Império começa-se a traçar também metas para a formação da futura nacionalidade, calcadas em padrões europeus, numa ordem científica. Corrigindo tudo aquilo Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 193 ou todo aquele que divergisse da ordem estabelecida e considerada condição sinequa non para o desenvolvimento de uma nação moderna e civilizada. Numa conferência intitulada Educação da Infância Desamparada o médico Carvalho, conferencista explana sobre a infância desamparada. Segundo Carvalho: 1º) Menores que pela indigência dos pais não podem frequentar as escolas; 2º) Menores que não têm pais nem protetores que curem das suas pessoas; 3º) Menores cujos pais se acham física ou moralmente impossibilitados de conservá-los em seu poder; 4º) Menores que, contaminados pelos vícios, já sofreram alguma condenação judicial; 5º) Menores cujos pais, dispondo de recursos, deixam de educá-los por culposa negligência; 6º) Finalmente, os ingênuos da lei de 28 de Setembro, aos quais não possam as pessoas, sob cuja tutela se acham, ministrar a necessária educação (CARVALHO, 1883, p. 13). Os médicos indicavam a ausência da polícia “higiênica” que deveria observar o comércio urbano, as construções irregulares, a existência das valas, a prática da prostituição, as práticas de cura, a venda de remédios, a conduta moral e a civilidade. No século XVIII, várias críticas já eram feitas às classes pobres. Como mostra um acadêmico: Encontramos no tomo primeiro dos Anais do Rio de Janeiro pelo ilustre conselheiro Balthasar da Silva Lisboa, que a farinha de mandioca, os peixes de ínfimo preço, e as carnes de talho, constituía os alimentos habituais das classes pobres do Rio de Janeiro. No ano de 1785, quando a população da cidade era de 45 a 50.000 almas, o consumo de carne de vaca era de 21.871 cabeças de gado por ano. O café, o chá, e os legumes quase não faziam parte da alimentação das classes inferiores, em certo modo mais largueza do que então, com mercados pejados (sic) de legumes, de farinhas diversas, de grande copia de hortaliças, de batatas assim da terra, como do estrangeiro, e, sobretudo, de milho, de que se faz imenso gasto, na província de Minas, e do qual se pode tirar imensa vantagem alimentícia, por causa da zeina (sic), principio essencialmente nutritivo, que ele contém (PADILHA, 1853, p. 15). O médico Padilha (1853), autor da tese Qual a alimentação de que usa a classe pobre do Rio de Janeiro e sua influência sobre a mesma classe salienta: Quanto às demais substâncias alimentícias, a carne seca, as sardinhas, a farinha de mandioca, as batatas, o bacalhau, substâncias todas apropriadas, por sua maior barateza, à alimentação dos operários, muitas vezes são vendidas quando já tem sofrido certo grau de alteração, ou de falsificação. Não falarei do chá, do açúcar, das gorduras, do azeite, nem da manteiga de qualidade inferior, vendidas a retalho ao pobre consumidor, substâncias são que delas só tem o nome. Os líquidos, vinho, vinagre, &c., estão na mesma categoria. Felizmente o nosso, em geral sóbrio, indeniza-se da péssima qualidade destes gêneros, prevalecendo-se dos frutos, cujo preço módico e abundância se conciliam melhor com os seus minguados recursos, e o Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 194 convidam a lançar mão deles: assim é que as laranjas e as bananas constituem uma alimentação quase geral, alimentação deliciosa e sã, que não fortifica o corpo, mas que também não prejudica a digestão, como acontece com o uso constante da farinha de mandioca e dos peixes salgados, que de tempo imemorial soem (sic) as vendas fornecer ás classes pobres (PADILHA, 1853, p. 16). Os discursos e práticas referentes à educação emergiram concomitantemente ao crescimento do poder médico. A constituição do saber dos professores ocorreu paralelamente ao saber dos médicos, ao mesmo tempo vieram a formar-se, entrelaçando-se, entremeando-se e consolidando-se nas redes da sociedade da época. E dentro deste quadro por que a questão da criança, e em particular a da criança desvalida assume tamanha importância? A constituição de uma instituição asilar do porte do Asilo de Meninos Desvalidos faz parte de uma gradação, da instituição de uma série de dispositivos de controle, vigilância e disciplina no qual estão inseridos a casa de correção, a casa de pequenos artífices, a casa do pequeno marinheiro. No Império havia passado a vigorar, através de leis e decretos, o recolhimento. Esta disposição já estava presente na primeira lei penal do Império, o Código Criminal de 1830. Os menores de 14 anos já eram responsabilizados criminalmente.O recolhimento dos menores passava a visar sua correção em instituições denominadas Casas de Correção, que mantinham alas separadas. Umas de cunho correcional, para menores delinquentes, mendigos e vadios; e outra destinada à divisão criminal. Na segunda metade do século XIX começa a emergir mais claramente na legislação da época, outra característica das medidas de amparo à infância pobre no Império: a formação educacional das crianças. O tema infância ganha importância nas pesquisas acadêmicas. Foram registradas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de 1836 a 1870, 81 teses acadêmicas tendo como tema a criança. Sendo que 34 dessas se referiam à infância pobre; à exposição de órfãos na Santa Casa de Misericórdia; à prostituição infantil, à baixa frequência escolar, à higiene dos escravos, às altas taxas de mortalidade. A que se deve tamanha repercussão? O autor quando produz a sua obra, o faz para determinado público, visando um específico grupo de leitor, assim como o conferencista ao fazer a sua exposição e ser compreendido por seu auditório e obter sucesso adapta a sua fala à realidade dada. O discurso médico nas teses, seja como defesa de pontos por diferentes doutores, ou como sustentação a fim de obter o grau doutor em Medicina, vai ao encontro dos temas de interesse social, evidencia-se esta afirmação pelas famosas conferências abertas à audiência pública e pelo Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 195 caráter de acontecimento social das mesmas, consubstanciado pela divulgação nos jornais de então. O saber médico no século XIX, progressivamente, foi se firmando, seja através da Academia Imperial de Medicina, responsável pela emissão dos diplomas, seja pela publicação de revistas, cujos temas e assuntos, eram de responsabilidade única e exclusiva dos médicos, bem como pelo exercício da medicina por um corpo de especialistas reconhecidos, credenciados e devidamente identificados pela Academia, ou no combate aos que porventura viessem a colocar em xeque o seu poder. Como se observa nesta referência de Monteiro, autor de Higiene e educação da infância de 1868 sobre a seleção da ama de leite: A sua escolha deve ser confiada ao médico; ele é o único competente: ainda assim não deve jamais esquecer-se que é isso uma missão difícil e bem delicada, e que, por muitas luzes que tenha, pode errar: as aparências enganam muitas vezes, e por outro lado um exame rigoroso será quase sempre impossível. Deve também o médico assegurar-se da qualidade e quantidade do leite. Nem sempre é fácil apreciar se ele é em quantidade suficiente; é pois necessário observar com cuidado se a criança mama facilmente, e se mostra saciada. Para verificar a qualidade do leite há diversos meios, que não carecemos mencionar aqui, por que o médico sabe pra que serve o lactometro (sic) e o lactoscopo (sic) (MONTEIRO, 1868, p. 27). Eu quero compreender as condições e possibilidades de surgimento de uma instituição específica, no caso o Asilo dos Meninos Desvalidos, e para isso preciso mapear os discursos médicos e higienistas, e compreender as esferas de poder que atravessam os diferentes espaços sociais. Ao apresentar a sua tese na Academia Imperial de Medicina, o futuro médico Monteiro (1868) destaca: Só a medicina se não tem reputado como parte necessária da educação, conquanto não haja razão suficiente para autorizar esta falta. Nenhuma ciência oferece campo mais vasto de conhecimentos úteis, nem de mais amplo entretenimento para um espírito investigador. Não pretendemos que todos sejam médicos. Esta pretensão seria tão ridícula, como impossível. O que queremos é que as pessoas instruídas conheçam os princípios gerais da medicina, para que possam aproveitar as vantagens de semelhantes conhecimentos, e resguardar se ao mesmo tempo dos efeitos nocivos da ignorância, da superstição e do charlatanismo (MONTEIRO, 1868, p. 5). Na chácara da família Rudge.... O Asylo de meninos desvalidos, para cuja criação estava o poder executivo autorizado por decreto, desde fevereiro de 1854, só foi finalmente criado vinte anos depois pelo decreto Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 196 nº 5532 de 24 de janeiro de 1874, sendo inaugurado no dia 14 de maio de 1875, com 13 meninos, pelo então Ministro do Império João Alfredo Corrêa d’Oliveira, que o regulamentou por decreto nº 5849 de nove de janeiro de 1875. O Asilo tinha como objetivo fundamental a assistência à infância desvalida, sobretudo, meninos órfãos de pai e/ou mãe que não tinha quem os sustentasse e garantisse a continuidade de seus estudos. Localizado em Vila Isabel, Rio de Janeiro, essa instituição sofreu várias mudanças em sua denominação ao longo de sua história – Asylo dos Meninos Desvalidos (1875-1894), Instituto Profissional (1894-1898), Instituto Profissional Masculino (1898-1910), Instituto Profissional João Alfredo (1910-1933), Escola Secundária Técnica João Alfredo (1933-1934) e Escola Técnica Secundária João Alfredo (1934-1956), atualmente, Colégio Estadual João Alfredo. Essas nominações diferenciadas no decorrer dos anos corresponderam às mudanças estruturais pelas quais passou esse estabelecimento. A procura pela instituição era feita, em geral, por pessoas extremamente pobres que não tinham meios para manter-se e aos filhos. Geralmente, recolhia meninos pobres, “de rua”, “indigentes” e “órfãos”, crianças, entre seis e doze anos de idade, que perambulavam pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, sem terem para onde ir, cometendo, às vezes, furtos e outros crimes. Uma vez no asilo, tendo terminado a educação de primeiro grau e instrução em algum ofício, eram obrigados a trabalhar três anos nas oficinas da escola. Depois desse período, os “órfãos” ficavam à disposição do Estado, na figura de um “juiz de Órfãos”, enquanto os outros eram encaminhados às suas famílias. Ambos, entretanto, tinham como certa a sua inserção no processo de trabalho, em empresas públicas ou privadas 1 . A instituição era mantida com subvenção do Estado e, em grande medida, através de doações feitas por benfeitores, dentre eles empresários e industrialistas, interessados com a formação de jovens trabalhadores para suas fábricas. Estava inserida, portanto, em uma lógica de funcionamento social que correspondiam não apenas aos interesses do Estado, mas também de grupos privados: Daí, postulamos a ideia de um projeto educacional vinculado a um projeto social mais amplo e a uma estratégia geral de poder. Aqui, a compreensão da instituição enquanto um aparelho privado de hegemonia está calcada, dado constituir-se um dos meios de atingir os objetivos da burguesia industrialista de várias formas: uma, formando força de trabalho qualificada e ‘adestrada’ do ponto de vista técnico e moral. Outra, constituindo-se alternativa efetiva 1 LOPES, Luiz Carlos Barreto. Projeto educacional Asylo de Meninos Desvalidos: Rio de Janeiro (1875-1894) – Uma contribuição à História social da educação no Brasil. Dissertação de mestrado aprovada pela Faculdade de Educação, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: março de 1994. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 197 de poder, já que consegue carrear par si a participação do Governo Imperial (LOPES, 1994, p. 88). Daí depreende-se que a construção do AMD decorre de projetos sociais muito mais amplos, que conformam a relação entre poderes públicos e privados em fins do século XIX. No entanto, penso que analisar as políticas de funcionamento de uma instituição com estas características, por um viés predominante econômico, que pensa o projeto pedagógico levado a cabo pelo controle e a disciplina, apenas interessado em formar mão de obra técnica e qualificada para o trabalho nesta sociedade que se desponta como industrial, é muito pouco e eu diria até mesmo pobre. Partilho, seguindo outro viés, das ideias de Michel Foucault que pensa a importância em trabalhar este modelo de instituição não do ponto de vista interno, de “dentro” para “fora”, mas partindo de “fora” para “dentro”, buscando compreender como esta “máquina” (instituição) funciona como a materialização de políticas sociais mais complexas que transcendem seus muros. Políticas estas que se concretizam e se materializam por via das estratégias de poder. Em outras palavras, não pretendo fazer uma História do AMD, mas compreender como as suas políticas de funcionamento interno conformam com as políticas sociais mais abrangentes em determinado contexto histórico. E mais, como estas políticas, tornadas possíveis através dos dispositivos de poder, atravessam corpos individuais e os transforma. Traçamos então como objetivos: 1) Identificar o perfil da clientela atendida pelo AMD neste período e suas formas de admissão; 2) Pesquisar a relação entre a Medicina e as políticas de educação, principalmente no que diz respeito à higiene física e mental das crianças, políticas públicas de saúde e profilaxia das doenças; 3) Entender o processo de “atravessamento” da instituição educação, AMD, por outras instituições como a saúde, a religião, a política, a economia, a prisão, o quartel, o hospital, etc.; 4) Identificar as estratégias de poder utilizadas e suas formas de funcionamento no cotidiano, considerando também a possibilidade da existência de contra poderes por parte dos asilados, manifestos através de resistências, indisciplinas e formas mais sutis, como processos de somatização, etc.; 5) Verificar as condições de moradias, vestimentas, alimentação das crianças asiladas. O pensamento higienista, fundamentado nos valores da ciência, tinha como objetivo, em sua ação, a prevenção da desordem. As instituições de amparo social criadas para servir aos “desprovidos”, aos desvalidos, tinham como objetivo, neste sentido, prevenir a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 198 delinquência, proteger a infância e fazer de sua saúde física e de sua adaptação moral a mais grave preocupação da sociedade 2 . Como vimos anteriormente o Decreto Nº 5849 de nove de Janeiro de 1875 estabelecia que, o Asilo seria um internato destinado a recolher e educar meninos de 6 a 12 anos de idade. O artigo 2º salientava como primeira ação a se dar: a vacinação dos meninos recolhidos, no caso da falta desta. No entanto os que porventura viessem a sofrer algum tipo de doença, exteriormente ao Asilo teriam tratamento. Continua este mesmo artigo enfatizando que “Não serão admitidos os que sofrerem de moléstias contagiosas ou incuráveis, nem os que tiverem defeitos físicos que os impossibilitem para os estudos e para a aprendizagem de arte ou ofícios” 3 . A Gymnastica no Asylo Em ofício enviado ao ministro João Alfredo Corrêa Oliveira no dia 5 de Maio de 1875, o diretor Rufino Augusto de Almeida informa parecer-lhe conveniente que os meninos recolhidos ao internato começassem a fazer exercícios ginásticos, pedindo autorização para comprar os aparelhos e vestuários indispensáveis aos exercícios. Já no dia 8 de Maio de 1877, num reservado ofício, o diretor do Asilo, Rufino Augusto de Almeida informa o Diretor interino da Instrução primária e Secundária do Município da Corte, o Conselheiro Barão de São Felix que: Respondendo ao oficio reservado de V. Ex. de 4 do corrente (ontem recebido) cumpre-me informar, que o cidadão Brasileiro Manuel d’Azambuja Monteiro exerce as funções de professor de Ginástica por contrato desde 1 de Junho de 1875, e que durante este tempo há mostrado ter as habilitações precisas para o ensino da ginástica higiênica, usada neste Estabelecimento, empregando bastante zelo, e dedicação no desempenho de seus deveres. Não conhecendo o mencionado cidadão, quando tratava de contrata-lo para professor neste Asylo, e não podendo ele apresentar diploma de habilitação, porque nesta Corte não se concede diploma, ou outro qualquer título de professor de Ginástica, procurei informar-me de pessoas competentes sobre a sua aptidão e de todas obtive os melhores juízos. Devo mais informar, que este cidadão tem requerido por mais de uma vez a essa Inspetoria, e ao Ministério do Império para o admitirem à exame da matéria que leciona, a fim de ficar comprovada legalmente a sua capacidade para o professorado que exerce 4 . 2 RIZZINI, Irene (Org.) Olhares sobre a criança no Brasil – séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Petrobrás – Br: Ministério da Cultura: USU ed. Universitária: Amais, 1997 (a). 3 Decreto Nº 5849 de 9 de Janeiro de 1875. 4 Arquivo Nacional. IE5 – 23 (1877). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 199 Isto após a contração de um médico para atendimento na instituição. Em 16 de Julho de 1875 Rufino Augusto de Almeida comunica ao Ministério dos Negócios do Império, no caso o ministro José Bento da Cunha e Figueiredo, que: Usando da atribuição que me confere o regulamento de 9 de Janeiro do ano passado, contratei desde o mês de Maio, o Dr. Carlos Ferreira de Souza Fernandes para médico deste Asilo com o vencimento de 600$ reis anuais e sob a condição de somente começar a percebê-lo quando os seus serviços forem reclamados – visto ter o Dr. João Joaquim Pizarro, se oferecido para tratar gratuitamente os asilados durante o tempo que se demorasse em Vila Isabel, como até hoje tem feito prestando-se de bom grado a tratar dos menores que têm sofrido ligeiros incômodos de saúde e prometendo mais auxiliar o seu colega em todo e qualquer serviço médico que necessário neste asilo e substituí-lo em seus impedimentos. Devendo o Dr. Pizarro demorar mais algum tempo nesta Vila, somente depois de sua retirada começará o médico contratado a perceber vencimento de 50$000 reis mensaisArquivo Nacional 5 . O médico Coutinho (1875)em Esboço de Higiene dos Colégiosdestaca que: A educação física é completamente desconhecida em nossos colégios sem exceção, e, entretanto é intuitivo o beneficio que resulta da ginástica, da esgrima, natação: são exercícios importantes para o desenvolvimento do corpo, e se fosse a educação física bem avaliada, não veríamos os mancebos ao saírem dos colégios – nervosos, fracos, e parecendo dispostos a contraírem toda a casta de enfermidades (COUTINHO, 1857, p.8). Armonde (1874) em Da educação física intelectual e moral da mocidade do Rio de Janeiro e de sua influência sobre a saúde salienta que: A necessidade dos exercícios físicos é tal que bem poderíamos dizer que eles estão para a educação física como o estudo está para a educação intelectual, como a religião e o exemplo para a educação moral. A influência benéfica desses exercícios não se limita ao físico: estende-se ao moral e ao intelectual; a inteligência se aguça, a sensibilidade regulariza-se, a vontade é mais enérgica. Nas nossas casas de educação dá-se a esses exercícios todo o valor que eles têm? São eles praticados na medida de sua utilidade pelos educandos? A resposta não pode ser afirmativa (ARMONDE, 1874, p. 19- 20). O médico Guimarães na sua tese intitulada Higiene dos Colégios de 1858 preconizava como uma instituição asilar exemplar a que contasse: 5 Arquivo Nacional. IE5 – 22 (1875-1876). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 200 Uma cozinha com todos os apetrechos, um refeitório espaçoso, quartos de banho; latrinas asseadas, largos dormitórios bastante arejados com acomodações para vestuário e para quartos dos professores da vigília – salas de estudo suficientes salas de classes, sala de desenho, de escultura e de música, anfiteatro – gabinete de física de história natural e de química – laboratório de química, recreios para cada divisão, enfermaria com todosos pertences - um ginásio aberto – capela – acomodações convenientes para os diretores, professores, e mais empregados. A habitação deve ser construída sobre um solo calcário e arenoso ou granítico, mas nunca úmido e argiloso, e circundado de plantações diversas em diferentes direções; deve-se evitar muito a proximidade de pântanos e grandes fábricas. A divisão do tempo poderá ser a seguinte: Levantar ás seis horas da manhã e deitar às dez da noite – quatro horas de estudo ou de repetições, três horas de curso, duas horas de refeição, (1) uma hora para banhos e cuidados de asseio, uma para música e artes, uma hora de ginástica, quatro horas para jogos, escultura e artes mecânicas. O regime não poderá ser uniforme para um grande número de alunos, dotados de temperamentos diversos; uma grande divisão, entretanto não será possível, ela constará de duas espécies de alimentação, uma com predominância do regime animal a outra com predominância do regime vegetal. A aplicação será reduzida dos princípios estabelecidos nas questões – temperamentos e alimentação e o regime especial de um aluno deverá ser ditado pelo médico do estabelecimento, subordinado, entretanto ao gosto dele todas as vezes que for possível. No refeitório – deve haver um estremo cuidado a respeito da qualidade dos alimentos, guardar as condições de asseio e o serviço deverá ser feito por um pessoal suficiente. Os diretores e professores participarão das mesmas refeições que os alunos. Os banhos e as vestimentas devem ser regulados pelo bom senso. Para o sono bastarão sete horas, uma meia hora para se levantarem, e outra para se deitarem. A capacidade do dormitório deve ser tal que cada aluno disponha de vinte e cinco metros de ar (aparte o dos meios de ventilação) janelas sempre abertas durante o dia darão entrada ao ar exterior e durante a noite será iluminado por lâmpadas; os leitos construídos conterão um colchão de crinas e um simples travesseiro: os dormitórios devem ser visitados varias vezes à noite. As salas e as classes deverão compor-se de uma só peça, vasta perfeitamente clara e ventilada; os assentos terão a disposição necessária para a vigilância do mestre. À noite a iluminação se fará com lâmpadas, cercada com um globo de vidro ligeiramente azulado e munidos de um refletor metálico; seu numero será variável e deverão pender do teto para que os raios não ofendam aos olhos. Quanto às outras partes que devem constituir um internato, muito poucas coisas apresenta importantes que não sejam conhecidas e possam ser providas pelos homens de senso (GUIMARÃES, 1858, p.66). No entanto, após uma carta denúncia de uma mãe de um interno, ocorre uma visita do comissário do Governo para avaliar as condições de internação dos asilados. O relato do comissárioDr. Manoel Pereira dos Santos descreve as condições da Instituição: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 201 Em doze de Março próximo passado recebi o aviso de V. Exª, em que me ordenava que fosse ao Asilo de meninos desvalidos, em Villa Isabel, a fim de verificar, se as queixas levadas ao conhecimento do Governo pela mãe de um dos asilados contra o diretor daquele estabelecimento eram infundadas. Cumprindo as ordens de V. Exª, dirigi—me ao Asilo, e, ali se achando o vice-diretor, o Sr. Dr. Daniel d’Almeida comuniquei-lhe o objeto de minha visita, e com ele passei a percorrer e a examinar com acurada atenção todo o estabelecimento, e vi com superficção, que se acha ele administrado com zelo, e economia, ordem e criteriosos graus de louvor. Notei que todos os asilados apresentavam aspectos saudável e alegre, e estavam especialmente vestidos e com roupas algodãozinho escuro, riscado, de excelente qualidade e corriam para o refeitório, acompanhei-os e vi que a sua refeição era abundante, de boa qualidade, e bem preparada; constando de muita boa sopa, assado, arroz, ervas ensopadas com carne seca, e bananas-maçãs para sobremesa. Fui depois examinar os dormitórios, e já estavam todos bem servidos, as camas feitas e limpas; sendo as condições higiênicas destes dormitórios as melhores possíveis. Passei depois a examinar as latrinas, e que estavam perfeitamente lavadas e limpas; sendo acomodadamente suas tubulações, de modo que não se sentia nelas o menor cheiro desagradável. Em seguida fui examinar as enfermarias, que está bem situada, e reúne excelentes condições de salubridade; e vi nela que parecia existir um enfermo, já convalescendo de febre biliosa. Fui depois examinar a cozinha, que estava limpa e asseada em todas as suas dependências; bem como vi a despensa, que estava suficientemente fornida; sendo todas as substâncias alimentícias de boa qualidade. Examinei a rouparia e que está bem suprida, sendo as roupas preparadas aos alunos. Quanto à queixa de serem os meninos obrigados a carregar pedras à cabeça, obsequiou-me o Sr. Vice- diretor que nunca tal se viu; mas sim que, fazendo-se escavações em um morro contiguo às edificações do Asilo no intuito, não só de alugar à área aplainada do terreno. Como para aterrar parte do lado noroeste da colina, que se acha à ação das chuvas, vai caindo em desmoronamento; foram os meninos mais crescidos e robustos encarregados de transportar em carrinhos chamados de mão, leves e de fácil locomoção, as terras desmoronadas e misturadas com algumas pequenas pedras, não sendo a distância, que medeia o lugar da escavação, e o da vertente, que as águas vão derrocando, maior de 12 a 15 metros: sendo certo que este serviço, antes exercícios ginásticos, longe de ser nocivo à saúde dos alunos, concorre, pelo contrário, para lhes desenvolver a musculatura, torna-los mais vigorosos e sadios. Quanto a acusação de serem os meninos serem surrados com correias e metidos e fechados em um quarto escuro, asseverou-me o Sr. Dr. Daniel, ser falso e inexato, tão bem visto me parecerinverossímil, em vista do cuidar atencioso e criterioso do Sr. Daniel, que mora no estabelecimento com sua digna senhora e filhos, a qual boa e humana, como é para todos os meninos não se poderia suportar e presenciar todos os atos, ela que também é mãe 6 . Na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro diversas teses abordavam a questão da assistência e educação das crianças em internatos ou instituições de atendimento aos órfãos ou aos desvalidos. Entre as quais a tese Influência da educação física do homem de 1854, em que Antonio Nunes de Gouvêa Portugalcritica as mães dos “enjeitados” pelos seus atos. 6 Arquivo Nacional. IE5 – 26 (1881-1882). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 202 Segundo os relatórios dos diretores do Asylo as aulas de ginástica eram leves, sem exigir grandes esforços dos internos, ocorriam à sombra. Mas a diretoria do Asylo de Meninos Desvalidos em março de 1878 afirma que: Não havendo verba para a despesa com a construção de um barracão, em que sejam dadas as lições de ginástica, e nem para a compra de um pórtico ginástico e mais aparelhos; e não convindo a saúde dos meninos estes exercícios ao ar livre, expostos as impressões atmosféricas, parece-me conveniente a suspensão desta aula (da qual nenhum proveito tem tirado os menores), até que este ensino possa ser melhor organizado 7 . O médico do Asilo, o Dr. Carlos Ferreira da Silva Fernandes,no dia 28 de Agosto de 1877destaca que: “A nocividade dos chiqueiros e esterqueiros na vizinhança desse Estabelecimento, onde se colocam cem meninos, e que tem o pessoal para isso necessário, é de fácil intuição, os porcos que povoam esses chiqueiros são alimentados também com restos de alimentos adquiridos em hotéis” 8 . E logo depois, mais precisamente 29 de Agosto de 1877 o próprio diretor do internato, Rufino Augusto de Almeida submete à consideração do ministro e secretário d’Estado dos Negócios do Império, o Dr. António da Costa Pinto Silva o ofício do médico do Asilo para que: “sejam removidos os chiqueiros de porcos, e esterqueiras na vizinhança deste Estabelecimento, e que seja desobstruído o braço do Rio Maracanã, que serve de limite à chácara, e cujas águas estagnadas estão prejudicando a higiene do Asilo”. Considerações Finais O tema de criança desvalida já foi objeto de inúmeras abordagens. Neste texto procuramos discorrer algumas considerações sobre o discurso médico e a atividade física no Asylo de meninos desvalidos. No século XIX ocorreram políticas de Estado para a assistência à Infância Desvalida. Sobretudo a partir dos anos 1850, quando os escravos começaram a figurar na ordem dos homens livres e o governo teve que se preocupar com “os filhos” que passaram a circular pelo centro urbano. Neste cenário, a assistência assume um caráter de ordem e controle social, a fim de se evitar a violência e criminalidade. Primeiramente, esta assistência teve um cunho religioso, sendo praticada pelos jesuítas que, além de um interesse 7 _____________. IE5-24 (1878). 8 _____________. IE5- 23 (1877). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 203 humanitário, procuravam atrair seguidores para o catolicismo. A assistência, neste sentido, tinha uma característica de caridade atrelada a interesses religiosos. A medicalização da sociedade, das relações sociais, da assistência às crianças desvalidas, assim como nas distintas esferas de poder se deu gradativamente. E a ginástica vai ser acompanha do discurso médico que vai disciplinar, controlar, vigiar e punir as ações cotidianas dos internos do Asylo de Meninos Desvalidos. Referências Bibliográficas ABREU & MARTINEZ. Olhares sobre a criança no Brasil – séc. XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula, 1997. ARMONDE, Amado Ferreira das Neves.Da educação física intelectual e moral da mocidade do Rio de Janeiro e de sua influência sobre a saúde, Rio de Janeiro: 1874. Arquivo Nacional. IE5 – 22 (1875-1876). ______________. IE5 – 23 (1877). ______________. IE5 – 24 (1878). ______________. IE5 – 26 (1881-1882). CARVALHO, Carlos Leôncio de. Educação da infância Desamparada: Discurso do Conselheiro Carlos Leôncio de Carvalho. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1883. COUTINHO, Cândido Teixeira de Azeredo.Esboço de Higiene dos colégios, Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1857. GUIMARAES, Antenor Augusto Ribeiro. Higiene dos colégios. Rio de Janeiro: Tipografia Imparcial de J. M. Nunes Garcia, 1858. LOPES, Luiz Carlos Barreto. Projeto educacional Asylo de Meninos Desvalidos: Rio de Janeiro (1875-1894) – Uma contribuição à História social da educação no Brasil. Dissertação de mestrado aprovada pela Faculdade de Educação, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: março de 1994. MONTEIRO, Joaquim dos Remédios. Higiene e educação da infância. Resende: 1868. PADILHA, Francisco Fernandes. Qual o regime alimentar das classes pobres do Rio de Janeiro? Quais moléstias mais comumente grassam entre elas? Que relações de causalidade se encontrão entre esse regime e moléstias?Rio de Janeiro, 1853. PORTUGAL, Antonio Nunes de Gouvêa. Influência da educação física do homem. Rio de Janeiro, 1853. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 204 RIZZINI, Irene (Org.) Olhares sobre a criança no Brasil – séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Petrobrás – Br: Ministério da Cultura: USU ed. Universitária: Amais, 1997. VOGEL, Arno. “Do Estado ao Estatuto”. In: A arte de governar crianças. Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula, 1995. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 205 A CADEIRA DE CIRURGIA EM VILA RICA: VIEIRA DE CARVALHO NA POLÍTICA DE D. RODRIGO DE SOUZA COUTINHO - 1797-1802 Evandro Carlos Guilhon de Castro Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz Doutorando em História das Ciências e da Saúde Bolsista da Fiocruz [email protected] Resumo:Analisa a instalação da “Cadeira de Cirurgia, Anatomia e Obstetrícia” em Vila Rica de Ouro Preto e a respectiva nomeação do cirurgião-mor Antônio José Vieira de Carvalho para ocupar o cargo de lente da mesma no ano de 1801. A medida é analisada sob o contexto da administração exercida por D. Rodrigo de Souza Coutinho, enquanto Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos de Portugal – posição que ocupa a partir de 1796. As relações entre Iluminismo e administração luso-brasileira pré- enunciadas pela historiografia permeiam o tratamento da temática que recorre à correspondência oficial sob a guarda do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. A partir dessa ótica, a institucionalização da cirurgia em Minas Gerais colonial – identificada junto ao Hospital Militar de Vila Rica e sob a responsabilidade de um cirurgião português do Regimento de Cavalaria – antecipa a discussão a respeito da difusão do saber e das relações entre ciência e forças armadas para a virada do século XVIII para o XIX, em contraposição à sua demarcação a partir do período joanino e/ou da conjuntura da pós-independência política brasileira. Palavras-chave: cirurgia - forças armadas - Minas Gerais colonial Abstract:This study intends to analyse the attachment of “Surgery, Anatomy and Obstetrics Course” in Vila Rica de OuroPreto and the appointment of Surgeon Major Antônio José Vieira de Carvalho for the position of lens. This fact is analysed on the context of the administration D. Rodrigo de Souza Coutinho as Minister and Secretary of State and Overseas of Portuguese Empire. The relationships between Enlightment and luso-brasilian administration mentioned in historiography underlie this analysis, which is based on the official correspondence from Overseas Historical Archive of Lisbon. On this basis the establishment of surgery in Minas Gerais – related to Hospital Militar de Vila Rica and under charge of a portuguese surgeon of Cavalry Regiment - anticipate discussions about the spread of knowledge and the relations between science and Armed Forces in the turn of the eighteenth to the nineteenth century in contrast with the joanin period and brazilian political conjuncture of post-independence. Keywords:surgery, military, colonial Minas Gerais Este texto apresenta informações de pesquisa em andamento 1 e possui oobjetivode analisar a inserção do cirurgião-mor Antônio José Vieira de Carvalho na política 1 Trata-se do projeto intitulado, até o presente,Cirurgiões em Minas Gerais Colonial, que venho desenvolvendo junto ao doutoramento em História da Ciência e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 206 administrativa de D. Rodrigo de Souza Coutinho no cargo de Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos de Portugal (1896-1801) e também no cargo de Presidente do Real Erário (1801-1803). O cirurgião-mor Antônio José Vieira de Carvalho é destacado historiograficamente não apenas por ter sido nomeado, em 1801, para ministrar aulas de “Anatomia, Cirurgia e Obstetrícia” no Hospital Militar de Vila Rica (EUGÊNIO, 2009; PERUCCI, 2011), mas, sobretudo, por ter, nesse mesmo ano, traduzido para a língua portuguesa Observationssurlesmaladiesdesnègres, de JeanBarthelemyDazille (EUGÊNIO, 2000; ABREU, 2007; NOGUEIRA, 2012). Guardadas as especificidades de cada uma dessas referências cabe antecipar que elas já são passíveis de remeter o nome deVieira de Carvalho às ações administrativas de D. Rodrigo de Souza Coutinho ao considerarmos sua consonância com os projetos e as reformas implantados pelo estadista ilustrado português afim de desenvolver o reino português e suascolôniasa partir de conhecimentos úteis (DIAS, 2005: 55). Neste sentido, vale destacar em sua administração, a fundação da Tipografia do Arco do Cego em Lisboa no ano de 1798 com a finalidade de divulgar conhecimentos de ciências naturais e de agricultura (DIAS, 2005: 57)e responsável pela impressão das Observações sobre as enfermidades dos Negros – resultado da tradução efetuado por Vieira de Carvalho da obra do cirurgião francês Dazille, publicada Paris em 1776 e que aborda fatores que contribuíam para diminuir a mortalidade entre os negros;observadosa partir de seu posto de cirurgião militar na ilha de Santo Domingo, no Caribe (DAZILLE, 1801). Acrescenta-se que o enfoque no bem-estar e na saúde dos povos – identificado tanto na temática da obra traduzida por Vieira de Carvalho como em sua nomeação para a recém- criada Cadeira de Cirurgia, Anatomia e Operações em Vila Rica – é pertinente à ótica iluminista já em voga no mundo português desde os meados do século XVIII, onde o renascimento científico utilitário, sobretudo, no campo das ciências naturais e mecânicas, visava proporcionar a felicidade e a saúde dos homens(DIAS, 2005, p.40). Sob este ponto de vista, a instituição da referida Cadeira em Vila Rica na administração de D. Rodrigo de Souza Coutinho no Ministério dos Negócios Ultramarinos deu continuidade à institucionalização do ensino de cirurgia teórico no Brasil que já se iniciara na forma de aulas na Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro em 1790; e que, posteriormente, em 1803, em sua administração do Real Erário, teve continuidade com a implantação de aulas de cirurgia também no Hospital Militar de São Paulo (SANTOS FILHO, 1991, p.27). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 207 Recentemente um novo aspecto, mais característico da política utilitarista de D. Rodrigo de Sousa, pode ser constatado a partir das atividades de Vieira de Carvalho em Vila Rica: a fundação em 1802 de uma fábrica de louças em sua chácara situada a meia légua da vila, no lugar chamado Morro de Saramenha e que, posteriormente, passou a ser denominada Cerâmica Saramenha(LAGE, 2010, p. 28). Aspecto este reforçado pela identificação de sócio no referido empreendimento, o Padre José Joaquim Viegas de Meneses. O Padre Viegas como é mais conhecido, possui certa notoriedade histórica por ser considerado o precursor da “imprensa mineira”, tendo fundado a primeira tipografia e o primeiro jornal – O Compilador Mineiro – em Minas Gerais, respectivamente nos anos de 1822 e 1823 (VEIGA, 1898). No entanto, suasociedade com Vieira de Carvalho é mais reveladora das conexões de ambos com D. Rodrigo de S. Coutinho pelo fato, primeiramente, de ter estagiado em uma fábrica de cerâmica em Benfica e, sobretudo, por ter aprendido tipografia e calcografia na Tipografia do Arco do Cego com o frei José Marianno da Conceição Velloso (MARTINS, 1974). Contudo, podemos perceber o processo de inserção do cirurgião-mor Antonio José Vieira de Carvalho à política ilustrada de D. Rodrigo de S. Coutinho, constada nesses acontecimentos ocorridos entre 1801 e 1802, tratados acima, desde o ano de 1897 a partir de de três cartasoficiais entre o Ministro Coutinho e Bernardo José de Lorena, então Governador da Capitania de Minas Gerais. Cronologicamente, a primeira delas, trata-se de uma carta-resposta do governador ao Ministro – datada de 7 de outubro de 1797 – em relação a uma “representação” enviada a Dona Maria, Rainha de Portugal por Joaquim Félix Pinheiro: um cirurgião mineiro (de São João Del Rei) radicado em Portugal, onde era “assistente na Corte” e estudante de medicina prática; e na qual propunha o estabelecimento de uma “Cadeira de Cirurgia, Anathomia, e Partos” emMinas Gerais (AHU, CU 011, Cx. 143, D. 10904). Entre as justificativas utilizadas por Joaquim Félix Pinheiro, encontradas na “representação”, para a instalação da dita cadeira destacam-se a promoção do “bem dos povos ultramarinos” e a necessidade da Capitania devido à sua grande extensão territorial segundo ele que “abrange mais de quatrocentas legoas quadradas”, a sua grande população e a escassez de professores, em suas palavras “em toda Ella não há huma dúzia de professores hábeis de Cirurgia, e absolutamente nenhum q entenda de Partos” (AHU, CU 011, Cx. 143, D. 10904). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 208 A respeito desta “raridade de cirurgiões inteligentes”, aponta a ausência no “principal hospital do país” – se referindo a hospital do Rio de Janeiro –de uma cadeira “na qual se anatomizassem os cadáveres [...] para um perfeito conhecimento da estrutura do corpo humano”.Alega também a preferência dos cirurgiões europeus em se estabelecerem junto aos portos marítimos, “onde faziam as mais avultadas conveniências. Além disso, considera ainda que o ensino existente no Hospital do Rio de Janeiro absorvia a demanda da mesma capitania com o agravante de Minas Gerais situar-se distante dela e também carecer de víveres, servindo de obstáculo à “mocidade pobre, que são ordinariamente os que se dedicam a esta profissão”. Concluindo que, desse quadro, resulta que “na cabeça de cada uma das comarcas de Minas Gerais apenas se acham três ou quatro professores de Cirurgia, e que nas mais Vilas, e Arraiais eles são tão raros, q há cirurgião que é chamado para curar em 10 e 12 léguas de distancia” ocasionando grande mortandade entre os vassalos locais” (AHU, CU 011, Cx. 143, D. 10904). Passa então a analisar os danos decorrentes da “ignorância” do trabalho das parteiras, do qual, igualmente, resulta na mortandade de muitas crianças, “vítimas dos estúpidos destas mulheres em toda a parte sem princípios”. E continua seu julgamento, contra as parteiras e em defesa da formação de cirurgiões, chamando a atenção no prejuízo que causam à escravatura. De acordo com o Joaquim Félix Pinheiro seria sobre esta que “mais descarrega o peso essencial da falta destes conhecimentos. Elles segundo a ordem das couzas humanas produziriam mais, teriam mais duração havendo maior n. o de professores hábeis, q facilmente pudessem acudir-lhe nas suas enfermidades, e desgraças, indo logo visitá-los às lavras mais remotas onde trabalhão. E pois elles formão os braços, e a riqueza daqueles colonos, e por sequencia a do Estado parece q a sua perda, vem a ser uma perda Real para a Metrópole”(AHU, CU 011, Cx. 143, D. 10904). Finalizando, propõe a criação da referida cadeira deCirurgia, Anatomia e Partos na capital Vila Rica, localizada no centro da Capitania e onde já estava em funcionamento o Hospital Militar; ou, como opção, a Vila de São João del Rey que também era populosa e possuía hospital; e sugere recorrer-se ao “subsídio Literário, estabelecido paraos professores de Letras” para extrair-se o ordenado da cadeira (AHU, CU 011, Cx. 143, D. 10904). Em sua resposta sobre a representação de Joaquim Félix Pinheiro, o Governador Bernardo José de Lorena fez a seguinte explanação do assunto: ...É sem duvida utilíssimo o estabelecimento da dita Cadeira; porém é tão bem certo existir aqui o Cirurgião Mor do Regimento Regular Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 209 Antonio José Vieira de Carvalho, discipulo de Manoel Constancio no Hospital Real de Lisboa, de grandes creditos nesta Capital, e de bons estudos, que talvez exercitasse a dita cadeira com menos despeza da Real Fazenda; pois qualquer já lhe acrescia sobre o seu soldo. No Hospital Militar há lugar para se estabelecer huma aula suficiente...” (AHU, CU 011, Cx. 143, D. 10904). Um ofício despachado por D. Rodrigo a Bernardo José de Lorena em 23 de maio de 1801prorrogando a licença do cirurgião-mor Vieira de Carvalho junto à corte por mais um ano (APM, SC-295), demonstra que o cirurgião-mor teria se dirigido a Portugal no ano de 1800. Certamente, Vieira de Carvalho lá se encontrava não somente para tratar da publicação da tradução do trabalho de Dazille e de sua nomeação para lente de Anatomia, Cirurgia e Operações no Hospital Real Militar de Vila Rica, mas também de seu futuro empreendimento em sociedade com o Padre José Joaquim Viegas de Menezes. Uma segunda carta resposta de Bernardo José de Lorena a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, do dia 20 de setembro de 1801, a respeito do “Requerimento de Antônio José Vieira de Carvalho pedindo a graduação e soldo de capitão”(AHU, CU 011, Cx. 159, D. 11928) também é elucidativo dos acontecimentos que se desenrolariam em torno das relações entre os dois dirigentes coloniais e o cirurgião-mor no período em que esteve em Portugal. Acompanha o requerimento dez atestados de bons serviços de autoridades coloniais que reiteram as qualidades do requerente de homem ilustrado e com conhecimentos em ciências naturais e nas artes úteis. Entre estes se encontra a atestação do Governador Lorena de sua instrução na língua francesa e de Luis Beltrão de Gouvêa de Almeida – Conselheiro da Fazenda do Ultramar e Chanceler da Relação do Rio de Janeiro – “de suas experiências sobre Argilas próprias para a Fabrica, e composição da Porcelana”(AHU, CU 011, Cx. 159, D. 11928); virtudes que seriam requeridas nos acontecimentos que se concretizariam na tradução da obra de Dazille e na fundação da fábrica de cerâmica. Podemos concluir que tais considerações estendem e reafirmam os aspectos da inserção de Antônio José Vieira de Carvalho na política de D. Rodrigo de Souza Coutinho, demonstrando também que o período de 1797 a 1801 representou uma conjuntura favorável à carreira deste cirurgião-mor ao atentarmos para sua trajetória de vida. Abrem também a perspectiva do desdobramento da pesquisa para o aprofundamento de suas relações interpessoais e de patronagem na sua carreira profissional. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 210 Referências Bibliográficas Documentação Arquivo Público Mineiro. Secretaria do Governo da Capitania (Seção Colonial). Notação: SC -295. Microfilme: Rolo 63, Gaveta G-4. (Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a Bernardo Joséde Lorena prorrogando a licença de Antônio José Vieira de Carvalho na corte, 1801). AHU, CU011, Cx. 143, D. 10904. (CARTA de Bernardo José de Lorena, governador das Minas Gerais, a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de Estado dos Domínios Ultramarinos, dando seu parecer sobre os meios próprios com que se poderá estabelecer a cadeira de Cirurgião na Vila Rica). AHU, CU011, Cx. 159, D. 11928. (CARTA de Bernardo José de Lorena, governador das Minas, para D. Rodrigo de Sousa Coutinho, sobre o requerimento que junta de Antônio José Vieira de Carvalho, cirurgião-mor do Regimento de Cavalaria Regular da dita Capitania, no qual pede a graduação e soldo de capitão no seu exercício de cirurgião-mor). Bibliografia ABREU, Jean Luiz Neves. A colônia enferma e a saúde dos povos: a medicina das 'luzes' e as informações sobre as enfermidades da América Portuguesa. História, Ciências, Saúde- Manguinhos, n. 3, 2007, p. 761-778. DAZILLE, Jean Barthélemy. Observações sobre as enfermidades dos negros. Trad., Antônio José Vieira de Carvalho. Lisboa: Tipografia do Arco do Cego. 1801. DIAS, Maria Odila L. S. Aspectos da Ilustração no Brasil. In: Dias, Maria Odila L. S. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda. 2005. p. 39-126. EUGÊNIO, Alisson. As doenças de escravos como problema médico em Minas Gerais no final do Século das Luzes. Varia Historia, n. 23, 2000, p. 154-163. EUGÊNIO, Alisson. Ilustração, Escravidão e as condições de saúde dos escravos no Novo Mundo. Varia Historia, n. 41, 2009. 227-244. MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Vol. 2. IPHAN, Rio de Janeiro. 1974. NOGUEIRA, André. Universos Coloniais e ‘enfermidades dos negros’ pelos cirurgiões régios Dazille e Vieira de Carvalho. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v.19, supl., dez. 2012, p.179-196. PERUCCI, Sueli. Os primórdios do curso de Medicina em Ouro Preto. In: <medicina.ufop.br>. Acesso em 18/07/2011. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 211 SANTOS FILHO, Licurgo. História Geral da Medicina Brasileira. São Paulo: Hucitec. 1991. VEIGA, José Pedro Xavier da. A imprensa de Minas Gerais (1807-1897). In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano III, 1898, p. 169-249. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 212 MÉDICOS GAÚCHOS NA PRIMEIRA REPÚBLICA: APONTAMENTOS PROSOPOGRÁFICOS DA ELITE MÉDICA Fábio Rosa Faturi Universidade Federal do Rio Grande do Sul Mestrando em História. Bolsista CNPq [email protected] Introdução O período da Primeira República é marcado no estado do Rio Grande do Sul pelo predomínio dos ideários positivistas, desta forma o exercício profissional era livre, conforme teorizaraAuguste Comte. Diferente de como ocorria no resto do país, portanto, neste estado não era necessária a posse de um diploma para o exercício da medicina, por exemplo. Os médicos formados constantemente opuseram-se a este quadro reivindicando o reconhecimento de seus diplomas e “que a eles fosse dado o monopólio de curar” (KUMMER, 2002, p. 7). Nesta busca por legitimidade, os profissionais 1 vinculados à Faculdade de Medicina e Farmácia de Porto Alegre 2 ,criada em 1898, desempenharam um significativo papel. Nas aulas proferidas, artigos divulgados em periódicos, articulando-se em associações, criando canais de divulgação científica e por vezes ocupando cargos públicos, estes médicos colocaram-se a favor da formação acadêmica, científica. O objetivo deste trabalho é analisar a trajetória dos profissionais com destacada participação neste processo 3 , buscando inferir um perfil de conjunto, a partir do emprego do método prosopográfico. Assim, a exposição que segue esta dividida em 3 partes: inicialmente situamos o tema no âmbito dos estudos sobre medicina a partir da perspectiva da história social, em seguida propomos uma discussão a cerca da abordagem prosopográfica para, enfim, esboçar uma biografia coletiva da elite 4 médica gaúcha na Primeira República. 1 Utilizo os conceitos “profissionais”, “profissão” e “profissionalização” ao longo deste trabalho, consciente dos limites do emprego de tais termos para a realidade analisada, somente como forma de me referir aos médicos que atuavam no Rio Grande de Sul. 2 A Faculdade de Medicina de Porto Alegre é a terceira criada no país, antecedida pela do Rio de Janeiro e pela da Bahia, sendo a primeira criada por iniciativa particular. 3 O grupo analisado é composto por 23 profissionais. Deste, 12 foram apontados por Weber (1999) e Kummer (2002) como tendo desempenhado significativo papel no processo de profissionalização da medicina no estado do Rio Grande do Sul. Acrescemos a este número inicial todos aqueles que ocuparam o cargo de Diretor e Secretario da Sociedade de Medicina de Porto Alegre no período compreendido pela análise, por entendermos como fundamental estas posições na articulação das demandas médicas por reconhecimento. 4 A discussão sobre o emprego do conceito de elite será feita oportunamente, no texto que segue. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 213 História social e o estudo da medicina no Brasil As práticas e os saberes médicos são objeto presente na historiografia brasileira. Há, de maneira geral, uma vertente influenciada pela perspectiva foucaultiana, sendo pioneiros os estudos de Roberto Machado (1978) e Jurandir Freire (1989). Posteriormente outras pesquisas a partir da perspectiva de análise da história socialatentaram, por exemplo, para a intervenção da medicina no espaço urbano no início do século XX, como a desenvolvida porSidney Chalhoub (1996) e para a produção científica no interior das Faculdades de Medicina 5 , analise empreendida por Lilia Schwarcz (1993). Muito especificamente há maior interesse pelo marco temporal compreendido pela organização da República até o desenrolar da década de 1920 6 . Mas são nos trabalhos presentes na coletânea intitulada “Artes e o ofício de curar no Brasil” organizada por Chalhoub(2003),que encontramos de maneira melhor articulada uma história social da medicina no Brasil.Esses estudos que percorrem do século XVI as primeiras décadas do século XX, concentram-se especialmente nas relações estabelecidas entre intelectuais, médicos, boticários, curandeiros e os diferentes setores da população. Analisando a trajetória destes agentes, observam as multiplicidades de saberes e práticas de cura no Brasil em épocas e contextos diversos. Nesse sentido, os pesquisadores demonstram que no decorrer do século XIX tornam-se perceptíveis “as tentativas de estabelecer o discurso científico como a única verdade possível” (CHALHOUB et al, 2003, p. 14). Empenham-se então, na demonstração das estratégias utilizadas pelos médicos com formação acadêmica na legitimação de sua ciência 7 . No Rio Grande do Sul ainda existia a especificidade da liberdade profissional o que acarretava em uma disputa mais intensa por espaços para atuação, conforme foi analisada por Weber (1999). Esta autora aborda ainda, o processo de constituição de uma solidariedade corporativa e de um consenso profissional entre os médicos diplomados 8 neste empreendimento em busca de legitimidade. Sob a perspectiva da história social promoveu-se uma ruptura com a historiografia tradicional sobre este tema, frequentemente produzida por médicos, na qual se analisava a 5 A autora analisa especificamente as produções das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia entre as décadas de 1870 e 1930 (SCHWARCZ, 1993). 6 Como uma análise que extrapola este período frequentemente estudo, destaco Weber (2002). 7 Conquanto que devemos atentar que este processo de legitimação da medicina acadêmica foi composto por uma série de pequenos (e grandes) conflitos com práticas populares de cura. 8 A abordagem prosopográfica irá permitir elencarmos elementos que conduziram a este crescente consenso na classe médica. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 214 evolução desta ciência de forma linear, progressiva, uniforme e coerente. Muitas vezes, na prática, a medicina profissional assemelhava-se a popular e os médicos não só recomendavam como também reconheciam as virtudes terapêuticas de produtos de origem vegetal e animal (NABUCO, 1986:FERREIRA, 2003). A medicina acadêmica também fora alvo de inúmeras desconfianças, chegando a ser elemento de “humor na cultura cotidiana” (FERREIRA, 2003, p. 112). Especificamente no Rio Grande do Sul, um momento de significativo descrédito das práticas cientificamente orientadas tem lugar em 1903 quando falece Júlio de Castilhos 9 , de câncer na garganta, durante uma operação realizada em sua residência por Protásio Alves. As novas reflexões suscitadas permitiriam o inicio de uma sistematização dos elementos que oportunizam pensar a medicina sob outras nuanças. O que proponho neste ensaio é revisitar o tema da profissionalização da medicina no Rio Grande do Sul a partir de um novo enfoque metodológico, privilegiando, neste sentido, a ação daqueles engajados neste processo 10 . Buscando lanças luz a este corpo de profissionais que somente após 1928 conseguiram ver efetivadas suas reivindicações. Em tempo, ao utilizarmos o termo elite para nos referirmos a determinada parcela da classe médica no Rio Grande do Sul, fazemos menção “àqueles profissionais que parecem ocupar o topo das estruturas de distribuição de recursos” (HEINZ, 2006, p. 7). Ainda que esta noção seja pouco clara e criticada recorrentemente por sua imprecisão, compreendemos que o estudo das elites pode ser um meio para “determinar quais são os espaços e os mecanismos do poder nos diferentes tipos de sociedade” (CHARLE apud HEINZ, 2006, p. 9). Assim sendo, quando utilizamos a categoria“elite médica gaúcha”, referimo-nos àqueles profissionais que ocuparam ao longo de sua trajetória os principais postos hierárquicos no horizonte de sua profissão (Presidência do Sindicato Médico Porto-Alegrense, Direção da Faculdade de Medicina, Provedoria, cargo de Mordomo e Direção de Seção do Hospital Santa Casa de Misericórdia e Diretoria de Higiene do Estado do Rio Grande do Sul). Além dos que ocuparam estes postos, acrescentamos os nomes daqueles que, por outros canais, desempenharam significativo papel neste processo. 9 Júlio de Castilhos foi um influente político gaúcho, tendo sido presidente do estado do Rio Grande do Sul por duas vezes e fora um dos principais líderes do Partido Republicano Rio-Grandense, a principal força política naquele estado. 10 O processo de reivindicação da profissionalização de medicina no Rio Grande do Sul foi analisado por Weber (1999, 2002) e Kummer (2002). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 215 Prosopografia Conforme reforçam alguns autores, “as definições de prosopografia são múltiplas” (BULST, 2005, p. 51), mas um elemento comum a esta definições é a análise do individuo em função da totalidade do qual faz parte. Esta relação esta presente em Stone (2010) que ainda sintetiza que este “método constitui-se em estabelecer um universo a ser estudo para então investigar um conjunto de questões uniformes” (STONE, 2010, p. 115) 11 . Esta metodologia permite, portanto, renovar as respostas de algumas das questões centrais do conhecimento historiográfico: a relação sujeito e estrutura, a parte e o todo, etc. A crescente produção no âmbito das ciências humanas utilizando-se do método prosopográfico decorre de uma série de fatores como: o descrédito relacionado a métodos estatísticos globais, o interesse pela experiência individual e também a difusão da informática que possibilitou a confecção de bancos de dados. Esta metodologia é cada vez mais empregada e pode “ser considerada um método que utiliza o enfoque sociológico em pesquisa histórica, buscando revelar as características comuns de um determinado grupo social em dado momento histórico” (HEINZ, 2006, p. 9). Nesta análise especifica, a elite médica rio- grandense que desempenhou significativo papel no processo de profissionalização da medicina. De forma sintética, a prosopografia reúne dados biográficos de “um grupo de atores históricos que têm algo em comum, seja uma função, uma atividade (...), o objetivo consiste em, através do estudo singular, conhecer o singular plural” (ROY:SAINT-PIERRE, 2006, p. 204-205).Neste ponto, reside um dos problemas chaves nos trabalhos que lançam mão desta abordagem, a possibilidade da perda da dimensão coletiva da população que constituí o seu objeto. Se bem empregado, contudo, a prosopografia pode dar “sentido à ação política, ajudar a explicar a mudança ideológica e cultural, identificar a realidade social e descrever com precisão a estrutura da sociedade e o grau e a natureza dos movimentos no seu interior” (STONE, 2010, p. 116). Os papéis desempenhados por esses atores possibilitam que estes sejam pensados a partir da recuperação de sua origem regional, formação, contexto familiar de sociabilidade, o espaço de sua ação e sua função dentro de uma sociedade, bem como sua atuação na administração pública. Mas as trajetórias individuais não são o mais importante, o primordial e a grande preocupação é entender este grupo enquanto elemento coletivo. 11 Especificamente para esta análise, decorrente de seu caráter preliminar, o conjunto de questões dizia respeito a: nascimento, origens sociais, formação acadêmica, ocupação profissional, militância política e desempenho de cargos públicos e eletivos. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 216 Assim, por definição, “as pesquisas prosopográficas ignoram o qualitativo, o individual e o excepcional” (ROY:SAINT-PIERRE, 2006, p. 205). Ainda que esta contingência possa ser considerada uma limitação do método, entende-se que estes aspectos são sacrificados em benefício do quantitativo e do plural. Ainda, estas pesquisas fornecem uma contribuição para o estudo da mobilidade social. Para o desenvolvimento de uma pesquisa com esta abordagem é necessário uma consistente coleta de fontes, que podem ser de natureza bem variada 12 . Correntemente utilizam-se repertórios e dicionários biográficos, cujo principal problema, no caso da utilização destes, reside “na fiabilidade dos dados” (ROY:SAINT-PIERRE, 2006, p. 206) 13 . Faz-se oportuno, portanto, cotejar este tipo de fonte com outras de natureza memorialística ejornalística, bem como recorrer a trabalhos de origem historiográfica e utilizar-se de mais de 1 repertório biográfico. Uma vez coletada estas informações, estas são introduzidas em uma base de dados, o que leva a construção de uma nova fonte, uma metafonte, “um documento que engloba e que é mais que o conjunto de fontes biográficas examinadas” (ROY:SAINT- PIERRE, 2006, p. 209). É a constituição desta que torna possível a confrontação destes dicionários entre si, assim como a comparação entre as outras fontes, “o que permite corrigir lacunas ou imprecisões” (idem). Enfim, a prosopografia não é algo novo, o que é novo a bem da verdade seria a intensidade e o entendimento metodológico com os quais esta metodologia hoje é exercida na pesquisa histórica. A medicina profissional no Rio Grande do Sul Durante os três primeiros séculos os profissionais da medicina que atuavam no Brasil eram formados somente no exterior, e dificilmente atuavam além dos incipientes centros urbanos. Esta situação não se modificou substancialmente com a criação das primeiras faculdades de medicina no país ao longo do período imperial. A Faculdade de Medicina e Farmácia de Porto Alegre é a primeira a ser criada durante sob o regime Republicano, em uma conjuntura política regional de hegemonia do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), que 12 Para o desenvolvimento desta pesquisa utilizou-se como fonte Martins (1978), Stephanou (1999), Weber (1999), Kummer (2002), biografias disponíveis no Museu de história da Medicina do Rio Grande do Sul (http://www.muhm.org.br) e diversos números do jornal “A Federação” entre os anos 1891 e 1926 (http://hemerotecadigital.bn.br/). A lista dos sujeitos que compõem o grupo analisado encontram-se em anexo. 13 Estas fontes, como quaisquer outras, não estão isentas de contradições e erros. Geralmente estes dicionários biográficos copiam uns aos outros, mas, por possuírem objetivos e por serem construídos em momentos históricos específicos, apresentam algumas diferenças. Uma possibilidade de minimizar o problema das contradições reside na construção de uma metafonte, conforme segue na exposição. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 217 governou este estado durante grande parte da Primeira República, inspirados no positivismo comtiano. Todavia, estes médicos formados conviviam com outros profissionais que mobilizavam as mais diversas práticas de cura, em um estado onde era permitido o exercício livre das profissões. Durante décadas estes profissionais lutaram pelo reconhecimento de sua formação acadêmica, alcançando em 1928, logo após a ascensão de Getúlio Vargas à Presidência do estado, a concretização de suas reivindicações. Portanto, “foi necessário uma mudança de conjuntura para que as possibilidades de regulamentação da profissão se efetivassem” (WEBER, 2002, p. 191). Foram utilizadas diferentes estratégias por estes profissionais ao longo desta lenta conquista de reconhecimento, dentre elas, organização de alianças políticas, realização de encontros médicos e a organização de sindicatos. Da mesma forma que construíam o discurso médico buscavam a desconstrução de outros discursos 14 que passaram a ser tachados de “charlatões”. A preocupação deste trabalho é, analisando os principais atoresneste processo, examinar os traços comuns desses grupo. Tendo como horizonte que neste período a medicina não possuía autonomia frente a ingerências políticas e econômicas 15 . Nesse sentido, a prosopografia foi um útil instrumento de visualização das causalidades e dos condicionantes deste grupo. As categorias incluídas na análise seguem em parte a “tradição” de pesquisas deste tipo, como ano e cidade de nascimento, origens sociais, acrescidas de outras características que, no decorrer da pesquisas, percebi como oportunas, como: filiação política e militância, atuação profissional, profissão paterna, desempenho de mandatos eletivos. Assim sendo, sobre a província e cidade de nascimento dos 23 profissionais analisados obtivemos os seguintes dados 16 : Dados sobre a Província e a naturalidade da elite médica Rio-grandense Província Nº Cidade Nº RS 19 Porto Alegre 12 14 O discurso proferido por Mário Totta é significativo no tocante ao ataque aos charlatões: “como era de prever, à sombra de semelhante licenciosidade, campeia no Rio Grande, com grave injúria aos nossos foros de cultura e aos nossos sentimentos de altruísmo, uma insaciável malta de aventureiros provindos de todas as partes do mundo e de todas as camadas sociais, inclusive as mais ralés, e aqui, a luz meridiana e com revoltante impudor de ostentação, o bando embusteiro abre consultórios, instala salas de cirurgias, levanta casas de saúde, anuncia a cura de males insanáveis, forra-se de títulos que não possui e comete as mais nefandas monstruosidades” (TOTTA, 1931, p. 5) 15 Poderíamos questionar, nesse sentido, se a medicina, ou a ciência de forma mais ampla, possuiu autonomia em algum momento histórico. 16 Há ainda um profissional natural de Montevidéu, Uruguai, que não foi alocado na tabela que segue. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 218 Quaraí 1 Cachoeira 1 Taquari 1 Rio Pardo 1 Pelotas 1 Alegrete 1 Cruz Alta 1 BA 2 Salvador 1 Valencia 1 MT 1 Cuiabá 1 Podemos perceber que a maioria dos médicos nasceu no Rio Grande do Sul (cerca de 83%). Ponderando que certa parte dos indivíduos analisados participou da fundação da Faculdade de Medicina e Farmácia de Porto Alegre, identificamos que esta instituição foi um empreendimento gaúcho, assim como a busca pelo reconhecimento desta profissão no estado. Dentre as cidades natais destaca-se Porto Alegre, onde nasceram 12 indivíduos, seguida de Quaraí, Cachoeira, Taquari, Rio Pardo, Pelotas, Alegrete, Cruz Alta, Salvador, Valencia, Cuiabá e Montevidéu, que registram 1 nascimento cada. Porto Alegre desde a década de 1850 assistia ao desenvolvimento de um processo de urbanização, ainda que um lento processo. Neste período identificamos a criação e o crescimento da burocracia estatal e de diversas instituições características da cidade, como o Teatro São Pedro, a Usina do Gasômetro e a Companhia Carris. Igualmente, desenvolvia-se nessa cidade intensa atividade comercial, resultado de sua posição geográfica e política privilegiada. A cidade constituiu-se assim como o principal centro administrativo, comercial e industrial do estado. A questão do comércio citadino e a prestação de serviços burocráticos é um importante dado, pois ao analisarmos os dados referentes a ocupação paterna encontraremos que 44% tinha como principal fonte de renda o comércio desenvolvido na área urbana. Outros 28% desempenhavam cargos na administração pública, ainda, registramos 1 agente de viagens, 1 marceneiro, 2 fazendeiros, 1 despachante, 1 oficial militar e somente 1 médico 17 . 17 O exercício de medicina por diferentes gerações familiares não é preponderante na primeira república, mas será cada vez mais frequente. Sobre os filhos dos atores analisados, percebemos que em 32% das famílias há um médico na geração imediatamente posterior. O caso de Jacintho Gomes Godoy é ilustrativo nesse sentido, 3 de seus 6 filhos formaram-se médicos, 5 de seus 11 netos também e atualmente, 1 bisneta cursa a residência em medicina. Talvez este novo cenário se explique pela medicina já possuir neste momento, mecanismos de institucionalização mais desenvolvidos e maior prestígio. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 219 Podemos pensar que a formação médica acadêmica fosse uma novidade no núcleo familiar, vinculada ao fato dos cargos desempenhados pelos pais não necessitarem de formação, excetuando-se o oficial militar que cursou a Academia Militar. De modo geral, estes profissionais foram os primeiros a concluírem a formação acadêmica em suas famílias. De maneira ainda preliminar, identificamos que os indivíduos analisados provinham de setores médios. Algumas famílias desenvolviam atividades que permitiam investir o excedente na educação dos filhos, outras famílias, pelo que percebemos, conseguiam com dificuldade custear estes estudos. As despesas com livros, vestuários, transportes e moradia, por vezes, constituíam um verdadeiro sacrifício. Mas o que justificava este investimento? Na Porto Alegre dos fins do século XIX muitos jovens disputavam cargos públicos, estabelecendo relações de apadrinhamento com políticos locais ou advogando possuírem saberes sobre determinadas atividades profissionais. Mesmo sem a exigência legal, parece que aqueles que detivessem diplomas universitário possuiriam maiores chances de ascensão e distinção social e ganhos econômicos. Neste quadro, emerge outro questionamento, por que a escolha pela medicina? Tendo no horizonte desta explanação as considerações de Grijó (2005) sobre a escolha pelo cursode direito, uma opção tomada prioritariamente por jovens da elite republicana na busca de capacitação e da confirmação de suas posições privilegiadas e esclarecida, ratificando posições herdadas. A escolha pela medicina foi mais comum com jovens das camadas médias. Ainda que o diploma médico não garantisse postos estatais de maior visibilidades, garantia acesso àquela porção de cargos vinculados à área da saúde 18 . A obtenção destes cargos parece estar sobremaneira subordinada a conjuntura política. As vinculações ao PRR, constantes nos acadêmicos do direito são mais raras entre os estudantes de medicina. Encontramos somente três que militaram por este partido ao longo de suas trajetórias, sendo que desses, dois ocuparam cargos de mandato eletivo. Acreditamos que o elemento “liberdade para atuação profissional” foi um elemento de conflito que afastou muitos acadêmicos do PRR. Ainda devemos ponderar a presença de indivíduos de outras províncias e até mesmo de outra nacionalidade. Um elemento que explica a presença de dois baianos é a existência de uma academia de medicina no seu estado natal 19 e uma possível migração com o objetivo de 18 Dentre os possíveis cargos destacamos aqueles da Diretoria de Higiene, Higiene Escolar, Higiene Hospitalar, Estatística demográfica e Sanitária, Higiene Alimentar, Saneamento, Farmácia Pública e Serviço de Assistência Pública. 19 É oportuno mencionar que os dois indivíduos naturais do estado da Bahia formaram-se na Faculdade de Medicina daqueles estado. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 220 evitar a concorrência. Há ainda um natural do Mato Grosso, cujo pai migrara para o Rio Grande do Sul anteriormente para cursar a Academia militar. Podemos analisar ainda, em qual faculdade estes indivíduos diplomaram-se em medicina, conforme segue na tabela abaixo: Local de diplomação da elite médica gaúcha na Primeira República Local de diplomação Nº Fac. de Medicina do Rio de Janeiro 8 Fac. de Medicina da Bahia 2 Fac. de Medicina e Farmácia de P. Alegre 13 A presença de significativo número de indivíduos formados na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro restringe-se àqueles que colaram grau até 1900, o mesmo se aplica para os formados na Bahia. Uma vez em funcionamento a Faculdade localizada na capital gaúcha, o grupo predominante que irá compor o quadro docente, os de representação do grupo médico no estado e os principais níveis hierárquicos desta profissão, serão oriundos desta instituição. Podemos examinar neste sentido que, uma primeira geração de médicos com formação nas duas únicas Faculdades de Medicina que existiam no país conduziram a fundação de uma primeira Faculdade de Medicina no Rio Grande do Sul. Tal feito articula-se aos preceitos que tiveram contato durante a sua formação: a criação de novas unidades de ensino promoveria a constituição de um mais numeroso corpo de profissionais, tornando mais sólido o discurso desta classe médica 20 . Desta forma, se fortalecia a esfera médica, cujo posterior reconhecimento se passará a reivindicar. É interessante notar que formados em Porto Alegre compunham a maior parte do quadro docente desta mesma instituição. Isto sugere que as relações pessoais eram um importante fator para a indicação de candidatos, e mais, que a relação médico-professor (ou mestre-discípulo) constituíam uma importante forma de recrutamento e ingresso na elite médica. Além de atividades docentes, a Santa Casa de Misericórdia configurou-se como um importante espaço de atuação profissional, bem como um local estratégico no processo de 20 Certamente não sugerimos que todos os indivíduos que participaram da fundação da Faculdade de Medicina de Porto Alegre constituíam um grupo significativamente unido, percorrendo uma meta, uma tarefa quase messiânica. Todavia, é significativo que entre o 1º diplomado deste grupo e o último haja uma diferença de 8 anos. Alguns diplomaram-se no mesmo ano, outros no imediatamente posterior, o que parece razoável é que estes atores compartilhavam de uma mesma cultura médica e de laço pessoais relativamente estruturados. E sem dúvida, a fundação de uma Faculdade foi uma possibilidade de ascensão profissional impar na vida destes sujeitos. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 221 consolidação da profissionalização médica. Do grupo analisado, 10 trabalharam na instituição, sendo que destes, 4 ocuparam o cargo de Provedor da instituição, e 2 de mordomo (um de mordomo dos expostos e outro de mordomo da farmácia), e 4 o de chefe de sessão. Este ambiente familiar abrigava as enfermarias da Faculdade 21 e eram os formados por esta instituição que compunham significativamente o quadro em atividade neste hospital 22 . É interessante perceber que por vezes no período analisado os médico desfrutavam de uma posição bastante interessante. Por exemplo, em 1907 Borges de Medeiros indica como candidato à presidência do estado Carlos Barbosa, um atuante médico, formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Compunha a oposição, na dissidência republicana, Fernando Abott, também médico, que já havia anteriormente ocupado este cargo. Todavia, a presença de dois médicos concorrendo ao governo do estado não expressa o poder desta classe, condizendo com a perspectiva positivista, as decisões estavam subordinadas ao chefe do partido, avesso a ideia da profissionalização. Contudo, dos indivíduos analisados 4 militaram pelo PRR, um pelo PL e outro pelo PRL. A política não parece ter sido uma esfera em disputa por este grupo de profissionais uma vez que possuíam, provavelmente, outros meios para verem suas reivindicações atendida. Foi antes de tudo um elemento de conflito e divergência, sobretudo por conta da questão da liberdade profissional. É oportuno, nesse sentido destacar a presença de 1/3 dos atores analisados na Academia Rio Grandense de Letras, fundada em 1901. Havia ainda dois que participavam da Sociedade Literária José de Alencar, criada no ano de 1903, além da participação em outras organizações de cunho cultural. O envolvimento médico na esfera cultural possibilitava a apreensão de códigos socialmente valorizados no período analisado. Códigos que, se por um lado o afastavam do restante da população brasileira, ajudavam a solidificar as relações entre os indivíduos que compunham uma certa parte da sociedade, a elite. Assim, a participação e a produção cultural eram mais uma das atividades que levavam aos médicos a serem visto como socialmente superiores, dotando-os de prestígios e cristalizando uma imagem de homens cultos. A aceitação por parte da elite da presença deste profissionais indica a existência de canais de contato e de possibilidades de escuta de suas reivindicações. Outro importante canal 21 As aulas práticas foram ministradas na Santa Casa até a construção do hospital de Clínicas na década de 1970. 22 As enfermarias eram espaço fechados, sob controle do chefe de sessão, cargo “herdado”, ocupado inicialmente por um docente, posteriormente por seu discípulo. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 222 era através do atendimento a estes clientes refinados, que construíam sólidas relações com seus médicos. Últimas palavras Enfim, este trabalho é uma tentativa inicial da aplicação do método prosopográfico a um determinado grupo de profissionais que concebemos compor a elite médica no Rio Grande do Sul. A escolha pela metodologia da prosopografia nos permite a construção de uma biografia coletiva dos indivíduos. A confecção de um perfil destes atores sociais nos leva a observação da existência de um padrão entre eles, mas o importante é que nos auxilia na resolução da problemática proposta, qual seja, analisando o grupo determinado, perceber canais de sociabilidade e possibilidades de reivindicarem a profissionalização da medicina. No contexto analisado, a medicina iniciava um processo em vistas de sua consolidação, os indivíduos procuravam por outros meios, participando de sociedades e estabelecendo redes de sociabilidade, construírem bases para a legitimação da medicina. Na década de 1920, bases mais sólidas somadas a mudanças conjunturais permitiram a concretização das reivindicações deste grupo. Referências Bibliográficas BULST, Neithard. Sobre o objeto e o método da prosopografia. In: Revista Polítéia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, vol. 5, nº 1, 2005, p. 49-50 CHALHOUB, Sidney et al. Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo, Cia da Letras, 1996. FERREIRA, Luiz Otávio. Medicina impopular: ciência médica e medicina popular nas páginas dos periódicos científicos (1830-1840). In: CHALHOUB, Sidney et al. Artes e ofícios de curar no Brasil. 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RS FMPOA FMPOA, Santa Casa GOMES, Martim 1884 Quarai FMPOA FMPOA VIANA, Raimundo 1882 Porto Alegre FMPOA (farm) FMPOA e Liga de Higiene Mental FMRJ BLESSMAN, Luis 1891 Alegrete FMPOA FMPOA e Santa Casa MOREIRA, Raul 1891 Porto Alegre FMPOA FMPOA e Santa Casa NONOHAY, Ulisses 1882 Porto Alegre FMPOA FMPOA PILLA, Raul 1892 Porto Alegre FMPOA FMPOA SIMÕES, Franscisco 1875 Pelotas FMRJ Santa Casa e Beneficência Portuguesa TOTTA, Mário 1874 Porto Alegre FMPOA FMPOA, Santa Casa LEÃO, Sebastião 1866 Porto Alegre FMRJ FMPOA, Santa Casa e legista DE BRITO, Vitor 1856 Valencia BA FMBA Casa de Saúde Porto Alegrense JOSETTI, João Adolfo 1860 Cuiabá FMRJ Santa Casa, FMPOA VILLANOVA, Rodrigo de Azambuja 1844 Taquari FMRJ Guarda Nacional NABUCO, Carlos Frederico ? Bahia FMBA FMPOA, Santa Casa OLIVEIRA, Olinto de 1865 Porto Alegre FMRJ FMPOA Gomes, Jacintho 1883 Cachoeira FMPOA Santa Casa, HPSP e Diretoria de Assistência aos alienados ANNES DIAS, Heitor 1884 Cruz Alta FMPOA (farm) FMPOA, Faculdade de Direito e FMRJ FMPOA SOUZA, Otávio de 1875 Porto Alegre FMRJ Corpo militar do RS e FMPOA YGARTUA, Florêncio 1892 Montevidéu FMPOA (farm) FMPOA FMPOA RIBEIRO, Hugo 1894 Porto Alegre FMPOA Diretoria de Higiene RS e FMPOA Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 225 NINA RODRIGUES E A PSICOLOGIA DAS MULTIDÕES Filipe Pinto Monteiro Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Agência financiadora: Fiocruz Email: [email protected] Introdução Médico, legista e literato, Raymundo Nina Rodrigues tornou-se conhecido nos círculos científicos brasileiros por seus trabalhos mais notórios como Os africanos no Brasil, Os mestiços brasileiros, As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil e O animismo fetichista dos negros baianos. Sua produção intelectual massiva, concentrada em duas décadas de atividade (1885-1905), entretanto, sugere que o médico maranhense investiu em distintas áreas do conhecimento, tornando-se, assim, “patrono” de tantas “escolas” quanto desejavam seus féis e empolgados seguidores. Nina, talvez se possa afirmar, é o melhor exemplo do “intelectual polivalente”, espécie típica que, segundo Mariza Corrêa, sobreviveu até os anos 1930, movendo-se entre as fronteiras ainda maleáveis de indistintas áreas de atividade intelectual na virada do século XIX para o XX. (CORRÊA, 1998: 17) A precocidade dos estudos de autoria do médico maranhense relacionados ao campo da psicologia das multidões no Brasil é evidência que corrobora esta hipótese. Algo raramente reconhecido, esse aspecto foi apontado, pela primeira vez por Arthur Ramos no prefácio do livro As coletividades anormais, coletânea de textos de Nina Rodrigues, reunida pelo primeiro em 1939: Nina Rodrigues, já apontado como o iniciador dos estudos de etnografia e psicologia social do negro, no Brasil, já conhecido como estudioso de nossos problemas de raça e de cultura, aclamado como uma das autoridades em criminologia e ciência penal.... talvez não fosse lembrado, pela nossa pobre ciência nacional, tão esquecida dos precursores, como um dos pioneiros do movimento da psicologia coletiva. No entanto o seu nome fora apontado pelos estudiosos europeus, como um dos fundadores da psicologia das multidões, um dos criadores da psicologia gregária, normal e patológica, ao lado dos Rossi, dos Sighele, dos Tarde, dos Le Bon, dos A. Marie... Na história das epidemias religiosas, o seu nome é citação obrigatória, pois foi ele um dos primeiros a realizar observações e comentários científicos sobre fenômenos brasileiros de psicopatologia gregária, trazendo assim Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 226 contribuições fundamentais à nova ciência em elaboração pelos teóricos europeus (Ramos, 2006: 10). Por incrível que pareça, de lá pra cá, pouca coisa mudou no sentido de um reconhecimento dessa primazia de Nina como um dos fundadores da também chamada loucura das massas no Brasil. Os mais recentes estudos sobre seus escritos permanecem focados na sua valiosa contribuição para a etnografia das religiosidades afro-brasileiras e para os estudos antropológico-criminais e médico-legais. Corrêa, em uma resenha bibliográfica de 2006, intitulada O livros esquecidos de Nina Rodrigues, denuncia tenazmente o que ela classifica de “um escândalo epistemológico de grandes proporções na história das ciências sociais no Brasil”. Ela refere-se ao quase completo desconhecimento de alguns textos de Nina, entre artigos publicados apenas em francês e outros tantos esquecidos nas gazetas e folhetins médicos, além de importantes livros, que há muito não recebem novas e atualizadas edições, nem mesmo reimpressões. Entre eles As collectividades anormais, um dos mais significativos para nosso estudo. Diz a pesquisadora: (...) um dos autores obrigatoriamente citado quando se trata de analisar as chamadas relações afro-brasileiras no país, é também o estranho caso de um pensador famoso cuja obra é praticamente desconhecida de grande parte dos pesquisadores brasileiros, e quase inacessível a eles, não só aos que se interessam por essas relações como também àqueles que se interessam pela história do sanitarismo, da saúde pública, dos códigos civil e penal, ou pela história da loucura no nosso país (CORRÊA, 2006: 60-62). Preocupado com as manifestações coletivas de “religiosidade mórbida” que irromperam na virada do século, Nina tinha em mente múltiplos projetos de pesquisa, muitos dos quais nunca foram concretizados. A reunião de seus trabalhos sobre coletividades humanas envolvidas em algum tipo de acesso psicopatológico foi um deles - o que só se tornou uma realidade pelas mãos de Arthur Ramos. Nina estava interessado especialmente nas histerias populares, nos fanatismos religiosos, nas exaltações delirantes, fenômenos que forneciam material para pensar as estruturas do país, os alicerces da nação, enfim, refletir sobre “as nossas coisas”. Ana Maria Galdini Raimundo Oda foi uma das poucas que escreveu algumas linhas sobre os estudos do pesquisador maranhense relacionados à psicologia coletiva. Em sua tese, por exemplo, ela aponta para o fato dele criticar autores estrangeiros que não davam o devido valor da influencia da loucura no funcionamento das multidões, revelando a intensa Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 227 familiaridade do médico com a literatura especializada da época. Ao analisar um texto de Nina sobre uma epidemia histérica que ocorreu em Salvador, em 1882, Oda ressalta que, diferentemente da maioria dos médicos de sua época, ele deu uma contribuição deveras original ao caso, pois foi o único que formulou a pergunta-chave para o entendimento daquele fenômeno: “como manifestações histéricas individuais teriam se propagado desta maneira, que condições haviam permitido que se tornassem coletivas ou epidêmicas?” (ODA, 2003: 280-301). Os Meneurs, os Menés e o “estado de Multidão” Nina Rodrigues produziu três estudos de singular importância para o campo da psicologia das massas no Brasil. O primeiro é relativo a uma epidemia coletiva que ocorreu em Itapagipe, subúrbio de Salvador, em 1882, classificada como um surto de coreomania (RODRIGUES, 1890). O segundo se refere aos eventos extraordinários e violentos que ocorreram na localidade de Pedra Bonita, na Comarca de Flores, interior de Pernambuco, entre 1836 e 1838 (RODRIGUES, 1901). E o terceiro é um extenso trabalho sobre Antônio Conselheiro e loucura religiosa de Canudos (RODRIGUES, 1897). Os três trabalhos fazem parte da coleção de textos de Nina reunidos por Arthur Ramos no livro As coletividades anormais, em 1939 e reimpressa em 2006. Em comum, os três fenômenos envolveram coletividades em algum tipo de furor religioso, apresentando sintomas de histeria e delírios mórbidos. Nestes trabalhos é possível identificar, por um lado, uma coletividade enferma, envolvida em algum tipo de manifestação marcada por um componente religioso, e por outro, uma figura individual, um personagem que precipita e estimula, direta ou indiretamente, o “delírio” coletivo. No caso de Canudos, Antônio Conselheiro é o Bom Jesus, homem de poderes especiais e redentores e em Pedra Bonita, João Santos e, depois, João Ferreira, são os profetas que anunciam a chegada do reino de D. Sebastião. Vale notar que mesmo quando tal não ocorre – na epidemia coreomanica de Itapagipe essa figura aglutinadora não é identificada – há uma preocupação dos autores em pontuar a falta dessa informação essencial e, consequentemente, o possível comprometimento do diagnóstico. Esse posicionamento tem alguma explicação no conjunto de leituras que Nina Rodrigues teve acesso ao estudar o tema da loucura das multidões. Seu trabalho o levou a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 228 considerar as relações intrincadas entre o individual e o coletivo ou, de acordo com o vernáculo cientifico da época, entre o meneur e os menés, entre o íncubo e os súcubos, entre o ativo e os passivos. O forçou a refletir sobre as formas como as atitudes e ações da massa em furor moldam e são moldadas pelos traços individuais, particulares, deste ou daquele considerado “profeta”, “messias”, etc. No individuo, diz Nina, “as fronteiras da loucura são facilmente transpostas pela violência das paixões e das emoções” e nos atos praticados pela multidão, “descobre-se também uma influência decididamente patológica” (RODRIGUES, 2006: 58). A partir de variadas obras que adquiriu aqui e no exterior foi possível para Nina estabelecer alguns padrões de comportamento dessas coletividades. Ele parte da obra clássica La folie à deux ou folie comunique, de Charles Lasègue e Jules Falret, que descreve a chamada “loucura a dois”. Esta seria a forma “embrionária por excelência das manifestações em massa”, um tipo de empreendimento conjunto simples, típico, exemplar e, portanto, de fácil demonstração. Nina viu na parceria entre dois indivíduos que partilham a mesma moléstia mental (ou fragmentos dela), o primeiro degrau de um fenômeno progressivo cujo resultado, respeitados certos condicionantes, é a loucura coletiva (LASÈGUE e FALRET, 1877: 321-355). Havia uma suspeita de que a associação entre alienados era uma realidade, sobretudo entre indivíduos atingidos pela paranoia persecutória ou religiosa que “chegam a exercer sua influência sugestiva em outros alienados, induzindo-os a empreendimentos comuns” (RODRIGUES, 2006: 60). À época havia provas incontestáveis de que “a loucura é capaz de se comunicar, não somente de alienado a são, mas também de alienado a alienado” (RODRIGUES, 2006: 60). Esta última forma de associação, embora rara, “chamada no estrangeiro de loucura transformada ou induzida” foi observada por Evariste Jean Bruno Marandon de Montyel na França e por outros especialistas de renome da área da psicologia na América do Norte, na Inglaterra e na Alemanha (MONTYEL, 1880; Idem, 1894). Segundo Nina, havia uma corrente da psicologia coletiva, capitaneada por Gabriel Tarde e Scipio Sighele, que não reconhecia a capacidade de associação dos alienados, “considerando o isolamento em que eles vivem como a característica da loucura” (RODRIGUES, 2006: 59). Para Sighele, o louco tem por caráter especifico não se unir a outrem, permanecendo perdido em seus sonhos, distanciado e separado do mundo e “se a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 229 atmosfera que o rodeia tem poder de determinar nele sensações, estas não são nunca de natureza a produzir uma relação duradoura qualquer com outras pessoas” (SIGHELE, 1897). Esta vertente considera que uma situação em que os loucos unem-se uns aos outros para atingirem mais facilmente um fim, “é uma ação que lhes é desconhecida”. A não-associação é tão constante e absoluta que constitui, isso sim, “uma das regras mais seguras para distinguir o louco (...) do criminoso nato, do louco moral, que, ao contrário, se associa facilmente com seus companheiros.” Sighele, portanto, acredita na premissa de que na chamada “loucura a dois” há no máximo o contágio de um “delírio qualquer que não conduz os alienados a uma ação comum” (SIGHELE, 1897). O que vale é a expressão cunhada por Tarde: “a loucura é, em essência, o isolante da alma” (TARDE, 1890). Nina repudia veementemente esta constatação: “toda a literatura psiquiátrica protesta altamente contra este erro”. A significação dada por Sighele à impossibilidade de associação entre alienados, inversamente ao que ocorre com o par suicida e o par criminoso, por exemplo, “é por consequência inadmissível”. (RODRIGUES, 2006: 60) Assim sendo, não haveria razão para se levar em consideração qualquer regra que admita apenas o estado de isolamento dos loucos e sua incapacidade de empreendimentos em comum. Mas se os loucos são capazes de se associar entre si, seria possível que também o fizessem com pessoas consideradas sãs? A resposta a esta pergunta-chave poderia solucionar, quem sabe, as principais questões que envolvem multidões em acesso psicopatológico. Nina vai demonstrar que considera inteiramente possível este tipo de vínculo, essencial para a formação das coletividades. Nina é favorável à tese de que um ou mais indivíduos de caráter pacífico, fraco e receptivo, podem ser facilmente influenciados e manipulados por agentes alienadores. Uma pessoa, no controle de suas faculdades mentais, mas sujeita ao contágio através de um parceiro louco, denunciaria uma situação de loucura imposta. Neste caso especifico, portanto, Nina sustenta a tese “largamente desenvolvida” de que os súcubos, isto é, os receptores passivos, ao contrário dos íncubos, os indutores ativos, “não são verdadeiros alienados”, pois parecem não haver “transposto os limites da loucura”, ainda que não apresentem um estado mental inteiramente normal para os padrões da época (RODRIGUES, 2006: 74). As duas principais formas de loucura a dois que abordamos até o momento (entre alienados e, agora, entre alienado e são), inserem-se, assim, no seguinte quadro, elaborado por Nina: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 230 1º Entre dois indivíduos sãos e normais; é a coppia sana, o par são de Sighele; 2º Entre dois indivíduos sãos, porém anormais; é o par criminoso, o par suicida, etc.; 3º Entre o alienado que tem aparências de razão e o indivíduo são, mas de inteligência limitada, que se torna apenas um convencido; 4º Entre o indivíduo alienado e o indivíduo são, mas predisposto e que se torna alienado; 5º Enfim, entre dois alienados. Nina afirma que imediatamente após a loucura a dois estão os casos de contágio doméstico ou familiar, onde um delírio pode alcançar mais de cinco pessoas. Segundo os critérios de Lasegue e Falret, há descrições de casos classificados como folie à trois, à quatre e até folie en famille. No entanto, Nina aponta que dependendo do tamanho do grupo, é possível atestar uma situação endêmica, mas que conservaria, ainda, as características principais da loucura a dois “pois que a natureza da herança mental leva a crer tratar-se de indivíduos atingidos da mesma predisposição mórbida” (RODRIGUES, 2006: 74). A partir daí, há um estagio superior a este, mais complexo, que envolve situações epidêmicas de pequena escala, assim definido pelo autor: É o que representa as pequenas epidemias que explodem nas corporações religiosas, nos claustros, onde a aparente lucidez das pessoas atingidas pelo contágio alterna com francas manifestações de histeria, o que põe fora de dúvida a natureza mórbida dos acidentes. As condições de meio, a vida em comum, onde o espírito místico é continuamente alimentado pelas práticas religiosas de todos os dias, desenvolvem aqui, no mais alto grau, as predisposições nervosas dos reclusos, representando a neurose, assim preparada, os laços que no contágio doméstico eram representados por uma herança vesânica similar (RODRIGUES, 2006: 76). Desses surtos menores de “claustros” e “corporações” religiosas há um salto para as grandes epidemias de loucura que comportariam um volume muito superior de pessoas envolvidas. Note que no quadro montado até o momento, a partir do delírio a dois há o estabelecimento de um vinculo entre uma dupla que progride para um contágio doméstico ou familiar. Com a existência de um meio fértil em práticas religiosas e misticismo descontrolado, observa-se a ocorrência de epidemias localizadas. Os grandes fenômenos de massa são resultado da progressiva evolução desses surtos circunscritos dado que “pela sua Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 231 composição reproduzem rigorosamente as grandes loucuras coletivas” (RODRIGUES, 2006: 77). Porém, condição necessária para a explosão destas últimas é a conformação do estado de multidão, termo cunhado por Nina a partir da obra de Gustave Le Bon. Com Le Bon a palavra multidão adquiriu significação particular nos novos estudos de psicologia coletiva (LE BON, 1896). Tornou-se, fundamentalmente, um termo genérico para identificar agrupamentos humanos homogêneos e heterogêneos. Não se trata, como talvez pense o senso comum, de uma simples reunião de pessoas. Nina Rodrigues afirma: A multidão é, sobretudo, uma associação psicológica. É na aquisição de uma individualidade psíquica própria, diferente da constituição mental de cada uma das partes componentes, que reside a característica da multidão. Nela desaparecem as diferenças, as desigualdades, as individualidades, para a formação de uma unidade psicológica onde domina o caráter inconstante e impulsivo dos primitivos (RODRIGUES, 2006: 62). Para o estudioso maranhense, foi em referencia a um estado mental agudo das coletividades que se estabeleceu o uso do termo multidão, “e que se poderia chamar de preferência estado de multidão”. Esta condição especial devia manifestar-se com frequência nos povos primitivos, caracterizada por uma “exaltação passional coletiva onde desaparece o controle da vida cerebral, e com ele, a personalidade consciente e o discernimento”, define Nina (RODRIGUES, 2006: 62 e 63). Para a consolidação deste estado mental coletivo, uma preparação prévia da multidão seja por causas distantes, ligadas, sobretudo, à herança étnica e racial, seja por causas próximas, como uma excitação passional do momento, tal como define Le Bon, se faz necessário. E nada mais poderoso e sugestivo do que uma poderosa causa próxima, capaz de explorar certas condições sentimentais e psicológicas do momento, como um “hábil meneur, advogado de talento, orador consumado”. Diz Nina: O meneur não é mais, em suma, do que uma poderosa causa próxima, quer seja o catequizante, o verdadeiro chefe, o diretor ostensivo da multidão, quer seja o diretor inconsciente representado pelos mais exaltados e conseqüentemente pelos mais sensíveis às sugestões ambientes anônimas (RODRIGUES, 2006: 64). O testemunho do Dr. Paul Garnier no terceiro Congresso de Antropologia Criminal, reunido em Bruxelas em 1893, parece confirmar as suspeitas de Nina sobre a participação Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 232 ativa de alienados no comando e direção de ajuntamentos tumultuosos – o que leva a suspeita de que fossem capazes de estabelecer algum tipo de comunicação com pessoas sãs. Chamado a examinar certo numero de indivíduos que desempenharam papéis preponderantes em levantes ou insurreições, diz Garnier, citado por Nina: Não foi sem alguma surpresa que verifiquei obedecer a multidão a verdadeiros insensatos que, mais tarde, vão acabar num asilo de alienados, visto que, tendo voltado a calma aos espíritos, sua exaltação explode denunciando-se muito facilmente. Um acontecimento que provoca uma emoção profunda numa nação é como o toque de corneta que reúne apressadamente o exército dos desequilibrados. São os mais excitados dentre eles – muitas vezes verdadeiros delirantes – que vão fascinar a multidão por seus propósitos inflamados, e ei-los ali à cabeça do movimento (GARNIER, 1893: 377). Para Nina é importante atentar para o desequilíbrio mental que se produz “freqüentemente nos meneurs de multidões” que, nas palavras de Le Bon, se recrutam “entre esses neurosados, esses excitados, esses semiloucos que rondam as bordas da loucura” (LE BON, 1896:105). Através dessa figura única que resume em si características tão especiais, Nina tem por meta aprofundar o papel da verdadeira loucura “em um grande número de epidemias psíquicas”. O distinguido professor maranhense, entretanto, deixa claro que não pretende tratar de temas já abordados pela bibliografia cientifica que trata das grandes revoluções politicas e sociais e sim, limitar-se “aos campos onde se exerce a clínica mental”. Seria mesmo possível, pergunta-se Nina, que o estado de multidão, gerado a partir das atitudes e ações desses meneurs, “provoque uma manifestação de loucura transitória entre indivíduos normais predispostos por seu temperamento?”. De acordo com suas leituras, a violência das paixões humanas pode provocar um verdadeiro “estado delirante transitório”, durante o qual a pessoa perde todo e qualquer discernimento e consciência de seus atos. Em sua opinião, àquela altura, psicólogos e alienistas estariam de acordo em “reconhecerem a facilidade com que as emoções violentas se transformam em verdadeiros estados mórbidos” (RODRIGUES, 2006: 68). O estudioso Richard von Krafft-Ebing estudou com “cuidado especial” as loucuras transitórias e segundo Nina, suas analises assegurariam que os processos emotivos podem atingir uma intensidade fora do normal, exigindo um tempo considerável para desaparecerem por completo. São, portanto, emoções essencialmente patológicas, onde as reações motoras dos indivíduos deixam de ter o caráter de atos voluntários. Nas palavras de Krafft-Ebing, não Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 233 se trataria rigorosamente de “emoções”, mas de um “distúrbio mental transitório provocado pelo choque emotivo” (KRAFFT-EBING, 1897), uma patologia que poderia durar horas ou até dias, como também constatou Antoine Ritti (RITTI, 1880). Nesta perspectiva, a multidão, quando arrastada pela sugestão do chefe e dominada por alguma forma de loucura, embora transitória, é capaz de cometer ações inconsequentes, reproduzindo a paixão mórbida, o delírio de que estava também possuído o meneur, “da mesma sorte que o hipnotizador comunica ao seu paciente os sentimentos que o animam” (RODRIGUES, 2006: 96). A comunicação, em geral, é satisfatoriamente estabelecida pela emoção e a transmissão operada por gestos, palavras e atitudes “audaciosas”. Cabe apontar com acuidade, como diz Nina, que o que impele os menés a todo tipo de exageros não é unicamente essa paixão pura e simplesmente. Mas sim, “a transformação que ela sofreu no meio incandescente onde se agitava a multidão, cuja cólera se transformou em um verdadeiro estado delirante” (RODRIGUES, 2006: 96). Théodule Armand Ribot certa vez escreveu que a cólera quando não produz mal para o individuo, nem para os outros, é algo normal e até útil, já que proveria o homem de algum instinto de defesa e de represálias contra inimigos. No entanto, é preciso reconhecer, diz Ribot, que “o campo da cólera normal é muito restrito e nenhuma outra emoção se torna mais rapidamente mórbida” (RIBOT, 1895). Com base nessas assertivas, diz Nina: Compreende-se assim que a intensidade das emoções, exagerada pelo crescimento das aglomerações e pela repercussão sugestiva dos sentimentos que dominam a multidão, e que se produz nos meneurs, seja suficiente para transformar a cólera dos chefes de multidão em um estado francamente patológico (RODRIGUES, 2006: 69). Suprimido o que ele chama de “controle cerebral e consciente”, em situações de epidemias coletivas, produzem-se manifestações mórbidas entre os menés que correspondem a tipos variados de patologia. Chegado, então, ao cúmulo do delírio e da agitação, o meneur: (...) perde esse poder discricionário que o hipnotizador conserva sobre seu paciente, não exercendo mais do que o papel de simples diretor da multidão, papel que lhe pode ser retirado por uma circunstância fortuita pelo mais simples e mais insignificante acontecimento, contanto que no momento desejado ele esteja ou pareça estar de acordo com as tendências da multidão (RODRIGUES, 2006: 97). Nina Rodrigues aponta para o fato de que muitos médicos que se ocuparam do estudo de fenômenos coletivos afirmaram que a loucura das multidões pode tomar variadas formas: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 234 delírio de perseguição, delírio de grandezas, delírio sistematizado, entre outros. Dito de outra forma, o termo loucura das multidões representa senão um desenvolvimento colossal, descomunal, desproporcionado, de simples episódios de delírios vesânicos gerais ou até, como foi o caso de Canudos e Pedra Bonita, de delírios sistematizados “cuja curta duração e cuja intensidade lhe deram um tal caráter de acuidade que, em rigor, devem ser comparados às condições clínicas das loucuras gerais” (RODRIGUES, 2006: 97). No arraial de Antônio Conselheiro e no sangrento episódio de Pedra Bonita, foram detectadas algumas características já consolidadas como a ascensão de um doente sobre um grupo de indivíduos saudáveis, o compartilhamento de concepções delirantes e distúrbios sensoriais, a verossimilhança do delírio sistematizado. O estado de multidão robustece o poder contagiante dessas características singulares, das loucuras facilmente transmissíveis, em que não apenas loucos e predispostos são atingidos, mas pessoas sãs também, tendo em vista que, nestes casos específicos, a predisposição “estende-se sobre a grande maioria” (RODRIGUES, 2006: 98). Mas o que isso quer dizer? O avanço dos estudos na área de psicologia coletiva e saúde pública podem oferecer pistas. Se antes, acreditava-se que apenas a predisposição hereditária favorecesse o contágio da loucura coletiva, mais tarde foi-se obrigado a ampliar esses limites. Incluíam-se, agora, nas causas gerais de formação da predisposição, causas de esgotamento orgânico, doenças as mais variadas, intoxicações por álcool e outras drogas, miséria e mendicância, vícios e exageros de toda sorte. Consideração especial é voltada para preocupações, emoções e paixões religiosas consideradas, no mínimo, doentias e mentalmente inadequadas. Nina é contundente: Todos os indivíduos entrincheirados em Canudos, submetidos a um regime de esgotamento pela fome e mesmo pela miséria, viveram a princípio durante um tempo prolongado, mantidos sistematicamente em um estado de exaltação religiosa, e transformados depois em defensores alucinados da fé, para chegarem a uma luta à mão armada: eram predispostos. Foi assim também que se criou e desenvolveu a mais acentuada predisposição naqueles próprios que no reino de Pedra Bonita, no Estado de Pernambuco, não a trouxeram do berço; e compreende-se também como, nesta seita já tomada de um delírio religioso bem sistematizado, pôde se desencadear, de um momento para o outro, um estado de multidão mórbida, que terminou por uma horrível hecatombe (RODRIGUES, 2006: 99). Referências bibliográficas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 235 CORRÊA, Mariza. 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ISBN 978-85-62707-52-0 237 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA PRÁTICA DE VIAJAR COM FINS CIENTÍFICOS NO SÉCULO XVIII Frederico Tavares de Mello Abdalla COC/Fiocruz Doutorando [email protected] Resumo: O presente trabalho visa apresentar uma proposta de estudo da dimensão epistemológica da prática de viajar com fins científicos no período compreendido entre a segunda metade do século XVIII e o início do XIX. Neste, objetiva-se perceber como todo um conjunto formado por instruções, relatos e outros texto de viagem organizava os alicerçes de ordem teórico-metodológica que orientavam a prática naturalística em viagem em um contexto específico; além disso, como esse instrumental fundamentava a constituição de um agente paradigmático, o chamado viajante-naturalista, encarregado de desempenhar diversos procedimentos como observar, descrever, preparar e organizar. A análise do objeto basear-se- á nos aportes teóricos e conceituais da historiografia da ciência e da viagem, procurando articular ciência, viagem e produção textual na formação de uma experiência sui generis de conhecimento. Palavras-chaves: Viagem, Ciência, Instruções Abstract: This is a purpose of study of the epistemological dimension of the practice of travel with scientific goals, between second half of XVIII and beginning of XIX. The main idea is to understand how a set of instructions, accounts and other travel texts has been organizing the theorical and methodological bases of the naturalistic practices in travel; moreover how that set underlied the shaping of the naturalist-traveler, which has to carry out several tasks in travel as to observe, to describe and to pack specimes. The analysis is grounded at the conceptual and theoretical tools of historiography of science and travel and tries to joint science, travel and textual production on a sui generis experience of knowledge. Keywords: Travel, Science, Instructions Apresentação e justificativa do estudo proposto Desde as duas últimas décadas do século XX, a historiografia das viagens-científicas vem mesclando os aportes teórico-metodológicos oferecidos pela História da Ciência e pela História Cultural na tentativa de compreender a ação dos homens de ciência no tempo. Com o diálogo da história cada vez mais estreito com outros campos, como a antropologia e a literatura, os historiadores encarregaram-se da investigação das práticas culturais e, sobretudo, buscaram fazer da história um campo de conhecimento interpretativo. O fenômeno da ciência, por seu lado, passou a ser entendido como um sistema cultural constituido de práticas, que deveriam ser analisadas no seu próprio fazer. Dentro dessa perspectiva, propões-se aqui um Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 238 estudo da dimensão epistemológica da prática de viajar com fins científicos, no período compreendido entre a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX. A prática de viajar, em diversos períodos da história, respeitadas as especificidades próprias do seu tempo e espaços, esteve intimamente ligada a produção de conhecimento. 1 Nos séculos XVIII e XIX, expedições promovidas por Academias científicas e Estados circulavam pelo globo (por mar e por terra) realizando observações acuradas do espaço natural e efetuando cálculos matemáticos precisos para a medição de coordenadas geográficas. Eram as paradigmáticas viagens-científicas do Iluminismo. Nessas viagens estavam empregados homens de ciência abilitados a cumprir instruções de superiores e a realizar o exame dos objetos locais, recolhendo informações mais apuradas do que as colhidas por seus predecessores, ou então inéditas, sobre o conteúdo natural desses lugares. 2 Na produção historiográfica relativa ao tema, a análise das fontes costuma abranger múltiplas dimensões dos empreendimentos, relacionando-os a diversos contextos políticos, sociais, econômicos e culturais, e com abordagens diversificadas. Os relatos e imagens de viagem, por exemplo, foram utilizados em diversos estudos interessados em perceber como se deram as representações acerca da natureza e dos homens de um determinado lugar durante processos sócio-cognitivos, ou até mesmo de que maneira os viajantes se auto-representavam durante a elaboração escrita de seus relatos. Nesse caso, narrativas, diários, memórias e desenhos integram um corpus documental amplo que permite aproximar-se da visão dos homens de ciência (sobretudo, europeus) sobre o mundo e seus habitantes e de que maneira estabeleciam uma relação de conhecimento (e de domínio) com estes. Esse tipo de abordagem procura entender não só a construção de muitos estereótipos culturais, mas também como se deu a penetração da linguagem universalizante da ciência nos quatro cantos do globo e como se estabeleceram convenções literárias e esquemas mentais na construção do conhecimento científico de lugares. 3 Um estudo clássico nesse sentido é o do historiador Bernard Smith, European Vision and The South Pacific, no qual analisa os desenhos produzidos pelos artistas 1 Desde as primeiras viagens ultramarinas de descobrimento, empreendidas pelo Atlântico e o Índico no início do século XV, passando pela exploração sistemática dos mares e ilhas do Pacífico na segunda metade do XVIII, até a conquista da Antártida em meados do XIX, esses empreendimentos ampliaram largamente o conhecimento natural e humano sobre o globo. Sobre os mais diversos tipos de viagem empreendidas em contextos históricos que abrangem desde a Antiguidade até a Idade Contemporânea, ver: (LEED, 1991). Para alguns ensaios mais específicos com abordagens culturalistas da viagem em diversos contextos, ver: (ELSNER; RUBIÉS 1999). 2 Nas décadas de 1730-40, França, Espanha e Suécia enviaram expedições científicas para o Equador e para a região da Lapônia, a fim de realizar observações e cálculos para determinar a natureza do formato do globo. Posteriormente, em 1761, diversos países, entre eles a Inglaterra, enviaram cientistas para pontos estratégicos da Terra, a fim de acompanhar o trânsito de Vênus. Essas viagens iniciam toda uma corrida científica internacional que iria acirrar-se durante toda a segunda metade do século XVIII e adentrar ao XIX. 3 São sugestivos, dentre essas pesquisas: (GIURGEVICH, 2007); (KOMMERS, 1988); (DOMINGUES, 2008); (CRUZ, 2004). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 239 das expedições de James Cook para os mares e ilhas do Pacífico sul - Taiti, Nova Zelândia, Austrália e Havai -, procurando perceber de que maneira o Novo Mundo serviu para que os estilos e convenções artísticas moldados pelo estilo neo-clássico das Academias de Arte chocassem-se com as exigências de objetividade científica da Royal Society e juntos produzissem a imagem europeia do Pacífico Sul (SMITH, 1960). Em outra linha, tem-se abordado a dinâmica de redes que as viagens-científicas instituiram para a circulação de informações, objetos e pessoas dentro de um fluxo transcontinental. Nessa perspectiva, a análise de trajetórias individuais de viajantes-cientistas, por exemplo, alicerça pesquisas dedicadas a entender não só participação desses indivíduos na disseminação da cultura ocidental no globo e os resultados científicos que trouxeram, mas também como se davam suas relações (muitas vezes conflituosa) com as Academias, os patronos, os administradores coloniais, outros viajantes e os nativos de uma região em um contexto geo-político de transformações. Esses trabalhos utilizam-se não só de relatos e textos científicos, mas também das correspondências trocadas entre viajantes e outros indivíduos partícipes da rede, e procuram abarcar diferentes períodos e regiões de atuação dos viajantes, como o Pacífico, a América, a Ásia e a África. 4 De um modo geral, essas pesquisas preocupam-se em compreender de que modo se deu a atuação de viajantes na construção de políticas orientadas para o reconhecimento de produções naturais de novos e/ou já conquistados territórios no contexto das luzes e suas consequencias para os lugares explorados e, de modo mais amplo, seu significado na configuração do mundo moderno. Nesse contexto, o chamado viajante-naturalista, um agente central nesse processo, é um personagem frequentemente mencionado, porém muito pouco teorizado e de cuja constituição pouco se investigou, sobretudo no que diz respeito as suas origens epistêmicas. Em um ensaio publicado na Revue d´histoire em 1981, o historiador Yves-Laissue chega a destacar uma série de habilidades atribuidas aos viajantes-naturalistas pelo Jardim Real e, posteriormente, Museu de História Natural francês no contexto de transformações políticas e sociais vivenciadas no país. O autor destaca o programa que antecedia as viagens na forma de instruções, a experiência da observação e descrição dos objetos naturais, as relações político-institucionais envolvendo Academias, Museu e Estado nos expedientes 4 São sugestivos dentro desses trabalhos: (LIEBERSOHN, 2006); (KURY, 2004); (PEREIRA, 2002). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 240 científicos e os aspectos piscológicos presentes nas tensões entre naturalistas, autoridades administrativas e nas dificuldades práticas do trabalho. A historiadora Ane-Marie Bourguet também deteve-se em um capítulo da obra O Homem do Iluminismo, organizada por Jacques Le Goff, a abordar algumas características do explorador, suas origens diversas, competências profissionais variadas e motivos distintos para integrar expedições e realizar observações e coletar objetos naturais. Bourguet procura perceber a estatuto do explorador das luzes compreendendo-o na perspectiva que o situa como um tipo de viajante que é resultado de um processo de secularização da ciência e que, progressivamente, caminha para a especialização do saber. De qualquer modo, esses trabalhos ainda não chegam a adentrar mais diretamente ao núcleo intelectual da formação desse tipo de viajante. A proposta que aqui se coloca vem no sentido de analisar facetas desses empreendimentos e de seus agentes a partir de elementos envoltos a dimensão epistemológica da prática naturalística em viagem que ainda não foram esmiuçados pelos pesquisadores dedicados ao tema. A questão que se coloca é como todo um conjunto formado por instruções, relatos e outros texto de viagem organizou um conjunto de alicerçes de ordem teórico-metodológica que orientaram a prática naturalística em viagem em um contexto específico; além disso, como esse instrumental fundamentou a constituição de um agente paradigmático encarregado de desempenhar tais procedimentos, o chamado viajante-naturalista. Embora não se encontre na historiografia uma estudo dedicado a dimensão epistemológica da prática de viajar com fins científicos no contexto iluminista, uma análise inicial que orienta-se nesse sentido encontra-se em uma dissertação de mestrado recentemente defendida, na qual procurou-se investigar um pouco do perfil do viajante-naturalista através do programa de trabalho que as instruções de viagem tratam de organizar, bem como os valores ideológico que estes textos carregam em seu discurso a fim de moralizar os indivíduos que viajam para fins científicos (ABDALLA, 2012). O que se sugere, portanto, é que o exame desse objeto seja válido para compreendermos como se forma e se articula o processo sócio- cognitivo de apreensão do espaço natural pelos viajantes-naturalistas. Espera-se assim contribuir para a historiografia das viagens-científicas. Ainda, tem-se como justificativa para este estudo a abordagem de fontes manuscritas muito pouco exploradas para o tema e a sua inserção em um contexto geral de viagens- científicas do Iluminismo, favorecendo o estabelecimento, portanto, de um diálogo historiográfico mais amplo. Essas viagens foram responsáveis por um acúmulo considerável Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 241 de informações sobre o mundo natural e humano e constituiu a principal base empírica para o estudo da geografia, da história natural e da etnografia do século XVIII e XIX. Resulta daí um acervo numeroso de textos, imagens e coleções de objetos naturais extremamente rico para diversos campos como a história da ciência e da viagem: livros, manuais, cartas geográficas, itinerários de viagem, inúmeros relatos, memórias científicas, desenhos e caixotes com espécimes de flora, fauna e artefatos humanos. Apesar disso, muito da produção científica da época não chegou a ser impressa nem publicada e permaneceu obscurecida por muitos anos nos arquivos nacionais, como é o caso dos países ibéricos. Enquanto havia uma política de sigilismo e de palavra manuscrita na Espanha e em Portugal, que acabava restringindo o seu acesso à burocracia das instituições, o contrário ocorria, por exemplo, na Inglaterra, onde a cultura impressa já encontrava-se bastante generalizada e a difusão dos textos científicos era intensa. No caso de países como Espanha e Portugal, aponta-se como uma das consequencias do seu sigilismo a perpetuação na historiografia de um estereótipo pejorativo desses países enquanto “atrasados” ou “anti- modernos”. 5 Umas das principais perspectivas da presente proposta de estudo é justamente a de procurar resgatar um pouco do legado manuscrito ibérico de viagens-científicas setecentistas e situá-lo, de modo geral, dentro de um contexto europeu e global mais abrangente, dialogando- o com a produção internacional e promovendo um diálogo mais amplo entre as historiografias de língua inglesa, francesa, espanhola e portuguesa. Como exemplo vale mencionar manuais de viagem escritos em língua portuguesa que jamais foram publicados, como As Viagens Filosóficas do paduano Domenico Vandelli, o Méthodo de fazer observacçoens de Agostinho Vidigal, ou o manual escrito pelos naturalistas da Universidade de Coimbra. Breve revisão bibliográfica A bibliografia acerca das viagens-científicas do Iluminismo é bastante numerosa. No panorama internacional, abrange-se pesquisas desde as viagens realizadas por ingleses e franceses para os mares do Pacífico até as viagens ibéricas para o interior de seus domínios coloniais, passando, entre outras, pelas viagens russas, suecas e norte-americanas para dentro de seus países. Ao procurar trazer um enfoque global, a proposta de estudo aqui apresentada pretende aproximar parte dessa produção mais recente, mais especificamente os casos inglês, 5 Sobre isso, ver (BLEICHMAR; et al., 2009, p. 01-05). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 242 francês, espanhol e português, a fim de abordar o seu objeto dentro de um diálogo historiográfico mais amplo. Uma perspectiva de análise importante acerca do tema apresentada nas atuais pesquisas, e já mencionada, diz respeito a instituição e a dinâmica de funcionamento de uma rede global de comunicação envolvendo cientistas, viajantes, militares, administradores e missionários e na qual circulavam relatos, instruções, correspondências, desenhos e objetos naturais e etnográficos responsáveis por informar ao público europeu novas realidades naturais e sociais. A antropôloga francesa Michèle Duchet, em estudo pioneiro, já havia demonstrado em seu livro Antropologia e Historia en el siclo de las luces o funcionamente de uma rede internacional formada por todos esses agentes na troca de informações etnográficas (DUCHET, 1988). Posteriormente, essa perspectiva de análise serviu de referência para diversos outros estudos. Em seu The Traveler´s World, por exemplo, o historiador norte- americano Harry Liebersohn parte da abordagem de redes e procura mostrar a partir das viagens de Philibert Comerson (Taiti, 1766-1769), George Forster (Taiti, 1772-1775) e Adelbert Von Chamisso (1815-1818) de que modo ocorre a dinâmica de trocas de informações entre viajantes e qual o significado político implicado nesse processo, levando-se em conta os interesses de Estado dentro de um contexto marcado por guerras e revoluções (LIEBERSOHN, 2006). Um dos aspectos cruciais destacados por Liebersohn na caracterização dessas redes diz respeito a co-participação decisiva de nativos no fornecimento de informações geográficas, naturais, culturais, etc. e, portanto, no conhecimento geral resultante das viagens. Essa fator é bastante importante a ser considerado nos propósitos de estudo aqui pretendidos, uma vez que em diversas ocasiões as instruções de viagem orientam os viajantes a a estabeleceram relações com os nativos e apropriarem-se de seus saberes, traduzindo-os e incorporando-os ao conhecimento geral. Do mesmo modo, os relatos atestam essa participação de maneira muitas vezes decisiva para os rumos das expedições. Portanto, a construção do conhecimento em viagem, bem como a formação do viajante nos âmbito social e cognitivo deve considerar o posicionamento e função desses indivíduos dentro dessas redes como um dos seus fatores principais. Mais recentemente, o historiador Steven J. Harris também aponta em um artigo a importância do estabelecimento dessas redes de comunicação para a construção do conhecimento europeu do mundo ao identificar suas origens desde a Idade Média. Estas acabaram por desenvolver um modelo de atividade científica baseado em escalas de longa Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 243 distância, cuja consequencia, segundo Harris, foi a ampliação também das escalas sociais e cognitivas da prática científica para além de modelos locais. Isso acabou por exigir um treinamento mais especializado por parte dos agentes ligados diretamente a recolha de dados, bem como a necessidade de organização e padronização da informação no interior dessa infra- estrutura, o que favoreceu o surgimento de um procedimento de controle das atividades desempenhadas a longa distância por parte dos centros científicos do tipo virtual. Assim, a infra-estrutura dos canais de comunicação, o preparo de indivíduos para a recolha de dados e a tendências dos livros científicos em buscar arranjos sistemáticos de organização do texto e da imagem constituem elementos característicos das práticas de produção de conhecimento moldadas pelas redes de informação da Época Moderna (PARK; DASTON, 2006, p. 341- 360). Esses elementos moldadores dos meios de produzir conhecimento para os quais Harris chama a atenção na perspectiva de redes devem servir na análise do objeto aqui pretendido, a fim de situar as instruções e os relatos enquanto instrumental material e conceitual de viajantes que se ajusta segundo as escalas e a lógica de redes. Nesse sentido, a diversidade tipológica das instruções, desde os compêndios de observação até os manuais de recolha, preparo e remessa e variedade de gêneros de relatos de viagem podem ser bastante representativas das circunstâncias e condições impostas pelas redes de comunicação. No caso das expedições científicas ibéricas empreendidas para os domínios coloniais na África e América, vários estudos também procuram enfatizar a cirulação de informações dentro de uma rede transcontinental envolvendo viajantes, naturalistas, administradores coloniais e secretários de Estado na produção de conhecimento científico e seu alinhamento político-científico no contexto europeu. Atendo-se ao caso português, temos, por exemplo, a historiadora Ângela Domingues que dedica boa parte da sua produção para o estudo das explorações naturalísticas realizadas no século XVIII nos domínios coloniais da América e África. Domingues aponta para a participação de agentes da administração pública no fornecimento de instruções, dados e recursos para as expedições, além de promoveram experiências com sementes estrangeiras no solo local (DOMINGUES, 2000). Do mesmo modo, a historiadora Lorelai Kury destaca a circulação de informações dentro dos domínios lusos e também entre Impérios coloniais, demonstrando a participação ativa de luso- brasileiros na República das Letras e o conhecimento por parte destes das idéias científicas mais em voga nos países centrais como França e Inglaterra (KURY, 2004). Já o historiador Magnus Pereira também detem-se a pesquisar a participação de luso-brasileiros dentro dessa rede imperial de circulação de conhecimentos, analisando as dificuldade de alguns naturalistas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 244 em conciliar a atividade científica com as práticas burocráticas e seu envolvimento na rede de intrigas políticas que caracterizou a administração colonial, o que influenciou diretamente as práticas científicas exercidas nos domínios portugueses e os seus limites institucionais de atuação (PEREIRA, 2002). Esses estudos são importantes para que se possa situar a política de fomento da atividade científica dos países ibéricos, aqui mais especificamente o caso português, dentro de um movimento de internacionalização. Ao partir dessa historiografia, também é possível destacar especificidades locais das redes de conhecimento que caracterizam a atividade científica nesse país, como a indistinção entre atividade científica e tarefas burocráticas dentro da administração do Império, o descompasso entre a constituição de um campo científico e as reformas no modelo colonial e o fato da maior parte dos viajantes-naturalistas serem de origem das colônias. Outros pesquisas procuram se aproximar mais especificamene dos processos literários envolvidos na construção dos relatos de viagem. Um dos estudos mais inovadores e influentes acerca do tema é o de Mary Louis Pratt, Os Olhos do Império, uma obra de grande repercussão acadêmica nos anos 1990, que trouxe diversas contribuições no âmbito semântico, discursivo e cultural para a compreensão e análise de relatos de viagem nas chamadas zonas de contato. Pratt identifica a partir da década de 1730 o início de uma “consciência planetária” europeia impulsionada pelas primeiras viagens-científicas francesas e inglesas e pela publicação de Systema Naturae, obra paradigmática do naturalista sueco Carl Lineu que estabeleceu um método de classificação de todas as plantas existentes no globo. A autora avalia que o sistema de Lineu teve profundo impacto tanto na escrita da viagem quanto no modo dos europeus perceberem-se no mundo, assinalando então uma relação indissociável entre um modelo científico de classificação dos objetos da natureza e os processos literário envolvido no registro da viagem. Essa relação é particularmente importante para os propósitos de aqui sugeridos, uma vez que pretende-se realizar uma análise da prática de viajar a partir da articulação entre os sistemas de organização da natureza e a forma e o discurso presentes na elaboração literária dos resultados da observação. Nesse sentido, as instruções e os relatos de viagem permitem analisar como se dá essa relação entre a organização lineana a estruturação do relato de viagem, ou, em que medida instruções servem aos relatos e os relatos servem às instruções na reunião da informação e, posteriormente, na hierarquização de campos de saberes. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 245 Outro conjunto historiográfico que é tomado como aporte para os estudos em torno das viagens-científicas vem da história da ciência. De maneira geral, as perspectivas de estudo da ciência partem da superação de uma divisão de categorias de análise caracterizadas em “internalistas” e “externalistas”, que norteou as pesquisas históricas e sociológicas desde os anos 1930 até os anos 1970-80. O historiador da ciência Steven Shapin traça em um texto do início da década de 1990 um panorama acerca desse debate, mostrando que a divisão internalismo/externalismo foi praticamente abandonada e substituida por um ecletismo pós- moderno que passou a indistinguir essas categorias (SHAPIN, 1992, p. 333-69). Nas abordagens internalistas, dominantes entre as décadas de 1930 e 1950, a ciência era entendida enquanto um sistema lógico e autônomo que funcionaria independente das condicionantes históricas e sociais; já na abordagem externalista, dominante nas décadas de 1960 e 1970, a ciência era entendida enquanto um sistema que se desenvolveria segundo as condições sociais a qual estava inserida. No início dos anos 1990, no entanto, Shapin identificou duas tendências: uma primeira, a qual nomeou de “historicismo”, voltada para a análise das ações históricas no interior das condições e conceitos de seu contexto histórico, ou seja, sem desconsiderar elementos que pertenciam às propriedade cognitivas da época como, por exemplo, a religiosidade; e uma segunda, baseada nas contribuições do sociólogo Bruno Latour, que dissolve completamente a questão do internalismo/externalismo e entende que não é possível admitir objetos “puramente sociais” nem “puramente científicos”, pois um está impregnado do outro, existindo apenas atores-redes, humanos conectados a humanos, coisas a coisas e coisas a humanos. Para Shapin, essas duas tendências possuem uma série de acordos, uma vez que a dissolução do esquema “puro social”/”pura ciência” na abordagem de objetos científicos permite compreender que as antigas formas de dividir o mundo são díspares do nosso senso de classificação, mas que, mesmo dentro de limites culturais, formavam uma base da qual produzia-se conhecimentos. A partir disso, Shapin conclui que entre as fronteiras dessas duas categorias permanece a noção de cultura. Esta, por sua vez, é sustentada por diversas práticas e é passível de manipulação e produção por diversos agentes históricos, constituindo assim a dimensão de principal interesse por parte do historiador. Of course, the distinctions between “science” and “society”, the “social” and the “intellectual” are analytically false. Of course, such categories do not have distinct essences. That is because they, and the contingent boundaries between them, are made out of the same stuff – culture – and sustained by the varying cultural practices os historical actors. And it is with Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 246 the production and manipulation of culture that the historian is concerned (SHAPIN, 1992, p. 356-357). Nessa linha, a historiografia da ciência recente tem, de maneira geral, orientado seus estudos justamente para a cultura científica. A “manipulação” da natureza pelos agentes históricos, ou seja, para a ciência no seu próprio fazer, tem deslocado estudos de grandes teorias para as práticas mundanas. Em um artigo publicado em 2003, o historiador Simon Schaffer toca nessas questões ao explorar a possibilidade de um conhecimento da terra a partir dos valores e usos da Natureza no contexto do Iluminismo, principalmente levando em conta as idéias exploradas por Roy Porter na quais o estudo das ciências extensivas evidenciam nas novas concepções de Natureza o seu caráter cultural e relativo de construção histórica, “Agronomy reminds us that social order and natural knowledge are produced and changed together” (SCHAFFER, 2003, p. 257-268). A partir do exemplo da agronomia, Schaffer conseque identificar como o conceito-chave de natureza sustentou os experimentos realizados na terra, representando fonte de princípios demonstráveis racionalmente. Nessa perspectiva, a opção de estudo aqui sugerida dedica-se a cultura científica e, ao voltar-se para a dimensão epistemológica da prática naturalística em viagem, recorre a todo um instrumental de uso cotidiano dos viajante-naturalistas, entendendo-o como um campo constituído por múltiplos agentes no qual se entrevém valores e concepções acerca dos objetos naturais e seus usos. Indicação de fontes documentais O estudo poderá alicerçar-se nos seguintes tipos documentais dos séculos XVIII e XIX: 1. instruções de viagem; 2. relatos de viagem; e 3. outros textos de viagem. 1. Instruções de viagem As instruções abrangem um conjunto de opúsculos, tratados, compêndios e manuais que tratam de organizar uma série de regras de observação, procedimentos técnicos para a recolha, preparo e remessa de espécimes, bem como orientações práticas para a sobrevivência do viajante. Os diferentes tipos instrutivos e suas características discursivas e textuais ainda estão sendo discutidas pelos pesquisadores, portanto não se partirá de uma tipologia que se Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 247 pretenda definitiva, mas sim de uma primeira divisão já esboçada anteriormente formada por: instruções gerais, instruções técnicas e instruções especializadas. 6 2. Relatos de viagem Os relatos constituem um conjunto diversificado formado por diários, narrativas, memórias que registram as observações realizadas pelos viajantes durante a viagem. A natureza desses textos e a sua imprecisão tipológica precisa ser problematizada ao longo do estudo no contexto das exigências editoriais e das Academias científicas da época. 3. Outros textos de viagem Aqui serão inclusos alguns textos variados relativos ao universo da cultura de viagens- científicas como, por exemplo, tratados de história natural, correspondências entre naturalistas e administradores, listas de remessas, etc. Orientações teórico-metodológicas Para a abordagem do objeto de estudo aqui pretendido, sugere-se alguns aportes historiográficos e conceituais, a fim de: enquadrá-lo no campo temático; tomar como ponto de partida alguns consensos; indicar alguns conteúdos e orientar-se para a análise das fontes. Um problema conceitual a ser considerado de início diz respeito a idéia de Iluminismo. O século XVIII é frequente conhecido através dos filósofos da época por “era filosófica”, no sentido que a filosofia "designa, em particular, a expressão crítica e livre acerca de todos os problemas e assuntos, sem medo de sofrer discrminações" (IM HOF, 2003, p. 149). Para o historiador Im Hof, mais do que isso, o que o que o século XVIII das luzes desejava era o aperfeiçoamento do mundo, traduzido por um reformismo generalizado nos mais diversos âmbitos da vida social. Os desejos de mudança, enfim, deveriam corresponder a um apelo prático de atuação no mundo e nas atividades humanas desde os dogmas da Igreja 6 Sobre isso, ver (ABDALLA, 2012, p. 36-43). Resumidamente, as instruções gerais contemplam conteúdos diversos e incluem regras de observação e métodos de coleta, preparo e transporte de espécimes; instruções técnicas ou práticas voltam-se para coleta, preparo ou transporte de espécimes e que, eventualmente podem conter algumas regras gerais de observação; e instruções disciplinares abrigam um campo disciplinar particular como a zoologia, a botânica ou a antropologia. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 248 cristã, passando pela questão do direito natural e pela política, até a educação (IM HOF, 2003). Assim, o Iluminismo não deve ser entendido apenas enquanto um movimento de idéias ligadas a filósofos e grandes teorias, mas sim como um conjunto de transformações racionais na esfera pública, nas práticas administrativas e na imprensa. Outra questão conceitual ligada mais diretamente ao objeto de estudo diz respeito a noção de curiosidade, um termo que aparece com frequencia nas fontes a serem analisadas e é de crucial importância para o entendimento do vocabulário setecentista. Em um ensaio publicado em Cultures of Natural History, obra organizada por Nick Jardine, Jim Secord e Emma Spary, a pesquisadora Katie Whitaker aponta que as viagens da Época Moderna tiveram como um dos principais estímulos o interesse pelo exótico, ou curioso. A curiosidade, desde que havia perdido o sentido negativo de luxúria em finais da Idade Média, teria adquirido, já no início da Época Moderna, a idéia positiva de deslumbre, passando a ser então uma qualidade atribuída aos nobres como sinal de virtude. Nesse contexto que diversos gabinetes foram criados por homens da nobreza desde o século XV na Europa para abrigar as produções maravilhosas da natureza ou até mesmo do artifício humano, como espécimes naturais raras, máquinas mecânicas, engenhocas, etc. (JARDINE; SECORD; SPARY, 1999, p. 75-90). Whitaker refere-se mais diretamente ao século XVII, mas isso não significa que durante o século XVIII, a curiosidade tenha sido deixada de lado, apesar do sentido prático e objetivo que o utilitarismo direcionou a investigação dos objetos naturais. A historiadora Emma Spary demonstra que um dos pilares de sustentaçã do Jardin des Plantes em Paris vinha justamente das exposições abertas de raridades naturais, das demonstrações de manipulações de plantas e animais e da ostentação públicas da riqueza dos domínios ultramarinos franceses (SPARY, 2000, p. 22-23). Em um ensaio recentemente publicado, a historiadora Paula de Vos demonstra, a partir do caso espanhol, que a remessa de objetos curiosos das colônias da América e das Filipinas para a corte de Madri não apenas continuou bastante ativas durante o século XVIII, como também aumentaram numericamente de forma considerável com relação aos séculos anteriores, conotando prestígio e poder e com a função de elaborar uma imagem nacional de soberania (BLEICHMAR; et all, 2009, p. 271-289). Além do caso francês e espanhol, o mesmo pode se aplicar as expedições naturalísticas empreendidas na Inglaterra e em Portugal, principalmente a partir das instruções de viagem. Os textos instrutivos, por exemplo, constituem um campo propício de análise do discurso científico, no qual são entrevistos diversos traços da cultura de curiosidades, ao passo que se Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 249 percebe a emergência de uma abordagem utilitarista iluminista - inspirada na economia da natureza - em relação ao mundo natural. 7 Esse caráter ambivalente que marcou o interesse das viagens-científicas pelo útil e pelo curioso deve, portanto, ser entendido como uma característica própria da atividade naturalística da época e, portanto, constitutivos dos interesses da viagem e também do leitmotiv do viajante. Outra questão teórica a ser trabalhada durante o desenvolvimento do estudo pretendido diz respeito à categoria viajante-naturalista. O objetivo é justamente o de perceber de que maneira esse personagem é constituido e fundamentado através do instrumental formado por instruções, relatos e outros textos de viagem. Apesar da dimensão epistemológica que se pretende focar, alguns elementos previamente reunidos do âmbito sócio-profissional são de fundamental importância como ponto de partida para a sua caracterização. A tentativa de identificar algumas dessas características já ocorria desde o próprio século XVIII. Em uma obra da época, Fundamentos Botânicos, escrita pelo próprio Lineu, havia a tentativa de estabelecer uma divisão entre todos aqueles que haviam realizado algum tipo de trabalho no campo da botânica, entre eles médicos, botânicos, missionários, administradores, oficiais militares, etc. (LINEU, 1788). O autor identifica dois tipos de categorias: os coletores e os metódicos. Os coletores seriam aqueles responsáveis pela quantidade de espécimes vegetais recolhidas na natureza, isso é, tratavam-se de modo geral de todas as categorias sociais que haviam recolhido objetos naturais e os enviado aos gabinetes de história natural; já os metódicos seriam responsáveis pela classificação e nomeação dos espécimes recolhidos, isso é, eram aqueles que exerciam tarefas próprias aos filósofos e cientistas de gabinete. Essa divisão proposta por Lineu para o conhecimento da botânica não precisa se restringr a esse campo particular, mas poderia ser ampliado para toda a história natural praticada de maneira sistemática no século XVIII. Parte-se, em primeiro lugar, de uma clara distinção entre o naturalista de campo e o naturalista de gabinete e, na sequencia, há uma sub- divisão entre as duas categorias. Para os naturalistas de campo, caso que interessa aqui mais especificamente, Lineu enumera uma série de classes de indivíduos, separando-os de acordo com habilidades específicas: sacerdotes, comentadores, iconógrafos ou retratistas, descritores, monógrafos, curiosos, adonistas, floristas e viajantes. Com exceção do sacerdote, a separação realizada por Lineu utilizou como critério fundamentalmente em uma divisão de tarefas profissionais. Tomando como base as instruções de viagem, verifica-se que os ofícios dessa 7 Em dissertação de Mestrado, referi-me a questão do caráter ambivalente das viagens-científicas do Iluminismo por conta do interesse pelo útil e pelo curioso, procurando demonstrar sua ocorrência a partir de um exame dos discursos presentes nas instruções científicas de viagem. Sobre isso, ver (ABDALLA, 2012). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 250 série de tarefas veio a se tornar praticamente todo o repertório de procedimentos que estas procuraram organizar para os viajantes – escrever, desenhar, recolher, catalogar. As instruções reuniriam essas diversas tarefas profissionais da construção do conhecimento natural, executadas por diversos indivíduos, para atribui-las a uma só figura. Esta é designada basicamente de dois modos: viajantes e naturalistas (ou então filósofos da natureza). Na língua inglesa são os sea-travelers, travelers, voyagers; na francesa os voyageurs; na espanhola os viageros; e na portuguesa os viajantes, viandantes No caso dos naturalistas ou filósofos são os gentlemen, promoters, curious (inglês); os curieux (francês); e os curiosos (espanhol e português). Assim, é possível perceber que a origem do viajante-naturalista surge da reunião em apenas uma figura tanto das habilidades do homem que viajava quanto dos conhecimento do - homem de ciência. O primeiro forneceria o espírito itinerante daquele que se desprendia da sua cidade natal e estaria disposto a enfrentar riscos fatais, enquanto o segundo forneceria os conhecimentos práticos e teóricos indispensáveis para a seleção das informações recolhidas ao longo da viagem sobre a natureza e os homens. Trata-se, portanto, de um primeiro ponto de partida para se perceber quem foi este personagem. Referências Bibliográficas ABDALLA, F. T. De. M. O Peregrino Instruido: um estudo sobre o viajar e o viajante na literatura científica do Iluminismo. Curitiba, 2012. Dissertação de Mestrado - UFPR. BATTEN Jr., C. L. Pleasurable Instruction. Form and convention in Eighteenth-Century Travel Literature. University of California Press, Berkley, Los Angeles, 1978. BAUMER, F. L. O Pensamento Europeu Moderno - séculos XVII e XVIII. Edições 70, 1977. BLEICHMAR, D. et al.. Science in the Spanish and Portuguese Empires, 1500-1800. Stanford University Press, 2009. BOSSI, M.; GREPPI, C. (orgs.). 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Para tanto, por meio deste texto específico, procuraremos abordar, em debate com alguns autores, estas relações e como elas se dão por meio do filme Blade Runner, o caçador de andróides (Ridley Scott, 1982), uma vez que por meio das representações deste filme podemos notar elementos que caracterizam uma diferente noção espaço-temporal que podem ser consideradas como exemplares do que se entende e se define por pós-modernidade, geograficamente e historicamente identificadas no filme. Palavras-chave: Blade Runner, Cinema, Geografia, História, Pós-modernidade. Abstract: This work has objective to reflect about the research that we have developed about the relationship between space and time in the cinema, as well as relevant questions about relations between geography, history and cinema. Therefore, through this particular text, to broach in debate with some authors, these relationships and how they give through the film Blade Runner, the hunter of androids (Ridley Scott, 1982), once through the representations this film we can see different elements characterizing a notion that space-time can be considered exemplary of what is meant and is defined by post-modernity, geographically and historically identified in the film. Keywords: Blade Runner, Cine, Geography, History, Post-modernism. É sabido que as relações entre história e geografia sempre foram bem próximas, e é com enorme interesse que acompanhamos uma aproximação cada vez maior entre estes dois campos de pesquisa das ciências humanas. As metodologias e as abordagens teóricas que existem no interior destas áreas do conhecimento, podem servir de apoio e suporte uma a outra, e assim contribuir com trabalhos cada vez mais elucidativos acerca da relação do homem com o espaço geográfico e com o tempo histórico. Foi pensando assim que nos surgiu a idéia de relacionar estas duas áreas do conhecimento a um objeto de pesquisa específico, a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 255 saber, o cinema. Entendemos que, por meio das representações cinematográficas, muito se pode conhecer sobre as relações entre espaço geográfico e tempo histórico, uma vez que este objeto é rico e propício a análises das mais diversas, como procuraremos demonstrar. Assim sendo, a princípio, visamos analisar as relações entre geografia e história relacionadas à forma como estas duas disciplinas se utilizam do cinema como objeto de estudo, inclusive destacando autores que já trabalharam com o tema, e em seguida, discorreremos sobre a questão da pós-modernidade, assunto este que se insere como pano de fundo na problemática que abordaremos e, por fim, analisaremos nosso tema específico para este trabalho, ou seja, as relações entre espaço geográfico e tempo histórico considerados pós- modernos, por meio das representações cinematográficas do filme Blade Runner, o caçador de andróides (1982, Ridley Scott). Neste sentido, a princípio, encontramos no trabalho de Tiago de Almeida Moreira um importante apanhado das relações de pesquisa entre geografia e cinema no Brasil. (MOREIRA, 2011). Para o autor, os estudos envolvendo geografia e cinema teve sua difusão na década de 1980, principalmente nos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, vindo a se difundir no Brasil dez anos depois. Numa perspectiva histórica, o autor indica que Béla Balázs foi um dos pioneiros em discutir representações de paisagens nos filmes, em trabalho de 1924, vinte e nove anos depois da primeira exibição pública de um filme pelos Irmãos Lumiére no Grand Café de Paris. Tiago de Almeida Moreira informa que desde este primeiro até a década de 1980, foram realizados poucos e esporádicos trabalhos, como os de Arnheim, de 1932, Wirth em 1952, uma série de artigos da revista inglesa The Geographical Magazine, em 1957, e um trabalho de Yves Lacoste de 1976. Na década de 1970 começaram a surgir pesquisas com maior rigor científico sobre representações do espaço geográfico no cinema. O autor faz menção a Lukinbeal (1995), uma vez que este destaca os trabalhos de Gold, em 1974, e de Relph, de 1976, como referências para os estudos geográficos sobre cultura de massa. Outro autor citado por Tiago de Almeida Moreira é Escher (2006), uma vez que este último ressalta também os trabalhos de Lotman, nos anos de 1972 e 1977, como fundamentais para o estabelecimento das bases teórico-metodológicas iniciais para análises geográficas dos filmes. Já no decênio seguinte, Tiago de Almeida Moreira destaca que esta área se expande, tendo como destaque os trabalhos de Zonn, de 1984 e 1985, o de Johnsto, produzido em 1986, dentre outros. (MOREIRA, 2011, p. 77-78). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 256 Tiago de Almeida Moreira também fez uma revisão que cobre o período de uma década de produção acerca de representações sobre espaço geográfico no cinema, entre os anos de 1999 e 2010, no Brasil. O estudo do autor resultou em uma compilação com mais de quarenta trabalhos, entre teses, dissertações, monografias, artigos, resumos expandidos e capítulos de livros. A busca e obtenção dos trabalhos, como informa o autor, se deu através de pesquisas em sites, bases de dados, portais de programas de pós-graduação, livros e periódicos, tendo como palavras-chave de busca: geografia, espaço geográfico e cinema. (MOREIRA, 2011, p. 77-78). Tiago de Almeida Moreira considera que a produção nesta área de investigação tem crescido no Brasil, porém, a escassez de estudos mais aprofundados, apenas três trabalhos de mestrado e três de doutorado, nos descortinam um caminho em construção. (MOREIRA, 2011, p. 77-78). Neste sentido, este trabalho tem como objetivo também contribuir para a construção deste caminho, no nosso entendimento, rico em possibilidades. No que diz respeito às relações da história com o cinema, corroboramos com os argumentos de Marcos Silva, uma vez que para este autor, pensar nas interfaces história/filmes/ensino, significa levar em conta que, embora o ensino de história (e também da geografia, grifo nosso) seja uma face da história como conhecimento, esta última se cindiu e deixou de ver com clareza aquela dimensão como parte do seu ser; e os filmes, tratados como arte ou diversão imediata, tenderam a ser separados daquele fazer do pensamento. (SILVA, 2009, p. 147). No entanto, o autor admite que os filmes devem ser trazidos para a pesquisa e o ensino, e historiadores (e geógrafos, grifo nosso) devem sempre dialogar com esta ferramenta. (SILVA, 2009, p. 156). Um dos percussores da inserção do cinema como campo de estudo no interior da historiografia, foi o francês Marc ferro. Para este historiador, o filme não vale somente pelo que testemunha, mas também pela abordagem sócio-histórica que autoriza. A análise também não se aplica somente ao filme, e sim a todo o contexto, ao mundo que o rodeia e com o qual ele se comunica. (FERRO, 1992, p. 204). A partir de tal visão, Marc Ferro postula que o filme seria uma importante fonte para revelar tanto aquilo que o autor busca expressar – que está contido na narrativa, as idéias sobre determinados personagens, fatos, práticas ou ideologias – como para se perceber o que não se queria mostrar, como os modos de narrar uma história, a maneira utilizada para marcar as passagens do tempo, os planos de câmera. A partir destes seria possível penetrar, de acordo Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 257 com o autor, em "zonas ideológicas não-visíveis" da sociedade, já que “assinalar tais lapsos, bem como suas concordâncias ou discordâncias com a ideologia, ajuda a descobrir o que está latente por trás do aparente, o não-visível através visível”. (FERRO, 1992, p. 204). No nosso entendimento, os historiadores que pretendem dialogar com o cinema devem estar atentos para o fato de que os “conceitos-imagens” (CABRERA, 2006), produzidos pelo conjunto da obra fílmica, representam a experiência de uma linguagem que pretende produzir um impacto emocional e que ao mesmo tempo diz algo sobre o mundo e a condição humana. Ainda que estes conceitos não se voltem exclusivamente para o passado, o cinema é sempre uma leitura de sua época, uma releitura de algum momento do passado ou mesmo uma representação imagética de um futuro presumido do ponto de vista dos construtores da obra fílmica. Nesta linhagem, após esta abordagem preliminar e bem resumida acerca das formas que as disciplinas geografia e história lidam com o cinema, passaremos então para nosso segundo ponto de análise, que diz respeito à questão da pós-modernidade relacionada a estas duas áreas do conhecimento, para em seguida analisar de que modo o filme Blade Runner, na nossa concepção, nos apresenta importantes representações de um espaço geográfico e de um tempo histórico pós-moderno, e assim destacaremos também com base neste filme alguns elementos importantes que podem tornar ainda mais pertinentes as relações entre geografia e história com base no cinema como fonte de pesquisa. No caso, o filme Blade Runner se passa na fictícia cidade de Los Angeles, no ano de 2019. Isto nos leva a refletirmos sobre os modos como a geografia e a história podem, e por que não, analisar representações cinematográficas futuristas, no terreno da ficção científica. Estamos cientes de que, seja representando o passado, ou criando elementos para se representar e imaginar o futuro, os filmes sempre nos falam, de alguma forma, de nosso tempo presente, e assim, concordamos com os argumentos de Serge Gruzinsky, quando este autor afirma que Blade Runner não desvenda nenhuma chave para o futuro, uma vez que a ficção científica sempre nos ensina sobre nosso presente. (GRUZINSKY, 2006, p. 14). Sendo assim, cientes das dificuldades de apreensão do contemporâneo, como podemos, por meio das teorias e metodologias da geografia e história, compreendermos melhor nosso tempo presente, com base em uma representação futurista? Para tentarmos entender melhor a nossa relação com o tempo presente, considerado por muitos como pós- moderno, nos valemos para este momento dos argumentos de Steven Connor. Para o autor, afirma-se com freqüência que somente é possível obter conhecimento Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 258 sobre coisas de alguma maneira encerradas. Como conseqüência disso, Steven Connor entende que a reivindicação sobre a possibilidade de se conhecer o contemporâneo é vista muitas vezes como “uma espécie de violência conceitual, uma fixação das energias fluidas e informes do agora, mas tenazmente presente numa forma apreensível e exprimível, através de atos fundamentais e irrevogáveis de seleção crítica”. (CONNOR, 1993, p. 11). Esta formulação baseia-se para o autor num sentido de separação inerente entre experiência e conhecimento, uma crença de que, “quando experimentamos a vida, só podemos compreendê-la parcialmente, e de que, quando tentamos compreender a vida, deixamos de experimentá-la de fato”. (CONNOR, 1993, p. 11). Para Steven Connor, esse modelo coloca o ato de conhecer sempre condenado a chegar “atrasado” a cena da experiência, e foi esse modelo explicativo, baseado no hiato entre experiência e conhecimento, que vigorou na modernidade. Porém o autor considera que boa parte dos trabalhos críticos e teóricos em filosofia e nas ciências sociais nas últimas três décadas nos dá motivos para suspeitar desta ruptura, o que nos leva a questionar se o conhecimento e a experiência não poderiam ser integrados num contínuo mais complexo. (CONNOR, 1993, p. 11). O autor concorda que a relação entre experiência e conhecimento também pode ser reflexo das estruturas de conhecimento e de compreensão, e, disso, se concluiria que a nossa atual maneira de conceber a oposição entre experiência e conhecimento “também tem sua origem e história em estruturas particulares de conhecimento”. (CONNOR, 1993, p. 11). Estas reflexões, segundo Steven Connor, levam-nos ao fato de termos de estar conscientes da história e da natureza “constructa” do nosso sentido do que são experiência e conhecimento. O autor considera como problemático neste estudo o fato de que, ao buscarmos compreender a modernidade e sua seqüela tão anunciada, a pós-modernidade, “somos forçados a usar modos de compreensão que derivam dos períodos e conceitos sob exame, forçados a repetir histórias de conceitos dos quais preferíamos manter distância”. (CONNOR, 1993, p. 13). Steven Connor aceita o fato de que é impossível pensar as relações entre experiência e conhecimento, presente e passado, sem utilizar conceitos e estruturas deles mesmos derivados. Na tentativa de se entender a contemporaneidade, não há postos de observação seguramente afastados, nem na “ciência”, nem na “religião” e nem mesmo na “história”. (CONNOR, 1993, p. 13). “Estamos no e pertencemos ao momento que tentamos analisar, estamos na e pertencemos às estruturas que empregamos para analisá-lo”. (CONNOR, 1993, p. 13). Ao tentarmos compreender o pós-modernismo e o debate sobre ele, Steven Connor sugere que “devemos verificar tanto a forma como o conteúdo desse debate, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 259 devemos tentar entender as prioridades e interrogações que ele produz como sua própria maneira de auto-compreensão ao lado das questões com que ele parece estar lidando”. (CONNOR, 1993, p. 13). Cientes que estamos no e pertencemos ao momento que estamos analisando, e aceitando também a acepção de Steven Connor sobre a necessidade de verificar a forma e o conteúdo do debate sobre a pós-modernidade, destacaremos, por sua vez, alguns autores que lidaram com este tema, para que dessa forma possamos elucidar melhor as maneiras como destacaremos a questão do tempo e do espaço pós-moderno com base no filme Blade Runner. A pós-modernidade, na análise de Agnes Heller e Ferenc Fehér, “não é nem um período histórico nem uma tendência cultural ou política de características bem definidas”. (HELLER, FEHÉR, 1998, p. 11). Os autores entendem que também se pode, em vez disso, entendê-la como o tempo e o espaço privado-coletivos, dentro do tempo e espaço mais ampliado da modernidade, delineados pelos que problematizam com ela (a modernidade) e interrogam-na relativamente, pelos que querem criticá-la e pelos que fazem uma relação de suas conquistas, assim como seus dilemas não solucionados. Já os que preferem habitar na pós-modernidade, ainda assim, para os autores, vivem entre modernos e pré-modernos, pois, “a própria fundação da pós-modernidade, consiste em ver o mundo como uma pluralidade de espaços e temporalidades heterogêneos. A pós-modernidade para Agnes Heller e Ferenc Fehér só pode ser definida no interior dessa pluralidade, comparada com esses outros heterogêneos. (HELLER, FEHÉR, 1998, p. 11). Esta pluralidade de espaços e temporalidades heterogêneos, citado pelos autores, é uma das características notórias, no nosso entendimento, do filme Blade Runner. Os autores alertam como principal dilema político e cultural para quem se designa “pós-moderno” a imprecisão do termo pós. O pensamento atual, continuam, está impregnado de categorias que lidam com este prefixo. Desse modo, a peculiaridade dos que vivem no presente como pós-modernos, para Agnes Heller e Ferenc Fehér, é que estes vivem com a sensação de “estar” depois, temporal e espacialmente, simultaneamente. (HELLER, FEHÉR, 1998, p. 12). Para justificar esta afirmação, aparentemente confusa, os autores a explicam em termos políticos. Para eles, os que preferiram verem-se como pós-modernos, estão em primeiro lugar depois das “grandes narrativas”. (HELLER, FEHÉR, 1998, p. 12). As grandes narrativas a que os autores se referem são as que têm um ponto de origem fixo, e, em geral, ampliados para dimensões mitológicas, além de narrarem à história “com uma autoconfiança ostensivamente casual e disfarçadamente teleológica”. (HELLER, FEHÉR, 1998, p. 12). Esta Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 260 posição de superioridade para com a história contada, prossegue os autores, “implica um transcendentalismo filosófico e político, a presença de um narrador onisciente”. (HELLER, FEHÉR, 1998, p. 12). O narrador, neste caso, toma partido de um protagonista imobilizando outros. “Em geral, a grande narrativa “revela” seu telos no final, um telos primeiro postulado junto com a invenção da origem.” (HELLER, FEHÉR, 1998, p. 12). Agnés Heller e Ferenc Fehér acreditam que os que vivem na condição política pós-moderna sentem que estão depois de toda a história que fundamentou sua origem no sagrado e mitológico, na teleologia secreta, no narrador onisciente e transcendente e na promessa de final feliz. (HELLER, FEHÉR, 1998). Também encontramos elementos desta narrativa no filme, sobretudo por ele apresentar uma visão de futuro onde nota-se claramente que as grandes narrativas da modernidade não se sustentaram, dando lugar a um mundo híbrido, destituído de final feliz, caótico e desprovido de teleologias. Partindo então destas concepções sobre pós-modernidade, analisaremos então como o filme Blade Runner nos apresenta elementos que evidenciam um dos aspectos desta denominação, que visa compreender esta época. Ou seja, como, por meio de uma representação fílmica, podemos ter elementos importantes para se compreender que tipo de novas configurações temporais e espaciais o mundo considerado pós-moderno nos apresenta. Para tanto, nos valemos dos argumentos de alguns autores, sobretudo geógrafos e historiadores, que já refletiram sobre o tema, para em seguida e por fim, oferecer a nossa compreensão sobre. Renato Luiz Pucci Jr. procurou refletir sobre o que pode ou não ser considerado um filme pós-moderno, e para tanto ele buscou fazer um histórico do uso do termo. Segundo o autor, desde início os anos 1980, críticos já faziam suas listas de filmes pós-modernos. O autor acredita que desta forma pode-se supor que atualmente a expressão deveria ter sido aplicada a realizações diferentes das que se conheciam, pois é daí que o autor questiona “que outras justificativas poderiam existir para chamar um filme de “pós-moderno”, senão para diferenciá-lo de realizações modernas e pré-modernas?” (PUCCI JR, 2006, p. 363). Renato Luiz Pucci Jr. responde a esta questão argumentando que nem sempre foi feita esta diferenciação, uma vez que a expressão foi aplicada a títulos que dificilmente se distinguiam do que havia até então. O próprio termo “pós-moderno”, na acepção do autor, passou a ser utilizado como elogio ou insulto em relação a todo filme que agradasse ou desagradasse a quem falava ou escrevia. O autor admite que o conceito enfrentava uma de suas primeiras Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 261 crises, que como em qualquer caso de abuso conceitual, ao ser usado indiscriminadamente, passou a ter utilidade nula. (PUCCI JR, 2006, p. 363). Por outro lado, a designação “pós-moderno” foi também atribuída a filmes que desconcertaram a crítica, e entre eles o autor destaca Blade Runner, o caçador de andróides (Ridley Scott, 1982), pois segundo Renato Luiz Pucci Jr. este filme desafiou as tradicionais categorias cinematográficas: clássica, modernista, vanguardista, expressionista, surrealista – nenhuma delas na concepção do autor parecia dar conta de suas especificidades, e assim, Renato Luiz Pucci Jr. considera que essa é a mais interessante aplicação do conceito de pós- moderno ao cinema: designar o que foge às classificações tradicionais da teoria. (PUCCI JR, 2006, p. 363). Acerca da relação entre tempo e espaço na pós-modernidade, David Harvey é um autor muito pertinente para nosso propósito, uma vez que ele utiliza como objeto de análise também o cinema, por considerar que este se constitui em uma forma de arte (ao lado da fotografia) que surgiu no contexto do primeiro grande impulso do modernismo cultural, e também porque, segundo o autor, o cinema, dentre todas as formas artísticas, tem talvez a capacidade de tratar de forma mais instrutiva os temas relacionados ao espaço e ao tempo. (HARVEY, 1989, p. 277). David Harvey entende que, o uso serial de imagens, bem como a capacidade de fazer cortes no tempo e no espaço em direções variadas, acaba por libertar o cinema de restrições normais, embora os filmes geralmente sejam projetados em um espaço fechado e em telas sem profundidade. (HARVEY, 1989, p. 277). David Harvey também analisou o filme Blade Runner para sustentar suas argumentações, e, na concepção do autor, este filme é uma parábola de ficção científica em que temas pós-modernos, situados num contexto de acumulação flexível e de compreensão do tempo-espaço, são explorados com todo o poder de imaginação que o cinema pode mobilizar. O conflito, de acordo com o autor, “ocorre entre pessoas que vivem em escalas de tempo distintas e que, como resultado, vêem e vivem o mundo de maneira bem diferente”. (HARVEY, 1989, p. 281). Os replicantes não têm história real, mas talvez possam fabricar uma; a história foi, para todos, reduzida a prova da fotografia. Embora a socialização ainda seja importante para a história pessoal, David Harvey entende que ela pode, como mostra a personagem Rachel, ser replicada. O autor considera o lado depressivo do filme o fato de que, justamente no final do filme, “a diferença entre o replicante e o humano fica tão irreconhecível que eles podem inclusive se apaixonar um pelo outro, desde que ambos partilhem a mesma escala temporal.” (HARVEY, 1989, p. 281). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 262 O poder do simulacro, na concepção de David Harvey, está em toda parte. O mais forte vínculo social entre Deckard e os replicantes revoltados, que consiste no fato de “uns e outros serem controlados e escravizados por um poder corporativo dominante, nunca oferece o menor indício de que uma coalizão dos oprimidos possa acontecer entre eles”. (HARVEY, 1989, p. 281). Tal afirmação de David Harvey é bastante elucidativa e nos fornece elementos para se afirmar que o filme não apresenta perspectiva teleológica, o que é uma das principais características do argumento pós-moderno. No que se refere à caracterização de um espaço geográfico pós-moderno, o filme, na concepção de David Harvey, nos apresenta “o cotidiano e as péssimas condições de uma massa humana frenética que habita as ruas criminosas de um mundo pós-moderno decrépito, desindustrializado e decadente”. (HARVEY, 1989, p. 281-282). Sobre a relação entre a construção de uma história dos personagens replicantes no filme por meio de fotografias, o que caracteriza o caráter narrativo constructo da história tida como pós-moderna, assim como a desconstrução das identidades dos sujeitos e suas desreferencializações no espaço pós-industrial das sociedades tidas e imaginadas como pós- modernas, encontramos nas argumentações de Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia elementos interessantes para nosso propósito e diálogo. O filme de Ridley Scott, segundo a análise de Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia, é portador de um denso discurso em relação às simulações e simulacros tão caros à pós-modernidade. (SUPPIA, 2002, p. 19). O universo de Blade Runner é, conforme entende o autor, altamente simulado e ambíguo, largamente baseado em tecnologias de extensão do homem (referindo-se a MacLuhan), as únicas segundo o autor capazes de, ainda que fragilmente, distinguir a natureza do artifício, ou mesmo definir o que é o real naquele futuro distópico. As fotografias colecionadas pelos replicantes são, como Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia constata na figura da personagem Rachel, como uma caução de sua própria existência. “A memória visual e sua materialidade momentânea, a foto, “constroem” a identidade de objetos técnicos que almejam status humano”. (SUPPIA, 2002, p. 19-20). O filme Blade Runner trata, essencialmente, como informa Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia, da desconstrução do sujeito, ou a desintegração do self, numa sociedade pós- industrial sob processo de “desreferencialização”. Ao tratar desta questão, o autor entende que o filme aborda questões centrais no que diz respeito ao debate em torno da pós-modernidade e, a partir dessa noção, o autor acredita que se justifica o aporte estético, o da lógica do Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 263 pastiche. (SUPPIA, 2002, p. 22). Os metarrelatos também são, na análise do autor, desconstruídos no filme, e é daí que Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia acredita que o diretor recorreu ao uso da fotografia como tema, relacionadas a questões de origem, às tecnologias da informação e à própria figura dos replicantes, simulacros do humano que perderam seu referente. (SUPPIA, 2002, p. 22). No que diz respeito a uma nova forma se “ser e estar” no mundo, uma nova perspectiva de se pensar a história relacionada a espaços de poder e a uma nova configuração do espaço mundial, em sentido macro, porém manifestado em uma cidade imaginada e representada de forma específica em sentido micro, encontramos nos argumentos de José D´Assunção Barros uma importante interlocução a respeito desta temática, já que, este autor parte do princípio de que no filme Blade Runner são projetadas na Los Angeles imaginária de 2019 vários medos típicos dos norte-americanos e ou do homem moderno, de modo geral. (BARROS, 2009p. 454). A Los Angeles representada no filme, segundo o autor, “destaca espaços imaginários que projetam alguns dos grandes medos norte- americanos como a poluição, a violência, a escassez alimentar, a opressão tecnológica, a presença de imigrantes vindos de outros países, a ameaça da perda de uma identidade propriamente “americana”, a exigüidade e a volatilidade do tempo, os desastres ecológicos, que no filme aparecem sob a forma de uma chuva ácida com a qual têm de conviver os habitantes deste futuro imaginário”. (BARROS, 2009, p. 454). A temática de um mundo dominado e controlado por uma mega-corporação também merece a atenção de José D´Assunção Barros, uma vez que aparecem os labirintos discursivos de Blade Runner os receios de um futuro onde a empresa capitalista passe a assumir o papel do Estado e a ter plenos poderes sobre a vida e a morte de todos os indivíduos, que em última instância, traz a tona o temor diante da possibilidade da perda da liberdade individual. (BARROS, 2009, p. 454). Para além disso, o autor destaca as relações entre o homem e a memória, na qual se apóiam para a construção de sua identidade individual e que, no entanto lhes é tão inconsistente. As relações com Deus e a morte segundo José D´Assunção Barros “aparecem na parábola que dá forma ao filme através do enredo no qual os replicantes procuram obstinadamente os seus criadores na esperança de prolongarem a própria vida”. (BARROS, 2009, p. 454-455). Deixando de lado os replicantes, o autor destaca também uma inquietação tipicamente americana através da multiforme massa de figurantes urbanos que transitam no Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 264 caos citadino. Nas ruas, uma babel de línguas já domina a paisagem sonora, misturando-se ao inglês e questionando a própria identidade norte-americana. Entre os imigrantes que constituem um dos medos tipicamente americanos transpostos para Los Angeles de 2019, estão, na análise do autor, não apenas os latinos-americanos “cucarachas” que desde a fronteira do México tentam entrar clandestinamente nos EUA e que, nas regiões do sul dos Estados Unidos já começam a impor já desde algumas décadas o seu idioma nas ruas de L.A. Segundo José D´Assunção Barros, aparecem também os chineses, que no cenário do filme predominam surpreendentemente. A China, prossegue o autor, com seu gradual e seguro crescimento econômico e com sua enorme população, e particularmente depois que se desativou a Guerra Fria, constituiu na análise de José D´Assunção Barros o grande medo americano em termos de realidades nacionais contemporâneas. O autor entende que o predomínio chinês na população do submundo da Los Angeles futurista de Blade Runner não é certamente gratuito. De igual maneira, o autor chama a atenção para a afirmação também dos japoneses no imaginário citadino do filme, por meio de uma japonesa fazendo a propaganda da Coca-Cola em um grande anúncio luminoso. (BARROS, 2009, p. 456). Portanto, com base no argumento destes autores e de outros que mesmo não citados nos serviram de suporte para este trabalho, entendemos que a análise fílmica, com base em teorias e metodologias específicas, pode abrir perspectivas de análise interdisciplinares importantes, sobretudo, para nosso propósito no momento, acerca das relações entre geografia e história. Nesse sentido, Andrea França chama a atenção para um importante aspecto, quando afirma que “com a diluição das fronteiras nacionais, étnicas, culturais, privadas e ideológicas, assim como o surgimento de outras fronteiras, mais camufladas e sutis, o cinema faz emergir, por meio de suas respectivas representações imagéticas, novos protagonistas”. (FRANÇA, 2003, p. 13). Nesta perspectiva, por meio do filme Blade Runner, podemos notar a diluição de fronteiras nacionais, étnicas e culturais, como sugere a autora, assim como também outras fronteiras e novos protagonistas, mesmo que projetados ficcionalmente em um futuro, distante do momento de produção do filme, mas já não tão distante de nossa atualidade. Assim sendo, encontramos nos argumentos dos autores citados neste texto várias perspectivas de abordagens no que se referem à configuração do espaço geográfico e do tempo histórico considerados pós-modernos, por meio das representações contidas no filme Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 265 Blade Runner. No entanto, como conclusão deste trabalho, abordaremos também elementos que consideramos relevantes e que não foram citados por estes autores, a guisa de conclusão. Conclusão Uma das características marcantes das metanarrativas típicas da modernidade reside no fato de que elas anseiam um final imaginado no presente e justificado pelo passado. Isto pode ser observado claramente, entre tantas, em três metanarrativas clássicas, como o cristianismo, o socialismo/comunismo ou mesmo o positivismo/ cientificismo. É sabido que as visões de mundo em comum proporcionadas a grandes multidões de agentes e seguidores destas metanarrativas marcaram uma era, e muito se fez, inclusive em termos de conflitos bélicos, para que uma visão unívoca de espaço, passado, presente e futuro pudessem ser predominantes e assim ser o motivo de ação das massas. Partindo deste pressuposto, o que encontramos no filme Blade Runner são representações que seguem na contramão de qualquer projeto teleológico moderno. No que se refere à questão espacial, marcada na modernidade por Estados Nacionais como delimitadores de espaços e fronteiras, de línguas, de comércio e de identidades, notamos no filme uma situação que beira o caos. Não há mais, de acordo com o futuro imaginado no filme, a presença de Estados Nacionais, e sim a presença de mega corporações que substituem a função do Estado. O mundo é dividido em zonas de influências de mega corporações, e o filme ilustra bem a atuação de uma delas, a Tyrrel Corporation, fábrica de replicantes nexus. No que se refere à configuração da paisagem urbana de Los Angeles de 2019, são feitos anúncios de possibilidades de vida interplanetárias, e inclusive em um deles se diz que “é a possibilidade de a América entrar no Novo Mundo”, numa clara alusão ao fato de que as empresas controlam inclusive o que restou de Estado Nacional, e a América, um dia considerada Novo Mundo, agora tem a possibilidade de entrar em outro. A paisagem do filme apresenta um caos de signos ideológicos, com explosões, poluição, carros voadores, árabes, chineses, mexicanos, latinos americanos em geral, punks, robôs, hare krishnas, o que sugere uma mestiçagem cultural e econômica, onde as pessoas parecem não ter nenhum sentido específico de vida, inseridos em uma atmosfera parada, suspensa, sem a presença do sol, noir, marcada por publicidades internacionais em outdoors Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 266 elétricos e de neon, comidas diversas dispostas em uma feira onde se encontra de tudo, pessoas não padronizadas, soltas, vagam sem sentido. Todos os personagens se apresentam depressivos, tristes, sem perspectivas, perdidos no espaço da metrópole, sem saber onde estão indo e por que estão ali, o que realmente sugere uma ausência de valores, um niilismo absoluto, sem qualquer solidariedade de grupo. O filme mostra que aparentemente houve uma evolução nos meios e fluxos de transporte, mas a população se acotovela nas ruas, se esbarrando todo o tempo devido à multidão exagerada que ocupa o mesmo espaço no centro da metrópole, o que sugere que o futuro não concretizou nenhuma visão otimista proposta no passado, inclusive por metanarrativas teleológicas que preconizavam a ciência e a tecnologia como aquelas que trariam a felicidade e o pleno lazer para as massas. Os fluxos de mercado paralelo se destacam no filme, onde inclusive se podem comprar órgãos humanos geneticamente fabricados, inclusive podem ser falsificados, numa sugestão clara a um jogo de simulacros e simulações. É curioso notar que há um predomínio de chineses na paisagem, uma vez que o filme é de 1982, época esta que os Estados Unidos não tinham sua hegemonia econômica ameaçada pela China. Portanto, em referência ao que o filme apresenta como diferente em termos de uma nova possibilidade de configuração de espaço pós-moderno, temos estes exemplos que demonstram a importância das representações cinematográficas para a geografia, uma vez que por meio das imagens cinematográficas, podemos compreender melhor como uma época pode imaginar o futuro, e como por meio do filme podemos pensar como uma época passada pensou sobre o futuro, e assim questionarmos se o espaço caminha para estas transformações, o que deu certo, o que não se concretizou, e assim problematizarmos nossa relação com o espaço atual. Em relação à questão do tempo, entendemos que o filme nos apresenta um exemplo muito significativo no que tange à possibilidade de se pensar diferentes temporalidades históricas coexistentes no cotidiano, desconsiderando assim uma visão unívoca de história linear e teleológica, como proposta por diversos projetos modernos. Isso fica notório por meio da forma em que os replicantes necessitam de um passado para justificarem e tentarem prolongar suas existências. Logo no início do filme, acontece um teste para se detectar possíveis replicantes fugitivos, e por meio deste teste se pretende provocar no replicante uma resposta emocional. Mesmo nervoso, o replicante Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 267 consegue responder as questões, mas quando perguntado sobre sua mãe, ou seja, sobre seu passado, o replicante se irrita ao extremo e acaba por assassinar o entrevistador. Esta cena sugere que a possibilidade de se reconhecer os replicantes fugitivos é possível por meio de perguntas sobre o passado dos mesmos, uma vez que eles não o possuem. Para tentar fugir dos seus caçadores, os replicantes precisam inventar um passado, e o artifício que eles se utilizam para tanto se dá por meio da seleção de fotografias construídas ou adquiridas de outrem, que no caso criariam um sentido, uma narrativa para justificarem suas existências. Tal situação sugere que em tempos de pós-modernidade, as possibilidades de narrativas históricas são múltiplas, e não somente e apenas determinadas pelo texto escrito, ou seja, o visual, no caso as fotografias, podem ser usados como documentos visuais que podem justificar um sentido histórico. O próprio personagem principal do filme, Deckard, o caçador de andróides, tem a sua verdadeira identidade suspeita em uma cena em que são vistas fotos de sua infância sobre um piano, justificando um sentido linear para sua vida. A personagem replicante Rachel questiona se Deckard já foi testado, e ele fica em silêncio, o que insinua a possibilidade de Deckard também ser um replicante. O filme deixa esta questão em suspenso, mas o que nos chamou a atenção é o fato de que, replicante ou não, o filme sugere que Deckard também faz uso da narrativa por meio de fotografias lineares que justificam o sentido de sua existência. O filme também apresenta reflexões acerca da temporalidade inerente às vidas humanas, uma vez que os replicantes são projetados para viverem apenas quatro anos. Assim sendo, os replicantes buscam o prolongamento de suas vidas, mas para tanto, necessitam descobrir suas genealogias, e tal situação fica explícita quando dois replicantes procuram Sebastian, projetista genético da Tyrrel Corporation, que sofre de decrepitude acelerada, vivendo em um edifício abandonado, sujo e úmido, em meio a pequenos robôs que fazem uma clara referência ao “Mundo Mágico de Oz”. Sebastian representa o papel de “Deus” para os replicantes, e quando questionado se havia possibilidade de se prolongar a vida dos mesmos, ele afirma que não, que era impossível, e deste modo esta cena nos proporciona uma fecunda reflexão sobre a brevidade e o sentido da vida, uma vez que dotados de sentimentos, mesmo que geneticamente fabricados, os replicantes, como se nota nas palavras de Roy, um dos seus principais representantes, afirma: “queremos mais vida”. Os replicantes acabam por assassinar Sebastian, ou seja, criaturas assassinam o criador, o que nos leva a refletir que o filme pode estar fazendo uma referência ao filósofo Nietzsche, considerado por muitos como um dos pensadores que mais influenciaram nas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 268 teorias pós-modernas, sobretudo por introduzir idéia de genealogia no lugar de uma história única e linear, e ser um crítico ferrenho de uma das principais metanarrativas existentes, a saber, o cristianismo. Nietzsche anuncia a polêmica “morte de Deus”, e no filme, notamos claramente os replicantes assassinando o “Deus” deles. Também há referências no filme ao cogito de René Descartes, os replicantes se sentem existindo pelo fato de pensarem, como sugere a personagem Rachel. O diretor máximo da Tyrrel Coroporation afirma: “nossa meta é o comércio, mais humanos que os humanos”, o que também pode ser uma referência ao “humano, demasiado humano”, de Nietzsche. Enfim, desta forma acreditamos que por meio de um filme, e das representações que ele nos apresenta, podemos conjecturar e encontrar caminhos para discussões e reflexões acerca das relações entre cinema, geografia e história, sobretudo no que concerne a dois campos de conhecimento específico destas disciplinas, como o espaço e o tempo. No caso, mesmo sendo uma obra fictícia adaptada da literatura 1 para o cinema, e lançada como filme em 1982, o filme nos fala do imaginário espacial de seu contexto, de como pensamos o futuro e o passado, e assim podemos refletir sobre as formas como nos representamos a nós mesmos. Por fim, acreditamos que a interdisciplinaridade se constituiu como um importantíssimo meio de análise para se compreender melhor os ditames de nossa relação com o espaço e o tempo, assim também como o sentido do que fazemos e de nossa existência relacionada a estes dois campos do conhecimento. Conhecimento teórico geográfico e histórico, associados, inclusive tendo como fonte de pesquisa o cinema, podem apontar novas possibilidades de abordagens e caminhos que muito podem contribuir para novos horizontes de análise sobre as humanidades em geral. Referências Bibliográficas BARROS, José D´Assunção. A cidade-cinema pós-moderna: uma análise das distopias futuristas da segunda metade do século XX. In: NÓVOA, Jorge, FRESSATO, Soleni Biscouto, FEIGELSON, Kristian. Cinematógrafo, um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Editora da UNESP, 2009. CABRERA, Júlio. O Cinema Pensa: uma introdução à filosofia através do cinema. Trad. De Ryta Vinagre. Rio de Janeiro, Rocco, 2006. 1 O filme Blade Runner é uma adaptação para o cinema do livro “Do androids dream of eletric sheep?”, de 1968, escrito por Phillip K. Dick. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 269 CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna: introdução as teorias do contemporâneo. São Paulo: Edições Loyola, 1993. DICK, Philip. O caçador de andróides. Tradução por Ruy Jungman. Rio de Janeiro: F. Alves, 1988. FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. FRANÇA, Andréa. Terras e Fronteiras no cinema político contemporâneo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. GRUZINSKI, Serge. A Guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492- 2019). São Paulo: Companhia das Letras, 2006. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo: Loyola, 2010. HELLER, Agnes. FEHÉR, Ferenc. 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Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 270 A PERCEPÇÃO DA TEORIA QUÂNTICA POR UM FILÓSOFO NA DÉCADA DE 20 Gustavo Bertoche Gaston Bachelard foi um dos mais importantes filósofos das ciências no século XX. Sua formação intelectual ocorreu durante as três primeiras décadas desse século. Iniciou sua carreira como répéteteur no liceu da pequena cidade de Bar-sur-Aube, mas logo veio a se tornar funcionário dos Correios. Quando a I Guerra Mundial começou, foi convocado; passou três anos nas trincheiras e foi condecorado. Após o fim da guerra, voltou à vida acadêmica: durante os anos 1920, fez estudos em Filosofia, orientado por Léon Brunschvicg e Abel Rey. Concluiu seu doutorado em Filosofia em 1927, publicando em 1928 a tese Ensaio sobre o conhecimento aproximado. No Ensaio, Bachelard propôs uma nova forma de compreender o conceito de conhecimento científico, rompendo expressamente com o cartesianismo e com o positivismo, e muito particularmente com a concepção de conhecimento como adequação entre a mente cognoscente e a coisa cognoscível. Embora essa obra não se referisse explicitamente aos novos desenvolvimentos da microfísica, já indicava uma atitude de questionar a aplicação dos pressupostos da ciência e da filosofia dos séculos XVIII-XIX, como a suposição de um dado em si, a possibilidade (ou, ao menos, a inexistência da interdição da possibilidade) de alcançar uma determinação exata de uma medida, a separação clara entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, a distinção evidente entre coisas naturais e coisas artificiais... Desde sua tese de doutorado, desde seu primeiro livro, Bachelard posicionou-se junto aos questionadores da tradição científico-filosófica. O tema da microfísica não aparecia nas primeiras três obras de Bachelard; todavia, emergiu com muita força em seus textos posteriores a 1930, ano em que escreveu O pluralismo coerente da química moderna (BACHELARD, 2009). Na edição de 1931-32 da revista Recherches philosophiques, Bachelard publicou Númeno e microfísica (BACHELARD, 2008). Em 1933, lançou Les intuitions atomistiques (Essai de classification). Em 1934, foi publicado O novo espírito científico (BACHELARD, 1988). Essa produção aconteceu no início dos anos 30; portanto, decorre de um pensamento que amadureceu desde a década de 1920, concomitantemente ao próprio desenvolvimento e à divulgação da Teoria Quântica. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 271 É sabido que Bachelard, nos anos de preparação de sua tese de doutorado, ficou bastante impressionado com esses desenvolvimentos – especialmente com o princípio de indeterminação onda-partícula de Werner Heisenberg e a mecânica ondulatória de Louis de Broglie. A posição de Louis de Broglie na cultura científica francesa à época em que Bachelard escrevia sua tese era extraordinária (FREIRE, 2010): historiador tornado físico de talento, grande divulgador científico, maior expoente francês nos desenvolvimentos da física quântica, vencedor do Nobel de 1929 por sua teoria das “ondas de matéria”, de Broglie influenciou profundamente o pensamento bachelardiano – a ponto de o capítulo de O novo espírito científico dedicado à exposição da “epistemologia não-cartesiana” ter sido parcialmente estruturado em torno de citações de textos do físico. O pensamento de de Broglie foi tomado por Bachelard como uma corroboração, na própria física, de suas concepções filosóficas a respeito da ciência. Uma dos temas mais caros a Bachelard, tema ao qual voltou recorrentemente, foi a concepção de que existe uma ruptura epistemológica entre a física clássica e as ciências físicas do século XX. Efetivamente, Bachelard interpretou a microfísica como um domínio em que a metafísica da ciência do século XX, que seria, para Bachelard, a metafísica do senso comum, não funciona: Procurando descer aos domínios da microfísica onde se forma o novo espírito científico, percebe-se que o estado de análise de nossas intuições comuns é muito enganador e que as ideias mais simples, como as de choque, de reação, de reflexão material ou luminosa, precisam ser revistas. Vale dizer que as ideias simples precisam ser complicadas para poder explicar os microfenômenos. (BACHELARD, 1988, p. 283) E essa contradição entre a física clássica e as físicas do século XX seria mais notável na física quântica do que na física relativista. Bachelard argumentou (BACHELARD, 1988, p. 335-336) que mesmo os epistemólogos que buscavam interpretar os resultados das novas ciências a partir dos pressupostos da física clássica, como Émile Meyerson, assumiam a dificuldade de adequar a teoria quântica à racionalidade clássica – o que não ocorria com a teoria da relatividade. Um exemplo dado por Bachelard para demonstrar a dificuldade de compreender a teoria quântica a partir da lógica clássica e da metafísica da causalidade foi o postulado da complementaridade entre corpúsculo e onda, um dos princípios mais importantes da interpretação de Copenhague. Nas palavras de Bachelard, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 272 as duas imagens: corpúsculos e ondas não chegam verdadeiramente a se reunir. Somente são claras se estão isoladas. Devem em suma permanecer uma e outra das imagens e não pretender representar realidades profundas. Essas imagens serão porém instrutivas se soubermos considera-las como duas fontes de analogias, se nos exercitarmos em pensar uma pela outra bem como em limitar uma pela outra. Ambas com efeito deram suas provas: a intuição do corpúsculo e de seus movimentos deu a mecânica, a intuição da onda e de sua propagação deu a óptica física. (...) Quando se aprendeu a equilibrar as duas intuições do corpúsculo e da onda, quando se começou a resistir ao realismo ingênuo que pretendeu formar em toda parte coisas de caracteres permanentes, quando se compreendeu o poder de experiência realizante, está-se preparado para pôr em termos menos agudos o problema da relação dialética dos dois grandes aspectos fenomenológicos. Com efeito, por que se procuraria uma espécie de ligação causal entre o corpúsculo e a onda se se trata unicamente de duas imagens, de dois pontos de vista considerados num fenômeno complexo? De fato, as teses que representavam a onda-piloto dirigindo o corpúsculo não produziram senão metáforas para traduzir a simples associação do corpúsculo e da onda. Tudo o que se pode dizer é que essa associação não é nem causal, nem substantiva. O corpúsculo e a onda não são coisas ligadas por mecanismos. Sua associação é de ordem matemática; deve-se compreende-los como momentos diferentes da matematização da experiência. (BACHELARD, 1988, p. 295-296) Isso significa que Bachelard considerava que o postulado da complementaridade era uma clara demonstração da impossibilidade de uma continuidade entre a física clássica e a física quântica. Afinal, esse postulado rompe com o princípio da identidade substancial e com a causalidade: o mesmo objeto são dois fenômenos diferentes; a mesma causa tem duas conseqüências opostas e complementares, e a realização de uma ou outra conseqüência não depende senão da fenomenotécnica que as produz – numa linguagem vulgar, a determinação do fenômeno como onda ou partícula depende de uma causa extrínseca, que é a presença e a ação do observador. Para Bachelard, o próprio atomismo da revolução quântica deveria ser compreendido de modo diferente do atomismo do século XIX (BACHELARD, 1933, p. 133-134). No final do século XIX, os físicos procuravam demonstrar a existência do átomo; nas primeiras décadas do século XX, contudo, os físicos buscavam menos demonstrar a existência do átomo do que construir novos fenômenos a partir das noções atômicas. Nesse sentido, Bachelard afirmou que a física moderna é “menos ciência de fatos e mais ciência de efeitos”: Quando nossas teorias permitem prever a ação possível de um dado princípio, nos empenhamos em realizar essa ação. Estamos dispostos a fazer Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 273 o esforço necessário, mas é preciso que o efeito se produza desde o instante em que ele é racionalmente possível. Assim, enquanto o efeito Kehr é fácil de realizar, o efeito Zeeman requer recursos mais possantes. O efeito Stark pede campos elétricos muito intensos. Mas os meios sempre são encontrados quando o objetivo é designado racionalmente. Para um fenômeno previsto racionalmente, pouco importa a ordem de aproximação da verificação. Não se trata tanto de grandeza, e sim de existência. Muitas vezes, a experiência comum é uma causa de desalento, um obstáculo; é então a experiência refinada que decide tudo, pois ela obriga o fenômeno a mostrar sua estrutura fina. (BACHELARD, 2009, p. 204) Para Bachelard, a experiência na microfísica não é um ponto de partida, não constitui um procedimento indutivo; a experiência é sempre a parte final de uma teoria, a experiência é um objetivo. Ao rejeitar o indutivismo e reforçar o caráter de objetivo, de meta, da experiência, Bachelard antecipou em quatro anos a tese revolucionária de Popper. Na verdade, logo em 1936 Bachelard resenhou o Logik der Forschung, publicado em 1934, para o Recherches Philosophiques. Na resenha, de acordo com CASTELÃO-LAWLESS (2012), Bachelard identificou muitos elementos semelhantes aos da escola analítica de Viena e fez elogios em relação à “clareza da sua exposição, o carácter incisivo da sua análise das relações gerais e a singularidade das suas condições de aplicabilidade, e também pelas nuances na sua distinção entre causalidade, explicação e dedução de previsões”. Bachelard compartilhava com Popper a atitude anti-dogmática, anti-positivista, anti-fundacionalista, anti-psicologista e anti-convencionalista, e, como ele, refletia, nos textos do início dos anos 30, sobre o problema da indução, os critérios de demarcação, o valor do erro científico e as conseqüências epistemológicas da física quântica. Outro ponto de contato entre Popper e Bachelard é a consideração de que a ciência não tem um ponto de chegada pré-determinado: não é possível afirmar que existe a “última palavra” na ciência. Para Popper, a teoria é mera hipótese, e a hipótese só pode ser testada empiricamente após sua postulação – ou seja, é a formulação racional da teoria que indica a possibilidade da construção do aparato experimental que pode corroborar ou falsificar a teoria. Essa posição pode ser compreendida, a partir de uma perspectiva bachelardiana, como a noção de que o conhecimento científico, o que inclui o conhecimento experimental e, consequentemente, a própria realidade que emerge no experimento, é construído racionalmente; ou, em outras palavras, a realidade acessível pela ciência não é dada, mas construída. No próprio título de sua obra de 1930, O pluralismo coerente da química moderna, Bachelard apresentou seu projeto para compreender o desenvolvimento da química desde Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 274 Mendeleev: para o filósofo, a pluralidade dos elementos químicos segue uma ordem racional, e essa racionalidade é dada pelo próprio real construído fenomenotecnicamente, ou seja, na associação necessária entre a racionalidade teórica e o trabalho de engenharia científica que constrói a instrumentação. Uma tese central do livro é que o progresso da química deu-se no processo de substituição da concepção de que os atributos das substâncias são subordinados a elas pela concepção de que os atributos são coordenados entre si, e que as próprias substâncias são coordenadas entre si – o que explica a necessidade de uma substância para revelar outra na tabela periódica. (BACHELARD, 2009, p. 25). Bachelard demonstrou que na história da química os químicos teriam procedido, inicialmente, guiados por uma metafísica realista; mas, ao encontrar leis racionais, sua pesquisa teria mudado de sentido; teriam aberto, assim, o caminho para uma “química matemática”, ou seja, em uma descrição quântica e matemática das substâncias. A descrição quântica dos fenômenos atômicos foi interpretada por Bachelard, em 1930, como uma conquista do racionalismo matemático. Para ele, o princípio de Pauli fez surgir uma “luz racional no quadro das substâncias elementares” (BACHELARD, 2009, p. 193): com ele, a experiência tem seus elementos coordenados em uma “abstração realizada progressiva” (BACHELARD, 2009, p. 192). A racionalização das possibilidades químicas “precedeu e preparou a racionalização do real” (BACHELARD, 2009, p. 198). O plano geral das substâncias, conhecido por meio dos períodos revelados pela tabela periódica de Mendeleev, teria cumprido um papel de guia para um progresso coerente no conhecimento da pluralidade das substâncias. Do mesmo modo, defende Bachelard, o pluralismo dos quanta teria recebido uma coerência profundamente racional quando se pôde compreender, a partir de uma única equação, o conjunto das soluções possíveis – como no método de Schrodinger, no qual o descontínuo dos valores próprios que permitem fixar as freqüências das raias é deduzido matematicamente de um conjunto de simples possibilidades. Bachelard afirmou expressamente que o conhecimento da ciência contemporânea é o conhecimento sobre uma realidade possível, e possível porque fabricada: A pesquisa de um pensamento harmônico pode se aproximar de um princípio de construção suficiente. Sem ter razões positivas para generalizar uma estrutura, é possível ter razões que nos levem a generalizar uma construção. Nessa via, achar-se-ia o meio de integrar, nos princípios de inferência, razões de simetria e até necessidades de ornamentação. Parece Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 275 que os temas racionais de nosso conhecimento do real aceitam e chamam as variações da experiência. Uma estética do conhecimento vem então animar- se ao contato com a estética das substâncias. Reciprocamente, a racionalidade da ciência é confirmada pelas variações bem ordenadas da experiência, mais ainda que por uma identidade monótona. As substâncias químicas, compreendidas num pluralismo coerente e homogêneo, sugerem possibilidades de construção. Chega-se, a propósito do real, a um estudo sistemático do possível. No mundo do químico, não se pode decerto dizer que tudo o que é possível existe naturalmente, mas se pode afirmar que tudo o que é possível pode ser fabricado. Não se trata de um simples truísmo: o possível estudado pela química não é um possível gratuito, já é um programa de realização, um esquema para experiências que têm uma aposta de sucesso. Trata-se de incorporar circunstâncias convenientes a atos substanciais nitidamente definidos. Na química, o que pode ser pensado com coerência, o que é sistematicamente possível, pode ser realizado no pleno sentido do termo. A compossibilidade demonstrada já designa um método de composição. (BACHELARD, 2009, p. 203-204) Essa construção da realidade microfísica, ou das realidades microfísicas possíveis, seria realizada experimentalmente, fenomenotecnicamente, por meio da matemática que constitui a harmonia de todos os fenômenos. Para ele, o pensamento abstrato é o que determina todas as possibilidades de realidade na física quântica; as experiências possíveis são ligadas entre si pelos vínculos matemáticos. “É pela matemática que se pode explorar o real até o fundo de suas substâncias e em toda a extensão de sua diversidade. Na ciência contemporânea delineia-se o panorama matemático da matéria” (BACHELARD, 2009, p. 205-206). O atomismo moderno, por exemplo, se utiliza de um conjunto de instrumentos precisos, nascidos da própria teoria; o atomismo moderno pode ser compreendido como um verdadeiro “atomismo instrumental” (BACHELARD, 1933, p. 138), pois os átomos são construídos fenomenotecnicamente. Por isso, a teoria quântica não poderia ser compreendida a partir de uma metafísica realista; ao elétron, não são acrescentados simplesmente propriedades e forças, mas números quânticos; é a partir desses números é que se estabelecem os lugares dos elétrons nos átomos, e os lugares dos átomos nas moléculas (BACHELARD, 1988, p. 289). O real deveria ser medido pelo possível, pelas possibilidades matemáticas; para Bachelard, a teoria quântica postula que a realidade seria função de um número. A teoria quântica demonstraria que a matemática não pode ser vista somente como meio de expressão, como suporte para um conhecimento substancial. A matemática não serve somente para indicar resultados: ela é capaz de confirmar ou de criar relações entre resultados. Ela é um método heurístico que ilumina as possibilidades da realidade microfísica. Como diz BULCÃO (2009, p. 102), “Enquanto a física experimental fornece o material e os problemas, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 276 a física matemática cria possibilidades novas de realização. É a física pensada matematicamente que inventa o real”. Como diz DAGOGNET (1980, p. 29), para Bachelard “a ciência produz, na realidade, seres novos”. A matemática é a verdadeira estrutura ontológica da realidade criada pela teoria e pelos experimentos da física quântica: Assim, o mundo oculto de que nos fala o físico contemporâneo é de essência matemática. O físico faz suas experiências com base no caráter racional do mundo desconhecido. Talvez a fórmula que exprime bem a convicção do físico, quando ele passa da dúvida relativa ao seu domínio sobre a realidade, seja a seguinte: cogitatur, ergo est, compreendendo-se que o fato de ser pensado matematicamente é a marca de uma existência ao mesmo tempo orgânica e objetiva. E só porque ela é orgânica é que se crê em sua objetividade. Nada de gratuito e de subjetivo, por um lado, assim como nada de simples e de desestruturado, por outro, encontra lugar no ser da Física matemática. (BACHELARD, 2008, p. 17) Para Bachelard, a física quântica é, efetivamente, ontologia, é numenologia; a fenomenotécnica não encontra fenômenos, mas inventa, cria os objetos, num sentido realista. Os objetos são reais, mas existem somente no laboratório, e suas propriedades são matemáticas; o real do laboratório nada tem a ver com o real da experiência habitual. O númeno do laboratório, o objeto da microfísica, é um “centro de convergência das noções” (BACHELARD, 2088a, p. 22), e essa convergência é relacional e, consequentemente, matemática. Bachelard propõe, entre 1930 e 1934, uma interpretação filosófica, metafísica, para a teoria quântica: uma interpretação que, de um lado, se baseia na concepção de que existe uma ruptura fundamental entre a epistemologia clássica e a do século XX, especialmente em relação à teoria quântica – concepção que é apoiada pelos trabalhos de Louis de Broglie publicados nos anos 20; de outro lado, ao construtivismo ontológico, cuja ontologia é fundamentada na matemática. Para Bachelard, a física quântica é verdadeiramente uma metafísica, mas uma metafísica diferente de todas as metafísicas da tradição. Enquanto nas metafísicas tradicionais o objeto de investigação era produto da razão na mente de um filósofo, a física quântica, a metafísica contemporânea, produz seu objeto de investigação; é uma metafísica que se experimenta, é um pensamento tornado real. Em suma, se pudermos resumir em uma única passagem a interpretação de Bachelard a respeito da física quântica, poderemos dizer que ela é "a metatécnica de uma natureza artificial. A ciência atômica contemporânea é mais que uma descrição de fenômenos: é uma produção de fenômenos. A Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 277 Física matemática é mais que um pensamento abstrato: é um pensamento naturado”. (BACHELARD, 2008, p. 22) Referências Bibliográficas BACHELARD, G. Les intuitions atomistiques (Essai de classification). Paris: J. Vrin, 1933. ______. O Novo Espírito Científico. Tradução de Remberto F. Kuhnen. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores. [1934] ______. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. [1927] ______. Númeno e microfísica. In: Estudos. 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Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 278 ERÁRIO MINERAL: A UTILIDADE DO SABER PRÁTICO Isabela de Oliveira Dornelas Universidade Federal de Minas Gerais Graduanda em História.Bolsista FAPEMIG [email protected] Resumo: Esse trabalho tem por objetivo apresentar algumas impressões no estudo da obra Erário Mineral de Luís Gomes Ferreira, publicada em 1735, Lisboa. O texto se dedica aos símplices de Minas Gerais afastados do socorro na hora da doença. Pretende-se compreender a utilidade da obra e seus limites no objetivo de amparar a população mineira entre livres e escravos. Com esse intuito, buscaremos identificar e analisar na obra aspectos que dizem do lugar social do cirurgião em contraste com o saber teórico referendado aos médicos, das condições de trabalho e vida dos mineiros à época e também das receitas acessíveis aos desvalidos. Palavras-chave: Erário Mineral, Minas Gerais, Colônia. Abstract: This paper has the goal to introduce some observations in the study of the book Erário Mineral, written by Luís Gomes Ferreira, and published in 1735, at the city of Lisbon. The target is to understand the utility of Ferreira’s work and it’s limitations as a tool to provide care to the wide population of Minas Gerais, in a range that went through slaves all the way to free people. With all this in mind, we seek to identify and analysis in the book aspects that says about the surgeon social place and function, opposed with the traditional medical knowledge. We also seek to gather information about Minas Gerais population life and work conditions and about the accessibility of medical recipes to the least privileged ones. Keywords: Erário Mineral, Minas Gerais, Colony. O Erário Mineral é um livro publicado em 1735 em Lisboa pelo cirurgião Luís Gomes Ferreira, licenciado pelo Hospital Real de Todos os Santos onde majoritariamente se formavam esse práticos. A obra foi escrita de acordo com o autor, para socorrer os mineiros que vivam longe de qualquer amparo nos momentos de doenças. Ferreira tem conhecimento de causa. Viveu por 20 anos no Brasil entre a Bahia, Sabará e em Mariana antiga Vila do Carmo. As informações mais relevantes que temos sobre Luís Gomes Ferreira são fornecidas por ele próprio no Erário. Veio como muitos outros minhotos atrás de ouro mas cá ao perceber a enorme falta de amparo nos moldes lusitanos continuou a atuar como cirurgião sem deixar de lado a mineração. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 279 Para iniciarmos nosso breve estudo sobre a utilidade do Erário Mineral cabe aqui um rápido panorama de Minas Gerais no primeiro quartel do XVIII: a recente descoberta de ouro atraiu grande movimento migratório para região, pessoas vinham de outros lugares da colônia e também do reino para tentarem a sorte de se enriquecerem. Os africanos escravizados compunham a maior parte da crescente população enquanto os indígenas sentiram os pesados efeitos do aumento populacional que contribuiu para sua drástica mortalidade. O cotidiano em Minas Gerais era de trabalho árduo. Sujeito às mais variadas intempéries do clima úmido e frio que favorecia todo tipo de enfermidades. O trabalho nas minas era perigoso e em seu livro Gomes Ferreira relembra terríveis acidentes como soterramentos, escravos afogados, fraturas causadas por desmoronamentos. Somado à isso, a fome atacava à capitania de quando em quando (DIAS, 2002). Conforme Gomes Ferreira se adaptava à terra, por ser observador vivaz, percebe que as condições de vida na colônia são muito diferentes das do Reino. Nesse ambiente toda técnica cirúrgica deveria ser revisada. Ainda quando morava em Sabará, apenas três anos após sua chegada, já ressaltava a necessidade de adaptar a maneira de curar em Minas Gerais. Sabemos disso pelo relato que ele mesmo faz sobre como se deve proceder no tratamento de fraturas: “[...] Disse que éramos obrigados a curar as doenças conforme a região e o clima onde nos achássemos[...]” (FERREIRA, 2002, p. 471) Primordialmente deveria se levar em conta o clima que em muito se difere de Portugal, fator de extrema importância para o comportamento dos humores da teoria galênica. Além disso, os mantimentos que abasteciam Minas Gerais eram escassos, de má qualidade o que para o autor é determinante na forma como se deve proceder diante de uma doença. Ora, as sangrias eram um método consagrado em Portugal mas na Colônia era perigosíssimo “E se em Portugal se recomenda que as sangrias se não façam com excesso, onde os mantimentos são de boa sustância, que sucederá nestas Minas e em todo o Brasil, a onde são tão diferentes?” (FERREIRA, 2002 p. 278). A razão pela qual o autor diferencia a eficácia dos métodos descritos em seu livro das demais instruções é: ele próprio viveu no Brasil e experimentou nesse clima e nessa população remédios eficazes e inovadores. De acordo com Ferreira, ele o é pioneiro na empreitada de praticar eficaz cirurgia em Minas Gerais. Durante o tempo que permaneceu na América tratou de incorporar aos seus conhecimentos lusitanos às raízes que os carijós recomendavam para problemas urinários e a erva que os paulistas usavam “para tudo” e demais receitas aprendidas no Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 280 contato com os locais, bem mais adaptados ao ambiente. Esse é um aspecto que nos diz da praticidade do livro: as receitas levam em conta os elementos da fauna e da flora local, isso favorece a viabilidade das receitas pois são de baixo custo ao contrário dos remédios das boticas que além de pouco confiáveis eram bastante caros. O autor se preocupa em explicar onde são encontradas essas plantas e suas características para serem identificadas. E ainda, indica mais de uma receita para o mesmo mal para amplificar as possibilidades de medicação. Além das receitas adaptadas, situações próprias do cotidiano de Minas ocupam muitas páginas do Erário Mineral. O autor leva em conta as doenças mais comuns na região como as pontadas, corrupção do bicho e resfriamentos e se dedica à escrever sobre prevenção e remédios contra essas moléstias. Os acidentes próprios da atividade mineradora também aparecem com frequência, os soterramentos, afogamentos e fraturas expostas recebem especial atenção. Nota-se a intimidade de Ferreira com a mineração, sempre atento aos aspectos caros à essa atividade, recomenda que se acuda rapidamente os miseráveis soterrados e exorta à comunidade à solidariedade nesses momentos. Mas ainda mais principalmente encontramos no Erário Mineral diversas referências à saúde do escravo. Apesar de no Reino existirem africanos escravizados nada se compara ao dado significativo que Maria Odila Leite da Silva Dias nos apresenta de 1711 a 1720 cerca de 60% dos escravizados eram importados para Minas Gerais(DIAS, 2002). O cuidado com o escravo tem suas especificidades por causa da condição de vida bastante precária. Gomes Ferreira investe neste assunto centralmente importante para a saúde dos empreendimentos. O cirurgião defende que o correto é investir em alimentação, roupa, habitação e até mesmo em diálogo com esse cativo. Na ponta do lápis ou no dever cristão valia mais a pena cuidar do escravo do que não lhe dar assistência quase nenhuma. Ferreira não se censura por escrever um livro que indica receitas (prerrogativa do médico) pelo contrário se defende de antemão dizendo que medicina e cirurgia são inseparáveis (FERREIRA, 2002, p.183). Na colônia, os rígidos estamentos que separam as atribuições do médico e do cirurgião se afrouxam. Se passa o que Jean Luiz Neves de Abreu sintetiza muito bem como “a positivação do trabalho manual” (ABREU, 2011). O cotidiano do cirurgião envolve ter contato com sangue, suturar feridas e outras atividades mecânicas pouco nobres na lógica escolástica de saber que imperava em Portugal. Mas diante da velocidade com que a população mineira crescia e ao passo que as doenças e acidentes se intensificavam, Ferreira não vê sentido Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 281 em ser impedido de escrever sobre sua prática em Minas. Pelo contrário, a coroa portuguesa enxerga vantagem na publicação da obra. No início do livro o funcionário encarregado da licença do Paço aconselha ao rei que se permita essa publicação e ainda alerta à coroa da novidade de recursos naturais importantes que se achou nessa região: Neste livro trata o autor com muita clareza as enfermidades que naquela região costumam padecer os habitadores dela e como daquele clima não houve até agora escritor algum e a mudança dos climas faz mudar de remédios; e naquela região se acham muitas ervas, plantas e frutos com nomes diversos para diversas enfermidades [...] pelo que me parece que vossa majestade lhe deve conceder licença. (FERREIRA, p. 188) Diante disso, podemos perceber: é um livro que tem compromisso com a prática. Aborda temas caros ao cotidiano de Minas Gerais, adapta as receitas para que sejam viáveis aos mineiros, se faz próximo de seu leitor quando fala de especificidades somente entendidas por àqueles que se aventuraram na colônia. Mas cabe problematizar: apesar de todo esse direcionamento, foi um livro lido e utilizado em Minas Gerais, de fato prático? Este é um estudo ainda no começo mas podemos alinhavar algumas ideias que pontilham o caminho: Sabemos que era usual escrever livros relativo aos cuidados com a saúde (ABREU, 2011). É possível identificarmos dezenas de manuais e obras que instruem sobre a saúde no XVIII, à exemplo da Âncora Medicinal para conservar a saúde de 1731, e também Luz do Primeiros Cirurgiões Embarcadiços 1711 o que supõe algum publico leitor desse tipo de obra. Júnia Ferreira Furtado sinaliza que o Erário Mineral é o único livro presente em vários inventários de Sabará dos oitocentos (FURTADO, 2002). Villalta em sua pesquisa identificou livros entre os bens citados nos inventários de Mariana de 1714 até 1822. A maior parte de conteúdo é religioso, mas é presente mesmo que em menor escala livros sobre cuidados com a saúde, inclusive o Erário Mineral (VILLALTA, 1999). Não sabemos exatamente como repercutiu o Erário Mineral na América e no Reino mas conseguimos delinear aspectos importantes de seu conteúdo prático. Se bem que, não é só o sentimento filantrópico que impeliu Gomes Ferreira na escrita de seu livro. Nas entrelinhas de algumas páginas uma ambição se revela sutilmente: o autor espera notoriedade e honrarias por seu serviço. Mas com muita sensibilidade, na última página de seu livro, Luís Gomes Ferreira se desculpa caso sua obra fique obsoleta e ainda se defende de ante mão de qualquer acusação futura. Porém, nisso, parece querer explicar para o leitor contemporâneo o que é ser um homem de seu Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 282 tempo que deixa sua marca na existência que busca ajudar o próximo ou se ajudar: “E agora direi mais: que as coisas, por novas, não podem desmerecer o crédito de sua verdade, porque, que coisa haverá hoje no mundo tão antiga que não fosse nova em algum tempo?” (FERREIRA, 2002, p. 699) Como desmerecer o trabalho de Ferreira? Pelo contrário, é um fonte de inúmeras possibilidades e que nos diz muito mais do que somente sobre o cuidado com o corpo no século XVIII. Referências Bibliográficas ABREU, Jean Luiz Neves. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011. 213 p. DIAS, Maria Odila Silva Leite. Nos sertões do Rio das Velhas e das Gerais: vida social numa frente de povoamento, 1710 – 1733. In: FERREIRA, Luis Gomes; FURTADO. Junia Ferreia (org.). 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Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 283 HISTÓRIA DA CIÊNCIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS: REFLEXÕES SOBRE CURRÍCULOS INTERCULTURAIS Janielle da Silva Melo Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Mestranda em Ensino de Ciências [email protected] João José Caluzi Universidade Estadual Paulista Professor Doutor Livre Docente [email protected] Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a presença da História da Ciência nos currículos de Formação de Professores Indígenas da área de Ciências da Natureza. Foi analisado o Projeto Político Pedagógico do curso de Licenciatura Indígena “Povos do Pantanal”, ofertado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Como resultado, verificamos que, a História da Ciência no currículo analisado não se encontra como disciplina específica, embora o Projeto Político Pedagógico cite em suas referências bibliográficas autores e textos que abordam a História da Ciência. Podemos concluir que mesmo em Licenciaturas de Formação de Professores Indígenas, cujo currículo está pautado na interculturalidade, exigindo-se ementas específicas, faz-se necessário um olhar mais crítico e estudos mais detalhados no que tange a inserção da História da Ciência em seus currículos, uma vez que as Ciências estudadas são construídas historicamente. Palavras chaves: currículo, interculturalidade, história da ciência. Introdução Fazendo um levantamento na legislação brasileira verificamos que as políticas educacionais voltadas para a educação indígena têm sua expressão na Constituição Federativa do Brasil de 1988, especificamente, no Capítulo III, Artigo 210 que assegura aos índios a formação básica comum e o respeito aos seus valores culturais e artísticos. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), de 1996, fica assegurado, às comunidades indígenas, o direito à educação escolar, cujo objetivo é fortalecer as práticas culturais e a língua materna. Assim, a base desse novo olhar para a causa indígena tem fundamento nos movimentos não-governamentais que surgiram nos anos de 1980 e 1990 e que trouxeram à cena nacional os debates sobre a educação, a questão cultural e a autonomia dos povos indígenas. Um dos aspectos discutidos diz respeito à formação de professores indígenas, considerando que essa formação é fundamental para a preservação dos repertórios culturais Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 284 das comunidades indígenas. Dessa forma, a década de 1990 marcou um período em que foram desenvolvidos projetos sobre a educação do índio e sobre a formação de professores indígenas. As escolas indígenas foram criadas como um espaço para a formação escolar indígena, com objetivo de preparar o índio para um convívio sociocultural e integrá-lo à sociedade brasileira, firmando também o seu espaço de formação cultural. De acordo com a Resolução nº 03/99 do CEB/CNE 1 , que estabelece a estrutura e o funcionamento das Escolas Indígenas e define também critérios para a formação dos professores indígenas, esta deverá ser “específica” e orientada “pelas Diretrizes Curriculares Nacionais”. Segundo essa Resolução, “será garantida aos professores indígenas a sua formação em serviço e, quando for o caso, concomitante com a sua própria escolarização”. Segundo Pérez Goméz (1998), “a formação inicial tem como objetivo formar cidadãos críticos, que contribuam para a transformação da sociedade, ainda tão desigual, em uma sociedade mais justa e solidária”. Pensando desta forma, em julho de 2005 foi criado o Programa de apoio à Educação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas - o PROLIND. O PROLIND é uma ação de apoio à formação de professores indígenas em nível superior para docência nos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Essa formação ocorre em Cursos específicos – as Licenciaturas Interculturais – de acordo com a realidade sociocultural, sociolinguística e os projetos societários do(s) povo(s) envolvido(s). Os cursos são modulares, duram em média 4/5 anos, e são organizados em Tempo- Universidade e Tempo-Comunidade (alternância). O programa visa responder pela formulação de políticas públicas de valorização da diversidade e promoção da equidade na educação, por meio de formação e capacitação de professores em nível superior. O objetivo é ampliar a oferta de toda educação básica nas escolas indígenas. Segundo dados do Censo Escolar 2008/INEP 2 , os alunos indígenas estão concentrados nos anos iniciais do Ensino Fundamental – 75,3 %; nos anos finais são 19% e no ensino médio são 5,5%. Isso mostra a enorme exclusão na oferta da educação básica e a formação de professores indígenas no ensino superior, e a importância de se implementar uma política para superar esses indicadores. Diante deste contexto, no ano de 2008 o Câmpus de Aquidauana/UFMS, após ouvir parecer e solicitação dos representantes dos povos indígenas, consciente de seu papel de pólo 1 Resolução CEB/CNE n° 3 de 10/11/1999. Fixa as Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas. Brasília: Diário Oficial da União de 14/12/1999a, p.58. 2 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Texeira. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 285 de produção e disseminação de conhecimento, propõe o Projeto de Licenciatura Plena – Intercultural Indígena “Povos do Pantanal”, que prevê a formação de Licenciados em Licenciatura Intercultural Indígena com formação em Educação Básica nas áreas: Linguagens e Educação Intercultural, Matemática e Educação Intercultural, Ciências da Natureza e Educação Intercultural, Ciências Sociais e Educação Intercultural, no contexto das etnias Atikum, Guató, Kamba, Kadiwéu, Kinikinau, Ofaié e Terena. Este curso na modalidade de regime especial, presencial, em módulos de “alternância”, está sendo desenvolvido nas dependências da UFMS, no Câmpus de Aquidauana, desde o ano de 2010 por profissionais das universidades parceiras e da Secretaria de Estado de Educação. O Curso de Licenciatura para os Povos do Pantanal – Licenciatura Plena – Intercultural e Indígena - Povos do Pantanal (CPAQ) tem 04 anos de duração, na modalidade de "alternância", com 3.536 horas/aula, sendo um núcleo comum de três semestres, com carga horária de 1.122 horas/aula, com um currículo único para todos os acadêmicos; um núcleo específico de cinco semestres, com carga horária de 2.414 horas/aula, organizado em quatro grandes áreas de formação especializada Linguagens e Educação Intercultural, Matemática e Educação Intercultural, Ciências da Natureza e Educação Intercultural, Ciências Sociais e Educação Intercultural. O acadêmico assim terá até 07 anos para integralizar o curso. Atualmente 3 o curso tem 16 acadêmicos cursando a área de Ciências da Natureza e Educação Intercultural. Reflexões sobre a História da Ciência no currículo intelectual Fazendo um estudo no Projeto Político Pedagógico da Licenciatura Intercultural Indígena “Povos do Pantanal” em específico na área de Ciências da Natureza e Educação Intercultural, verificamos que o objetivo é formar professores indígenas com competências pedagógicas, a partir de uma abordagem antropológica sobre o estudo da natureza, desenvolvendo capacidades para a produção de conhecimentos em física, química, biologia e ecologia, com a justificativa de que o aproveitamento, conservação e transformação da natureza, inserida no contexto espacial, temporal e cultural dos “Povos do Pantanal”, é conteúdo substancial para esses povos e sua relação com o universo. Dentro de uma perspectiva intercultural o curso encerra uma abordagem curricular flexível que visa atender ao conjunto de necessidades específicas da formação destes professores, o que atende aos 3 No ano de 2013. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 286 pressupostos legais com relação à formação de profissionais indígenas em educação escolar, bem como o atendimento às problemáticas locais de suas comunidades. Para tanto, a proposta pedagógica do curso é continuamente enriquecida pelas pesquisas realizadas, buscando favorecer o diálogo intercultural entre as diversas ciências e os diversos tipos de saberes. O curso fundamenta-se em procedimentos que criem condições de atingir os objetivos traçados, a partir das expectativas dos professores indígenas em formação, de suas comunidades e do planejamento participativo; da valorização dos conhecimentos locais e interculturais; e do ensino pela pesquisa, com base na reflexão crítica da realidade. Atualmente assume-se que o uso da História da Ciência é importante para o ensino de ciências (PEDUZZI 2001). Essa relevância justifica-se por vários motivos, dentre eles a importância da História da Ciência como elemento de disseminação do conhecimento científico. Vale ressaltar a existência de uma importante distinção entre conhecimento científico e crença científica. Costumamos dizer que alguém tem conhecimento científico sobre algum assunto se ele sabe os resultados científicos e aceita os a partir de seu embasamento sobre como este conhecimento é justificado e sobre o que está baseado. A crença científica, por sua vez, são os conhecimentos dos resultados científicos, junto com sua aceitação como verdade, quando essa aceitação é baseada no respeito à autoridade que se tem a alguém. A História da Ciência pode também ajudar a entender a natureza da ciência. Resultados e discussões Na ementa curricular analisada, especificamente na área de Ciências da Natureza, verificamos que o currículo não apresenta uma disciplina específica de História da Ciência. Em análise às referências bibliográficas apresentadas no Projeto Político Pedagógico constatamos que as obras que abordam temas da História da Ciência são citadas apenas nas disciplinas de tronco comum, como na referência a PLATÃO (1997) na obra Apologia de Sócrates. Sabemos que Sócrates, filósofo grego, fundou o que conhecemos hoje por filosofia ocidental. Foi influenciado pelo conhecimento de um outro importante filósofo grego: Anaxágoras. Seus primeiros estudos e pensamentos discorrem sobre a essência da natureza da alma humana. Sócrates não foi muito bem aceito por parte da aristocracia grega, pois defendia algumas ideias contrárias ao funcionamento da sociedade grega. Criticou muitos aspectos da cultura grega, afirmando que muitas tradições, crenças religiosas e costumes não ajudavam no desenvolvimento intelectual dos cidadãos gregos. Desta forma Platão em sua obra “Apologia Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 287 de Sócrates”, defende as ideias inferidas por Sócrates. Fazer inferência a esta obra em suas referências bibliográficas, é sem dúvidas, muito oportuno para discussões sobre a História da Ciência no currículo de formação de professores indígenas, contudo, ainda há aspectos a discutir, no que diz respeito à construção de seus currículos sob o olhar da História da Ciência em eixos específicos. Conclusão Percebemos que a elaboração da ementa de ciências da natureza acima elencada atende a especificidade do currículo intercultural, abordando os conhecimentos ocidentais e os conhecimentos tradicionais. Embora na perspectiva da História da Ciência não a encontramos como disciplina específica, podemos inferir que sua abordagem deverá estar inserida nos planos de aulas dos professores formadores conscientes do papel de um ensino intercultural, pois, o Projeto Político Pedagógico cita em suas referências bibliográficas autores e textos que abordam a História da Ciência. Cabe ressaltar que a abordagem da história da ciência pode ser analisada sob diferentes aspectos dentro de um Projeto Político Pedagógico de Cursos Interculturais. Podemos concluir que mesmo em Licenciaturas de Formação de Professores Indígenas, cujo currículo está pautado na interculturalidade, exigindo-se ementas específicas, faz-se necessário um olhar mais crítico e estudos mais detalhados no que tange a inserção da História da Ciência em seus currículos, uma vez que as Ciências estudadas são construídas historicamente. Além do mais, é muito mais fácil adquirir crença científica do que conhecimento científico. Assim, sendo os professores indígenas detentores de uma cultura própria, seria enriquecedor abordar a História da Ciência como forma de adquirir conhecimento científico, possibilitando a esses professores em formação, entender como uma teoria foi justificada e por quais razões foi aceita. Referências Bibiográficas AGUILERA URQUIZA, A. H., NASCIMENTO, Adir C. Rede de Saberes: uma experiência de Interculturalidade na Universidade; VII RAM; 2007. ________. O Ensino Superior Indígena no Mato Grosso do Sul: luta por autonomia e construção de políticas de sustentabilidade; 26ª RBA/ABA; 2008. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto/Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, Brasília, 1998. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 288 ____________ Parecer CNE/CP nº 10 de 11/03/2002. 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Assim, entendendo a Primeira República como fundamental para a compreensão histórica da ciência e tecnologia no Brasil, propomos a análise de uma instituição do período: o Instituto Agronômico de Campinas (I.A.C.). Essa instituição destaca-se nesse período por desenvolver pesquisas voltadas para a cafeicultura que se destacaram por serem pioneiras tanto no Brasil quanto no exterior. Nesse trabalho, propomos a análise do Instituto através do conceito de campo científico, de Pierre Bourdieu. A análise pretende contemplar a exposição das ideias de campo e capital científico formuladas por Bourdieu, passando para um breve histórico do I.A.C. em seu início, procurando estabelecer elos entre a situação pela qual passou o Instituto e interpretá-las à luz de alguns princípios contidos no conceito de campo científico. Palavras-chave: História da Ciência e Tecnologia, institutos de pesquisa, Pierre Bourdieu. Abstract: Currently, studies related to science and technology covering various subjects, which, however, still appear insufficient, particularly in relation to the role of research institutions in Brazil, the new interpretations of the institutionalization of a science and technology policy and State action in the process. Thus, understanding the first Republic as fundamental to the historical understanding of science and technology in Brazil, we propose the analysis of an institution: the Instituto Agronômico de Campinas (I.A.C). This institution stands out in this period by developing researches focused on coffee production. In this work, we propose the analysis of the Institute through the concept of scientific field, of Pierre Bourdieu. The analysis aims to contemplate the ideas and scientific capital field formulated by Bourdieu, passing for a brief history of the I.A.C. in its early, seeking to establish links between the situation in which the Institute and interpret them in the light of certain principles contained in the concept of scientific field. Keywords: History of Science and Technology, reserach institutes, Pierre Bourdieu. Introdução Atualmente, os estudos relacionados à ciência e tecnologia abrangem uma gama considerável de assuntos em áreas diversas, como engenharia, economia, direito e ciências sociais, e possuem certa quantidade de análises, as quais, contudo, ainda se mostram Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 290 insuficientes, principalmente em relação ao papel das instituições de pesquisa no Brasil e a novas interpretações da institucionalização de uma política científica e tecnológica no país. O que se destaca dentre as análises é o papel fundamental ocupado pelo Estado nesse processo. De fato, o estabelecimento de uma política científica no país foi intermediado pela ação constante do poder público, visto a ação dessa instância na criação dos primeiros institutos de pesquisa e universidades. A presença governamental em ações voltadas para a C&T está presente desde a vinda da família real em 1808. No mesmo ano de sua chegada, D. João VI cria o Jardim Botânico, a primeira instituição de pesquisa no país. Desde então, a ação do Estado foi característica do processo, destacando-se o primeiro período republicano em nosso país (1889-1930). A política de descentralização instaurada tinha por objetivo pôr fim à centralização política da Monarquia, transferindo as esferas de poder político e econômico para os Estados. A classe cafeicultora paulista agiu nos bastidores para a mudança do regime, visando desatar as amarras do governo Imperial que impediam o avanço de sua economia por meio da cafeicultura. Assim, entendendo o período da Primeira República como fundamental para a compreensão histórica da ciência e tecnologia no Brasil, propomos a análise de uma instituição que ocupou um papel central nesse período: o Instituto Agronômico de Campinas (I.A.C.). Essa instituição, criada em 1887 por D. Pedro II, destaca-se nesse período por desenvolver pesquisas voltadas para a cafeicultura que se destacaram por serem pioneiras tanto no Brasil quanto no exterior. Contudo, uma crise de superprodução e interferências externas fizeram com que houvesse uma reestruturação no I.A.C. em fins do século XIX. Nesse trabalho, propomos a análise desse período pelo qual passou o Instituto através de um referencial metodológico fornecido por Pierre Bourdieu, em especial o conceito de campo científico. Para isso, o artigo se inicia com a análise e exposição das ideias de campo e capital científico formuladas por Bourdieu. Posteriormente, passamos para um breve histórico do I.A.C. em seu início, destacando os motivos que levaram à sua instalação, os anseios que os cafeicultores desejavam em serem atendidos, a administração do primeiro diretor, Franz Dafert e a crise que levou a sua substituição. Por fim, procuramos estabelecer alguns vínculos entre a situação pela qual passou o Instituto e interpretá-las à luz de alguns princípios contidos no conceito de campo científico elaborado por Pierre Bourdieu. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 291 O campo e o capital científico de Pierre Bourdieu O conceito de “campo” é central na sociologia de Bourdieu, sendo uma das grandes contribuições dadas pelo autor para o estudo e análise na área das ciências sociais. Richard Romancini (ROMANCINI, 2006) apresenta uma síntese sobre o conceito de campo realizado por Bourdieu. Embora extenso, a citação abaixo revela-se de grande serventia para a análise e compreensão do conceito: De qualquer forma, sistematizando os elementos fundamentais da definição de campo realizada por Bourdieu, em diferentes trabalhos, nota-se que o mesmo possui os seguintes aspectos: - Um campo é um microcosmo incluído num espaço social (macrocosmo) global; ele possui suas regras e normas próprias, cuja validade é tanto maior quanto melhor sucedido for o processo de autonomização do mesmo; - É um espaço de lutas entre os diferentes agentes que se posicionam diferencialmente em seu espaço (conforme sua origem e trajetória), lutando pela apropriação/redefinição de um capital específico; este capital é desigualmente distribuído, o que corresponde a posições dominadas e dominantes dentro do campo; - Um campo define-se pela demarcação dos objetos de disputas e dos interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses próprios de outros campos; - O funcionamento do campo implica na existência desses objetos de disputa e de pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de um habitus que as tornem capazes do conhecimento e do reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc. E, no campo científico, o que está em jogo é monopólio da “autoridade científica”, ou seja, um capital particular que confere poder ao produtor que o exerce, em relação aos mecanismos constitutivos do campo (por exemplo, o tipo de ações e objetos de interesse pertinentes, bem como as teorias, técnicas e métodos considerados legítimos). Em resumo, a definição do que está em jogo na luta científica faz parte do jogo da luta científica; - As estratégias dos agentes (em termos de conservação ou subversão do estado do campo) remetem às posições (dominados/dominantes) mencionadas; - Quanto maior a autonomia de campo, mais os produtores particulares só poderão esperar o reconhecimento de seus produtos pelos seus pares, que também são seus concorrentes. Isso decorre, entre outros pontos, do processo de especialização que torna a linguagem dos campos eruditos cada vez mais complexa e esotérica. - Apesar das disputas, e portanto do caráter de mercado conflitivo do campo, os agentes têm interesse na existência do mesmo.Mais que isso: exige-se uma disposição constituinte, que é uma adesão tácita a uma crença, uma illusio, quanto aos móveis de interesse, suscitados e produzidos pelo próprio jogo/campo. Com efeito, a illusio exigida por um campo constitui a condição indiscutida da discussão. Para se lançar à discussão dos argumentos, é preciso acreditar que eles mereçam ser discutidos e, de algum modo, acreditar nos méritos da discussão (ROMANCINI, 2006, p. 75-6). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 292 A ideia de “campo” pode ser definida como um universo no qual estão inseridos os agentes e instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura a ciência e etc. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a regras e princípios específicos (BOURDIEU, 2004, p. 20). Os campos se constituem de hierarquias de poder, onde os seus componentes estão em constante disputa pela obtenção de capital que lhes permita possuir prestígio ou legitimidade em relação aos demais. Assim, no campo econômico, o capital se caracteriza por seu aspecto eminentemente financeiro; nas demais áreas (política, científica, literária) a produção de bens e obtenção de capital adquirem um caráter simbólico. Esse capital simbólico se caracteriza pela posse de poder ou autoridade proveniente de estruturas hierárquicas pertencentes a cada campo específico, definidas por suas próprias regras. Devido as especificidades inerentes a cada campo, a reconversão de um capital simbólico em outro são sempre parciais ou incompletas (ROMANCINI, 2006, p. 72). Para Bourdieu, o mundo científico se caracteriza enquanto campo. No âmbito da ciência, a noção de campo rompe com o conceito de “ciência pura”, totalmente autônoma e fechada em si mesma, ao passo que também descarta a ideia de comunidade científica idealista que se caracteriza por sua unidade, homogeneidade e solidariedade (BOURDIEU, 2001, p. 67-8). O campo científico possui aspectos similares aos dos demais campos, porém obedecendo a uma lógica específica que lhe confere algumas características particulares. A primeira das singularidades derivadas da estrutura do campo científico é o seu fechamento sobre si, o que faz com que os agentes tenham como clientes e concorrentes os demais agentes da área. A outra particularidade refere-se ao fato de a luta cientifica ter como finalidade o monopólio da representação cientificamente legítima da realidade. A especificidade da luta científica deve também ao fato de os candidatos ao monopólio da representação legítima disporem de um imenso arcabouço coletivo de construção teórica e de verificação ou falsificação cujo domínio é exigido a todos os participantes (BOURDIEU, 2001, p. 97-100). Os agentes do campo científico podem se constituir desde cientistas isolados a laboratórios ou institutos de pesquisa, estão em constante disputa pela obtenção de capital simbólico (capital científico) e criam através de suas relações o espaço que os influencia e condiciona. Os agentes, definidos pelo volume e estrutura do capital científico que possuem, é que determinam a estrutura e organização do campo. Com seu sistema de disposições, competência, capital e interesse, os agentes se confrontam no campo para fazer reconhecer os métodos e objetos utilizados, contribuindo assim para conservar ou transformar as forças Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 293 existentes no campo. O poder sobre o capital se exerce através do poder sobre a estrutura de distribuição das possibilidades de se obter ganho (BOURDIEU, 2001, p. 89). Como apontado até aqui, o campo científico é uma estrutura composta por agentes cujo foco se dá na acumulação de capital com o fim de ocupar posições de maior relevância nas hierarquias de poder pertencentes ao campo, o que lhes permitirá obter mais capital. O capital científico é uma espécie particular de capital simbólico que consiste no reconhecimento concedido pelo conjunto dos demais agentes, que se constituem ao mesmo tempo em concorrentes e concedentes do capital (BOURDIEU, 2004, p. 26). A estrutura de distribuição do capital determina a estrutura do campo, ou seja, as relações de força que se estabelece entre os agentes científicos. A posse de uma quantidade significativa de capital confere poder sobre o campo e agentes com menos capital. Sendo assim, o dominante é aquele agente que ocupar uma posição tal que a estrutura age em seu favor (BOURDIEU, 2001, p. 53-4). Os campos científicos caracterizam-se por serem palcos de disputa de duas formas de capital científico. O primeiro é formado pela obtenção de poder temporal ou político e institucionalizado, ligado principalmente a cargos de gestão, como direção de laboratórios, departamentos, universidades, institutos de pesquisa e ministérios. Esse tipo de capital também se vincula ao controle sobre os meios de produção, como o fornecimento de recursos financeiros, humanos e materiais (BOURDIEU, 2004. p. 35). O segundo tipo de capital é formado pelo conhecimento tácito do agente, obtido através do reconhecimento dos pares ou parcela mais consagrada dentre eles. Adquire-se esse capital científico específico por meio de produção científica, como artigos, livros, orientações e prêmios pelas contribuições ao progresso da ciência. A natureza distinta de obtenção de ambos faz com que seja difícil a acumulação simultânea de capital temporal e capital específico. Contudo, o prestígio e autoridade concedidos pelo capital científico específico permitem com que o portador ocupe posições que lhe dêem o acesso também obter capital temporal, o que não se verifica se analisarmos situação inversamente (BOURDIEU, 2004, p. 36-8). O interior do campo científico é marcado também pelas estratégias de disputa pelo capital científico. Os métodos científicos escolhidos pelos pesquisadores para a obtenção e acumulação de capital simbólico são também estratégias políticas. A forma que reveste a luta inseparavelmente política e científica pela legitimidade depende da estrutura do campo, isto é, da distribuição do capital específico entre os agentes do campo. Assim, podemos constatar formas distintas na luta pelo capital entre os agentes, em especial os dominantes do campo e Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 294 os pretendentes. Ambos recorrem a estratégias opostas em sua organização e estrutura. Os interesses que os motivam e os métodos dos quais podem utilizar para alcançar seus objetivos dependem de sua posição no campo. Os que dominam o campo científico apontam para medidas que possibilitem a conservação de seu status quo, visando assegurar a ordem científica com a qual compactuam (BOURDIEU, 1983, p. 17). De acordo com a posição que ocupam, os pretendentes podem optar por duas formas de inserção no campo científico: sucessão e subversão. A estratégia de sucessão reside em assegurar o acesso ao capital simbólico por parte do novato através da aceitação e manutenção do ideal predominante do campo. Já a tática de subversão consiste em investimentos mais custosos e arriscados que somente podem assegurar os lucros e a legitimidade científica em troca de uma completa reestruturação dos princípios de legitimação e dominação. Os iniciantes que escolhem por este caminho só irão prevalecer se empenharem esforços científicos importantes sem esperar resultados imediatos, visto que contra si está toda a lógica do sistema (BOURDIEU, 1983, p. 18). O Instituto Agronômico de Campinas e a ciência no Estado de São Paulo em fins do século XIX A segunda metade do século XIX representa para a então província de São Paulo um período de grandes transformações. O principal vetor das transformações foi a cafeicultura, que se instala em território paulista a partir do Vale do Paraíba, chegando a região de Campinas e Ribeirão Preto, localidades onde a planta encontrou terra e condições climáticas ideais para o seu desenvolvimento. A cultura cafeeira foi o palco das significativas mudanças que então ocorriam, sendo ao mesmo tempo causa e destino das significativas mudanças que então ocorriam como a introdução de novas relações de trabalho na agricultura, de novos meios de transporte e comunicação. Esse cenário de mudanças se intensifica durante a Primeira República, onde São Paulo se destaca pelo crescimento econômico proporcionado pela cultura do café, refletido na expansão urbana de cidades como São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto, na intensificação da vinda dos imigrantes e da expansão das ferrovias pelo território paulista, bem como do surgimento e consolidação de uma burguesia ligada a cafeicultura. O progresso proporcionado pelo café também se faz sentir na criação de institutos de pesquisa, voltados principalmente para pesquisa agrícola. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 295 A primeira atitude em direção a este objetivo foi tomada pelo governo imperial através da criação em 1866 do Instituto Geológico e Geográfico. Esta instituição tinha por finalidade realizar um levantamento acerca dos recursos naturais existentes e das possibilidades de expansão da agricultura em São Paulo (ALBUQUERQUE et alii, 1986, p. 84). Além da exploração dos potenciais existentes, desenvolve-se também a necessidade em se implantar na lavoura métodos que possibilitassem uma expansão da produção atrelada ao uso racional do solo. Em busca a atender a essa questão, D. Pedro II cria em 1887 o Imperial Instituto Agronômico de Campinas 1 . A crise da mão de obra iniciada a partir de 1850 apontava para o problema da ausência de braços para a lavoura, mas também assinalava para ausência de qualidade dos procedimentos utilizados e a predominância de métodos arcaicos que eram utilizados no trato da terra 2 . Assim, o problema da mão de obra não encontrava solução na simples substituição do trabalhador escravo pelo livre, e sim no emprego de um trabalhador que dispusesse de conhecimentos mais aprimorados (MELONI, 2004, p. 28). Outro problema consistia na aplicação de métodos rudimentares que levavam a uma rápida exaustão do solo. Neste período, as inovações na cafeicultura restringiam-se a etapa de beneficiamento do produto, onde o trato com a terra era tido como atividade dispendiosa e a abundância de terras ainda a serem exploradas era um fator de desestímulo ao cultivo racional do solo. Os cafeicultores consideravam muito mais pratico e econômico a mudança para um novo terreno quando a atual propriedade acusasse os primeiros sintomas de improdutividade, deixando para trás uma terra árida e improdutiva (MELONI, 2004, p. 31). Aliado a ausência de mão de obra qualificada e ao uso inadequado do solo, outro problema que ameaçava a expansão da agricultura durante o século XIX era o fato de não haver uma clara definição de como se enfrentar as moléstias que atacavam as plantações. O Museu Nacional e o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, instituições encarregadas de promover o estudo das pragas que atacavam a lavoura neste período, viam-se limitadas pelo fato de estarem localizadas na Corte enquanto havia a necessidade do contato direto com 1 A formação de uma burguesia vinculada ao café ao longo do século XIX foi imprescindível para a instalação desses institutos em São Paulo. Alguns membros dessa classe compunham o alto escalão da política imperial, como Antonio da Silva Prado, um grande cafeicultor de São Paulo que à época da fundação do Imperial Instituto Agronômico de Campinas atuava como Ministro da Agricultura de D. Pedro II, vindo a exercer uma grande influência na fundação deste instituto (DEAN, 1987, p. 94). 2 Segundo Mario Roberto Ferraro, o período analisado caracteriza-se pela predominância de métodos ao que o autor chama de “agricultura tradicional”, a saber: derrubada da mata existente, queima da madeira, semeadura, capina com enxada e colheita executadas exclusivamente com a força braçal e de característica nômade (FERRARO, 2010, p. 51). Esta prática causava o rápido esgotamento do solo, o que demandava novas áreas, que passariam pelo mesmo procedimento. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 296 as plantações infectadas. A formação de comissões científicas itinerantes com o intuito de atender a localidades distantes, em especial a zona cafeeira de São Paulo, não conseguiram fornecer a assistência esperada. Este fato revelou a insuficiência de instituições capacitadas para enfrentar o problema das pragas de maneira adequada e entender o funcionamento das lavouras em climas tropicais (MELONI, 2004, p. 33). A criação do Imperial Instituto Agronômico de Campinas já no final do Império visava a resolução das questões que ameaçavam a agricultura nacional. Contudo, por que a escolha de Campinas, distante do Rio de Janeiro, o centro das decisões políticas no país? O que prevaleceu na escolha dessa cidade foi o fato de estar localizada em uma região produtora de café e pela necessidade de promover o desenvolvimento das forças produtivas em uma região dinâmica, em franca expansão e com ótimas possibilidades de crescimento (MELONI, 2004, p. 46). Além disso, constata-se que a criação dessa instituição compunha um cenário onde os problemas da agricultura não seriam mais abordados com empirismo, mas sim com ciência. Havia o apoio da elite cafeeira para a criação de estabelecimentos que apontassem para a modernização da agricultura, através da transformação dos métodos de produção (MELONI, 2004, p. 53). O modelo adotado em Campinas foi inspirado nas estações agronômicas européias, em especial as alemãs. Para a sua direção, foi contratado o austríaco Franz Wilhelm Dafert, que já havia trabalhado em instituições similares na Alemanha e ficaria a cargo de promover os experimentos. O objetivo da instituição se voltava para questão da produção e da manutenção da terra enquanto patrimônio, buscando atender aos anseios dos cafeicultores, principalmente após a passagem do controle da instituição para o estado de São Paulo com a Proclamação da República As primeiras análises realizadas com amostras do solo da região de Campinas apontaram uma fertilidade moderada e ausência de fertilizantes húmus, contrariando assim a ideia corrente de que o solo da região era naturalmente fértil. Constatou-se que os bons resultados obtidos com a cafeicultura deviam-se que o fato de o solo ser poroso, fundo e ter sido fertilizado com a queima das arvores, além da presença de condições climáticas favoráveis ao cultivo (DEAN, 1987, p. 99; MELONI, 2004, p. 85-89). Assim, a atenção das pesquisas se voltaria para a correção desses problemas através da análise dos aspectos físico- químicos das espécies observadas, especialmente a área de química agrícola. Acreditava-se que a partir do estudo dos nutrientes presentes no solo e vegetais seria possível manter a terra sempre fértil e obter uma maior produtividade do cafezal, favorecendo o produto nacional na Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 297 concorrência com os demais mercados produtores (DEAN, 1987, p.104; MELONI, 2004, p. 74). Para que houvesse a correção adequada do solo e das plantas, fazia-se necessária a utilização de fertilizantes. Os trabalhos realizados pelo agora Instituto Agronômico de Campinas (I.A.C.) estabeleciam a quantidade de nutrientes para cada parte do cafeeiro, apontando para a necessidade de um cuidado apurado com cafeicultura, tomando-a como um todo. Contudo, a ausência de uma estrutura produtiva de fertilizantes no Brasil e a sua conseqüente importação aumentava significativamente os custos de operação. Frente a esta dificuldade, Dafert propõe a implantação de um “sistema misto” 3 , onde o próprio sistema produtivo forneceria os fertilizantes, como estrume, palha ou cascas do grão de café. Buscava- se assim criar um modelo adequado a realidade nacional, especialmente a da cafeicultura paulista (MELONI, 2004, p. 97-98). Entretanto, os resultados obtidos através dos experimentos realizados no I.A.C. não encontraram o apoio esperado dos produtores. A resistência dos cafeicultores advinha do fato de os estudos empreendidos pelo instituto combatiam os métodos que, aos olhos dos agricultores, haviam sido uma imensa fonte de riqueza. A relação de dependência entre latifundiários e o governo republicano também servia de desestimulo ao uso de procedimentos que necessitassem de altos investimentos, mesmo apresentando uma boa perspectiva de resultados em médio e longo prazo. Havia também uma opinião entre os produtores de que os experimentos realizados por Dafert e sua equipe não atendiam a questões latentes na cafeicultura, ficando muitas vezes voltado a analise de outros especialistas 4 . Tal ponto de vista se consolida ao final do século XIX, quando o papel desempenhado pelo I.A.C. passa ser mais questionado devido a incapacidade em lidar de maneira efetiva com superprodução de café que então apontava. Além disso, questionava-se a validade da estratégia tomada por Dafert em privilegiar as pesquisas em química agrícola ao invés de outras áreas como aclimatação de espécies e ensino agrícola, consideradas mais úteis para o combate a crise (MELONI, 2004, p. 115-122). 3 Segundo Reginaldo Meloni, Franz Dafert considerava dois sistemas de exploração da terra: extensivo, que emprega pouco trabalho e capital na terra, ao qual a agricultura nacional pertencia naquele momento; intensivo, que se caracteriza pela grande aplicação de capital e trabalho. Embora a passagem de um sistema extensivo de exploração para o intensivo oferecesse vantagens ao cafeicultor, obrigava-o a investir grandes montas em uma prática pouco habitual. Frente a isso, Dafert propõe a passagem para um sistema intensivo moderado ou “sistema misto”, onde se faria uso de fertilizantes naturais, produzidos na própria fazenda. 4 Vale ressaltar que Franz Dafert mantinha contato com outros institutos de pesquisa situados em São Paulo e no exterior, além de o I.A.C. receber a visita e intercambio de outros pesquisadores. (MELONI, 2004, p. 70-71) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 298 A divergência entre a postura de Franz Dafert e a dos produtores, que consideravam o I.A.C. incapaz de enfrentar a superprodução em sua atual organização, leva a uma reestruturação em 1897 que culmina com a demissão de seu diretor. A partir de então, o instituto adota uma postura pragmática, focado na obtenção de soluções para os problemas colocados pela crise de superprodução em detrimento de pesquisas cujo foco fosse essencialmente científico. Contudo, a ânsia pela busca de soluções imediatas levou a algumas ações desastrosas, como a importação de uma espécie de café infectada com a broca (ALBUQUERQUE et alii, 1986, p.88), provocando assim um grande descrédito no papel da instituição. O I.A.C. retoma a sua credibilidade somente com a partir de 1924, ano em que Theodureto de Camargo assume a sua direção. O processo de reestruturação iniciado tinha como finalidade estabelecer uma nova centralidade na pesquisa básica e maior preocupação com a agroindústria de processamento agrícola. A reforma se consolida em 1927, quando se cria seções especificas para o estudo com café e algodão, além de uma orientação das atividades para a o estudo em genética que acabaram por se intensificar nos anos de 1930 (ALBUQUERQUE et alii, 1986, p.89-91). O conceito de campo científico e as transformações no I.A.C.: uma interpretação Como apontado acima, a prosperidade viabilizada pela cultura do café a partir da metade do século XIX não se refletiu somente na expansão das lavouras, dos centros urbanos ou na criação das primeiras indústrias. Esse processo, intensificado com a Proclamação da República, permitiu com que fossem criadas institutos de pesquisa, dos quais se destaca o Instituto Agronômico de Campinas. A criação desses institutos aponta para uma definitiva institucionalização da política científica e tecnológica em território paulista ao longo da Primeira República, comprovada pela formação de uma comunidade científica e pela aplicação, ainda que muitas vezes relutante, daquilo que se desenvolvia nos laboratórios de São Paulo (SZMERECSANYI, 2001). Não se pode afirmar peremptoriamente – correndo o risco de cometer anacronismos e incoerências – que em fins do século XIX e inicio do século XX se constituía em São Paulo, através de seus institutos de pesquisa e de seus pesquisadores, uma estrutura semelhante ao conceito campo científico. Bourdieu escreveu durante o século XX, sob uma ótica e contextos históricos completamente distintos. Contudo, tomando particularmente o caso do Instituto Agronômico de Campinas durante a Primeira República, podemos verificar a formação de Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 299 alguns aspectos que remetem ao campo científico de Bourdieu. Tais aspectos podem ser verificados ao compararmos algumas situações do I.A.C. durante o período analisado com as ideias de autonomia e heteronomia e guerra epistemológica formuladas pelo sociólogo francês. Segundo Bourdieu, o grau de autonomia de um campo possui como principal indicador a sua capacidade de refração, de retraduação de assuntos e questões externas a sua órbita. Quanto mais voltado para si mesmo e protegido de interferências externas e intervenções sociais, mais autônomo é um campo. Por outro lado, quanto mais problemas externos, especialmente políticos, se exprimirem em sua estrutura, mais heterônomo será o campo (BOURDIEU, 2004, p. 22). Se um campo é heterônomo, a concorrência entre os agentes é imperfeita e o uso de forças não científicas nas lutas científicas torna-se cada vez mais aceito. Ao analisarmos o I.A.C. em fins do século XIX, podemos constatar uma grande sujeição de sua estrutura a forças externas, como a cafeicultura. Como revelado anteriormente, o Instituto foi criado com vistas a atender aos interesses dos produtores, através de pesquisa e inserção de novos métodos pautados em critérios científicos. Contudo, tal sujeição não apontava para a completa ausência de autonomia, visto que Franz Dafert, diretor da instituição por uma década, realizou experimentos aos quais acreditava serem mais pertinentes, como estudos relacionados a fertilizantes e a química do cafeeiro, o que apontava para um equilíbrio de forças. Esse cenário se transforma com o advento da superprodução em 1895 e opinião por parte dos cafeicultores que as atividades empreendidas por Dafert não conseguiam solucionar os problemas colocados. Assim, vemos que uma força de fora, não científica, interfere nas ações do campo, retirando totalmente a sua autonomia. A crise de superprodução em fins do século XIX causou a destituição de Franz Dafert da direção do I.A.C. Como já revelado, os seus trabalhos, de caráter eminentemente teórico, eram considerados de pouca serventia para o combate aos problemas que então se apresentava. Para isso, os produtores acreditavam ser necessária a realização de pesquisas pragmáticas, que concedessem resultados de uso imediato, como a aclimatação de plantas. Instaura-se um conflito entre métodos de pesquisa: de um lado, os experimentos em ciência básica realizados por Dafert; em oposição, o desenvolvimento de pesquisa aplicada, de caráter prático. Vemos então a formação de uma guerra epistemológica, que segundo Bourdieu é um conflito que opõe adversários dotados de diferentes propriedades sociais e concepções de ação no campo científico. O que está em jogo nesses conflitos é a valorização de uma espécie em detrimento de outro (BOURDIEU, 2004, p. 90). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 300 Referências bibliográficas ALBUQUERQUE, R.H.; ORTEGA, A.C.; REYDON, B.P. O setor de pesquisa agrícola no Estado de São Paulo. Cadernos de difusão de tecnologia. Brasília, v. 3, n. 2, p. 79-132, jan.- abr. 1986. BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática. 1983. pp. 122-155. ______________. Para uma sociologia da ciência. Lisboa: Edições 70, 2001. _______________. Os usos sociais da ciência. São Paulo: UNESP, 2004. DANTES, Maria Amélia Mascarenhas. Institutos de pesquisa científica no Brasil. História das Ciências no Brasil. In: MOTOYAMA, Shozo; FERRI, Mario Guimarães. História das Ciências no Brasil. São Paulo. 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Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 301 A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NO PROJETO BATUCLAGEM: EM BUSCA DO ENSINO DE HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS ASSOCIADAS A UMA EDUCAÇÃO CIDADÃ Jéssica Mary Pereira da Silva Universidade Federal do ABC Graduanda do Bacharelado em Ciência e Humanidades Bolsista/ Pró-Reitoria de Extensão [email protected] Ana Maria Dietrich Universidade Federal do ABC Doutora em História Social - FFLCH-USP [email protected] Resumo: Frente aos problemas ambientais do século XXI faz-se emergente que o Ensino de Ciências, em específico aquele ligado aos conteúdos da História ambiental, faça parte do escopo de um público cada vez mais jovem. Esse estudo visa analisar a importância entre a vinculação entre a História das Ciências e a construção de novos cidadãos principalmente crianças. Para isso analisa o Projeto Batuclagem (Pró-reitoria de Extensão da UFABC) que desde 2011 desenvolve oficinas de conscientização ambiental associadas à arte-educação. Pelos resultados analisados, observou-se que a sensibilização de crianças aos problemas ambientais do planeta se mostrou associada ao aprimoramento de técnicas de aprendizagem. Mostrou-se eficaz a contação de histórias com o estímulo da inter-relação entre o mundo lúdico e o universo científico. Pela contação e adaptação de histórias infantis e lendas para o público infantil, foram introduzidos conceitos científicos e observados reflexões e mudança de atitudes relacionados à sustentabilidade e meio ambiente. Palavras chave: Cidadania, Ensino-aprendizagem de Ciências, História ambiental. Abstract: According to the environmental problems of twenty-first century, it is emerging that science study, particularity those linked to content of environmental history, have to be part of the scope of young people. The main contents of this study is to examine the importance of the link between the history of science and growing of citizens, especially children. For that, the Batuclagem Project ( Pro-reitoria de extensão UFABC ) since 2011 develops environmental awareness workshops related to art of education, by the analysis of results, observed that the awareness children to environmental problems of the planet was associated to enhancing learning techniques . Proved effective storytelling with the encouragement of inter -relation between the playful world and scientific world. By storytelling, adaptation of children's stories and legends to children, scientific concepts were introduced and observed reflections, attitudes changes related to sustainability and the environment. Keywords: Citizenship, Teaching and learning Science, Environmental History. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 302 Introdução Diante dos problemas ambientais do século XXI surge a necessidade de pensar uma metodologia de ensino das ciências profícua para um público cada vez mais jovem, com o desejo de conscientizar a ponto de promover mudanças de postura sobre praticas cotidianas como a separação do lixo, uso da água, uso energia e diminuição do consumo, o projeto de extensão Batuclagem da UFABC nasce em 2011 com intuito de atender a comunidade local onde esta o campus sede da Universidade Federal do ABC na cidade de Santo André- SP com crianças da faixa etária de 9 à 13 anos como público alvo. Em 2012 e 2013 o projeto foi ampliado atendendo também as cidades vizinhas, Mauá e São Bernardo do Campo. Nos primeiros anos do projeto, foi diagnosticado pela coordenação e arte-educadores a necessidade de um aprimoramento das metodologias e técnicas educativas, daí passou-se a elaborar uma pesquisa com o enfoque nos métodos de ensino-aprendizagem que além de buscar o aprimoramento de metodologias e técnicas de ensino, beneficia a divulgação científica do ensino das ciências voltado para o público infantil ligado aos temas do meio ambiente. No ano de 2012 o projeto utilizou a contação de histórias como técnica principal dentro da metodologia da arte-educação. Os arte-educadores participaram de oficinas de contação de histórias aperfeiçoando a técnica, além de passar por este processo precisaram adaptar clássicos das histórias infantis e lendas brasileiras, tornando-se autores de suas próprias histórias com a orientação da escritora Simone Pedersen e da coordenadora do projeto Ana Maria Dietrich. Sabe-se que a contação de histórias é um dos costumes mais antigos do mundo, muito antes da Odisséia de Homero, pessoas já se reuniam com o objetivo de contar e ouvir histórias, mesmo com o advento de novas tecnologias tal arte milenar mantém-se até os dias de hoje e é utilizada neste projeto como uma de suas técnicas metodológicas, principal aliada para o processo de conscientização ambiental. A presente pesquisa parte da indagação sobre a contribuição da Arte de Contar Histórias no projeto Batuclagem. Como pergunta principal, pretende analisar de que forma essa arte contribui para ressignificar o processo de aprendizagem e conscientização ambiental na construção cidadã dos alunos atendidos pelo projeto? A hipótese adotada é a de uma educação não formal (como se classifica a contação de histórias) foi utilizada como estratégia Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 303 para o desenvolvimento da linguagem oral e aliada na passagem de conceitos e conteúdos especializados ligados ao meio ambiente. A contação de histórias como técnica metodológica no Projeto Batuclagem. Desconstruir para reconstruir, selecionar, reelaborar, partir do conhecimento e modificá-lo de acordo com o contexto e a necessidade são processos criadores, desenvolvidos pelo fazer e ver Arte, fundamentais para a sobrevivência no mundo contemporâneo. (BARBOSA, 2003) Observa-se nas oficinas realizadas em escolas, que esta técnica aliada a música, estimula a criatividade e a imaginação das crianças tanto quanto a oralidade, habilidade de concentração, escuta e atenção. As ferramentas utilizadas fazem toda a diferença quando o que esta em jogo é o processo de comunicação. O discurso pode ser bem ou mal acolhido, dependendo da maneira como é passada, assim dentre as varias formas de passar o conteúdo, no caso o ambiental, acertar ao escolher o modo de transmissão do conhecimento faz toda a diferença para que o conteúdo influencie e possa ser incorporado pelo interlocutor. Para Piaget, “o conhecimento não procede nem da experiência única dos objetos nem de uma programação inata pré formada no sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas” (PIAGET, 1976). O contador de histórias utiliza-se do poder lúdico das histórias para envolver o público, a atmosfera de encantamento provocada pelo contador de histórias, aproxima o interlocutor. Na passagem do conhecimento, principalmente no ensino das ciências na educação infantil, percebe-se a necessidade do educador de pensar estratégias que aproxime os alunos de temas como a educação ambiental, a contação de histórias aliada a tal temática tem se mostrado uma técnica metodológica profícua em promover a sensibilização das futuras gerações sobre os problemas ambientais do planeta, estimulando de forma lúdica que tal público desenvolva reflexões e mudanças de postura sobre a sua relação com a natureza e seu cotidiano na prática, através do conhecimento sobre o que vem acontecendo com o meio ambiente. As histórias são passadas de geração em geração é difícil conhecer que nunca ouvia a história de uma menina que usava uma capa vermelha, ou mesmo ficou quem não tenha ficado entusiasmado com as travessuras do menino de cabelos de fogo e pés pra traz. Amantes das histórias e encantados pelo poder lúdico das histórias, o projeto batuclagem vem Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 304 apostando nesta técnica metodológica da arte-educação para transmitir conceitos cientifico de educação ambiental. As oficinas acontecem com no máximo 60 alunos com o a duração de aproximadamente 2 horas, a oficina inicia-se tratando os temas através das histórias: 1. Chapeuzinho verde e o lixo reciclável (reciclagem); 2. Acordei curupira (biodiversidade) ; 3. A formiguinha sustentável e a cigarra trapalhona (uso racional de energia); 4. O boto cinzento (uso racional de água); 5. A bela apodrecida (poluição do ar); 6. O vai e vem do arco-íris (lixo tecnológico); O palco escolhido para a contação de histórias é um ambiente que proporcione sair da dinâmica atual de sala de aula, como o pátio, a quadra esportiva ou até mesmo a sala de aula afastando as cadeiras e carteiras da posição que geralmente ficam, assim ao invés de sentar-se enfileirado, um atrás do outro, alunos e arte educadores sentam-se no chão, organizados em circulo concêntrico há espaço pra troca de olhares e saberes. A cada história, objetos de cena são retirados de uma “caixa mágica” os arte-educadores dão alma aos objetos, emprestam-se a arte e aos personagens, estes agora adquirem forma, características e corpo, o palco formado, transforma o ambiente escolar aliando educação formal e não formal, cada história é contada com músicas infantis adaptada para os conceitos de reciclagem, biodiversidade, poluição do ar, uso racional de energia, uso consciente da agua e lixo tecnológico, o que abrilhanta ainda mais as histórias. Após a contação os alunos são convidados a participar de dinâmicas, são questionados pelos personagens (arte-educadores), estes perguntam sobre os conceitos ambientais abordados dentro das histórias. Ensino das ciências associados educação cidadã: a contribuição da contação de histórias. A Contação de Histórias focalizada na temática ambiental é utilizada na tentativa de transmitir o conhecimento ambiental de forma efetiva, a educação ambiental é parte do currículo escolar, a todo o momento o ambiente sofre novas ações geradas pelo ser humano. Os sujeitos das ações transformadoras precisam conscientizar as futuras gerações sobre as possíveis consequências que implicam seus atos. “o mundo necessita de proteção, para que Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 305 não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração.” (ARENDT, 2005, p. 235). Educar consiste em preparam as crianças e os jovens de hoje para que possam assumir a responsabilidade do amanhã. Os adultos são responsáveis pela continuidade e estabilidade do mundo, as crianças devem ser preparadas para a vida adulta, assim é preciso que elas sejam educadas da melhor forma possível para este momento futuro. Considero estas reflexões importantes para pensar na importância do ensino das ciências e como vem sendo abordado nas escolas, nos últimos anos a ciência é superestimada em detrimentos das artes. O projeto mostra a necessidade de ambas como já previa Hebert Read, arte e a educação são conceitos indissociáveis, sendo que a arte deveria ser a base para a educação. Há um esforço por parte dos educadores para que o público atendido se surpreenda com a oficina sobre meio ambiente e repasse as histórias e aprendizado desenvolvido na oficina, muitas vezes esses conceitos, devido ao caráter cientifico, são de difícil transmissão, por isso a preocupação com a metodologia, se os alunos crescem com falhas provenientes da comunicação da relação do educador versus educando, estaremos cada vez mais longe da conscientização ambiental e também da educação cidadã. Neste sentido as responsabilidades educacionais se estendem pra além do ensino formal da história das ciências. Figura 1 – Batuclagem contando histórias no 13º festival de Inverno de Paranapiacaba em Santo André- SP, julho de 2013 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 306 Figura 2- Contação da história Chapeuzinho verde na EMEB Pedro Augusto Gomes Cardim em São Bernardo do Campo, setembro de 2013. Figura 3 – Contação de histórias na EMEB Herbert de Souza em Mauá-SP, novembro de 2013. Considerações Finais Avaliando a metodologia por meio de análise do material audiovisual produzido, percebe-se que houve sensibilização às prática da arte-educação utilizadas. Após a contação de histórias há um momento de desenvolvimento de dinâmicas que visam estimular o trabalho em grupo, a capacidade motora, a criatividade, comunicação e autoestima das crianças. Observa-se mudanças de postura e práticas com relação ao meio ambiente e sustentabilidade através de brincadeiras que propõem atividades de aplicação do conteúdo passado na contação de histórias. Com relação aos alunos da UFABC (arte-educadores) com a metodologia desenvolvida, observa-se o desenvolvimento de habilidades tais como sensibilização aos problemas sociais e ambientais, sociabilização e desenvoltura, valorização Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 307 de trabalho coletivo, iniciativa e ampliação na capacidade de desenvolver problemas. Da aceitação pelas escolas, a cada ano o projeto foi ampliando as atividades em termos de número de crianças atendidas e atuação na comunidade externa diretamente nas escolas e em grupos sociais que carecem de atividades culturais. Em 2012, o projeto atendeu a cidade de Santo André e devido a grande receptividade o número de crianças envolvidas foi bem maior que o planejado, 2.240 superando o número programado de 1.200 crianças. Em 2013 incluiu escolas de São Bernardo, local que a UFABC também mantém um campus e Mauá ampliando ainda mais o número de atendidos. Pelos resultados alcançados nestes anos percebe-se que a contação de histórias uma das técnicas da metodologia da arte educação vem promovendo uma sensibilização das futuras gerações sobre os problemas ambientais de nosso planeta, estimulando que tal público desenvolva mudanças de postura sobre a sua relação com o meio ambiente. O projeto vem unindo tais conceitos de arte-educação com conhecimento didático. No mundo atual onde a denúncia sobre as problemáticas relacionadas ao meio ambiente se faz cada vez mais constante, pretende-se que o publico alvo seja estimulado a observar a problemática ambiental a partir do segundo estágio que Paulo Freire -denomina como transformador- modificando a realidade por meio de uma ação cultural criativa e libertadora. No poema Ulisses de Fernando Pessoa a ideia do “mito transformador” mostrando a interferência do que é irreal (lúdico) na realidade, nessa linha o projeto batuclagem vem utilizando as histórias como ferramenta lúdica (mito) com o intuito de promover mudanças sociais práticas, em busca do ensino e História das Ciências associados a uma educação cidadã. Ulisses “O mito é um nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É o mito brilhante e mudo – O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos criou. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 308 Assim a lenda se escorre A entrar na realidade. E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada morre.” Fernando Pessoa Referências Bibliograficas ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. 5. ed. 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ISBN 978-85-62707-52-0 309 HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E AS NOVAS TECNOLOGIAS RELACIONADAS A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS: ESTUDO DE CASO A PARTIR DAS MEMÓRIAS DOS PALADARES João Vitor Carvalho de Melo Universidade Federal do ABC Graduando de Bacharelado em Ciência e Tecnologia [email protected] Ana Maria Dietrich Universidade Federal do ABC Doutora em História Social - FFLCH-USP [email protected] Resumo: A narrativa de histórias de vida a partir da rememoração de lembranças que marcaram a memória afetiva relacionada ao paladar podem revelar aspectos da História da Alimentação ainda pouco divulgados pela historiografia das ciências. Por meio dessa perspectiva e dentro os objetivos amplos do Programa Memória dos Paladares (PROEXT, MEC, 2011) da UFABC, buscou-se nessa comunicação analisar entrevistas de estudantes da UFABC, avaliando variáveis sobre o que leva a sociedade de consumo a adotar hábitos alimentares baseados no fast-food e as implicações que a falta do slow-food pode causar nos âmbitos da saúde e socioculturais. A partir da perspectiva da história da ciência, percebe-se que houve mudanças significativas nos hábitos alimentares ligados a produção e consumo, sobretudo no período após o término da Segunda Guerra Mundial quando o uso de tecnologias como químicos sintéticos (aditivos) influenciou no sabor e na qualidade dos alimentos que passaram a ser produzidos em massa. Palavras-chaves: História da alimentação, História das ciências, Pós-guerra. Introdução e contextualização A história oral revela detalhes e curiosidades de uma sociedade que as vezes passam despercebidos. Contar uma história através de lembranças pessoais revelam sobre outra óptica um cenário diferente daquele já conhecido. A memória através do paladar pode ser ainda mais surpreendente. Através desses conceitos buscamos analisar entrevistas de estudantes da Universidade Federal do ABC, realizadas pelo Programa Memória dos Paladares, e descobrir através delas elementos que possam contribuir para uma reflexão sobre o que leva a sociedade do consumo a adotar hábitos alimentares baseados no fast-food e as implicações que a falta do slow-food pode causar nos âmbitos acadêmicos, sociais e culturais dos indivíduos. A partir dos conceitos de não-lugares e espaços vazios, (Bauman, 2000), as pessoas habitam e vivem Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 310 em espaços/lugares antes de mais nada vazios de significados. A busca do sentimento de pertencer a uma comunidade fazem essa nova sociedade, que não pensa ou reflete seus atos, buscar os templos de consumo para satisfazerem e preencher os vazios da realidade cotidiana. A universidade é um lugar que tem um papel de transformação das pessoas, buscamos entender quais vazios que lá existem que contribuem para os estudantes buscarem nos templos de consumo, alimentos pobres para se alimentarem ou apenas preencher o vazio do estômago. A história oral tem como definição se amparar em narrativas dependentes da memória, do "ajeites", contornos, derivações, imprecisões e até das contradições naturais da fala. O Programa Memória dos Paladares, realizado pelos alunos e professores da Universidade Federal do ABC, teve como escopo avaliar a chegada da UFABC na comunidade local e verificar o impacto sociocultural e urbano nos bairros que a circundam, na cidade de Santo André – SP. O principal objetivo deste Programa foi compreender as mudanças culturais, sociais e urbanas que surgiram após a criação da UFABC. Para entender tais impactos sociais foram realizadas entrevistas organizadas em três redes (sobre tal conceito ver: MEIHY, J., 1995, p. 174): alunos da Universidade que moram em repúblicas, comerciantes locais e antigos moradores. Utilizou-se a metodologia da história oral de vida, em especial analisando o que chamamos de "memória dos paladares", percepções de lembranças relacionadas a esse sentido em particular que deixaram alguma marca afetiva e emocional (NORA, P., 1990) na vida de tais indivíduos. Foram realizadas entrevistas com estudantes, comerciantes e antigos moradores e sua análise mostra um rico panorama de diferentes culturas alimentares, diferenças geracionais e graus de sociabilidade. Ao se procurar entender a cultura alimentar e analisar a relação dos alimentos consumidos às lembranças de eventos rememorados promoveu-se práticas de sensibilização dos colaboradores a diferentes temáticas como a história de sua cidade e da alimentação na região, importância do patrimônio imaterial (a alimentação) e valorização de saberes e tecnologias culturais, promovendo-se o registro e difusão de diferentes tipos de receitas culinárias. O programa “Memória dos Paladares” fundamenta-se no conceito de Pierre Nora que se baseia em três elementos intrínsecos da memória: ser fluída, afetiva e mágica (NORA, 1993). Tal afetividade traz características que marcam um grande diferencial com o conceito de História. Enquanto a história é racional, feita por interpretações marcadas por um método Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 311 científico que questiona o passado por meio de problematizações, a memória é fluída, inconstante e não linear. No processo de elaboração de narrativas, a história e cultura do colaborador, o grupo ao qual pertence, o tempo e espaço que acontece a entrevista influenciam tanto no modo de narrar quanto no conteúdo do que narrar. Assim, a memória dos paladares é carregada de subjetividades que dizem respeito a esse sentido em particular (o paladar) e outros sentidos em secundário que agem em consonância com este (o tato, a visão, o olfato, a audição). Tem- se a lembrança do gosto de determinado alimento aliado ao aroma por ele desprendido, aos sons que o acompanham, à sua visão. O ato de se alimentar, do ponto de vista da percepção e da experiência, envolve todos os sentidos portanto é um ato „memorativo“ por excelência. Nessa música, feita pelo compositor brasileiro Caetano Veloso, mostra essa sinestesia que envolve o ato de alimentar. No caso, o narrador se dirige a sua companheira, cujos hábitos estão marcados pelas práticas alimentares. Fica evidenciado o desejo pela companheira, uma vez que o ato se alimentar se confunde com o ato de fazer amor. O verbo „comer“ no Brasil tem uma conotação dúbia. No caso da música, pode ser interpretado tanto como ele estar se alimentando quanto fazendo amor com a companheira, ou os dois juntos, ou, ainda, um como consequência de outro: Eu me sento, eu fumo, eu como, eu não aguento Você está tão curtida Eu quero tocar fogo neste apartamento Você não acredita Traz meu café com suita eu tomo Bota a sobremesa eu como, eu como Eu como, eu como, eu como você (VELOSO, C., 1972) Quanto das circunstâncias que cercam as práticas alimentares, cabe fazermos uma reflexão em particular. Os processos de lembrar/ esquecer associados aos alimentos muitas vezes se encontram ligados aos eventos familiares e sociais. Tais eventos onde se realiza o ato de se alimentar trazem uma grande potencialidade de lembrança: geralmente são realizados em uma coletividade, quer seja uma comunidade ou grupo e - em geral - possuem a forma de ritual repetida ao longo dos anos. Partido da linha dos estudantes da Universidade Federal do ABC, através das entrevistas fica evidente o forte laço afetivo que as mães representam em suas alimentações antes da entrada na universidade. A grande maioria dos estudantes migraram para a cidade de Santo André e moram em repúblicas estudantis. O grande desafio é continuar a se alimentar Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 312 com a mesma qualidade com que vinham anteriormente.O preparo dos seus próprios alimentos as vezes deixam a desejar em alguns aspectos e a influência de diversos fatores, como a vida acadêmica, fatores sociais e a vida cotidiana acaba se tornando inevitável a busca por alimentos pré-preparados, congelados e fast-food. Desmotivando assim o interesse pelo preparo dos alimentos e na qualidade do que se está comendo, já que as facilidades da sociedade moderna pode proporcionar comida rápida, mas nem sempre saborosa como se via na comida preparada pelas mães. A grande dependência delas no preparo das refeiões, se reflete muitas vezes na péssima qualidade da alimentação diária e a falta da reflexão sobre o que se está comendo e as implicações na saúde e no bem estar. Com isso, introduzimos o conceito de slow-food, como resposta aos efeitos padronizantes do fast-food, ao ritmo frenético da vida atual, ao desaparecimento das tradições culinárias regionais, ao decrescente interesse das pessoas na sua alimentação e na procedência do sabor dos alimentos. Há um movimento que defende o direito básico ao prazer da alimentação, oMovimento SlowFood(SLOW FOOD® BRASIL,), uma associação internacional sem fins lucrativos, com mais de cem mil membros. Esse movimento se opõe à tendência da padronização do alimento no mundo e busca o resgate de tradições culinárias, conjuga o prazer e a alimentação com consciência. A vida moderna passou por uma mecanização das tarefas, padronização dos hábitos, pensamentos coletivos e não mais a consciência individual. Nessa linha a alimentação se torna apenas uma tarefa a ser cumprida, as vezes de forma mecanizada, pois nessa sociedade não há tempo a ser perder com o preparo da alimentação, há outras atividades mais importantes do que cuidar da saúde, como o trabalho para ganhar dinheiro. Em "Modernidade Líquida", ZygmuntBauman fala da modernidade fazendo referência ao espaço e ao tempo. O tempo se tornou dinheiro depois de se ter tornado uma ferramenta (ou arma?) voltada principalmente a vencer a resistência do espaço: encurtar distâncias, tornar exequível a superação de obstáculos e limites à ambição humana. Nesse sentido Carlos Petrini, fundador do SlowFood, que defende a qualidade do que se come, diz:"É inútil forçar os ritmos da vida. A arte de viver consiste em aprender a dar o devido tempo as coisas." O tempo na modernidade é sinônimo de dinheiro. Numa declaração famosa, Benjamin Franklin disse que tempo é dinheiro. John Kennedy advertia seus concidadãos norte- americanos a usarem o "tempo como uma ferramenta, e não como uma sofá". Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 313 Cito aqui um trecho da música "3ª do Plural", letra deHumberto Gessinger, da banda Engenheiros do Havaí, que fala exatamente dessa concepção da nova sociedade de consumo que não preza a reflexão, que se deixa levar pela indústria do consumo e faz uma crítica ao sistema que vivemos hoje, a velocidade com que as coisas acontecem e se processam e as pessoas nem se dão conta da vida que está levando: Corrida pra vender cigarro cigarro pra vender remédio remédio pra curar a tosse tossir, cuspir, jogar pra fora corrida pra vender os carros pneu, cerveja e gasolina cabeça pra usar boné e professar a fé de quem patrocina Eles querem te vender, eles querem te comprar querem te matar, de rir ... Querem te fazer chorar quem são eles? quem eles pensam que são? Corrida contra o relógio silicone contra a gravidade dedo no gatilho, velocidade quem mente antes diz a verdade satisfação garantida obsolescência programada eles ganham a corrida antes mesmo da largada Vender... Comprar... Vedar os olhos jogar a rede contra a parede querem te deixar com sede não querem nos deixar pensar quem são eles? quem eles pensam que são? (GESSINGER, H., 2002) Outro aspecto relevante estudado nas entrevistasdos estudantes é o conceito de “lugar” como diferente de “local”, esse sim ligado meramente a um espaço físico. O local seria geográfico, enquanto lugar estaria ligado a questões simbólicas, culturais e históricas. O conceito de lugar estaria, na visão de Augé, revestido das dimensões identitárias, pois é permitido ao indivíduo se reconhecer, no sentido profundo do verbo, no espaço. O lugar proporciona também uma intensificação de aspectos interrelacionais e históricos – trazendo rastros de uma história e de uma filiação. O não lugar seria o reverso de tudo isso, um lugar de passagem incapaz de forjar qualquer identidade, um lugar incapaz de representar o indivíduo simbolicamente. A partir da Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 314 análise de nosso objeto, percebe-se uma proliferação de não lugares na perspectiva dos antigos moradores da região do campus de Santo André da UFABC – pois ainda não foi efetuada uma relação identitária com a universidade e a comunidade local. A região se povoou de novos “não-lugares” por parte dos novos moradores, os estudantes, docentes e técnicos, pois alguns são obrigados a ocuparem moradias que não mantém relações afetivas e alguns passam por condições sub-humanas apesar de terem que pagar um valor exorbitante na locação. Resultados A maioria dos jovens estudantes que migram para Santo André não possui habilidades para cozinhar, fato registrado em entrevistas realizadas. Muitas vezes eles acabam consumindo uma alimentação pobre sem nutrientes necessários. Esse novo hábito de alimentação está atrelado ao fato de morar longe das famílias e por consequência a facilidade em comprar produtos fast-food acarretam em uma profunda alteração do estilo de cultura alimentar. Rafael Reis de Odriozola, estudante de Engenharia da UFABC, conta que a principal mudança em sua alimentação é a ausência de sua mãe na preparação dos seus pratos. Conta que após ter se aperfeiçoado na culinária, sente orgulho e quando retorna para casa de seus pais, cozinha para eles. Verifica-se nesse contexto uma transformação cultural que o novo estilo de vida proporciona aos diversos estudantes. A diferença dos meus hábitos alimentares antes e depois da UFABC, sem dúvidas é a minha mãe, porque antes ela que cozinhava pra mim, então ela selecionava o cardápio para todos os dias da semana, deixava tudo bonitinho, já falava hoje a gente vai comer tal coisa, e depois que entrei na UFABC foi meio no improviso. Hoje estou com vontade de comer tal coisa, compro e faço Se não, se hoje estou com preguiça de cozinhar, vou comprar alguma coisa mais fácil de fazer, algo que se coloca no micro-ondas e já resolve o problema. Tive que aprender a cozinhar com cerca de 18 anos, depois que me mudei para cá e comecei a morar em república, tive que “me virar”. No começo nem eu gostava da minha comida, mas hoje em dia, tenho até orgulho porque eu vou em casa e cozinho, ajudo minha mãe, ajudo o pessoal. Acho que aprendi a cozinhar sim. Meu primeiro prato foi o famoso miojo com salsicha e requeijão. (ODRIOZOLA, 2012) Como foi possível perceber em entrevistas realizadas com estudantes da UFABC, morar fora de casa pode trazer experiências positivas , como a conquista da independência na relação do indivíduo com a cozinha. Muitos aprenderam a cozinhar ajudando as mães no Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 315 preparo de alguns pratos, outros aprenderam com amigos e os diversos sites disponíveis na internet. A aquisição do conhecimento do ato de cozinhar pode proporcionar uma sensação de prazer e orgulho daquele que tem o hábito de cozinhar. Com isso, os saberes adquiridos nos pratos preparados por eles não se restringem apenas ao lugar onde moram hoje, as repúblicas estudantis, mas chegam também a seu local de origem, onde está toda a família. Quando voltam para casa, levam novos sabores adquiridos durante toda a vida universitária. Porém, cumpre salientar que alimentação para esses mesmos estudantes nem sempre se revela como um hábito prazeroso no preparo ou no consumo. Percebe-se pelas narrativas analisadas que, muitas vezes, preparar a própria comida não se torna um hábito que se faz com frequência quer seja pela falta de tempo ou por falta de habilidades com o preparo. Ter tempo para preparar, por mais habilidoso que o sujeito seja, é fundamental para qualquer refeição. O estudante que mora em república ainda se torna dependente de comidas rápidas e pouco saudáveis, tanto por uma falta de cultura alimentar saudável quanto por problemas gerados pela dinâmica da UFABC. Em casa, às vezes morando com muitas pessoas em um pequeno e precário espaço, o próprio ato de se cozinhar se torna dificultoso. Em algumas entrevistas, alunos disseram que comem pizza em quase todas as noites. Além disso, há uma mudança na questão social de seu alimentar. Com rotinas diferentes os estudantes não cozinham de forma coletiva, o que faz com que não se reúnam ao redor da mesa. Conclusões De acordo com o trabalho realizado observa-se que o aluno deve comer, dormir e estudar com qualidade e na quantidade certa para que alcance seu máximo na vida acadêmica. A UFABC oferece ferramentas para que o estudante tenha excelência, mas a própria dinâmica da universidade impossibilita que o estudante que mora em república durma, coma e estude seguindo uma rotina saudável. A excelência é alcançada mas o que se percebe é que quem paga por isso é o corpo discente, com problemas de saúde em geral, muitos deles causados pelas deficiências dos hábitos alimentares. O comer na vida universitária do aluno da UFABC que mora em república se torna algo não afetivo, nem social e solidário como quando na vida familiar, mas algo solitário, feito apenas por necessidades vitais e não culturais. A alimentação vista como algo mecânico funciona simplesmente para a manutenção do nosso corpo, mas deixa de lado aspectos essenciais ligados ao sentimento e emoção dos Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 316 sujeitos. O momento da refeição é muito mais do que apenas ingerir alimentos, é o momento no qual as relações entre os sujeitos se fortalecessem, no qual há troca de experiências, memórias e saberes. A alimentação ultrapassa o presente, permitindo aos sujeitos que eles relembrem antigas histórias, que passem suas experiências àqueles com os quais convivem e que mantenham vivas suas memórias. A sociedade moderna chegou num ponto em que tudo se modifica constantemente e rápido. Os gostos não os mesmo, as vontades não são mais as mesmas. Tudo isso relacionado ao conceito de fluidez e da vida corrida que as pessoas levam, abrindo espaços para a construção de não-lugares e espaços vazios, dotados de nenhum significado. As redes de fast- food passaram a ser o cardápio principal de algumas pessoas (estudantes da UFABC), que estão cada vez mais individualizadas e com pressa. A alimentação slow-food privilegia a alimentação saudável, em conjunto, proporcionando momentos de interação social está se perdendo, sobretudo depois de 1945, quando se iniciou um processo de produção em massa de alimentos para suprir as necessidades da sociedade. Referências Bibliográficas AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus,1994. (Coleção Travessia do Século). BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. BOM MEIHY, J. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 1995. NORA, Pierre. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”. Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993. SLOW FOOD ® BRASIL. Alimente-se com prazer e ajude a manter vivo um modo de vida. Disponível em <http://www.slowfoodbrasil.com/slowfood/o-movimento> Acesso em 15.Maio.2013. Referências de audio 3ª do Plural (composição Humberto Gessinger) Álbum Surfando Karmas e DNA. 2002. Músicas Cotidiano e Você não entende (composição Chico Buarque / Caetano Veloso) LP Caetano e Chico ao Vivo. Som Livre, 1972. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 317 O TEMPO ENQUANTO EXPERIÊNCIA HUMANA: A MODERNIDADE E O FUTURO NA ESCRITA DO PASSADO José Fábio da Silva Universidade Federal de Goiás Mestrando em História. Bolsista UFG [email protected] Resumo: Na concepção do historiador alemão R. Koselleck existem três formas de aquisição e registro da experiência humana no tempo: as experiências de curto prazo (individual), de médio prazo (coletiva) e de longo prazo (História).Estas estão ligadas auma noção cultural de tempo que difere do tempo da natureza,estruturadas por meio de duas categorias histórico- antropológicas por ele denominadas de espaço de experiência (o passado presente) e horizonte de expectativa (o futuro presente). Esta concepção estabelece um diálogo direto ou sintetiza três grandes concepções filosóficas sobre a relação entre o espaço e o tempo: a tradição cristã inaugurada por Agostinho, a sua tradicional pergunta sobre “o que é o tempo?” e as categorias de memória (passado) e imaginação (futuro); a relação entre interior (tempo) e exterior (espaço) kantiana; e o pensamento heideggeriano no qual o ser se funda no tempo. Visamos, partindo da visão de Koselleck, discutir as mudanças ocorridas a partir da modernidade na experiência e forma de compreensão temporal e as possibilidades de registro do conhecimento humano por meio da narrativa histórica, dando ênfase não só na apreensão do passado no presente, mas, sobretudo, a importância de uma ideia de futuro neste processo. Palavras-chave: Teoria da História, Historicidade, Modernidade Abstract: In designing the German historian R. Koselleck there are three ways to acquire and record of human experience in time : the experiences of short-term (individual ) , medium term ( collective ) and long term ( History ) . These are connected to a cultural notion of time that differs from time nature, structured by means of two categories by it historical anthropological so-called space experiment ( the last present) and expectation horizon (the future present) . This concept establishes a direct dialogue or synthesizes three major philosophical conceptions of the relationship between space and time: the Christian tradition inaugurated by Agostinho , its traditional question about "What is time? " And the categories of memory ( past) and imagination (future ) , the relationship between interior (time ) and outer (space ) Kant , and Heidegger's thought in which being is grounded in time. We aim , from the vision of Koselleck , discuss the changes from modernity in the form of experience and understanding temporal and registration possibilities of human knowledge through historical narrative , emphasizing not only the seizure of the past in the present , but especially the importance of an idea of the future in the process. Keywords: Theory of History, Historicity, Modernity Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 318 Introdução: o “futuro” a partir da experiência do “presente” O presente está grávido do futuro Leibniz Quem controla o passado controla o futuro: quem controla o presente controla o passado. Georg Orwell No final do século XIX a empresa de chocolates alemã Hildebrands lançou uma série de cartões postais que continham ilustrações de como, baseado nos desenvolvimentos tecnológicos daquele período, seria o ano 2000. Não é preciso mencionar que máquinas a vapor, trilhos, balões de ar e dirigíveis atravessaram todo o século XX e projetaram um ano 2000 com tudo o que havia de mais significativo, ao menos no que condiz ao aparato tecnológico, naquela época. Entre “erros” e “acertos”, estes cartões postais demonstram como projetamos visões do futuro mediante o conjunto de experiências que temos disponíveis naquele momento unidas às expectativas que formulavam uma dada interpretação do presente. Figura 1: Trânsito aéreo no ano 2000 (Hildebrands chocolate alemão) Obviamente, este não é um caso isolado, a lista é vasta. Em 1910, por exemplo, o artista francês Villemard 1 pintou um conjunto de figuras com o mesmo fim. Em suas obras 1 As gravuras encontram-se na Biblioteca nacional da França. In: miltonribeiro.opsblog.org/tag/villemard Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 319 podemos observar elementos similares aos presentes nos cartões postais da empresa alemã de chocolates. Naquela virada de século, o avanço da tecnologia no que diz respeito a maquinários empolgava uma parcela considerável da população Ocidental e ao mesmo tempo, prometia um mundo onde as máquinas substituiriam ou ajudariam os homens em suas funções cotidianas. Figura 2: Sistema de aprendizado no ano 2000 (Villemard - 1910) Visamos assim, abordar esse conjunto de expectativas comum ao ser humano, que nos faz projetar ou profetizar, prever ou criar utopias em relação aos tempos que virão. Com esse intuito, partiremos da ênfase dada pelo pensamento heideggeriano ao futuro ou “estrutura projetiva do ser-aí” (GADAMER, 2003, p. 42) como característica humana e as mudanças na forma de interpretação e projeção desse futuro mediante os fenômenos da profecia e da utopia. “Heidegger põe o futuro como predominante, como local da finitude. O ‘ser-aí’ deve partir dessa determinação para o interior da consciência viva, que é passado e presente” (REIS, 1994, p. 57-8), sendo uma característica do ser-aí projetar-se no futuro. O “passado [Vergangesnheit] histórico não é determinado pela sua posição no que foi [imGewesenen]”, nem por todo e qualquer acontecimento que acaso resulte dele, mas pelas “possibilidades de seu futuro [Zukunft] [...] o que é futuro [Künktiges] como possível.” (INWOOD, 2002, p. 77). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 320 “Nessa perspectivao futuro tem primazia pois é eleque organiza o passado e o presente, sendo nele que estes têm o seu ‘fim’. Passado e presente são ordenados com base em uma ‘causa final’, eles são o meio de realizações de fins postos no futuro.” (REIS, 1994: 58). Esta “causa final”, todavia, se tomada no sentido heideggeriano, não condiz com a perspectiva Iluminista de organização temporal. Em Heidegger não há uma meta final a ser atingida pela humanidade, seja no sentido moral ou técnico-científico; o projetar faz parte da estrutura do ser-aí, faz-se necessário em sua orientação temporal. Mas qualquer que seja o êxtase, opere-se a temporalização pelo “futuro” como na existencialidade, pelo passado como na facticidade e pelo “presente” como na queda, cada um dos demais também se temporaliza, respeitada sempre a primazia do “futuro”, relativo ao compreender, que possibilita o projeto, mas é originariamente determinada pelo passado presente (Gewesenheit) e pelo “presente” (Gegenwart), cujo acento se desloca para o apresentar, ou seja, para o que se torna presente. (NUNES, 2002, p. 26). Uma das principais teses defendidas por Koselleck e ressaltada aqui inúmeras vezes, é que, com o advento do Iluminismo, houve uma aceleração temporal, a expectativa em relação ao futuro sobrepujou a experiência adquirida do passado. Privilegiar o futuro, nesta perspectiva, seria uma tendência da modernidade. Para Heidegger, entretanto, O “caráter de futuro” de Dasein é anterior ao “caráter de futuro” de qualquer coisa: “a é por ter uma ideia de futuro que meu ser se transpõe [entrückt] para o futuro; só posso representar o futuro por que, como Dasein, meu ser tem a característica básica de deixar o que está vindo [Kommendes] vir em sua direção, de se transpor para o que está vindo [in das Kommen]. (INWOOD, 2002, p. 76). Heidegger, então, ao colocar o futuro como predominante na experiência da finitude, reflete apenas uma característica fundamental advinda da filosofia moderna ou realmente identificou um modo de ser constituinte da existência humana? Esta temática será nossa guia nestes próximos tópicos. Previsão e prognóstico: mudanças na experiência de antecipar o futuro Dentro da concepção judaico-cristã de tempo, “a história será abolida totalmente no futuro.” (REIS, 1994, p. 151). A previsão ou a profecia são bem mais que um simples predicado presentes em ritos religiosos. A compreensão histórica da cristandade, ao menos até o século XVI, baseava-se em uma contínua expectativa dos fins dos tempos, ao mesmo tempo Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 321 em que, também, foi “a história dos repedidos adiamentos desse mesmo fim de mundo.” (KOSELLECK, 2006, p. 24).Koselleck nos mostra que à medida que as profecias escatológicas não satisfaziam mais as necessidades do Estado Absolutista, foram paulatinamente substituídas por prognósticos políticos mais convenientes às novas estruturas sociais que ascendiam na Europa dos séculos XVII e XVIII. “Enquanto a profecia ultrapassa o horizonte de experiência calculável, o prognóstico, por sua vez, está associado à situação política. Esta associação se deu de forma tão íntima, que fazer um prognóstico já significava alterar uma determinada situação.” (Idem: 2006, p. 32). À medida que o homem moderno foi aceitando a sua historicidade e adquirindo uma consciência histórica que se baseava em prognósticos racionalistas, as noções de previsões e profecias escatológicas perderam espaço em meio a conceitos políticos e filosóficos que exaltavam o progresso. “Pode-se considerar que o homem que planeja é um herdeiro da Providência divina.” (KOSELLECK, 2006, p. 130) Essa compreensão cristã do tempo, mesmo mal vista pelos iluministas, deixou profundas marcas em seu pensamento. Era a crença na Providência divina que preenchia o espaço do futuro. Nessa doutrina, marcada pela idéia do pecado original, não havia espaço para a idéia de progresso. Apesar disso, a teologia cristã acabou por construir uma síntese que tentava dar um significado ao curso dos eventos humanos. (DUPAS, 2006, p. 35). A noção de um desenvolvimento histórico que nutria a ideia de progresso da humanidade é devedora de uma concepção linear da história, que tem no futuro um “fim” ou ponto a ser alcançado, e que caracteriza uma orientação de tempo inaugurada pelo judaísmo e desenvolvida posteriormente no seio do cristianismo. Nisbet, ao demonstrar a influência agostiniana na visão de progresso definida por Kant, é categórico em afirmar que “não importa para onde nos voltemos no século XVIII, as origens religiosas da idéia ‘secular’ de progresso podem ser discernidas.” (1985, p. 230) Foi só com o advento da filosofia da história que uma incipiente modernidade desligou-se de seu próprio passado inaugurando, por meio de um futuro inédito, também a nossa modernidade. À sombra da política absolutista constitui-se, em princípio veladamente, depois abertamente, uma consciência de tempo e de futuro que se nutre de uma ousada combinação de política e profecia. Imiscui-se na filosofia do progresso uma mistura entre prognósticos racionais e previsões de caráter salvacionista, própria do século XVIII. (KOSELLECK, 2006, p. 35-6). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 322 A diferença entre o prognóstico e a profecia se encontra justamente na relação que estes têm com o tempo, com o trato dado ao horizonte de expectativa na orientação do presente. “O prognóstico produz o tempo que o engendra e em direção ao qual ele se projeta, ao passo que a profecia apocalíptica destrói o tempo, de cujo fim se alimenta.” (Idem,2006, p. 32).Na medida em que o prognóstico inscreve o passado no futuro, estabelece assim uma ideia de desenvolvimento, a profecia por sua vez anula o tempo, troca a continuidade pela eternidade. Durante o Absolutismo, prognóstico funcionou como uma forma de desaceleração do tempo no qual o passado se inseria no futuro, criando assim a ideia que nada de novo poderia ocorrer, procurou “ampliar o espaço de experiência pelo controle do horizonte de espera, através do prognóstico, do cálculo, de uma concepção naturalista do tempo” (REIS, 2003: 193). A ideia de progresso presente nas filosofias da história, todavia, culminou em afirmar o contrário: que o futuro pode sim trazer algo. Para concluir: a compreensão do presente e a (re)construção do passado mediante as expectativas do futuro A “necessidade” do futuro projeta visões diferentes sobre o passado. Ao observarmos a esfera política, isso se torna evidente, mas isso ocorre no cotidiano de uma forma geral. Cada nova plataforma de governo tende a rever, reavaliar e ressaltar determinados projetos realizados ou fatos ocorridos. O conjunto de “necessidades” do presente aliada a um futuro esperado/planejado tende a formular a História e reformular o passado de modo que haja uma “continuidade” entre essas temporalidades. “Assim, o progresso descortina um futuro capaz de ultrapassar o espaço de tempo e a experiência tradicional, natural e prognosticável, o qual, por força de sua dinâmica, provoca por sua vez novos prognósticos, transnaturais e de longo prazo.” (KOSELLECK, 2006, p. 36). Dessa forma podemos compreender a singularidade da experiência de tempo da modernidade, na qual o futuro não perde sua importância como na concepção cristã, mas este saiu das mãos de Deus e passou a ser um instrumento a serviço dos homens. O futuro deixa de ser uma incógnita, embora ainda inapreensível, ‘acontece’ e se ‘aproxima’ à medida que a humanidade tornou-se ciente do progresso para o qual caminhava. Se a linha utópica foi a forma de evasão do tempo prevalente no auge do Iluminismo, e exerceu enorme influência no século XIX – basta ver que Hegel foi ”indiscutivelmente o mais importante filósofo do século XIX” (NISBET, 1985, p. 282) – não se pode dizer o Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 323 mesmo no século XX. O discurso do progresso que sustentava tal expectativa sofreu profundos abalos com as crises do capitalismo e as duas grandes guerras da primeira metade do século. Entretanto, assim como a escatologia cristã, mesmo não sendo mais a principal forma de evasão do tempo, ainda se faz presente mesmo em nossa época, a utopia não deixou de se fazer presente do decorrer do século. Diversas temporalidades se fazem presentes na existência humana, e as tendências utópicas se fizeram/fazem presentes em meio a esse processo. Hartog, por exemplo, defende que o regime moderno de historicidade, caracterizado por essa aceleração do tempo, perdurou ao menos até o último terço do século XX. (HARTOG, 1996). Na perspectiva heideggeriana, o passado não sobrevive ao presente “simplesmente em efeitos de virtudes que acontecimentos passados causam em nosso estado presente” (INWOOD, 2002, p. 141) ou, como já vimos, espera-se, por meio da pesquisa histórica, que as pessoas lembrem-se do passado e imaginem o futuro. Mas em realidade, quando discursam ou escrevem sobre a história, elas a imaginam em função de sua própria experiência, e quando tentam estimar o futuro elas citam supostas analogias com o passado: até que, por um duplo processo de repetição, imaginam o passado e lembram-se do futuro. (Idem) Esta tendência é fruto da temporalidade humana. A temporalidade se dá a partir da forma como organizamos a dinâmica: presente, passado e futuro. Essa dinâmica resultará em nossas preconcepções e possibilidades de interpretação e compreensão de um horizonte histórico diferente do nosso, pois mesmo “o conhecimento histórico e a epistemologia das ciências humanas compartilham com a natureza fundamental da existência humana” (GADAMER, 2003, p. 12) e são preconcepções que possibilitam um reconhecimento do passado e um projeto do futuro. As categorias antropológicas de espaço de experiência e de horizonte de expectativas propostas por Koselleck, também carregam muito dessas preconcepções e contém uma explicita referência a temporalidade. Podemos mesmo dizer que a “historia conceitual” de Koselleck é, antes de tudo, uma concepção historiográfica que toma como fundamento a historicidade humana constituinte do fenômeno lingüístico. Em outras palavras o que constitui o tempo histórico são as concepções sociais sobre sua temporalidade e, particularmente, sobre seu futuro. A temática historiográfica, não é propriamente o passado, mas o futuro; não o fato, mas a possibilidade; mais precisamente, as possibilidades e projetos, passados – o futuro passado. (PEREIRA, 2004, p. 43-4). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 324 De qualquer forma estas três “ecstases 2 ” da temporalidade orientam a nossa concepção temporal e mesmo que as separemos conceitualmente e tenhamos consciência do peso da tradição presente neste ato, elas encontram-se entrelaçadas no cotidiano, onde compreendem e interpretam esses mesmos conceitos na esfera política, social ou existencial. Ao nos direcionarmos ao passado, seja como um historiador munido de um método, seja como um indivíduo imerso nessa temporalidade, temos a intenção de dá sentido ao presente, ressignificamos o passado e projetamos um futuro em uma teia temporal que não obedece somente divisões cronológicas. Encontramos uma forma de pensamento similar já em Agostinho. Ao ligar o passado à memória e o futuro à imaginação, sistematizou uma dinâmica da relação temporal. A memória na visão agostiniana tem três características bem definidas: 1) possui uma existência singular, o passado é o “meu” passado, uma lembrança “minha”; 2) permiti uma continuidade temporal da personalidade e da identidade de tempo; 3) nos dá um senso de orientação na passagem do tempo, tanto do passado para o futuro quanto do futuro para o passado. Ao conceber que existe uma estreita relação entre a reflexão que os indivíduos fazem do presente e suas experiências e esperanças, Agostinho se detém afirmando que aquilo que se grava na memória não são as imagens da realidade que se apresenta, mas as próprias realidades. Mas ao mesmo tempo não subordina a memória a espírito. Percebendo portanto, a provisoriedade da idéia de tempo, mas não a provisoriedade das orientações que formam a identidade do indivíduo no presente. (ARRAIS, 2008, p. 61). Mas na existência humana esses fatores não se mostram isolados. Ao projetarmos/imaginarmos o futuro fazemo-nos mediante as nossas experiências de vida. Esse futuro projetado, formado tanto individualmente quanto socialmente, rege também as ações do cotidiano, isso nos faz agir de determinada maneira no presente ao mesmo tempo em que reformulamos nossas interpretações do passado, que novamente embasarão nossas projeções futuras e assim sucessivamente. A compreensão do tempo se dá como uma estrutura circular, não como repetição, em uma perspectiva de tempo cíclico, mas cotidianamente e muitas vezes descontínua e passível de nossas interpretações de dados concretos, isso é o que Heidegger e Gadamer chamam de círculo hermenêutico. 2 Ekstase(n) vem do grego existanai, “deslocar, desordenar etc.” via ekstasis, “distração, desordem, espanto, transe etc.” (INWOOD, 2002: 141) Heidegger relaciona o termo aos conceitos de futuro, presente e passado, não relacionados somente a cronologia, mas também existencialmente. “O ‘caráter fenomenal’ do futuro é ‘em direção a si mesmo’, (...) do presente “deixar que algo venha ao encontro de alguém” e (...) do passado ou ter- sido é “volta a”. (Idem) Com isso Heidegger tenta demonstrar como se dá no sentido existencial temporal do ser o que compreendemos e chamamos de tempo. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 325 Sobre a pergunta que lançamos como guia destes tópicos: Heidegger, então, ao colocar o futuro como predominante na experiência da finitude, reflete apenas uma característica fundamental advinda da filosofia moderna ou realmente identificou um modo de ser constituinte da existência humana? Gadamer dá uma resposta interessante, “em Heidegger, assistimos uma valorização ontológica do problema posto pela estrutura da compreensão histórica, fundada sobre a existência humana que é, essencialmente, orientada pelo futuro.” (GADAMER, 2003, p. 42). O conhecimento histórico é tributário da estrutura projetiva do ser-aí. Mas o conhecimento histórico não é um projeto ou planejamento plenamente totalmente consciente, nem mesmo um conjunto de dados escolhidos segundo a vontade individual. O fato é que, do ponto de vista heideggeriano, só podemos falar em história por sermos nós mesmos históricos, isso “significa que a é a historicidade do ser-aí humano, em seu movimento incessante de expectativa e esquecimento, que permite o retorno do passado à vida. (Idem, p. 43) Esse constante retorno do passado ocorre por que antes aguardamos ou nos projetamos a um futuro. Devemos ressaltar que Heidegger compreende essa primazia do futuro por meio de uma perspectiva ontológica, na qual esta deve ser compreendida como um modo de ser que proporciona para o ser-aí uma compreensão histórica de si. Mas como já ressaltamos com Koselleck, a noção que temos do presente se organiza mediante ao espaço de experiência e o horizonte de expectativa que estão dispostos de maneiras distintas na vida prática. Levando em conta as duas perspectivas, a estrutura projetiva do ser-aíheideggeriano estruturar-se-ia, ou comportar-se-ia de maneiras diferentes ao futuro projeto, a partir da disposição destas experiências e expectativas na maneira compreendida por Koselleck. Em outras palavras, essa estrutura projetiva do ser-aí orienta e se orienta simultaneamente a partir do regime de historicidade em que este está inserido. Ou seja, o futuro nosso de cada dia, estaria delimitado pela perspectiva que a sociedade em uma maneira mais ampla organiza e representa o tempo. Referências Bibliográficas ARRAIS, Cristiano Alencar. Projeções Urbanas. Um Estudo sobre as Formas de Representação e Mobilização do Tempo na Construção de Belo Horizonte, Goiânia e Brasília. Belo Horizonte: UFMG, 2008. (Tese de doutorado) DUPAS, Gilberto. O mito do progresso: ou o progresso como ideologia. São Paulo: Editora UNESP, 2006. GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. 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NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e Tempo.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. PEREIRA, Luísa Rauter. A História e “o diálogo que somos”: a historiografia de ReinhartKoselleck e a hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2004. (Dissertação de Mestrado em História). REIS, José Carlos. História e Teoria. Rio de Janeiro: FGV, 2003. _______________. Tempo, história e evasão. Campinas, SP: Papirus, 1994. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 327 ROBÓTICA EDUCACIONAL: PERSPECTIVAS INOVADORAS PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS Josilda dos Santos Nascimento Mesquita Universidade Federal do ABC Mestranda em Ensino, História e Filosofia das Ciências e Matemática [email protected] Mirian Pacheco Silva Universidade Federal do ABC Professora Adjunta Doutora em Educação [email protected] Resumo: O uso da tecnologia em sala de aula possibilita ao professor ampliar seu saber docente e ao aluno construir seu conhecimento de mundo de maneira significativa. O presente trabalho tem como objetivo analisar as implicações da Robótica Educacional para o ensino de Ciências e sua influência no processo ensino-aprendizagem do ensino fundamental I. A pesquisa desenvolveu-se numa abordagem qualitativa observando as aulas de Robótica Educacional desenvolvidas durante o segundo semestre de 2013 numa escola municipal de São Bernardo do Campo. As aulas desenvolveram em dois momentos: o primeiro referente a situações de aprendizagem voltadas a construção de robôs feitos com materiais de sucata eletroeletrônica e a segunda com programação de robôs utilizando o kit LEGO Mindstorms. O uso da Robótica Educacional apresenta-se como uma nova estratégia de ensino de maneira desafiadora e investigadora, proporcionando situações de aprendizagens significativas que levem o aluno a conhecer, criar, levantar hipóteses e buscar soluções para que vivencie as aulas de Ciências numa perspectiva dinâmica. A análise dos resultados evidencia uma relação direta entre teoria e prática favorecendo a aprendizagem de novos conceitos, desencadeando o processo entre ensino-aprendizagem numa concepção de educação inovadora voltada ao século XXI. Palavras-chave: Ensino de Ciências, Processo ensino-aprendizagem, Robótica Educacional. Abstract: The use of technology in the classroom enables the teacher to expand their knowledge and teaching students to build their knowledge of the world in a meaningful way. This study aims to analyze the implications of Educational Robotics for the teaching of science and its influence on the teaching and learning process of basic education I. The research is a qualitative approach observing classes Educational Robotics developed during the second half of 2013 in a public school in São Bernardo do Campo. Classes developed in two phases: the first refers to learning situations aimed at building robots made from scrap electronics materials and the second with programming robots using the LEGO Mindstorms kit. The use of Educational Robotics presents as a new teaching strategy for investigating and challenging way by providing meaningful learning situations that lead the student to learn, create hypotheses and seek solutions for the science classes to experience a dynamic perspective. Analysis of the results shows a direct relation between theory and practice encouraging people to learn new concepts, triggering the process of teaching and learning in designing innovative education geared to the XXI century. Keywords: Teaching Science, Teaching and learning process, Educational Robotics. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 328 1. Introdução O atual cenário mundial é marcado pelo crescente desenvolvimento tecnológico, a todo instante surge novas ferramentas de busca e informação estreitando as relações entre o homem e o meio tanto num aspecto virtual quanto real. Como espaço de construção de saberes, a escola não pode estar alheia ao avanço da informatização e muito menos as diversas mudanças que o uso da tecnologia tem acarretado no contexto mundial “dessa forma, é necessário considerar a relação entre informação, conhecimento e educação”. (COSTA & OLIVEIRA, 2004, p.23) como meio facilitador para a aquisição de conhecimento, a fim de que cada vez mais sejam oferecidas situações de aprendizagem que aliem informação e conhecimento. A educação torna-se então, o passaporte para um mundo de conquistas construído ao longo da vida, nesse sentido é fundamental que a escola esteja em sintonia com a atualização contínua dos saberes. Através da formação continuada, os professores podem buscar a apropriação desse conhecimento tanto no que diz respeito ao uso de diferentes estratégias pedagógicas quanto à aquisição de novos conteúdos que amplie sua prática docente em sala de aula. Na sala de aula, a utilização da tecnologia proporciona aos educadores e alunos situações de aprendizagens possibilitando o desenvolvimento de habilidades, possibilidades e competências. É importante que eles sejam capazes de discutir seu uso e suas consequências considerando que “a tecnologia apresenta-se como meio, como instrumento para colaborar no desenvolvimento do processo de aprendizagem” (MORAN, 2000, p.139). Como fator decisivo a tecnologia esta presente na sociedade atual e seu uso na sala de aula propõe desenvolver habilidades e competências para lidar com os recursos tecnológicos presentes na vida cotidiana (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2007), A utilização das novas tecnologias no dia a dia possibilita o desenvolvimento de habilidades, possibilidades e competências, a partir do momento que os professores se apropriarem desses recursos identificando-a como auxílio ao ensinoatravés de diversas situações de aprendizagens ricas, complexas e diversificadas (PERRENOUD, 2000). Este cenário é propício para a utilização da Robótica Educacional como uma proposta educacional uma nova maneira de encarar uma educaçãonum contexto inovador e desafiador. O grande papel de uma educação voltada ao século XXI está entrelaçado aos quatro pilares da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 329 ser (DELORS, 2003) como sendo necessária para criar competências ao domínio do conhecimento. A proposta de trabalho com a Robótica Educacional desenvolve competências que vão de encontro ao domínio dos instrumentos do conhecimento, unindo a teoria e a prática através da sistematização do conhecimento. 2. A Robótica Educacional Robótica Educacional para Maionesette (2002) é definida como O controle de mecanismos eletroeletrônicos através de um computador, transformando-o em uma máquina capaz de interagir com o meio ambiente e executar ações decididas por um programa criado pelo programador a partir destas interações. O trabalho com Robótica Educacional na escola é proposto mediante a realização de atividades voltadas a elaboração de projetos aos quais os alunos são desafiados a solucionarem um problema. As atividades propostas estão inseridas “num contexto onde as atividades de construção e controle de dispositivos, usando kits de montar e outros materiais, propicia o trabalho conceitual em ambiente de aprendizagem”. (VALENTE, 1999, p. 57) Para Maionesette (2002) o trabalho com robótica proporciona tanto para professores quanto para alunos uma ação pedagógica voltada à “investigação científica, colaboração, motivação, criatividade desenvolvimento do senso crítico, construção e reinvenção”. Durante as aulas o que se vê é muita criatividade durante as montagens, o que importa é a intencionalidade da ação, desenvolvendo e estimulando a imaginação. O desenvolvimento das aulas é basicamente estruturado em trabalhos em grupo possibilitando a troca de ideias e experiências, favorecendo as relações interpessoais como a cooperação, dessa forma, sendo representado pelo mais alto nível de socialização promovendo diretamente o desenvolvimento nas relações do indivíduo com os demais membros de sua comunidade e consequentemente em suas relações sociais. (PIAGET, 1994) Este é um dos maiores desafios da escola, como espaço por excelência para o desenvolvimento da convivência com o outro, proporcionando condições para que os alunos possam conviver em contextos que estimulem valores igualitários em prol de objetivos comuns em um ambiente de cooperação e participação. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 330 À medida que aprende o aluno percebe quais são os caminhos que serão percorridos nesse processo e seleciona os materiais que poderão ser utilizados para que alcance seus objetivos. É nesse sentido que a escola deve desencadear meios para que a busca pelo conhecimento seja carregada de significados, oferecendo aos alunos as mais diversas formas de acesso ao aprender. “O processo de aprendizagem do conhecimento nunca está acabado” (DELORS, 2003 p. 92) deve ser exercitado e estimulado através de situações que façam com que os alunos valorizem o ato de aprender. O professor no contexto da Robótica Educacional torna-se um facilitador no processo entre o ensino e a aprendizagem, tendo a função de orientar as montagens construídas pelos alunos, valorizando suas conquistas e acolhendo suas dúvidas. No Brasil, o uso da robótica como auxílio pedagógico relacionando o uso da tecnologia com a aprendizagem vem crescendo gradativamente nas instituições de ensino tanto em setores do poder público quanto privado. 3. Robótica Educacional de baixo custo Lixo tecnológico é todo componente de material eletroeletrônico descartado e sem uso como peças de computadores, relógios, celulares, telefones, maquinas fotográficas, dentre outros. O trabalho com a Robótica Educacional de baixo custo utilizando a reutilização de materiais de sucata traz uma grande conquista nas reflexões com as questões ambientais propondo situações pedagógicas onde os alunos são estimulados a realizarem diversas tarefas através do reaproveitamento de materiais que seriam descartados. Um dos grandes ganhos da Robótica Educacional é o trabalho com a utilização de materiais reciclados de forma sustentável, o aluno percebe que ao criar novos objetos partindo dos materiais que poderiam ser destinados ao lixo ou descartados na natureza contribui com o meio ambiente transformando objetos em desuso num rico material de aprendizagem feito por ele. O trabalho com Robótica Educacional desenvolve nos alunos algumas competências como: trabalho em equipe, solução de problemas, senso crítico, interdisciplinaridade (matemática, física, mecânica, informática), autonomia e responsabilidade. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 331 A Robótica Educacional é uma aliada no desenvolvimento do pensamento científico através de seus diversos procedimentos de pesquisa no ensino de Ciências (observação, experimentação, formulação e reformulação de hipóteses, investigação e resolução de problemas) sendo parceiro na relação entre teoria e prática. Durante o desafio de construir um robô os alunos são estimulados a elaborar hipóteses, formular e reformular ideias mediante várias tentativas de ensaio e erro, agindo os objetos de maneira real para que possam ser construídas propriedades abstratas. A esse respeito Maisonnette aponta que Para Piaget, as funções essenciais da inteligência consistem em compreender e inventar, em outras palavras, construir estruturas estruturando o real. A experiência física definida por Piaget como essencial na formação da inteligência consiste em agir sobre os objetos e descobrir as propriedades por abstração, partindo dos próprios objetos. (MAISONNETTE, 2002) 4. Robótica Educacional: perspectivas inovadoras para o ensino de Ciências A educação tem por propósito difundir o saber científico e tecnológico, nesse sentido a atuação pedagógica dos professores deve ser uma busca constante no processo de difusão e produção do conhecimento. Nesse sentidoDelizoicovconsidera que A ação docente buscará construir o entendimento de que oprocesso de produção do conhecimento que caracteriza a ciência e a tecnologia constitui uma atividade humano sócio historicamente determinado. (DELIZOICOV, 2002, p.34) José M. F. Vale (VALE, 2009) considera que os objetivos da educação científica vão de encontro ao: ensinar Ciências e técnica de modo significativo que atinja todos os segmentos da sociedade com qualidade; partir da prática social tomando o contexto para a determinação dos conteúdos científicos e técnicos mediados pela atuação do professor; ir além do senso comum promovendo a formação do espírito científico. Um grande desafio proposto ao ensino de Ciências e a prática docente é o desenvolvimento de ações pedagógicas voltadas para a aquisição de conhecimentos que estejam engajados com o desenvolvimento das novas tecnologias. As aulas com Robótica Educacional desencadeiam a curiosidade natural dos alunos unindo situações lúdicas e com a investigação criativa favorecendo o processo ensino- Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 332 aprendizagem voltado à descoberta e o interesse pelo aprender brincando de maneira significativa, por isso o professor deve “planejar, desenvolver, mediar e avaliar as situações de ensino (...) fomentando a curiosidade e a criatividade de modo a estabelecer bases do pensamento científico e desenvolver o prazer e o desejo de continuarem aprendendo.” (LOUREIRO, 2013, p. 16) As atividades oferecidas vão de encontro a esse novo conceito de aprendizagem voltada ao aprender-fazendo baseado na aquisição de procedimentos de manuseio dos materiais, processo de experimentação, desenvolvimento de atitudes referentes ao companheirismo e a cooperação, levantamento de hipóteses e busca por soluções. 5. Metodologia da pesquisa A metodologia que utilizamos para esta pesquisa está baseada na abordagem qualitativa e aprofundamos nossa investigação no estudo de caso. Nossa pesquisa surgiu a partir da problematização que colocamos em discussão sobre “qual a contribuição da Robótica Educacional para o ensino de Ciências e sua influência no processo ensino- aprendizagem”. Discutimos ao longo da pesquisa as seguintes questões norteadoras de reflexões: • Quais indícios a Robótica Educacional traz para uma educação voltada ao século XXI? • Como o ensino de Ciências pode ser desenvolvido a partir de sua utilização em sala de aula? • Como se dá o processo ensino-aprendizagem nas aulas de Robótica Educacional? A escolha da sala de aula participante desta pesquisa foi feita a partir da seleção das salas de aulas que desenvolviam o trabalho de Robótica Educacional na escola e que estivesse vinculada a área do ensino de Ciências, no caso a turma do 5º ano estava desenvolvendo o projeto sustentabilidade. O desenvolvimento desta pesquisa se deu com 23 alunos do 5º ano com idades entre 10 e 11 anos de uma escola municipal do ensino fundamental I na cidade de São Bernardo do Campo, tendo o laboratório de informática como o local para o desenvolvimento das aulas. Para a constituição dos dados realizamos entrevistas semiestruturadas com a professora de apoio aos programas educacionais (PAPE) responsável pela organização das aulas de robótica no laboratório de informática, com a professora da sala de aula para Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 333 compreender qual seu parecer sobre o processo ensino-aprendizagem através das aulas de robótica e com a representante da chefia de Educação Tecnológica do município para verificar os motivos que levaram o município a adotar o trabalho com robótica aos alunos das escolas municipais. Utilizamos questionário com questões abertas e fechadas para os demais professores da escola para identificarseu conhecimento sobre a utilização da robótica durante suas aulas. Para uma melhor clareza e aprofundamento dos dados realizamos a observação das aulas no segundo semestre de 2013 no laboratório de informática, através de registros oriundos da observação, imagens fotográficas para ilustrar a pesquisa e a filmagem de uma aula em vídeo, neste aspecto, optamos por socializar o resultado de nossa pesquisa obtida em sua primeira fase, ou seja, a construção de robô com sucata eletroeletrônica. 6. Resultados e discussão Os alunos realizaram projetos de Robótica Educacional de baixo custo através da construção de pequenos robôs sustentáveis em atividades subdivididas em dois momentos: em grupo (construção de besouros) e individualmente (construção de pequenas baratinhas). Tendo como base nas aulas de Ciências o conteúdo sustentabilidade, a proposta das atividades com Robótica Educacional se deu a partir de discussões sobre o que era tecnologia, o que vem a ser um robô e os robôs que estão a serviço da natureza, após seguiu a proposta da construção de robôs com a utilização de sucatas de lixo doméstico e lixo eletroeletrônico tanto em atividades em grupo quanto em construção de um robô individualmente. Após a atividade em grupo os alunos foram convidados a construírem seu próprio robô intitulado “baratinha” partindo dos conhecimentos adquiridos durante a realização das construções em grupo. Os materiais utilizados para a construção tanto do besouro quanto da baratinha (robôs simples) foram: • Escova de dente com cerdas retas • Duas baterias pequenas de 1,5 watts • Celular em desuso • Pedaços de fios • Fita adesiva • Cola quente Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 334 • Ferro de solda • Chave de fenda para desmontar o celular • Materiais de sucata doméstica para a customização dos robôs Mencionaremos abaixo com o foi feita a construção da baratinha individual desdea seleção dos materiais até a montagem: 1. O aluno desmonta o celular até encontrar o motor vibracall para que seja colocado sob a base da escova de dente. 2. As cerdas da escova tem a função de pés e para fazer o robô se movimentar sob a superfície lisa. 3. Utiliza-se cola quente para grudar o motor do vibracall em cima da cabeça da escova. 4. As duas baterias equivalem a quase a mesma tensão de carga de energia de uma bateria de celular. 5. Depois de feita a uniãodos fios nas baterias usando a ponta do fio para o polo positivo e o outro no polo negativo, é preciso prendê-las sob a escova usando a fita adesiva. A foto abaixo mostra como foi feita essa montagem da “baratinha”: Todas as atividades com Robótica Educacional são feitas a partir do planejamento de atividades desenvolvidas com a parceria entre a professora que atende o laboratório de informática e a professora da sala de aula, no caso as aulas contemplam o ensino de Ciências com o tema sustentabilidade e nada mais relacionado a esse tema do que os alunos construírem seus próprios brinquedos. A Robótica Educacional contribui para o desenvolvimento de novas competências e habilidades frente às demandas educacionais do século XXI, além de proporcionar uma gama Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 335 de possibilidades para o desenvolvimento da criatividade, manuseio de uso lógico dos materiais, análise de sua funcionalidade, capacidade de solucionar problemas mediante tentativas constantes de ensaio e erro, bem como a compreensão de conceitos referente à física, matemática, tecnologia e programação. O trabalho desenvolvido com Robótica Educacional de baixo custo possibilita a reflexão de questões ambientes partindo da reutilização do lixo eletrônico e do lixo reciclado doméstico voltado a ações que levam a sustentabilidade, em especial este é um trabalho que agrega o conceito sobre sustentabilidade e consumo consciente, pois os alunos foram desafiados a construírem seu próprio brinquedo utilizando material reciclado a partir de materiais encontrados em casa. Os dados obtidos até o momento revelam que o trabalho desenvolvido com Robótica Educacional tem propiciado aos alunos uma apropriação do conhecimento dos conteúdos do ensino de Ciências numa relação direta entre teoria e prática. O trabalho desenvolvido durante as atividades tanto individualmente quanto em grupo revela uma constante interação entre aluno-aluno e entre professor-aluno através deatitudes de cooperação, solidariedade e reflexão dos conteúdos estudados em sala de aula. Os resultados obtidos revelam que o uso da Robótica Educacional facilita a aprendizagem e desencadeia a relação entre ensino-aprendizagem numa perspectiva inovadora que alia a teoria e a prática contemplando uma educação voltada ao século XXI baseada nos quatro pilares da educação e seu sucesso está alicerçada no planejamento das aulas de Robótica Educacional relacionadas aos conteúdos desenvolvidos na sala de aula. Nesse sentido, o professor atua como um facilitador deste processo desafiando o aluno a levantar e a testar suas próprias hipóteses durante a realização das atividades. 6. Considerações finais O trabalho com a Robótica Educacional proporciona aos alunos serem produtores de seu próprio conhecimento por meio da relação direta entre o que se ensina e o que se aprende através da experimentação direta com o material utilizado nas construções com a Robótica Educacional de baixo custo. As aulas sempre estão relacionadas com o trabalho desenvolvido em sala de aula, numa interação direta entre a professora da classe e a PAPE que atua no laboratório de informática, local em que ocorrem as aulas com Robótica Educacional. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 336 O uso da Robótica Educacional no ensino de Ciências desencadeia a relação entre ensino e aprendizagem numa perspectiva inovadora, dinâmica e motivadora na medida em que os alunos são desafiados a refletirem sobre os conceitos que estão estudando em ações concretas desencadeadas pela relação direta entre teoria e prática. O trabalho realizado em grupo proporciona muitas aprendizagens, notamos que, quando os alunos foram convidados a construírem seu próprio robô “baratinha” partindo dos conhecimentos já adquiridos nas construções realizadas em grupo acabou por render muitas aprendizagens, essa atividade gerou constantes trocas de ideias e conhecimentos por parte dos alunos através de atitudes de cooperação, diálogo, formulação e reformulação de hipóteses. Fica evidente que os alunos buscam soluções perante as mais variadas situações que lhe são propostas, sendo encorajados e enfrentar os desafios e a pensar sobre os possíveis conflitosoriginados das construções com o uso do material reciclado provindo do lixo eletroeletrônico. A atuação do professor é desafiar o aluno a levantar e a testar suas próprias hipóteses durante a construção do robô e assim os alunos vão incorporando os conceitos trabalhados nas aulas de Ciências à medida que as aprendizagens vão acontecendo durante o desenvolvimento das atividades. Nas aulas de Robótica Educacional, os alunos exploram os materiais, formulam, reformulam, adquiremnovos conceitos e aprimoram os já existentesem atividades que favoreçam o aprender brincando através do uso constante de tentativas de ensaio e erro. A construção dos robôs contribui para a construção de competências e habilidades que o aluno carrega ao longo de sua trajetória acadêmica. O trabalho com Robótica Educacional proporciona situações de aprendizagens que levam o aluno a conhecer, a criar, a levantar hipóteses e a buscar soluções para que vivencie as aulas de Ciências numa perspectiva motivadora e lúdica, além de caminhar para a apropriação de conhecimentos aliados entre a teoria e a prática. 7. Referências Bibliográficas COSTA, W. J. & OLIVEIRA, A. M. Novas linguagens e novas tecnologias. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. DELIZOICOV, Demétrio. Ensino de Ciências: fundamentos e métodos.São Paulo: Cortez, 2002. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 337 DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: MEC; UNESCO, 2003. LOUREIRO, Mairy B. Trilhas para ensinar ciências para crianças.Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. MAISONETTE, Roger. 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Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 338 ARTE-EDUCAÇÃO EM OFINAS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO PROJETO BATUCLAGEM (UFABC) Karen Fernanda de Paula Universidade Federal do ABC Graduando do Bacharelado em Ciência e Tecnologia [email protected] Ana Maria Dietrich Universidade Federal do ABC Doutora em História Social - FFLCH-USP [email protected] Resumo: O ambientalismo surgiu no Brasil na década de 80 com o objetivo de transmitir conhecimentos sobre o meio ambiente, conscientizar para sua preservação e utilização sustentável. Foi inserido na educação brasileira através de leis federais, estaduais e municipais com o intuito de ser planejado interdisciplinarmente para provocar as mudanças desejadas. A partir dessas reflexões foi concebido o Projeto Batuclagem, que desenvolveu técnicas de ensino- aprendizagem ligadas à Arte-educação a partir de conteúdos voltados ao meio ambiente. Desenvolvido como projeto de ensino, pesquisa e extensão desde 2011 na UFABC, o projeto realizou oficinas de educação ambiental utilizando das técnicas de contação de história, jogos, ensino de canto, treino de ritmo e elaboração de instrumentos musicais com material reciclável. Nessa comunicação, pretende-se avaliar, do ponto de vista da História e Ensino de Ciências, se essas técnicas e métodos têm funcionado de maneira profícua desenvolvendo as capacidades e habilidades esperadas no público infantil atendido. Palavras chaves: História e ensino de ciências, educação ambiental, arte-educação. Abstract: Environmentalism emergedin Brazil in the 80s with the aim of transmitting knowledge about the environment, awareness for it preservation and sustainable use. It was inserted in brazilian education through federal, state and local laws with intentionto be planned interdisciplinary to cause desired changes. From these reflections was designed ProjetoBatuclagem, what developed techniques of teaching and learning linked to art-education from content for the environment. Developed as teaching, research and extension project since 2011 in UFABC, the project performed workshops of environment education using the techniques of storytelling, games, teaching singing, workout pace and development of musical instruments from recycled material. In this communication is intended evaluate from the point of view of History and Science Education, if this techniques and methods have worked of effective way developing skills and abilities expected in child public attended. Keywords: History and science education, environmental education, art education. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 339 O ambientalismo surgiu no Brasil na década de 80. Com ele veio a educação ambiental que se tornou objeto de estudo, discussão e crítica por parte de educadores e ambientalistas. A Educação ambiental tem o objetivo de transmitir conhecimentos sobre o meio ambiente, além de conscientizar para sua preservação e utilização sustentável. Diante da perspectiva de um colapso dos recursos naturais torna-se essencial o conhecimento da educação ambiental para privilegiar uma mudança no comportamento das pessoas. Essa preocupação foi refletida na educação brasileira através de leis federais, estaduais e municipais. Tornava-se necessário integrar essa tendência à proposta dos Parâmetros Curriculares Nacional. O tema meio ambiente aparece como uma proposta transversal, fazendo parte integrante de diversas disciplinas do currículo escolar e devendo ser planejada interdisciplinarmente para provocar as mudanças desejadas. De acordo com o Instituto de Pesquisa em Ecologia humana, “o universo é vida e todos os seres, animados ou inanimados, têm direito à preservação e continuidade de sua espécie, sob pena de comprometimento da vida de todos os demais, ressaltando que todos possuem um "valor existencial" que transcende valores utilitários”. O instituto considera que inexiste uma ciência social separada de uma ciência ecológica, pois não é possível estudarem-se os sistemas e processos humanos de maneira isolada dos sistemas ambientais. Segundo Piaget, “o conhecimento não procede nem da experiência única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas” (PIAGET, 1976 apud FREITAS, 2000, p. 64). As pessoas se desenvolvem intelectualmente a partir de exercícios e estímulos oferecidos pelo meio que os cercam. O comportamento de cada indivíduo é construído numa interação entre ele e o meio. Entende-se que, nas mesma linha de Piaget, deve-se sempre buscar estruturas novas que podem ser vistas como estratégias de aprendizagem para melhorar a educação e o ensino. Em outra direção, acredita-se que uma metodologia profícua para o desenvolvimento de tais estratégias seja a arte-educação. Segundo Herbert Read, a arte e a educação são dois conceitos indissociáveis, sendo que a primeira deveria ser a base da segunda como um todo. A arte é a expressão da ciência, que por sua vez é a explicação da realidade. Pode ser definida como um trabalho educativo, pois através das tendências individuais, estimula a inteligência e contribui para a formação da personalidade do indivíduo, desenvolve a percepção, a imaginação, a observação, o raciocínio e o controle gestual, influenciando diretamente na aprendizagem. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 340 A arte pesquisa a própria emoção, organiza pensamentos, sentimentos, sensações e forma hábitos de trabalho. Educa, integra e seus modos de expressão que passam pela poesia, música, teatro, cinema, artes plásticas, formam uma abordagem global de uma educação estética, baseada na consciência, raciocínio e inteligência dos seres humanos. Nesse estudo, pretende-se enfocar, a partir de reflexões sobre a importância da arte para o ensino-aprendizagem, no estudo de caso do projeto Batuclagem, que está sendo desenvolvido pela Pró-Reitoria de Extensão desde 2011. O projeto Batuclagem utiliza a metodologia da arte-educação pra trabalhar a educação ambiental com crianças de 7 a 13 anos. As oficinas realizadas em escolas públicas são constituídas por contação de histórias, jogos, brincadeiras e a introdução de noções musicais com ensino do canto, treino de ritmo e a elaboração de instrumentos musicais com material reciclável. É fomentado pela pró-reitoria de extensão da Universidade Federal do ABC desde 2011. No primeiro ano do projeto, foram realizadas 30 oficinas voltadas para educação ambiental e ensino de práticas musicais ligadas a percussão na quadra da G.R.C.E.S. Tradição de Ouro do ABC (Bairro Santa Terezinha, Santo André-SP), escola de samba que atuou como parceira no projeto. Foi montada uma bateria mirim com 30 crianças, subdivididas em grupos de acordo com os instrumentos musicais: surdos, tamborins, repiliques e caixas elaboradas a partir de material reciclável. Em 2012, o projeto foi realizado em escolas públicas de Santo André, totalizando 32 oficinas e agora com o nome Batuclagem nas escolas. Devido a grande receptividade do projeto nas escolas e pedidos da direção para que as oficinas se repetissem em outras turmas, o número de crianças envolvidas ultrapassou o inicialmente planejado, chegando em 3000. Os arte-educadores trabalharam com 6 temáticas. 1. Reciclagem do Lixo 2. Uso racional da água 3. Uso racional da Energia 4. Biodiversidade 5. Poluição do Ar 6. Lixo Tecnológico. A partir destes conceitos foram elaboradas 6 histórias infantis que compõem a presente coleção. Os alunos adquiriram uma experiência que os tornaram mais seguros e tolerantes. A comunidade valorizou e respeitou a instituição pela iniciativa de dividir sua capacidade intelectual com os cidadãos. Os resultados do projeto mostraram que as crianças assimilaram muito melhor os conteúdos ludicamente. Tal projeto utilizou em 2012 acontação de histórias como técnica principal dentro da arte- educação. Para isso a equipe elaborou seis histórias infantis de lendas e contos conhecidos, que Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 341 foram adaptados para a educação ambiental. O antigo costume da contação de história foi utilizado como estratégia para o desenvolvimento da linguagem oral e passagem de conteúdos especializados ligados ao meio ambiente. É possível observar em escolas, que esta técnica aliada a música, estimula a criatividade e a imaginação das crianças tanto quanto a oralidade, habilidade de concentração, escuta e atenção. Educar através da arte seria uma estratégia muito bem sucedida, uma vez que há preservação orgânica do homem e de suas faculdades mentais, respeitadas as diversas faces do desenvolvimento humano (READ, 1982). Oarte-educador estimula a observação e ensina a atividade crítica. A metodologia da arte-educação associada à educação ambiental promove uma sensibilização das futuras gerações sobre os problemas ambientais de nosso planeta e estimula de forma lúdica que tal público desenvolva reflexões e mudanças de postura sobre suas práticas cotidianas como separação do lixo, uso racional da água e da energia e diminuição do consumo. A arte educação tenta inserir o costume de bons hábitos no público infantil. Partindo desses parâmetros, essa pesquisa visa diagnosticar e avaliar a eficácia da metodologia da arte-educação como estratégia de aprendizagem dos conteúdos relacionados a Educação ambiental. Nesse projeto, dentro dessa metodologia, foram utilizados a contação de histórias, música e jogos. Temos como hipótese que tal metodologia tenha facilitado o aprendizado tornando-o mais atraente. Em nossa pesquisa, pretende-se avaliar tais estratégias em diversos aspectos, com relação ao desenvolvimento de linguagens oral, escrita e visual, do senso crítico, do lúdico e da criatividade. Também serão investigados quão profícuos são o estímulo a valores e conceitos sobre cultura e diversidade que precisam ser ensinados às crianças, no desenvolvimento da personalidade, da sociabilidade e da afetividade. Nosso objetivo paralelo é observar a questão da interdisplinaridade do projeto pedagógico da UFABC em relação aos resultados dos dois primeiros anos do Projeto Batuclagem. Os arte- educadores, discentes da UFABC, são formados por meio de bacharelados interdisciplinares em uma experiência bastante inovadora do ponto de vista educacional no Brasil. Uma vez como oficineiros, eles se tornam multiplicadores do projeto pedagógico, atuando no nível do ensino fundamental. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 342 Ao estudar a experiência em educação infantil com as oficinas do projeto Batuclagem: Teatro, Percussão e Contação de Histórias, voltadas para a temática socioambiental, as quais totalizaram 80 oficinas em grupos de alunos de seis a doze anos que cursam o ensino fundamental de escolas públicas de Santo André, São Bernardo do Campo e Mauá; pretende-se analisar os processos de ensino-aprendizagem que fazem o uso da arte-educação, principalmente a música (percussão), teatro e contação de histórias, utilizadas pelo projeto, em especial referente aos conteúdos de educação ambiental. É notável, durante o decorre das oficinas, a empolgação das crianças com as histórias contadas, as brincadeiras aplicadas, os instrumentos desenvolvidos com material reciclável, e principalmente, o ensino de ritmos. As oficinas têm sido bem proveitosas em relação aos temas ambientais e costumam ter grande participação das crianças, seja com exemplos vivenciados no dia a dia ou durante a contação das histórias. A partir de oficinas realizadas e partindo da teoria de Paulo Freire e Saviani, na qual o professor convive com os alunos e consegue perceber as dificuldades apresentadas por eles; fazemos uma observação participativa durante as oficinas e também analisamos o material audiovisual das oficinas já realizadas. A partir desse diagnóstico, pretende-se analisar quais métodos de ensino-aprendizagem obtiveram resultados satisfatórios com relação aos conteúdos de educação ambiental trabalhados no projeto e quais pontos merecem reformulação.É possível observar quando as crianças participantes já trazem os conceitos de preservação ambiental do ambiente familiar, através de exemplos de atitudes tomadas por familiares, e quando esses conceitos são fortemente inseridos pelas escolas. A influência das escolas na educação ambiental, pode ser vista desde o primeiro contato com o colégio, muitas vezes por telefone, geralmente a coordenadora pedagógica conta sobre outros projetos ambientais que passaram pelas escolas ou professoras que inserem o tema meio ambiente em suas aulas. Na entrada de muitas escolas existem lixeiras de coleta seletiva, possuem objetos ou instrumentos feitos a partir da reutilização de alguns materiais e papa-pilhas, destinados ao descarte de pilhas, baterias e celulares em desuso. O conhecimento por parte das crianças em relação aos temas ambientais varia conforme a idade. As crianças em séries mais avançadas do ensino fundamental estão mais familiarizadas com os temas abordados durante as oficinas. Desta maneira, vê-se uma preocupação com a maneira como o conteúdo dessas oficinas devem ser passados para crianças de séries iniciais. Com isso pretende-se ainda analisar os métodos de ensino-aprendizagem utilizados pelo projeto, dos quais citamos aqui (1) o uso da música (percussão) e do canto para sensibilizar Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 343 crianças para as temáticas ambientais (2) a contação de histórias, do teatro e da literatura infantil com vistas a divulgação de conceitos científicos como o uso racional da água e da energia, a biodiversidade, a reciclagem, o lixo tecnológico e a poluição do ar. Futuramente pretende-se a partir da observação para cada método descrito anteriormente, identificar quais foram as capacidades e habilidades desenvolvidas pelas crianças do projeto referente a sensibilização pela arte-educação. Identificar também as habilidades desenvolvidas nos arte-educadores e o crescimento pessoal e profissional proporcionado pela ação no Projeto Batuclagem. 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Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 345 A PRODUÇÃO ARTÍSTICA DE MARIANNE NORTH ENTRE A CIÊNCIA E A ESTÉTICA DO SÉCULO XIX * Kássia Pereira da Costa Universidade Federal do Estado Rio de Janeiro Mestranda em História Social – PPGH/UNIRIO [email protected] Resumo: A iconografia produzida pelos viajantes naturalistas no século XIX está inserida no processo de construção de saberes e práticas científicas. Mais do que uma simples representação da vida do homem ou registro da natureza as telas são construções de perspectivas sobre o mundo natural e humano. Por isso, são contribuições para uma história de pontos de vista. Entre a admiração e o estranhamento a produção artística e a literatura de viagem de Marianne North são importantes registros de uma experiência de tempo, que lida com a alteridade e o conceito de pintura botânica nos oitocentos. É a partir do encontro das distâncias expresso nos vestígios do passado produzidos por North que podemos perceber um diálogo entre a estética e a ciência. A obra artística constitui assim um campo especialmente fértil para reflexão sobre o teor simbólico que reproduz como também expressão dos saberes que controlam e modificam a vida das pessoas. Propomos inserir nesse debate as pinturas da viajante inglesa que retratam a flora, a fauna e as paisagens do Império do Brasil. Palavras-chaves: ciência, arte, viajante. Abstract: The iconography produced by naturalists in the nineteenth century is embedded in the process of construction of knowledge and scientific practices. More than a simple description of the life of men or nature record the screens are constructions of perspectives about the human and natural world. Therefore, they are contributions to the point of view history. Between admiration and estrangement, Marianne North’s artistic production and travel literature are important examples of an experience of time, dealing with otherness and the concept of botanical painting in the nineteenth century. It is from the date of distances expressed in the vestiges of the past produced by North we can see a dialogue between esthetics and science. The artistic work constitutes an especially fertile field for reflection about the representation of symbolic content as well as expression of knowledge that controls and changes people's lives. We propose to insert in that debate the English traveler paintings depicting the flora, fauna and landscapes of the Brazilian Empire. Keywords: science, art, scientific travelers. Ao conhecermos a produção artística de Marianne North fica claro que havia um interesse especial pelas flores e plantas, por isso, nosso objetivo nesse trabalho é discutir o tipo de ilustração de botânica adotado por North, possuindo como hipótese que suas obras contribuíram para a construção de saber nessa área, apesar de não serem representações de * Trabalho orientado pela Profa. Dra. Heloisa Meireles Gesteira - MAST Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 346 uma especialista. Definimos como recorte espacial o Brasil, e temporal os anos 1872 e 1873, período em que a artista esteve em terras brasileiras. A trajetória de Marianne North (1830-1890) e consequentemente sua produção artística está intimamente ligada a sua herança familiar, seja no aspecto financeiro como também nos valores que permaneceram com ela. Natural Hasting, interior da Inglaterra, na companhia dos pais e dos irmãos aproveitavam o período de férias do pai do Parlamento inglês para viajarem, foi durante a realização desses passeios que adquiriu o hábito de levar tanto o diário, no qual registrava suas impressões, quanto o caderno de desenhos. Os estudos biográficos sobre a pintora apontam que Marianne North não teve uma educação formal, apenas que frequentou alguns meses uma escola em Norwich, onde a família também possuía uma propriedade. E nas palavras de Ana Lúcia Almeida Gazzola, “como tantas jovens inglesas de seu nível social, aprendeu canto e piano, e desenvolveu sozinha, desde muito cedo, sua aptidão para a pintura.” (GAZZOLA, 2001, p. 27). North, em sua autobiografia, escreveu: “governesses hardly interfered with me” (NORTH apud Sheffield, 2001) 1 , nesse mesmo texto ainda menciona as leituras que gostava fazer: “Walter Scott e Shakespeare me davam as suas versões da história, Robinson Crusoe e alguns outros livros velhos, minhas noções de geografia”. (NORTH, 2001, p. 50) A artista ainda relata a compra de dois enormes volumes da senhora Hussey sobre os fungos britânicos, nas palavras da inglesa, “foram minha diversão favorita durante um verão e me levaram a colecionar e pintar todas as variedades que eu pude encontrar em Roughan, e por cerca de um ano eles foram meu passatempo favorito” (IBIDEM, p.52) Apesar dela não fazer referência a nenhuma escola que tenha frequentado podemos destacar alguns nomes que fizeram parte da sua formação enquanto artista, o australiano Robert Dowling, quem a iniciou na pintura a óleo, Magdalen van Fowinkle 2 , quem ensinou sobre pintura de flores e segundo a própria Marianne North de quem recebeu as poucas noções de arranjo de cor e de agrupamento, também recebeu lições sobre pintura floral em aquarela de Valentine Bartholomew, quem ficou conhecido como pintor naturalista da Rainha Vitória, e conheceu os viajantes Francis Galton e Lucie Duff Gordon. 1 Esse trecho foi retirado do livro de Suzanne Le-May Sheffield, que está disponível online e a referência está completa nesse trabalho, porém não está ordenado por numeração de página, por isso, a ausência dessa referência. 2 Esse o sobrenome de Magadalen é encontrado com a seguinte grafia: von Fowinkel, que parece ser o correto. Entretanto, preferimos manter a forma como Marianne North escreveu, como predomina na edição que a Catherine publicou. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 347 Após o falecimento da mãe, o casamento da irmã Catherine em 1864 e a perda da representação parlamentar por seu pai, ela o acompanhou em várias viagens pela Europa, Egito e Síria. Ao conhecermos esse histórico familiar percebemos que o hábito de viajar pode ter sido uma prática herdada da família, em especial do pai. Os registros desses passeios estão no diário de North: Recollections of a happy life, being the autobiography of Marianne North, o qual foi editado e publicado pela irmã Catherine em 1893. A autobiografia presente no relato de viagem demonstra ainda que enquanto o pai esteve vivo ela se dedicou aos cuidados com ele, podendo ser essa uma das razões para ela não ter se casado somado com a falta de prazer que ela tinha com a vida social, preferindo os jardins. Entretanto, sua vida não foi estritamente em função do pai, dentre as relações que a artista estabeleceu podemos destacar a amizade com o diretor do Jardim Botânico de Kew, sir Joseph Hooker e Charles Darwin. Na referida instituição, assim como no jardim botânico de Hasting, ela pode explorar seus interesses em jardinagem e estudos sobre botânica. Embora não conste registro de uma educação formal em botânica realizada por North, percebemos nas representações feitas por ela a presença marcante da natureza em seu habitat natural se comparado ao registro iconográfico de impressões sobre o lugar, o que demonstra um interesse especial pelo mundo natural. Quando traçamos a biografia de Marianne North nosso o objetivo foi relacionar a prática de viagem com a pintura de botânica e com a construção da galeria Marianne North no Jardim Botânico de Kew. Esta última é fruto de uma doação de pinturas de North ao jardim para a composição da galeria, a qual foi idealizada e financiada pela britânica ainda em vida. Acreditamos que esses três elementos se completam, pois foi através das viagens que North que ela compôs suas ilustrações de botânica e a partir do reconhecimento da contribuição científica e artística desse material que se tornou possível a construção desse tipo de monumento. Para essa galeria foram doadas 832 obras ao todo, mostrando mais de 900 espécies de plantas, a única condição estabelecida pela artista para concretizar o financiamento da construção do edifício era a construção de uma sala em que ela pudesse usar como estúdio, o que foi aceito pela direção de Kew na época. Esse acervo foi produzido nas viagens feitas pela artista, que já com seus quase 40 anos de idade se lançou em turnê pelo mundo, visitando todos os continentes e retornando sempre a Inglaterra. Importante destacarmos que esse percurso foi feito sem a companhia da família era de costume. Até cinco anos antes da sua morte percorreu vários países: Canadá, Estados Unidos, Jamaica, Brasil, Tenerife, Japão, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 348 Bornéu, Java, Ceilão, Cingapura Índia, Gales, Austrália, Nova Zelândia, Tasmânia, África do Sul e Ilhas Seychelles e o Chile. Essa diversidade de lugares resguarda em comum o interesse pela botânica local, ou seja, a busca por conhecimento sobre as plantas que ainda estavam por ser descobertas ou que possuíam um caráter pictórico, no sentido de que mereciam ser representadas. A Ilustração botânica de Marianne North A princípio, o que nos chamou atenção nas telas de North não foi genialidade e/ou originalidade; salvo as particularidades da produção artística da britânica, podemos perceber claramente um diálogo com seu tempo e espaço; pois opta pelo naturalismo característica também da maioria dos chamados artistas viajantes do seu século XIX. Portanto, ao definirmos como espaço de análise o Brasil, pretendemos compreender seus quadros como parte do acervo produzido por artistas e naturalistas viajantes sobre a natureza brasileira, que através de registros visuais em diferentes épocas adotaram perspectivas a respeito da nossa fauna e flora. Parece-nos importante explicar que esse trabalho é parte de uma dissertação de mestrado que está em processo de pesquisa e escrita, possuindo como título: Marianne North: entre tempos e histórias do século XIX, que será defendido no PPGH/ UNIRIO. O projeto de pesquisa surgiu da leitura do relato de viagem e das pinturas produzidas por Marianne North referente ao período em que esteve no Brasil, ou seja, partiu da própria fonte histórica, e, logo, é uma proposta de pesquisa que tenta desfragmentar uma das possibilidades de conhecimento histórico por meio desse documento, sem ter a pretensão de realizar uma síntese. O relato de viagem da artista foi publicado pela Fundação João Pinheiro, em 2001, com o título: Lembranças de uma vida feliz, sob organização e prefácio de Ana Lúcia Almeida Gazzola, no qual é possível ler em português o registro da viagem de Marianne North ao Brasil. No entanto, essa narrativa é apenas parte do livro: Recollections of a happy life, being the autobiography of Marianne North, publicado em 1893 pela irmã da pintora Catherine quem reuniu todos os relatos de viagens feitas pela artista. Há também o livro de Júlio Bandeira Marques Ferreira: A viagem de Marianne North ao Brasil (1872-1873), cujo lançamento ocorreu em 2012 e nele encontramos a biografia e as pinturas da britânica sobre o Brasil. Essas informações sugerem que os estudos brasileiros sobre os documentos históricos produzidos pela inglesa, salvo aqueles que tratam de viajantes e identidade brasileira, ainda Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 349 são recentes, porém, o reconhecimento da sua grandiosidade no Brasil está sendo rápido desde que se tomou conhecimento de suas obras, já que foi uma das poucas mulheres que deixou registro da sua passagem em terras brasileiras. Os estudos de Júlio Bandeira contribuem com as considerações acerca das pinturas de Marianne North, porque segundo o autor “nenhum dos artistas viajantes do século XIX [...] foi capaz de retratar a flora e a paisagem brasileira com a intensidade e o colorido dos óleos da pintora inglesa [...]” (BANDEIRA, Júlio. p. 7). Por se tratar de uma pesquisa em história da arte, Bandeira destaca North como única no gênero a pintar a paisagem a óleo, nem mesmo Margaret Mee (1909-1988) 3 , quem é mais conhecida dentre as mulheres viajantes que retrataram o Brasil, realizou uma pintura desse tipo. Para o historiador esse cuidado com a pintura a diferenciou de outras artistas-viajantes e pode ter sido uma das razões de North não ter se preocupado com a venda de suas obras e sim em expô-las no Jardim Botânico de Kew, onde se encontra uma galeria por ela mesma paga e idealizada. Portanto, o autor defende que ela possuía uma ideia completa de sua obra. Para as análises sobre a produção artística de Marianne North teremos como sugestão metodológica a relação entre a dupla documentação, o texto e a imagem, e ao especificarmos as pinturas apresentaremos outras ilustrações para tratar das diferenças de representação. Percebemos que muitas das nossas perguntas sobre produção iconográfica podem ser respondidas pelos relatos de viagem, e vive-versa. A questão que nos interpelou foi, por que a escolha pela viagem ao Brasil? E artista responde logo no início do seu relato, “durante os dois meses que desfrutei a companhia dos meus amigos em Londres e então comecei a pensar em levar adiante meu plano original de ir para o Brasil, para continuar a coleção de estudos de plantas tropicais que tinha começado na Jamaica”. (NORTH, 2001, p. 68) O interesse pelos trópicos pode ser percebido também em outro trecho do relato ao tratar da sua autobiografia, [...] íamos sempre aos jardins de Cheswick e trazíamos espécimes de flores para pintar, íamos sempre também a Kew, e uma vez quando estávamos lá, sir Willian Hooker me deu um cacho da Amherstia nobilis, uma das flores mais importantes que existem. Foi a primeira que floriu na Inglaterra e me deu mais vontade de conhecer os trópicos. Nós falávamos sempre em ir, se meu pai tivesse férias suficientemente longas. (NORTH, 2001, p.63) 3 Júlio Bandeira em suas pesquisas afirma que as aquarelas de Margareth Mee eram feitas a guache e correspondem a um número inferior a quantidade de telas pintadas por Marianne North. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 350 Essa parte do texto aponta vários pontos importantes, alguns já mencionados no texto como, as visitas aos jardins botânicos e também a relação pessoal dela e da família com os diretores do Kew Gardens. Entretanto, traz novas informações, por se tratar de um período que é anterior ao momento em que ela decide fazer as viagens sozinhas, demonstra que o interesse pelos trópicos foi despertado ainda durante as viagens com a família e que por uma questão de tempo ainda não foi desenvolvido. Sugerindo também, que o conhecimento em botânica era muito importante para ela, não somente das espécies da Inglaterra como também de outros países, por isso, a realização das viagens para conhecer pessoalmente essa natureza. Da produção artística da viajante um aspecto nos pareceu importante para aprofundarmos nosso conhecimento sobre a vida e obra da pintora, sua arte dialoga com sua experiência temporal, porém, em outros estudos realizados sobre Marianne North o seu espaço parece estar indefinido, sem lugar. Estudos sobre a arte da britânica apontam para um “entre lugar”, John Dickenson, quem analisou a artista como uma viajante naturalista afirmou que “historiadores da arte e da ciência a veriam como marginal nos dois campos.” (DICKENSON, 2000, p. 147). O que a princípio nos pareceu como um problema para as análises, por não conseguirmos caracterizá-la, hoje, apresenta-nos como solução. É no aprofundamento dessa problemática que a proposta de reconhecê-la entre a ciência e a estética nos pareceu a melhor, considerando a experiência da alteridade como importante para a construção da coleção de telas da pintora e dialogando ainda com a produção de saber científico. Nesse sentido não há, portanto, intenção de classificar o objeto que já em sua época não se preocupou em si autodefinir, para não correr o risco de nos perdermos em simbolismos. Quanto à sociabilidade, esta não poderia ser pensada como uma estrutura que define a experiência de tempo da artista e sim como um espaço de encontro dos saberes que formam sua experiência. A proposta para pensar o objeto fica clara nesse trecho da obra Arqueologia do Saber, de Michel Foucault, E, assim, o grande problema que se vai colocar – que se coloca - a tais análises históricas não é mais saber porque os caminhos as continuidades se puderam estabelecer; de que maneira um único e mesmo projeto pôde-se manter e constituir, para tantos espíritos diferentes e sucessivos, um horizonte único; que modo de ação e que suporte implica o jogo das transmissões, das retomadas, dos esquecimentos e das repartições; como a origem pode estender seu reinado bem além de si própria e atingir aquele desfecho que jamais se deu [..] (FOUCAULT, 2012. P.6) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 351 Assim, concordamos com Foucault em que a expressão dos enunciados nas fontes históricas não definem os limites de produção de uma época, mas que demonstram a circularidade de saberes, das ideias em movimento. Portanto, a proposta não é estabelecer fronteiras, mas, buscar as possibilidades, aquelas que são manifestação de saberes que fizeram parte da experiência de tempo da artista. Desde o nosso primeiro contato com a arte de Marianne North era claro que havia uma preferência pelo retrato de flores; contudo, algumas diferenças com relação à ilustração de botânica podem ser apontadas. Para que fique mais claro apresentaremos quatro imagens, duas sendo de autoria de North, e as outras pertencentes ao acervo Flora brasilienses e Historia Naturalles Palmarun, ambos de autoria de von Martius. Nosso trabalho não tentará aproximar ou distanciar essas artistas, isso demandaria uma discussão mais aprofundada que exigiria pesquisa e em outro tipo de publicação textual, talvez uma dissertação de mestrado, nosso objetivo em trazê-las é mostrar alguns modelos de ilustração de botânica. Nessas duas primeiras ilustrações que trazemos, Imagem 1 Imagem 2 A imagem 1 foi retirada do artigo: “Pereirina: o primeiro alcaloide isolado no Brasil?”, de autoria de Márcia R. Almeida; Josélia A. Lima; Nadja P. dos Santos; Angelo C. Pinto; que fazem parte do departamento de Química Orgânica do Instituto de Química da Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 352 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Essa imagem faz parte do acervo da Flora Brasiliensis de von Martius, de 1845. Trata-se de uma Geissospermum vellosii, nome científico dado a planta que remete ao seu primeiro pesquisador, Velloso, quem a reconheceu como uma planta nova. Além de outros nomes científicos seus vários nomes populares são: Pau-Pereira, Chapéu-de-sol, entre outros. E é reconhecida como uma reprodução clássica de ilustração de botânica. A imagem 2 está reproduzida do site do Kew Gardens e faz parte da coleção de pinturas de Marianne North disponível online. Nome da obra “Flowers and Fruit of the Maricojas Passion Flower”, local Brasil. [flores e frutos de “maricojas” maracujás]. A primeira imagem possui um diálogo com o modelo de representação do mundo natural que Peter Danse em seus estudos sobre ilustração de botânica, pós-Renascimento, reconheceu que a verossimilhança era como um ideal a ser alcançado. Há uma combinação de verdade científica e sensibilidade artística. Contudo, Danse afirma que a finalidade dessas ilustrações era atender a ciência e não a arte, por isso, a atenção aos detalhes realísticos. Essa última sugestão foi aprofundada no século XIX quando emergência da ciência, intensificada pelos estudos de Buffon e Lineu, de forma que a ilustração passa a ser baseada, sobretudo, na morfologia das plantas, é o que encontramos nessa ilustração de von Martius, onde os detalhes são evidenciados e a partir da descrição poderia se classificar e usar de taxonomias. Já na pintura de Marianne North encontramos um aspecto artístico bem evidenciado, porém, defendemos que a presença deste não distorce a representação da planta, pelo contrário, ainda podemos perceber bem os contornos das folhas, das pétalas e a forma como a planta se constitui. Para se reconhecer o valor científico dessa imagem, é preciso ir além do visível para o visual, como sugeriu Ulpiano Meneses, é preciso “integrar três modalidade de tratamento: o documento visual como registro produzido pelo observador; o documento visual como registro ou parte do observável, na sociedade observada; e, finalmente a interação entre observador e observado” (MENESES, 2003, p.17). Na próxima pintura, que recebeu o nome “Yellow Bignonia and Swallow-tail Butterflies”, Congonhas, Brasil [Begonia amarela e borboletas com cauda], observaremos como a representação por ela construída inseria além da botânica, a fauna e a paisagem, colocando assim a planta em seu habitat natural: Imagem 3 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 353 Ao analisarmos essa pintura não devemos nos limitar a mostrar no que ela difere da ilustração clássica de botânica, como se ao se afastar do modelo a ser seguido tornaria a representação menos científica. Acreditamos que o uso da imagem é tão importante quanto o que ela retrata, mais ainda do que a forma; é o que Ulpiano propõe quando argumenta nos tratamentos da imagem que devemos ter cuidado para não alimentar uma “história icnográfica”, pois a pesquisa não deve ser sobre documentos, já que seu objeto é sempre a sociedade. Essa discussão acerca da cientificidade da ilustração de botânica está presente na relação entre arte e ciência, e ainda no debate sobre os trabalhos do naturalista viajante e o sedentário, ou seja, do trabalho de campo e do escritório. Lorelai Kury apresenta as defesas dos dois lados, seguem elas: [...] o primeiro [naturalista viajante], ao percorrer diferentes lugares, não pode se deter diante de tudo o que o impressiona, tal é a quantidade d objetos que chamam a atenção. Se por um lado ele pode observar as coisas e os seres Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 354 “nos próprios lugares onde a natureza os colocou”, por outro, não pode consultar lá mesmo seus livros ou comparar os exemplares que encontra com outros semelhantes. Já com o naturalista sedentário ocorre o contrário.(KURY, 2001 p.864) Por isso, discutir sobre ilustração de botânica não é apenas se prender aos detalhes iconográficos, mas estar atento também aos debates que circunscrevem a obra, que constituem formações discursivas de formação e legitimação de um saber científico. Se nos prendermos apenas a questão da relação iconográfica nos levará ao mesmo pensamento que John Dickenson apresentou, em que os historiadores da ciência a veriam como marginalizada, mas seria um grande equivoco negar as contribuições da britânica para a ciência botânica. A expressividade do trabalho de Marianne North foi reconhecido ainda em vida, o que pode ser comprovado pelo sucesso da exposição das obras realizada em 1869, que deu origem a ideia de construção da galeria, como também, as homenagens feitas a ela na classificação dos nomes de plantas desconhecidas, são elas: Nepenthes northiana, de Sarawak, a Northia seychellana, das ilhas de Seychelles, e a Crinum northianum, de Bornéu, que eram totalmente desconhecidas pela ciência, tendo essa última sendo descrita com base em seus desenhos. Se o aspecto artístico ganha destaque em sua obra, o que poderia distanciá-la de uma ilustração de botânica clássica, a discussão acerca da experiência estética se faz presente. Porque em meio às propostas distintas que circulavam nos oitocentos quanto à forma de retratar o natural, as telas da britânica se aproximam das proposições de Alexandre von Humboldt. A corrente humboltiana defendia que a arte era uma forma de narrar para descrever o que avista na natureza, construída através do contato do viajante. Assim, haveria duas finalidades na arte da viajante - a científica e a literária, para Humboldt essas finalidades seriam complementares, jamais antagônicas, um modo de apreensão poética do mundo natural. Entendemos a estética como uma ação social, já que envolve a questão de gosto e crítica. As imagens fidedignas da botânica são importantes para conhecimento da botânica com precisão suficiente para sua identificação, trazendo ao mesmo tempo ideia da realidade. No entanto, como Gombrich salientou: nem a linguagem falada ou escrita nem a representação – imagem – podem, separadamente, dar a descrição completa de algo, porque são em si incompletas. Pois aquilo que se vê e representa varia de acordo com o conhecimento sobre o objeto, da percepção do indivíduo. Nossa proposta não é reconstruir o sentido de estética para Marianne North, mas colocá-la em diálogo com os homens do seu tempo, em especial com Alexandre von Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 355 Humboldt, pois para ele a sensibilidade aparece como definidora da prática científica, a ciência só ocorre através do sensível, as impressões estéticas fazem parte da própria prática científica. Segundo Lorerai Kury, para Humboldt “paisagens são singulares é sua preocupação com a distribuição dos vegetais pelo planeta e o tipo de sociabilidade de cada planta” (KURY, 2001, p.865). Por isso, uma representação que leve em consideração o meio em que a planta está inserida seria tão ou mais importante que uma ilustração detalhada, consequentemente também científica. Podemos perceber como esse ideal está bem fundamentado na imagem 3. Essa proposta do viajante naturalista de Humboldt remete a aproximação entre ciência e estética, a qual se deu por dois acontecimentos na mudança de pensamento, o primeiro com relação à importância da arte, em que ela passa a ser entendida como um a visão intelectual e reflexiva. Outro evento que vem logo em seguida o surgimento do romantismo alemão, que em certa medida propôs a aproximação entre filosofia e arte. Considerações finais As obras de Marianne North se colocam como fundamental para expor seu “entre lugar”, ou seja, entre a estética e a ciência. Um aspecto que desde o nosso primeiro contato com a fonte histórica nos despertou interesse e fez com que surgisse um desejo de compreendê-la historicamente, ou seja, esse é nosso ponto de partida e de análise. Essa resistência a definição vemos como um fator decisivo para entendermos a importância da sua produção relacionando seu espaço e tempo, nos forçando a pensar para além do modo classificatório habitual. A possibilidade de coexistirem os aspectos artísticos e científicos na produção iconográfica de Marianne North remete a sua trajetória e ao seu espaço e tempo. No início desse texto trouxemos aspectos da biografia da artista, os quais são importantes para compreendermos porque essa inglesa sai de seu país e viaja pelo mundo. Percebemos através dos dados que formam apresentados que saída de North da Inglaterra se deu anterior a vinda para o Brasil, com sua família realizou várias viagens, algumas fora da Europa como no Egito e Síria, o que fez com que a prática da viagem fosse um hobby, e praticamente um hábito herdado da família. Logo, as viagens possuíam um caráter prazeroso para North, e como passava dias fora de casa se acostumou em abdicar do conforto do lar. Quando dissemos que a herança da família foi importante para sua trajetória, também nos referimos aos recursos próprios que financiaram suas viagens; mas também, às relações sociais que estabelecia. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 356 Esses contatos introduziram a inglesa no mundo das ciências e das artes. E mesmo que não pretendesse uma formação formal os conhecimentos que adquiriu em pintura a óleo, botânica, jardinagem e com os viajantes que conheceu somaram para que ela definisse a prática da viagem e a representação de botânica como sua profissão. Lorerai Kury ao falar dos naturalistas viajantes propôs: “assim, o cientista que se fez viajante escolheu não apenas ver com os próprios olhos, mas ouvir e sentir com o próprio corpo os fenômenos lá onde acontecem.” (2001, p.878) Desta forma, podemos reconhecer em North possuía esse desejo de ver com os próprios olhos e representar o que foi visto, além do registro científico. Com relação à reprodução das produções da artista podemos mais uma vez relacionar com a fala de Kury quando ela propõe: “a ciência das viagens foi uma forma de apreensão das relações entre ambiente e seres vivos; a profusão de registros produzidos pelos diversos tipos de viajantes, uma maneira de tornar a experiência da viagem reprodutível” (Idem, p. 869). O que também surge como uma das justificativas para a construção da galeria com as pinturas de Marianne North no Kew Gardens. Por isso, ao traçarmos a biografia de Marianne North nosso o objetivo foi relacionar a prática de viagem com a pintura de botânica e com a construção da galeria Marianne North no Jardim Botânico de Kew, que estiveram entre a prática científica e a experiência estética, dialogando com seu tempo e espaço. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Márcia R; LIMA, Josélia A; SANTOS, Nadja P. dos; PINTO, Angelo C. Pereirina: o primeiro alcaloide isolado no Brasil? Revista Brasileira Farmacognosia; n.19, v. 4, out.-dez. 2009. p. 942-952. BANDEIRA, Julio. A viagem ao Brasil de Marianne North (1872-1873). Rio de Janeiro: Sextante, 2012. BENJAMIM, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, Arte e Política: Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994. BELLUZZOO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. 2ª ed. 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Após expor em qual tipo de pensamento antropológico as análises de Dawkins se alinham, discutirei alguns possíveis atrasos na concepção desse autor em relação à antropologia mais atual. Por fim, discutirei brevemente se há algum resquício mitológico dentro do pensamento dele e da divulgação científica em geral. Palavras-chave: Mitos; Dawkins; antropologia Abstract: This article meant to examine briefly what the science writer Richard Dawkins thinks about myths. I will present a historical background to understand what people thought about myths throughout history and later as the birth of the social sciences such as anthropology. After setting out on what kind of anthropological thought analyzes Dawkins align, I will discuss some possible delays in the design of this author regarding most current anthropology. Finally, we briefly examine the possible existence of some mythological remnant within his thought and science divulgation in general. Keywords: Myths; Dawkins; anthropology Introdução O polêmico biólogo Richard Dawkins é sem dúvida um dos divulgadores científicos mais conhecidos atualmente. Ex-professor da Universidade de Oxford na Inglaterra incumbido especificamente da cátedra de compreensão pública da ciência durante treze anos, Dawkins se tornou na última década muito mais famoso pelo discurso ácido antirreligioso do que pelo seu trabalho como cientista. Existem inúmeras críticas ao seu trabalho como divulgador científico, principalmente no que cerne seus últimos trabalhos que possuem um viés de embate em relação às religiões. Entretanto, esses embates ficam muitas vezes no campo filosófico, principalmente na discussão sobre a existência de deuses ou não. Esse trabalho não possui a intenção de cair numa crítica meramente filosófica a Dawkins. O que pretendo fazer é analisar de um ponto de Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 360 vista histórico e antropológico os usos que esse autor faz das narrativas míticas, ou simplesmente dos mitos, já que é difícil classificar os mitos somente como narrativas à luz da antropologia. A utilização dos mitos por esse autor se tornou especialmente comum com o lançamento do livro A Magia da Realidade de 2009, mas já ocorria em outros livros do mesmo, porém de forma menos deliberada. Nesse livro especificamente ele aborda as narrativas míticas em contraposição às explicações científicas, como se a utilidade e finalidade das duas fosse a mesma. O que tentarei demonstrar é que mesmo sendo um divulgador científico claro, eficiente e bastante capacitado dentro do darwinismo e da biologia, Dawkins peca quando faz análises míticas e sociais, e acaba retirando as particularidades dos mitos em prol de sua divulgação científica principal: a biologia evolucionista. Como estamos dentro de um ambiente que é preocupado principalmente com a história da ciência analisarei historicamente o tipo de ciência social ao qual Dawkins utiliza para falar dos mitos, e, como sua perspectiva antropológica se encontra defasada em relação às análises dos mitos mais atuais. Mitos na História Tentarei aqui fazer uma breve história dos mitos, com bastante ênfase na palavra breve. Muitos autores que refletiram exaustivamente sobre os mitos serão deixados de lado, assim como a reflexão de todos os aqui descritos será simplista, por assim dizer. Entretanto, se faz necessário entender a ambivalência histórica que muitas vezes a análise dos mitos possui, com eles sendo entendidos ora como uma forma de dar sentido ora como uma forma ludibriar. Desde a Grécia Antiga com Sócrates e Platão, as narrativas míticas já são alvo de um tipo de reflexão, e é provavelmente da palavra grega mythos que aquilo que nós conhecemos como mitos teve um início. Os mitos mais comuns eram as estórias heroicas de Homero, mas que também possuíam uma participação grande dos deuses do panteão grego. A moralidade grega descendia muito dessas narrativas e havia a crença na realidade dessas estórias. Sócrates e Platão começam a analisar os mitos de forma mais crítica. Eles são contra veementemente mitos que transmitam estórias fantásticas sem nenhuma lição moral aparente, porém apoiam a criação de mitos de um ponto de vista ideológico, feito pelo Estado, para fins educacionais, ou seja, como metáfora para algo que passe algum tipo de valor moral (HENDY, 2002, p. 2). Os mitos eram encarados numa clara ambivalência e deveriam ser compreendidos como Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 361 alegóricos, algo que foi bastante seguido em relação aos leitores e comentadores de Platão e dos neoplatônicos. Na perspectiva platônica, a razão deveria se sobrepor aos mitos. Durante o período que é comumente conhecido como a Idade Média 1 , a língua inglesa não adotou a palavra myth (mito). A palavra que já existia nas regiões de língua latina foi deixada de lado e traduzida como fable (fábula) que possuía também uma ambivalência parecida como no período grego. Fábula poderia significar tanto uma estória rica em significados e com certo tipo de sabedoria ou simplesmente algo falso e sem sentido. Foi somente em meados do século XVIII que a palavra mito veio substituir a palavra fábula. A substituição, porém veio com uma ressignificação. A palavra mito continuou com a ambivalência que a fábula possuía, mas trouxe no entanto, o significado de ser uma alegoria para as narrativas religiosas. O meio linguístico em que Richard Dawkins está inserido só veio a possuir efetivamente uma palavra com o significado de mito há somente três séculos e meio. Com a nova palavra em inglês e uma nova significação junto dela os uso dos mitos se tornou algo mais comum durante o século XVIII. Quem tomou as rédeas do uso dos mitos foram principalmente os autores românticos inscritos nesse período que historicamente foi marcado pela ascensão do iluminismo. Iluminismo esse que observava os mitos como uma forma de ignorância e protociência, em que a tentativa de se explicar algo que ainda não poderia ser corretamente explicado, fazia com que a proposta explicativa se tornasse uma superstição (SCHREMPP, 2012, p. 26). Esse tipo de pensamento será uma influência marcante em todo o pensamento científico durante os próximos séculos. A corrente romântica negava um mundo estritamente racionalizado pelas ciências e procurava na arte uma forma de “escape” desse mundo. O poeta londrino William Blake foi um dos precursores dessa concepção, definindo a religião como algo não natural e sim criativa. Os famosos românticos alemães Friedrich Schlegel, Friedrich Schiller, Novalis e Friedrich Schelling contribuíram para essa visão da importância dos mitos como uma forma de “encantamento” pelo mundo “desencantado” pela ciência iluminista. O mais famoso expoente dessa corrente foi Johann Goethe e talvez por isso alguns autores analisem essa visão romantizada de mundo como goetheiana e que está em embate com uma visão newtoniana ou científica de mundo, mais ligada ao iluminismo. Talvez o maior legado, principalmente no que cerne os autores alemães com resgate dessa mitologia foi o início do resgate de uma cultura germânica própria e 1 Por falta de tempo e espaço considerarei o período da Idade Média como o período entre os séculos V e XV, como é mais comumente usado. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 362 diferenciada dos outros países cristãos, a influência dessa mitologia se mostra clara, por exemplo nas sinfonias de Richard Wagner. A ambivalência entre fábula e uma forma de ver o mundo retorna, porém com duas correntes distintas. Os românticos por um lado e os influenciados pelo iluminismo do outro. O filósofo alemão G. W. F. Hegel já acredita que a arte e a religião precisam ser sobrepostas pela filosofia para se chegar ao “espírito absoluto” (HENDY, 2002, p. 51). Ele pode ser considerado o primeiro a criticar a criação de novos mitos advindos dos românticos. Seus discípulos Ludwig Feuerbach e Karl Marx também fizeram críticas às religiões, e consequentemente ao que se entendia por mitos à época, atrelando os mesmos a uma falsa consciência e a uma falsa ideologia respectivamente. Friedrich Nietzsche apesar de ser considerado por Paul Ricoeur como um dos três mestres da suspeita, teve um relação menos negativa que um outro membro dessa trinca Karl Marx; e que ainda incluía Sigmund Freud. Nietzsche via os mitos como uma mentira vital, ou seja, necessária, e os analisava principalmente nos exemplos de Apolo e Dionísio, atrelando o primeiro ao homem racional e o segundo a uma perspectiva mais ligada aos prazeres e aos sentidos. Ele enxerga a vitória do cristianismo e do platonismo como a vitória de Apolo, mas propõe um resgate de outro mito, no caso Dionísio para romper, ao menos em parte, com o racionalismo metafísico. A suspeita era clara, porém não em relação aos mitos, e sim a um tipo de mito em específico. Freud por sua vez enxergava os mitos de uma maneira mais cética que Nietzsche. Apesar de utilizar alguns mitos como o Édipo e pensar na fantasia como algo necessário para a criação, Freud concebe os mitos como vestígios distorcidos dos desejos inerentes à sociedade, uma forma neurótica, que está muito ligada à repressão de desejos pela coletividade. Nascimento das Ciências Sociais e da Antropologia A busca por um entendimento científico do social surge num contexto histórico familiar àqueles que estudam a história da ciência. O século XIX não foi o século das luzes, mas sem dúvida nenhuma foi o berçário de novos tipos de disciplinas. A antropologia e a sociologia nascem nesse contexto do século XIX, principalmente como uma tentativa de se compreender o outro, já que a sociedade ocidental começava a chegar em lugares aos quais ela nunca tinha ido. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 363 Os mitos no nascimento das Ciências Sociais forma vistos como algo atrelado a uma religiosidade primitiva, primeiramente com Augusto Comte que acreditava na história sendo moldada pela “Lei dos três estágios”: a primeira fase teológica, a segunda metafísica e a terceira positivista. A fase teológica possuiria uma característica de observar deus em todos os aspectos e possuiria outra lei em três fases dentro dela: a fetichista, a politeísta e por último o monoteísmo (HENDY, 2002, p. 83). Os mitos estariam dentro da segunda fase, a politeísta, sendo a primeira fase na visão de Comte um tipo de religiosidade pré-mitológica. Podemos notar que Comte atrela os mitos a algo parecido como era constituída a sociedade na Grécia Antiga. Seu pensamento teve enorme influência em outros pensadores sociais do século XIX e como iremos notar mais à frente essa influência perdura até hoje no pensamento de Richard Dawkins. Analisarei aqui alguns antropólogos aos quais penso serem de fundamental importância nesse período, principalmente se buscarmos as influência dentro do pensamento de Richard Dawkins. O primeiro deles que vale se destacar é o antropólogo britânico Edward Tylor que possui um viés claramente evolucionista e alinhado a Comte. Os mitos para Tylor são uma história de erros da mente humana (HENDY, 2002, p. 85). Apesar de ter vários pontos discutíveis dentro do pensamento de Tylor podemos citar como os principais para esse trabalho a sua ideia de “culturas superiores” que haviam passado por um processo evolutivo saindo de uma fase inicial animista, passando pelo politeísmo e chegando finalmente ao monoteísmo. Ele quebrava com a ideia de uma civilização superior ter decaído e formado as “culturas inferiores”. Sua concepção de desenvolvimento cultural se aproxima bastante de Augusto Comte e também de Herbert Spencer 2 sendo esse último pai do darwinismo social, que entendia todas as coisas como saindo de um estágio mais simples e chegando até um estágio mais elaborado. O segundo antropólogo que é de fundamental importância para o entendimento do pensamento de Dawkins em relação aos mitos é James Frazer. Frazer pensava a magia como precursora da religião, mas que também pode ser vista como uma tentativa de ciência, ou seja, de explicar os fenômenos naturais já que as duas trabalham com causa e efeito. A magia pra ele foi uma protociência (HENDY, 2002, p. 94). Porém, para ele a precocidade da magia foi o seu sepulcro. Os resultados esperados por ela não eram obtidos e assim teve a criação da 2 Herbert Spencer (1820 – 1903) foi o principalmente expoente do que conhecemos por darwinismo social. Basicamente ele acreditava que as desigualdades sociais são análogas aos processos biológicos, onde os mais bem adaptados sobrevivem. Isso era uma forma de legitimar essas desigualdades sociais como um processo natural. Foi autor da frase “sobrevivência do mais apto” que muitas vezes é erroneamente atribuída ao próprio Charles Darwin. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 364 religião. Essa concepção é próxima dos autores iluministas. Novamente temos uma interpretação da história como tendo três estágios sendo o primeiro o da magia em que o homem tentar controlar a natureza; o segundo o religioso, que pelo fracasso da magia faz com a adoração de seres metafísicos se inicie; o terceiro ocorre quando o homem percebe os limites da religião e passa a pensar de maneira científica. A visão desses dois antropólogos em relação às culturas foi bastante criticada durante as gerações seguintes. Evans-Pritchard não vê nenhum valor acadêmico na concepção de religião desses autores (SCHMIDT, 2007, p. 61). Isso é uma meia verdade, já que outros autores fundamentais para análise antropológica da religião continuaram a beber dessa fonte. Émile Durkheim é um deles. Ele seguiu a receita de animismo e mitologias como sendo algo atrelados a uma forma de religiosidade primitiva ao atrelar o que ele chama de totemismo aos aborígenes australianos como uma religião mais pura e simples. Durkheim também separou a religião da magia, dando à primeira um caráter de “sagrado” que é algo mais ligado ao grupo e tem suas práticas instituídas de certa forma, e a segunda ele categoriza como sendo “profana” já que possui um caráter mais utilitário e passageiro, apesar de também possuir seus rituais e mitos. Bronislaw Malinowski e Evans-Pritchard analisaram a religião, crenças, mitos e rituais de determinados povos como possuindo sua lógica própria e por isso romperam com a tradição de possuir o cristianismo como um modelo a ser alcançado, ou pelo menos uma fase superior. Suas principais obras foram Os Argonautas do Pacífico de 1922 e Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande de 1937, respectivamente. A descrição rápida do pensamento desses autores pode ser pausada aqui. Não porque a antropologia parou nesse momento, e sim porque Richard Dawkins analisa as diversas culturas com uma influência mais perceptível desses autores destacados. Quando dou ênfase que ele analisa, não me refiro aos embates teológicos nos quais ele tem entrado ultimamente em sua carreira e sim na análise de como são transmitidas as ideias no meio social, como a religião é formada e principalmente a maneira que ele utiliza e descreve os mitos. Mitos e Ciência Em seu livro A Magia da Realidade Dawkins utiliza mitos de diversas culturas e suas explicações para fenômenos como: a criação do mundo; como surgiram as pessoas; o que é um terremoto; como se explica o arco-íris, entre outros. Para cada explicação ele Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 365 normalmente se utiliza de um ou mais mitos, sejam eles de culturas existentes ou já tecnicamente extintas. Na verdade essa prática já acontece em outros livros de Dawkins, mas numa escala bem menor do que nesse livro em específico, que é mais voltado para crianças e com uma linguagem mais fácil, mesmo para os padrões da divulgação científica. Os mitos são instrumentos alegóricos e meramente pedagógicos em sua maioria, já que servem de contraposição à explicação científica. Dawkins logo no início do livro (DAWKINS, 2012, p. 20) já divide o que é magia em três tipos: o primeiro tipo de magia descrito é a magia ligada aos mitos, contos de fadas e milagres. Podemos observar que não há uma separação entre os mitos de uma determinada sociedade e os mitos românticos que expusemos, ou seja, aqueles criados por escritores e poetas. O segundo tipo de magia é o que menos nos interessa aqui e está ligado à magia de palco, aquela feita por ilusionistas. O terceiro tipo é a magia da realidade que corresponde à “mágica” no sentido metafórico que Dawkins chama de magia poética. Esse terceiro tipo de magia está vinculado ao encantamento pela natureza e seus fenômenos, prescindindo de qualquer relação com o sobrenatural. Quando Dawkins explica a formulação dos mitos de criação, usando no caso mitos chineses, zulus, nigerianos e norte-americanos. Ele se diz decepcionado: O que me decepciona em todos esses mitos sobre a origem é que eles começam pressupondo a existência de algum tipo de ser vivo antes que o próprio universo surgisse (...). Nenhum desses mitos explica como foi que criador do universo (e geralmente é um criador, e não uma criadora) veio a existir. Com isso, ficamos na mesma. Vejamos então o que sabemos a respeito da verdadeira história de como o universo começou. (DAWKINS, 2012, p. 163). Sobre esse ponto em específico Dawkins negligencia, seja lá por qual motivo, o pensamento do antropólogo belga Claude Lévi-Strauss. Lévi-Strauss nos explica que o pensamento mítico não consegue fazer formulações etapa por etapa (LÉVI-STRAUSS, 1987, p.13), como o pensamento científico. O mito precisa explicar o todo e dar uma cosmovisão, caso contrário não explica nada. Podemos concluir com isso que muito provavelmente nem passa na mente das sociedades que não explicam o tempo anterior aos criadores a questão da criação do espaço-tempo. Lévi-Strauss não nega que os indivíduos dessas sociedades criam uma ilusão, mas é através dessa ilusão, que apesar de fracassar na explicação dos fenômenos naturais sob a perspectiva científica, dá aos indivíduos uma capacidade de entendimento do Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 366 universo em que vivem. Não há para o pensamento mitológico, uma separação das esferas de saber, como ocorre na modernidade segundo autores como Max Weber. A ciência na visão de Lévi-Strauss trouxe um enorme leque de possibilidades, o homem inserido nesse meio social em que há a ciência pensa através dessas novas possibilidades já que sua realidade é essa, mas deixa de lado outros aspectos, como por exemplo, ver Vênus à luz do dia 3 . Analisar um contexto cultural sem suas particularidades, nos faz observar uma aproximação de Dawkins a James Frazer, em que a magia mítica é atrasada, o que do ponto de vista antropológico como o de Strauss é um equívoco. Mas Dawkins como podemos ver em sua obra Deus, um Delírio se aproxima em termos da proposição de Malinowski e Evans-Pritchard, de que não há diferença lógica entre pensamento mágico e outras religiões, como o cristianismo. Só que ao invés de enaltecer as proposições míticas das duas culturas, seja ela oral como no caso dos mitos tribais, ou a escrita como no caso das religiões abraâmicas; Dawkins coloca todas no mesmo patamar de pensamento “primitivo” ou atrasado. Alguns outros autores em antropologia discordariam de como Dawkins utiliza a ciência para desencantar os mitos. Na verdade o próprio uso somente das narrativas míticas para classifica-los como uma tentativa equivocada de se explicar o mundo já pode ser problematizado como nota Silas Guerriero: De certa maneira, os rituais encenam um ou vários mitos. Para muitos antropólogos a relação entre ritual e mito é direta. Os mitos são narrativas coletivas, contadas a partir de um discurso metafórico, que tratam das questões mais íntimas de uma sociedade. (GUERRIERO, 2013, p. 253). Muitas vezes mito e ritual não se separam, por isso há necessidade de se entender as particularidades de cada cultura. Clifford Geertz também se preocupou com a reflexão sobre culturas através de símbolos sagrados que dão uma estrutura de mundo e uma fórmula de agir dentro desse mundo. Algo que como Gregory Schrempp observa está muito alinhado a utilização pedagógica dos mitos pela divulgação científica já que os mitos evocam símbolos que são primordiais para a humanidade e com isso são uma maneira de persuasão bastante utilizada inclusive por Dawkins. Talal Asad problematiza ainda mais Clifford Geertz colocando sua perspectiva simbólica de religião como algo que foge da realidade de outras culturas, religião 3 Lévi-Strauss nota que isso é impensável para a maioria de nós que vivemos em grandes cidades e que possuímos técnicas as quais grande parte das tribos indígenas não possuem: como dirigir carros, por exemplo. Entretanto a capacidade de se enxergar Vênus de dia também é compartilhada por alguns marinheiros, o que denota a possibilidade de se fazer isso quando há uma necessidade (LÉVI-STRAUSS, 1987, p. 14) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 367 é uma categoria ocidental, logo podemos concluir que os mitos pelo menos no que cerne às suas explicações também os são. Essa explicação rápida sobre a questão da religião e dos mitos entra em conflito direto com a utilização dos mitos por Richard Dawkins. Os mitos precisam ser entendidos dentro do seu contexto histórico-social incluindo com isso as suas particularidades linguísticas, como Talal Asad afirma em relação à religião. Asad é adepto de uma corrente denominada pós-colonialismo que possui como seu expoente mais famoso Edward Said que com seu livro O Orientalismo de 1978 criticou as concepções e imagens estereotipadas que o ocidente tem em relação ao oriente. Dawkins em sua crítica a Stephen Jay Gould e o tipo de evolução em que ocorrem saltos evolutivos (DAWKINS, 2011, p. 263) em detrimento à visão mais gradualista da evolução que Dawkins possui; esse último batiza com o nome de má ciência poética para sublinhar o problema com a teoria de Gould possui. Mas o que Dawkins faz em relação aos mitos e à antropologia atual é exatamente uma “má ciência poética”, pois além dele ter uma visão antropológica atrasada em quase um século, numa perspectiva histórica da antropologia, ele ao trabalhar diversos mitos em sua obra os retira de seu contexto histórico-cultural- linguístico e os instrumentaliza em prol das ciências naturais. Não há nenhuma discussão mais séria em relação à antropologia em seu trabalho, além de uma crítica ao relativismo cultural em O Rio que Saía do Éden, mas Dawkins critica ali exatamente o tipo mais extremo de relativismo cultural, aonde ciência e mitos têm o mesmo “valor” em relação à verdade. Como apontei acima, Lévi-Strauss relativiza culturalmente, mas sem cair nessa falácia exposta por Dawkins, ou seja, a crítica ao relativismo cultural total é válida, mas isso já existe dentro da própria antropologia. Dawkins ainda usa os cultos à carga em Deus, um Delírio para demonstrar o quão fácil pode ocorrer uma gênese religiosa. O grande problema de Dawkins em relação aos mitos é enxerga-los como uma forma de entender a realidade e não de compreender uma forma de realidade de uma determinada sociedade. Os mitos são um dos instrumentos para entendermos a cultura em que os mesmos estão inseridos. Memes Logo em seu primeiro best seller O Gene Egoísta de 1976, Dawkins analisa a capacidade dos genes de se replicarem para se perpetuarem. Numa analogia com os genes, Dawkins cria o conceito de memes que seriam os replicadores culturais. O termo tem um alcance ampliado servindo para ideias e práticas sociais diversas. Num momento posterior o Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 368 autor compara os memes aos vírus de computador, já que os mesmos se instalam sem a autorização do dono e também se espalham de maneira descontrolada. Assim podemos concluir que para Dawkins os mitos sobrevivem como memes, se autorreplicando e muitas vezes se adaptando às novas condições e com nuances em relação a sua ideia original. Numa analogia com as espécies, Dawkins separa em “rios” cada espécie, que acabam se distanciando até não se cruzarem mais. Os memes estão dentro de um grande e único rio cultural, essa unidade das culturas acaba se demonstrando uma complicadora do conceito. O meme da ideia do Deus judaico-cristão, que é para Dawkins o problema central em Deus, um Delírio se encontra nesse grande rio cultural e logo pode ser adaptado a diversas culturas. O que fica de crítica é exatamente esse ponto de vista holístico do conceito. O linguista Daniel Everett e o antropólogo Marco Antônio Gonçalves demonstraram em seus trabalhos sobre a tribo pirahã como mesmo com esforços de missionários cristãos, a ideia de Deus e de Jesus Cristo não foi aceita por esse grupo. Essa tribo também acaba indo de encontro também com a ideia de Dawkins de que todas as tribos possuem mitos de criação, já que a mesma não possui tais mitos. Dawkins ao colocar os memes em um “grande rio cultural” não faz uma analogia perfeita em relação à biologia. Os rios separados das espécies também estão de certa maneira separados em relação à cultura. Existem diversas similaridades entre as culturas, porém algumas se encontram distantes o suficiente de outras para não conseguirem englobar conceitos fundamentais alheios à sua cultura. Os memes com a popularização da internet tiveram um novo significado, mas sem fugir do original de Dawkins de se replicarem e de se espalharem como um vírus. Entretanto, existem culturas e indivíduos vacinados culturalmente contra certos tipos de vírus da mente, ou, melhor dizendo de memes. O conceito de memes acaba retirando as particularidades culturais. Uma nova mitologia? Gregory Schrempp em seu livro The Ancient Mythology in Modern Science trabalha com a ideia que os grandes expoentes da divulgação científica como Carl Sagan, Steven Pinker, Daniel Dennett, Stephen Jay Gould e claro, Richard Dawkins estão criando uma nova mitologia com a proposta de popularizar a ciência. Schrempp descreve em seu livro como a divulgação científica mais atual descarta os mitos mais antigos, lhes dando como já exposto aqui, um caráter principalmente vinculado a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 369 uma protociência ou uma mera falsidade ilusória. Nesse ponto Dawkins muito provavelmente concordaria com ele. A nova proposição mitológica da divulgação científica não parece ser notada pelos autores que escrevem livros com esse intuito. Mas isso fica claro quando a ciência ao “desencantar” os mitos retirando dos mesmos o poder explicativo de determinada cosmovisão, dá o que Schrempp chama de uma visão compensatória de mundo, ou seja, um tipo de magia da realidade. Mas o que ganhamos com a divulgação científica e sua visão compensatória? Schrempp nota cinco características que ganhamos com essa nova “mitologia”: a verdade, que nos dá pelo menos algum tipo de verdade que é vista como superior às protociências ou a outras mitologias; a maturidade, que vai de encontro às ideias de alguns divulgadores científicos como Daniel Dennett que enxergam os mitos como algo infantil; um cosmos a ser maravilhado, como o próprio Dawkins entende, não há nada que se compare à magia da realidade; uma continuação da religiosidade e de valores humanísticos, alguns sociólogos como Max Weber e Robert Merton já tinham em seu pensamento a ideia da existência de um ethos do puritanismo protestante que facilitaria tanto o desenvolvimento da ciência (MERTON, 2013, p. 16) quanto um bem estar social (MERTON, 2013, p. 20), o que interessa para Schrempp é que agora a divulgação científica retira a autoridade da religião dessa ultima questão e a traz para a ciência; e por último há um parentesco cósmico, em que os seres vivos conseguem ser projetados em seres inanimados, já que somos feitos quimicamente das mesmas substâncias. Há um sentimento de pertencimento ao universo como um todo. A principal questão que é colocada por Schrempp é que não há a preocupação da divulgação científica com uma descrição da realidade, como a ciência “deve” fazer. E sim uma preocupação com a formação de uma verdade totalizante. Dawkins pode ser alinhado a esse tipo de pensamento já que o mesmo possui uma visão de um mundo parecida com a descrita por Daniel Dennett como ácido universal. Dennett diz que a ideia perigosa de Darwin tem a capacidade de “dissolver” todas as crenças tradicionais e nisso se incluem os mitos. Essa militância corrosiva do darwinismo praticado tanto por Dawkins quanto por Dennet é problemática do ponto de vista antropológico ou de qualquer tipo de ciência social que tente analisar uma conjuntura mítica, já que o objetivo científico é exatamente a análise e compreensão dos mitos, e não uma colonização de uma cultura superior como no período inicial da antropologia que nos remete novamente a Tylor e Frazer. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 370 Conclusão Em sua relativamente extensa bibliografia com o intuito de divulgar a ciência, Dawkins atrai diversos olhares para suas obras, seja por sua capacidade técnica como biólogo e escritor, seja pelas suas polêmicas posições em relação às religiões. Porém, ao cumprir o seu competente papel de divulgador científico no que tange principalmente à biologia e às ciências naturais em geral utilizando os mitos como uma forma de apelo ao imaginário popular, até para que exista um maior entendimento dos seus leitores, ele acaba fazendo um desserviço para a antropologia e para as ciências humanas. Como tentei demonstrar, Dawkins ainda possui uma visão atrasada em relação à história da antropologia e sua relação com os mitos, abrindo uma ambivalência que está vinculada a instrumentalização dos mitos para um caráter pedagógico, o que coloca todos os seres humanos capazes mentalmente de entenderem o pensamento científico e um pensamento social ainda atrasado, que enxerga a cultura sem suas particularidades, simbolismos e principalmente: necessidades. Sem a utilização de uma antropologia mais atual, Dawkins acabar por ressuscitar algumas categorias já ultrapassadas. Com isso ele retoma ideias que elevam o darwinismo a uma explicação holística até dentro da ciências humanas, claro com uma carga que não é racista, diferente de seus antecessores do darwinismo social do fim do século XIX. Entretanto, algumas dessas explicações se tornam mancas e acabam por fazer dos mitos instrumentos meramente pedagógicos para a ciência, sendo que os mesmos também são objeto de estudo científico. 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O presente trabalho analisa adaptação de contos infantis para temáticas de história ambiental e sustentabilidade como estratégia de ensino por meio do lúdico realizada pelo Projeto Batuclagem da Universidade Federal do ABC. Em específico, analisaremos a obra Chapeuzinho Verde, uma adaptação do tradicional conto de fadas Chapeuzinho Vermelho elaborada para fins didáticos para sensibilização de conceitos relacionados ao meio ambiente e voltados para o público infantil. A nova versão apresenta – dentro da narrativa lúdica - conceitos como: separação de resíduos, alimentação saudável, conceito lixo no lixo e os R’s do meio ambiente. Essa pesquisa busca avaliar a eficácia da recepção de tal narrativa e dos conceitos didáticos elaborados para ensino-aprendizagem de Ciência para crianças de 7 à 13 anos. Palavras-chave: ensino-aprendizagem, meio-ambiente, estratégia Abstract: The search for new strategies for teaching and learning in science and effective environment for children aged 7 to 13 years leads us to seek the playful new techniques of teaching and learning of Science. This paper examines adaptation of fairy tales for thematic environmental history and sustainability as a teaching strategy through playful design Batuclagem conducted by the Federal University of ABC. In special, we analyze the work Green Riding Hood, an adaptation of the traditional fairy tale Little Red Riding Hood drafted for didactic purposes sensitizing concepts related to the environment and aimed at children. The new version features - within the playful narrative - concepts such as waste separation, healthy eating concept garbage in garbage and R 's of the environment . This research seeks to assess the effectiveness of the receipt of such narrative and didactic concepts developed for teaching and learning of Science for children 7 to 13 years. Keywords: teaching-learning environment, strategy. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 373 Introdução A Educação Ambiental tem o objetivo de disseminar o conhecimento sobre o ambiente. Com a principal função de conscientizar à preservação do meio ambiente e sua utilização sustentável, foi proposta em 1999 no Brasil. De acordo com a Lei N° 9.795 – Lei da Educação Ambiental, em seu Art. 2°: "A educação ambiental é um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal.” Segundo Piaget, o conhecimento não procede nem da experiência única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas (PIAGET, 1976 apud FREITAS, 2000:64). Considerando então, que o comportamento do indivíduo constitui-se de uma interação entre ele e o meio, a busca por novas estratégias de aprendizagem é muito bem vinda. De acordo com Herbert Read, a arte e a educação são dois conceitos indissociáveis, sendo que a primeira deveria ser a base da segunda como um todo. Unir educando pela arte seria uma estratégia muito bem sucedida uma vez que há a preservação orgânica do homem e de suas faculdades mentais, respeitadas as diversas faces do desenvolvimento humano (READ, 1982). A contação de histórias surgiu no projeto Batuclagem, pertencente a pró-reitoria de extensão da Universidade Federal do ABC, no ano de 2012, como uma estratégia de arte- educação associada à educação ambiental, com o intuito de promover uma sensibilização das futuras gerações sobre os problemas ambientais de nosso planeta e estimular de forma lúdica o desenvolvimento de reflexões e mudanças de postura sobre as práticas cotidianas como separação do lixo, uso racional da água e da energia e diminuição do consumo. A equipe do projeto Batuclagem elaborou seis histórias infantis a partir de lendas e contos conhecidos, que foram adaptados para a educação ambiental. Esta pesquisa visa diagnosticar e avaliar a eficácia dos contos adaptados no ensino de educação ambiental, em especial, o conto Chapeuzinho Verde, uma adaptação ao conhecido conto Chapeuzinho Vermelho. Objetivos e Metas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 374 Pretende-se analisar a obra Chapeuzinho Verde, uma adaptação do tradicional conto de fadas Chapeuzinho Vermelho, elaborada para fins didáticos para sensibilização de conceitos relacionados ao meio ambiente e voltados para o público infantil, verificando a eficácia e recepção de tal narrativa e dos conceitos didáticos inseridos na história, como separação de resíduos, alimentação saudável, conceito lixo no lixo e os R’s do meio ambiente, para ensino-aprendizagem de Ciência para crianças de 7 à 13 anos. Pretende-se chegar a tais objetivos analisando as contações da História já realizadas em 2012 e 2013, contou-se a história em torno de 15 vezes entre os dois anos, para crianças, em grande maioria, entre 7 à 13 anos. Métodos - Análise dos conceitos inseridos na obra "Chapeuzinho Verde" - Análise da aceitação da história perante os alunos, através das contações realizadas nas escolas, de forma presencial e participativa e também através de gravações de imagem e áudio. - Análise da assimilação do conhecimento através de brincadeiras em que as crianças precisam lembrar conceitos inseridos na história para ganhar pontos. Objeto de Análise Em de 2012, os então integrantes do projeto Batuclagem nas escolas adaptaram 6 histórias infantis para temas ambientais. Foram elas: Chapeuzinho Verde (adaptação de Chapeuzinho Vermelho com tema de reciclagem), O Boto Cinzento (adaptação de O Boto cor de rosa com a temática água), A formiguinha sustentável e a Cigarra Trapalhona (adaptação de A formiguinha e a cigarra com a temática uso racional de energia), Acordei Curupira (adaptação de O Curupira levantando o assunto da biodiversidade) e A Bela Apodrecida (adaptação de A Bela adormecida, buscando a temática Poluição do ar) e O vai e vem do arco-íris (adaptação de A Dança do Arco-íris com o tema lixo tecnológico). As histórias a serem adaptadas foram escolhidas por serem popularmente conhecidas e algumas por serem contos do folclore brasileiro, buscando a fácil identificação da história pelas crianças e também o resgate de importantes contos do folclore brasileiro. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 375 Abaixo, a adaptação a ser analisada nessa pesquisa é Chapeuzinho Verde, escrita pela participante do projeto Luana Sabatini Gonçalves. Chapeuzinho Verde Aposto como você conhece a história daquela outra, a tal de Chapeuzinho Vermelho, mas hoje você vai conhecer a minha... Minha mãe adorava essa história e resolveu me chamar de Chapeuzinho. Desde pequena eu ajudo a natureza, admiro os rios límpidos com águas cristalinas, converso com os passarinhos na floresta e gosto de deitar na relva nos dias de sol. Adoro um moletom com capuz verde que tenho e não o tiro por nada, e por isso todos me chamam de Chapeuzinho Verde. Um dia estava em casa lendo A Bela Apodrecida, quando minha mãe me pediu para levar uma cesta de frutas e flores para a casa da vovó. Explicou que ela estava doente, pois as árvores da floresta não davam mais frutos e no campo não havia mais flores para embelezar sua casa e atrair borboletas. Vovó também estava muito triste, porque sem plantas e frutas para se alimentarem, os animais da floresta estavam desaparecendo. Tudo estava cinza. Eu gosto muito da vovó e adoro ir para a casa dela no meio da floresta. No caminho fiquei pensando o porquê as árvores da floresta não estavam mais dando frutos. Percebi que a floresta e o rio estavam cheios de papéis, latas de refrigerante, saquinhos de biscoito, copos plásticos. As plantas, coitadas, estavam morrendo e os animais chorando de fome. Não acreditava no que via! Decidi que descobriria quem estava poluindo tanto a floresta. Tentando espantar minha tristeza, continuei meu caminho cantando: - Pela estrada fora eu vou bem sozinha Levar essas frutas para a vovozinha Ela mora longe e o caminho é sujinho E é o lobo mau que suja isso tudinho! Mas isso é errado, a floresta tá poluída. Eu vou lutar pra que não seja destruída Até hoje o Lobo pensa que eu não vi que ele estava me espionando atrás de uma árvore. Comecei a ouvir uns sons muito altos, e senti um horrível cheiro de pum. Isso mesmo, o Lobo estava soltando puns e o pum do Lobo era tão forte que as plantinhas próximas murchavam na hora. Comecei a andar mais devagar para tentar ouvir o que o Lobo estava resmungando. Ele estava conversando com seu filho, o Lobinho: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 376 - Pai, eu já disse que você tem que parar de comer salgadinhos, bolachas, mascar chicletes e além de tudo parar o péssimo hábito de jogar todas as embalagens do que consome no chão e ou no rio. - Eu já falei, Lobinho, eu adoro comer tudo isso. A floresta não me importa. Não ligo para sujeira. Só me incomoda essa dor de barriga. Preciso de frutas para melhorar. - Então, Pai, com essa sujeira toda, o solo ficou tão ruim, que nada cresce nele agora. Sem árvores, não temos frutas... O Lobo também falou que estava doente, com muita dor de barriga e que precisava de frutas. Saiu correndo e cantando uma música mais ou menos assim: - Eu sou o lobo mau, lobo mau, lobo mau Eu sujo a floresta e acho muito legal Hoje estou doente, mas vi essa criança Vou chegar primeiro pra encher a minha pança... Imaginei que o Lobo fosse aprontar alguma coisa e tentei entender o que a letra queria dizer. Fiquei tranquila já que ele disse que viu uma criança, então não era comigo afinal não sou criança. Sou pré-adolescente! Decidi ir até a casa da vovó, para só depois procurar o Lobo e tirar satisfação da sujeira na floresta. Quando cheguei à casa da minha avó, ela estava deitada. Ela estava muito esquisita e eu disse: - Vovó, como você está estranha! Que olhos grandes, nariz gigante e orelhas imensas! - É porque estou doente e fraca, minha netinha! – Respondeu a vovó. Eu acreditei, afinal quando ficamos doentes, tudo fica inchado. - Que boca enorme, vovó! - É para comer todas as frutas! Vovó abocanhou várias frutas da cesta, fazendo a maior bagunça e sujando tudo. Eu fiquei confusa, minha avó não tinha esses maus hábitos. Olhei ao redor e vi que a vovó estava escondida e fez sinal que estava bem. Foi então que percebi que era o Lobo se passando por minha avó. Sorte que ela viu quando o lobo estava chegando e se escondeu no armário. Tive uma ideia e resolvi dar uma bela lição no Lobo. Fingi que não tinha descoberto que era ele. Então, eu disse que havia visto um pé de goiabas que sobreviveu e estava carregado e que se ele quisesse o levaria até lá. Sabia que ele adorava goiabas e prontamente aceitou o convite. Fiz o Lobo andar até ficar exausto... com muita sede... Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 377 Peguei um pouco de água do rio para ele beber, em um copo descartável e sujo que estava boiando no rio. O Lobo encheu sua boca de água de tanta sede que estava e depois cuspiu tudo dizendo: - Credo, que água ruim! De onde você pegou essa água horrível para me dar? - A água está ruim por sua culpa! E aí não escondi mais que sabia quem ele era: – Seu Lobo, você tem que parar de poluir a floresta. As plantas e animais da floresta estão morrendo devido a tanta sujeira. Além de tudo, seus puns são muito fedidos – disse, brava, mas rindo. Aí comecei a cantar: Não suja não! Como o Lobo não! Ele é um porcalhão. Reduzir, reutilizar, reciclar, Para o planeta salvar. O Lobo, cabisbaixo e chateado respondia: - Sim, Chapeuzinho verde, eu quero mudar, eu estou muito doente, porque só como porcarias e salgadinhos... Até a Dona Loba me mandou dormir no sofá porque não aguentava mais meus puns fedidos... Ele me perguntou: - O que devo fazer para que meus amigos e as plantas possam viver em uma floresta limpa como antes? Eu dei algumas ideias: - Reduzir o consumo dos salgadinhos, bolachas e comidas industrializadas, reutilizar as garrafas de plástico fazendo poltronas e instrumentos musicais para sua família; separar o lixo, principalmente para reaproveitar o que pode ser reciclado. Lembre sempre: na caixa verde colocar o vidro, na azul os papéis, na caixa vermelha, tudo que for feito de plástico e, na amarela, os metais, como as latinhas de refrigerante. O lobo ficou tão feliz que, a partir desse dia ,passou a me ajudar a limpar a floresta e vigiar se todos os bichos estavam separando o lixo direitinho. Se aparecia outro “porcalhão”, ele era o primeiro a dar bronca e explicar como cuidar melhor da floresta. Minha avó ficou muito orgulhosa e me deu um grande abraço. Agora que a floresta voltou a ser linda como antes, as árvores verdinhas e o rio límpido, continuo cantando, mas agora uma música bem mais alegre: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 378 - Pela floresta fora eu vou bem contente Agora que o mundo está mais consciente Com tudo limpo podemos brincar Já que até o lobo aprendeu a reciclar. Mas se algum lixo no chão eu encontrar, Na lixeira correta vou depositar. A minha história acabou, mas a sua está apenas começando! Ajude a transformar o mundo em um lugar melhor para se viver! Buscamos inserir nessa adaptação principalmente o conceito de reciclagem, para ser passado de forma lúdica aos alunos. O Lobo ao final da história, aprende que é necessário cuidar do meio ambiente e separar os resíduos, além disso, aprende os principais R's: reduzir, reutilizar e reciclar, para os quais são dados exemplos de utilizações do Lobo. Outro conceito abordado na história foi alimentação saudável, explícito no fato de o lobo ficar doente por comer apenas produtos industrializados, sem comer frutas e verduras. Para fazer com que esse conceito fluísse de forma agradável no contexto da adaptação, é dito que o Lobo está soltando muitos puns, o que faz a narrativa ficar mais divertida e busca a atenção dos alunos ao tema. O conceito de lixo no lixo também é inserido, o Lobo por não jogar o lixo no lixo prejudica os animais e plantas da floresta. Resultados Parciais * Aceitação dos Alunos e assimilação do conhecimento A adaptação Chapeuzinho Verde foi contada em escolas estaduais e municipais aproximadamente 15 vezes para crianças, em maioria, entre 7 à 13 anos, tendo ouvintes em algumas exceções de 5 ou 6 anos. Por ser uma história infantil vemos que a maior aceitação das crianças aparece nas com menos idade, tendo boa recepção para alunos até 10 anos, sendo para alunos de 11 à 13 anos aceita com menor receptividade. Este fato já era esperado pelos membros do projeto, visto que a história segue um caráter infantil. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 379 Os alunos com até 10 anos mostraram-se muito interessados pela história, participando ativamente. Verificamos durante as contações que a inserção de temas atuais do cotidiano das crianças, como filmes e programas recentes, ajuda a chamar a atenção dos alunos para a história, fazendo com que o contato com eles seja mais próximo. A adição de objetos de cena na contação, como capa verde, orelha de Lobo, cesto da Chapeuzinho e embalagens de alimentos, também colaboraram para aceitação da história e absorção de conceitos. A partir das brincadeiras realizadas em que, em determinado momento, os alunos precisam lembrar conceitos inseridos na história, verificamos que a assimilação destes conceitos é muito boa, com as crianças de maneira geral acertando grande parte das perguntas. Nesta etapa vemos que as crianças mais novas, entre 5 à 7 anos, tiveram mais dificuldade, mas mesmo nessa faixa de idade, é possível notar assimilação de conhecimento. Conclusões Preliminares Sendo a aceitação de "Chapeuzinho Verde" maior no caso de alunos até 10 anos e maior assimilação de conhecimento para crianças à partir dos 7 anos, concluimos que a adaptação atende seus objetivos para idades na faixa de 7 à 10 anos, e, parcialmente, para alunos menores que 7 anos ou maiores que 10. Para uma conclusão mais precisa, a adaptação continua a ser analisada. Referências Bibliográficas FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 5ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. READ, Herbert. A educação pela arte. S. Paulo : Martins Fontes, 1982. RIZZII, M. C. S. L. e Anjos, A. C. C. (2010) Arte-educação e meio ambiente: apontamentos conceituais a partir de uma experiência de arte-educação e educação ambiental, ARS (São Paulo) vol.8 nº.15 São Paulo. Acessado em 16/05/2013 em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678- 53202010000100003&lang=pt. SENA, C. C. B. , Macedo, J. M. F. e Soares, M. A aprendizagem e o lúdico: uma nova práxis em sala de aula. Acessado em 10/05/2013 em: http://www.abpp.com.br/artigos/128.pdf. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 380 SANT’ ANA, C. A contribuição do contadores de história na reeducação de dificuldades na linguagem oral (2007). Acessado em 10/05/2013 em: http://www.abpp.com.br/artigos/70.htm. RIBEIRO, S. L. Processo ensino-aprendizagem: do conceito à análise do atual processo. Acessado em 10/05/2013 em: http://www.abpp.com.br/artigos/37.htm. OSINKI, Dulce. Arte, ensino e história: uma trajetória. São Paulo: Cortez, 2002. 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ISBN 978-85-62707-52-0 381 DA SALUS PUBLICA: ADMINISTRAÇÃO E LEGISLAÇÕES MEDICINAIS NAS MINAS (1772-1829) * Lucas Samuel Quadros Universidade Federal de Ouro Preto Mestrando em História Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [email protected] Resumo: O presente trabalho tem como proposição discutir as principais questões e reflexos da medicina em Minas Gerais entre as Reformas da Universidade de Coimbra em 1772 e a extinção da Fisicatura-Mor no Brasil em 1828. O período privilegiado se configura como essencial para a compreensão das empreitadas de legitimação da medicina aos moldes científicos do Iluminismo no vasto Império Lusitano. Para tanto, toma-se como objeto de análise os Estatutos da Universidade de Coimbra do ano de 1772(Livro III) – Curso das Ciências Naturais e Filosóficas e o Regimento da Fisicatura-Mor de 1810. Tem-se como objetivo analisar a questão da inserção da saúde dos povos nas pautas discussão e agenda interesses da administração lusitana no período, bem como propor potencialidades de estudos da recepção e influências dessas legislações nas práticas medicinais das Minas no final dos setecentos e início dos oitocentos. Palavras-chave: História da medicina, legislações medicinais, administração lusitana. Abstract: The present study is proposing to discuss key issues and reflections of medicine in Minas Gerais between Reforms of the University of Coimbra in 1772 and the extinction of Fisicatura-Mor in Brazil in 1828. The privileged period is configured as essential to understanding the works of legitimation of medicine to scientific patterns of the Enlightenment in the vast Lusitanian Empire. For that, it takes as its object of analysis the Statutes of the University of Coimbra in 1772 (Book III) - Course and the Natural Sciences and Philosophical Regiment Fisicatura-Mor 1810. Has to analyze the issue of inclusion of people's health in the discussion agendas and interests of the Lusitanian administration agenda in the period as well as propose potential for studies of the reception and influence of these laws in the medicinal practices of Mines at the end of the seventeen hundreds and early eight. Keyword: History of medicine, medicine laws, Lusitanian governance. Introdução Os estudos sobre a História da Medicina estão em plena consolidação no campo historiográfico brasileiro. Por se tratar de um seguimento de estudo de fronteira interdisciplinar entre as ciências sociais e as ciências da saúde, as discussões acerca da * A apresentação faz parte dos resultados parciais da pesquisa de dissertação intitulada “A praxe da medicina no Reino: legislações, leituras e ofícios medicinais nas Minas(1772-1828)”, orientada pelo Professor Doutor Álvaro de Araújo Antunes do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 382 Medicina na história têm sido progressivamente adensadas, tendo os enfoques privilegiados, sobretudo na História Cultural. E os programas de pós-graduação, linhas subtemáticas e núcleos de estudos interessados na História da Medicina tornam o seguimento de estudo cada vez mais discutido nos meios acadêmicos. Em consonância tal crescimento, presente trabalho tem como proposição discutir as principais questões e reflexos da medicina em Minas Gerais entre as Reformas da Universidade de Coimbra em 1772 e a extinção da Fisicatura-Mor no Brasil em 1828. O período privilegiado se configura como essencial para a compreensão das empreitadas de legitimação da medicina aos moldes científicos do Iluminismo no vasto Império Lusitano. O trabalho visa entender, concomitantemente, quais foram as influências do Pombalismo nas práticas de medicina no Império Português, trazendo à luz da discussão não apenas os impactos profissionais, como também as questões que dizem respeito ao benefício da saúde dos povos das Minas. Portanto, o intuito é trazer à apreciação as principais percepções historiográficas e notas de pesquisa acerca das práticas de governo da medicina nas Minas, bem como os principais fatores e encargos que permeavam o cotidiano desse seguimento profissional. Para tanto, faz-se extremamente necessário o exercício de analisar os Estatutos da Universidade de Coimbra do ano de 1772(Livro III) – Curso das Ciências Naturais e Filosóficas e o Regimento da Fisicatura-Mor de 1810. Tem-se como objetivo destacar a questão da inserção da saúde dos povos nas pautas discussão e agenda interesses da administração lusitana no período, bem como propor potencialidades de estudos da recepção e influências dessas legislações nas práticas medicinais das Minas no final dos setecentos e início dos oitocentos. A Medicina Política no Império Português Desta forma, para melhor compreender-se o que se pretende discutir na apresentação que se segue, destaca-se três aspectos principais que nortearam a escrita deste trabalho. São eles: 1) as influências políticas, científicas e intelectuais do contexto da Reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra em 1772, 2) os impactos da sobredita Reforma dos Estatutos de 1772 na América Portuguesa, e 3) as potencialidades de discussão acerca do Regimento da Fisicatura Mor de 1810 e a questão da administração da saúde dos povos. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 383 Quanto ao primeiro aspecto, realça-se que uma das características marcantes do século XVIII no que diz respeito ao poder régio, é a ideia de governo construído bilateralmente entre os soberanos e os vassalos. Há de se considerar, que no problema da saúde dos povos figuraram algumas das maiores estratégias – retóricas ou não – de estabelecimento de iniciativas de conservação de laços entre metrópole e colônia no governo português. Contudo, essas relações não se davam apenas pela ordenação e aceitação. A própria ideia de construção de formas de autoridade denota que o conflito se fez tão presente quanto à norma nesse ponto (FOUCAULT, 1979). Entende-se, que a partir do sobredito século, começa a se manifestar uma ideia de Estado entendido como um sistema de forças a ser administrado centralmente e fragmentadamente ao mesmo tempo. E nele, a medicina e as instituições de regulação das práticas medicinais tem papel central, pois, “não se pode administrar a justiça, fazer guerra, levantar fianças, dentre outros, sem que haja abundancia de homens vivos, sadios e pacíficos” (FOUCAULT, 2008, p. 434). Reconhece-se tal fato levando em consideração que, de meados do século XVIII em diante, começa a surgir toda uma literatura – me refiro aos tratadistas de economia, justiça, política e medicina – que começa a tomar as insalubridades e epidemias da população como um grande problema nos debates políticos. Tal perspectiva toma uma dimensão maior, uma vez que o intuito é não somente entender as concepções e ações dos indivíduos no momento do enfrentamento da doença, da falta de saúde ou da morte. Pretende-se também, entender todo um contexto iluminista em que os Estados se estruturavam não apenas para melhor combater os achaques da população, mas também elaboravam – e consolidavam – projetos e legislações que visavam as melhores formas de manter a boa saúde dos povos, e consequentemente, evitar as doenças (ABREU, 2007). Foi o médico Antônio Nunes Ribeiro Sanches, um dos pioneiros no Reino de Portugal a falar de um projeto de medicina política. O projeto é o eixo central de argumentações do Tratado da conservação da saúde dos povos, de 1756, que bate intensamente na tecla da ideia de que não se trata apenas da conservação da saúde dos povos, mas em consequência, conservar para aumentar a população. Tal empreitada necessitaria que o conhecimento científico e as ações de governo estivessem na maior concomitância possível. Ribeiro Sanches propunha não apenas rupturas com o atraso econômico e científico português em relação às demais nações europeias, mas apresentava novos caminhos para se construir um novo Portugal – que além de crescer, se manteria em constante crescimento –, em que as principais Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 384 bases são seus maiores interesses: a conservação da saúde e o crescimento da população através da medicina profilática e da educação. Dizia Ribeiro Sanches que a mais sólida base de um poderoso Estado consiste na multidão dos súditos, e no seu aumento, e que desta origem resultam as suas forças, poder, grandeza, e majestade: nenhum receia tanto no tempo da paz, como da guerra despender a maior parte dos seus rendimentos na educação de teólogos, jurisconsultos, militares e pilotos; e não têm outro fim estas imensas despesas do que o aumento da Religião, santidade dos costumes, e o aumento dos bens. Mas como poderá aumentar-se sem leis, e regramentos a Conservação da Saúde dos Povos, e curar as enfermidades a que estão expostos?(SANCHES, 2003, p. 3) Através da destacada proposição de Ribeiro Sanches, tem-se claramente o segundo aspecto previamente elencado que norteia a apresentação deste trabalho. Dos setecentos em diante, o desafio de governar os povos vai se constituir em manipular, manter, distribuir, reestabelecer as relações de força do Estado num contexto de crescimento da população e competição de mercado entre os Estados nacionais europeus. O primeiro conjunto tecnológico característico da arte de governar é a criação de uma instrumentação diplomática multilateral – não mais pensada para se sobrepor as forças de poder entre Estado e população, mas tentando assim, equilibrá-las(FOUCAULT, 2008). Para tanto, os Estados tinham que formar capital humano ambientado nessa nova mentalidade de governo, e estes, estariam a cargo de levar ao Reino os ideais ilustrados de profilaxia e combate às doenças, bem como fiscalizar as legislações medicinais. Entende-se dessa maneira, que as reformas dos Estatutos da Universidade de Coimbra do ano de 1772 – Curso das Ciências Naturais e Filosóficas – foram a primeira e primordial ação para superação do descompasso que marcava a Medicina no Reino de Portugal e o atraso científico lusitano em relação as demais nações europeias. E toda essa reorientação seria preponderante para que se realizasse o cumprimento efetivo das legislações de saúde e medicina que, desde o início do século XVIII, o Estado português tentava estabelecer e fiscalizar. Segundo Ruth Gauer, a formação de médicos preparados para experiência e observação nos hospitais construiu um saber que deu condições de controle político científico do meio, vale dizer: da cidade, do subúrbio, da comunidade. [...] O sistema médico implantado pela Reforma de 1772 aponta para a coexistência de uma medicina assistencial, administrada pela autoridade científica médica cujo conhecimento adquirido lhe garantia o controle da saúde pública ao Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 385 mesmo tempo que o da medicina privada, que beneficiava quem tinha meios para pagar.(GAUER, 1996, p. 99) De fato, começou-se a colocar em prática um projeto pedagógico que formaria os homens capazes de levar a Portugal e seus domínios ultramarinos os ideais de uma medicina moderna calcada no cientificismo do Iluminismo Europeu. Além de um amplo conteúdo teórico nos primeiros dois anos de curso, fundado basicamente nas lições de História Natural e Filosofia, as técnicas práticas e os experimentos empíricos passariam a demandar bastante tempo da carga-horária dos estudantes de medicina em Coimbra. Pode se dizer que as Reformas como um todo, se voltariam para formação teórica dos alunos com intuito de melhor ampará-los nas observações práticas. Os alunos ali formados teriam as habilidades científicas necessárias às demandas do progresso e da expansão das Luzes no Império Português(ABREU, 2011). Não havendo uma universidade na América Portuguesa, a Universidade coimbrã seria o referencial pedagógico na instrução letrada da medicina. Em Coimbra se formaria a maior parcela dos médicos encarregados de propagarem o projeto português de modernização do Estado e de promoção da salubridade dos povos através das práticas de cura. A partir daí, a política reformista pombalina começava formar indivíduos preocupados com a ambiência colonial, e que, nesse espaço, disseminariam e agiriam pela manutenção de práticas calcadas no cientificismo(GAUER, 1996). Realça-se também na citação de Ribeiro Sanches a questão da necessidade de renovação do aparato legislativo medicinal português, de outra forma, o nosso terceiro e último tópico listado. Administração e legislações medicinais nas Minas Em concordância às mudanças nos ofícios medicinais, as leis e instituições de manutenção da saúde pública necessitavam de se renovar, ou pelo menos reforçar o seu caráter censor. O Regimento da Fisicatura-Mor de 1810 foi o primeiro elaborado posteriormente as Reformas de 1772, visto que a Junta do Protomedicato, que atuou em solo luso-americano entre 1782 e 1808 se valia do regimento homônimo de 1744. (RIBEIRO, 1997) Destaca-se que no período que durou a Fisicatura-Mor – em concordância com todas as iniciativas realizadas desde 1772 que aqui foram citadas –, o mote era de tentar impor Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 386 certos padrões científicos no exercício da medicina, porém sem concentrar as práticas curativas a determinado seguimento dominante como se sucedeu após 1828. (PIMENTA, 1997) Entende-se que a renovação da “praxe da medicina no Reino” (Estatutos (Livro III), 1772: 16) estabelecida nos Estatutos de 1772 iniciaria um processo de reorientação da formação dos médicos em benefício da saúde pública, contudo tentando agregar os saberes populares a uma medicina dita oficializada. Nesse sentido, destaca-se que o povo ocupa uma via de mão dupla da compreensão para a ciência de governo. A primeira, é que o crescimento da população – e as diversas movimentações econômicas e comerciais devidamente tributadas – era a grande forma de obtenção de riqueza por parte dos Estados. Mas na contramão, a segunda visão consistia na ideia de que o crescimento dessa população traria grandes desafios aos governos (FOUCAULT, 2008): aqui, se destaca o problema das condições de saúde da população. O grande questionamento era: como balancear as soluções e os problemas acarretados pelo povo nessa nova maneira de enxergar o papel da população nos Reinos? Da mesma forma, como proporcionar os meios possíveis para que essa população continue a crescer, sem maiores prejuízos a ela própria, e, sobretudo, sem maiores prejuízos aos governantes?(FOUCAULT, 2008) Reitera-se que nesse contexto, os espelhos de príncipe que estiveram em voga até o século XVI abandonaram a busca pela perfeição atemporal dos governos monárquicos para pôr em foco a contingência das situações humanas. Postulam-se, assim, as marcas da secularização e do pragmatismo presentes na tratadística política produzida nos séculos XVI e XVII que muita influenciou a produção científica do XVIII. Conforma-se assim, uma ideia de Governo a partir da análise sistemática das forças sociais e o uso desse conhecimento para o fortalecimento do próprio Estado. Até o século XII, o regimen – a arte de conduzir almas ao bem comum – precedeu o regnum – exercício de poder monárquico ditados pela exigência do Estado –, seguindo a concepção ministerial do poder secular. O regimen começa a se confundir com o regnum, marcando uma relativa autonomia do político em relação ao espiritual. Neste momento, inscreve-se a ruptura maquiavélica que marcou a passagem da arte de governar medieval para a tecnologia moderna do governo. O regimen que adotava como pressuposto a condição de seu exercício: o poder. Doravante, passaria a corresponder à instrumentalização do governo que não será mais a razão de ser do poder público e nem sua manifestação – fenômeno observável nas grandes monarquias Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 387 administrativas do século XVII em diante. Ocorre, então, uma redefinição das finalidades governamentais que iriam operar agora em função das necessidades do Estado. (SENELLART, 2006) Em outras palavras, no XVIII, de maneira mais nítida, tem-se o início de uma racionalização e tecnicização da ação política, que ao invés de servir estritamente ao soberano, começava a servir uma máquina estatal. Considerações finais Assim, tentou-se chamar a atenção neste trabalho que os adventos da racionalidade do Estado moderno fez com que se fosse necessário emergir uma nova história dos governos dos povos, baseada principalmente em novas redefinições do conceito de política (GAUCHET, 2005). Assim, a história intelectual e das ideias, mas, sobretudo, a história conceitual figura como uma das principais chaves de compreensão das ideias políticas, uma vez que nenhum vocábulo político pode ser dissociado de sua história (KOSELLECK, 2006). Ou seja, a análise das recepções das leis em instancias regionalizadas – onde o científico e o costumeiro estão em constante embate – torna-se enriquecida uma vez que se têm noções mais claras acerca da contextualização intelectual onde uma legislação está cunhada. Ou seja, o que se pretendeu aqui foi colocar a apreciação e contribuição algumas percepções – ainda que incipientes – acerca de parte dos projetos e ações da Coroa Portuguesa, bem como dos sujeitos delegados para administrar a medicina do Reino, em assegurar, conservar e reestabelecer o bem estar e saúde dos súditos do Reino – da salus publica, me apropriando de uma expressão de João de Salisbury, tratadista político do século XII. (SENELLART, 2006) Da mesma maneira, não podemos nos desprender das reflexões acerca dos artifícios de linguagem envoltos na linguagem política dos fins do Antigo Regime, cujo aqui se destaca a retórica de que a reorientação das maneiras de se pensar a medicina e a salubridade seriam integralmente em benefício dos povos, quando o intuito primordial se mostrava na manutenção de integridade do Império Português num contexto de crise de sua legitimidade. (NOVAIS, 1981) Leva-se em conta, principalmente, a necessidade de se entender os mecanismos de poder impostos pelo Estado Português nos domínios ultramarinos em escalas de análise que partem do macro para o micro e do centro à periferia. Ademais, percebe-se que ainda há Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 388 poucos estudos que se debrucem diretamente na questão dos conceitos políticos que são centrais aos estudos de História da Medicina sob a ótica das transições de doutrinas régias, sobretudo no século XVIII. Referências Bibliográficas Fontes impressas: Estatutos da Universidade de Coimbra do ano de 1772(Livro III) – Curso das Ciências Naturais e Filosóficas. Coimbra: Por ordem de Sua Majestade, 1772. SANCHES, António Nunes Ribeiro. Tratado da conservação da saúde dos povos. Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal, 2003. Bibliografia: ABREU, Jean Luiz Neves. “A Colônia enferma e a saúde dos povos: a medicina das ‘luzes’ e as informações sobre as enfermidades da América Portuguesa”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.3, 2007; pp.761-778. _______. Nos domínios do Corpo: o saber medicinal luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. _______. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France(1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. GAUCHET, Marcel. Les figures Du politique. In: La condition politique. Paris: Gallimard, 2005. GAUER, Ruth Maria Chittó. A Modernidade Portuguesa e A Reforma Pombalina de 1772. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. PIMENTA, Tânia Salgado. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura- Mor no Brasil do começo do século XIX. Universidade Estadual de Campinas(Dissertação de mestrado em História), Campinas, 1997. RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997. SENELLART, Michel. As Artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Editora 34, 2006. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 389 LUIS DE CASTRO FARIA: UMA ANÁLISE DOS DIÁRIOS DE VIAGEM DO ANTROPÓLOGO NA EXPEDIÇÃO ÀS FEIRAS DA BAHIA - 1949. Lucimeire da Silva Oliveira Mestre em História Social pelo PPGHIS-UFRJ Bolsista de Programa de Capacitação Institucional (PCI - CNPq) do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) [email protected] Heloisa M.Bertol Domingues Doutora em História Social [das ciências] pela USP Diretora exercício do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) [email protected] Resumo: A presente pesquisa busca analisar uma das facetas da carreira de um dos fundadores da antropologia no Brasil: Luis de Castro Faria. Formado na tradição da antropologia produzida no Museu Nacional, Castro Faria fez pesquisa nos campos, então intimamente ligados, da arqueologia e da etnografia. Este antropólogo fez durante toda sua vida pesquisa de campo viajando por quase todo país, analisando principalmente sua cultura social e econômica, observando as diferentes geografias. Como metodologia de campo fez uso da chamada antropologia ecológica, criticando conceitos que separavam os aspectos físicos de aspectos sociais, mostrando assim a importância do estudo "das relações das diversas comunidades entre si e com o meio onde viviam.” (FARIA: 1949) Dessa maneira, a presente comunicação busca fazer uma análise dos diários de viagem de Castro Faria, detendo-se especificamente na excursão que este antropólogo fez em 1949 ao estado da Bahia. Nesta ocasião, Castro Faria deteve-se especialmente na observação analítica das feiras, como a de Feira de Santa e a de Água de Meninos. Neste olhar, evidencia-se o interesse deste autor pelo estudo das relações entre os agrupamentos humanos e o meio naturais nos quais subsistem. Palavra Chaves: História da antropologia, Antropologia ecológica, Luiz de Castro Faria. Antes de tudo, é necessário ressaltar que o presente artigo representa alguns apontamentos de uma pesquisa que se encontra em curso e que se inscreve nas atividades previstas no âmbito do projeto “História da antropologia no arquivo Luiz de Castro Faria”, do Museu de Astronomia e Ciências afins. Tal projeto tem entre seus objetivos produzir pesquisas e divulgar o acervo documental de Castro Faria, que se encontra nas dependências doMAST. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 390 O acervo Castro Faria, doado em 2000 para o Arquivo do Museu de Astronomia, 1 é constituído por quase 20 mil documentos reunidos pelo antropólogo ao longo de seus 68 anos de carreira. Formado por “anotações; artigos; cadernetas de campo; mapas e croquis, fotografias; correspondências; programas de curso; documentação administrativa; fichamentos ou referências bibliográficas, relatórios de pesquisa”, entre outros documentos, representam um corpus documental muito variado e rico e de extrema importância para a história da ciência, pois, marcam não somente a trajetória de Castro Faria, mas a estruturação da antropologia com um campo de estudo no Brasil. (DOMINGUES, 2005) A pesquisa aqui proposta nasceu do contato direto e investigação desse acervo, mais especificamente das leituras dos diários de viagem de expedições de pesquisa realizadas pelo autor ao longo de sua carreira. Tais diários de viagem possuem relatos muitos detalhados de expedições de pesquisa feitas em várias partes do Brasil realizadas principalmente na primeira metade do século XX, 2 e mostra a cultura, arquitetura, clima e uma série de características das cidades visitadas pelo antropólogo. Sendo assim, no presenteartigopretendemos analisar as impressões que o antropólogo Luiz de Castro Faria deixou nos seus relatos de viagem, nos atendo principalmente a um trabalho de campo específico realizado por ele, a sua visita às feiras populares da Bahia no ano de 1949. A partir de suas anotações manuscritas em seu diário de viagem em que aponta aspectos das cidades, de sua população e a dinâmica das feiras realizadas na Bahia na metade do século XX. Luiz de Castro Faria um etnólogo Considerado uma das principais figuras que desenvolveu a Antropologia no Brasil, Luiz de Castro Faria (1913 – 2004) dá início a sua carreira em 1936 como “praticante gratuito” 3 na Divisão de Antropologia e Etnografiado Museu Nacional tendo como orientadora a vice-diretora do Museu na época a antropóloga Heloisa Alberto 1 O arquivo foi doado por Castro Faria ainda em vida e a organização contou com a supervisão e orientação do mesmo, mantendo a ordem estabelecida previamente pelo antropólogo. O Acervo encontra-se atualmente sobre curadoria de Heloisa Maria Bertol Domingues, Alfredo Wagner Berno de Almeida e Moacir Palmeira. 2 O Fundo “Cadernetas” possui mais de 15 documentos que relatam viagens cientificas de Castro Faria em cidades do Sul, Sudeste, Nordeste do Brasil. 3 O que conhecemos atualmente como estagiário. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 391 Torres. Logo depois, como “assistente voluntário” ministra seus primeiros seminários sobre arqueologia, antropologia física e etnografia. Já em 1938, fez seu primeiro grande trabalho de campo ao ser escolhido para ser o representante do Museu Nacional e do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, na que ficou conhecida como a última grande expedição do século XX: a expedição à Serra do Norte comandada por Claude Leví-Strauss. Tal expedição foi de extrema importância para a formação de Castro Faria como antropólogo. Segundo Garcia e Sorá, tal empreitada representou sua iniciação profissional e um primeiro contato direto com a etnografia inspirada por Rondônia de Roquete Pinto, cujo estilo deixa marcas nos diários de campo de Castro Faria. (GARCIA, SORÁ; 2001) Desde então, Castro Faria ingressa no quadro de funcionários do Museu Nacional como naturalista e intensifica suas pesquisas de campo concentrando seus trabalhos etnográficos e na antropologia social, “avizinhando-se criticamente da antropologia física e da antropologia biológica”. (ALMEIDA, 2006) A trajetória intelectual de Castro Faria, não nos permite que seu trabalho seja observado sob apenas uma ótica, dito em outras palavras, que classificado de acordo a “apenas uma posição na estrutura do campo da produção antropológica no Brasil”. Seus trabalhos perpassaram os diversos campos da antropologiacomo a arqueologia (tendo se dedicado especialmente a preservação dos sambaquis), a etnografia e a antropologia social, ou seja, Castro Faria empreende atividades em quase todos os domínios que definiam a antropologia. (LIMA, 2009). Dessa maneira, sua carreira conheceu diversas passagens. Na área da etnologia, entre o final dos anos 30 e 60, realizou vários trabalhos de campo por todo país, conhecendo a costa brasileira indo do litoral sul até o Nordeste, e também ao Mato Grosso no centro-oeste até a Amazônia. 4 Para ele, a pesquisa de campo era o meio de conhecer “como se forma e se desenvolve o patrimônio cultural de um povo.” (FARIA, 1999). De acordo com Domingues, Castro Faria fez antropologia ecológica tanto quanto econômica, criando um estilo científico próprio. Nesse período, com suas pesquisas de campo em que buscava compreender a organização social e as relações do homem com o meio, o que o levava observar as relações de trabalho, 4 A cronologia completa do trabalho de Castro Faria pode ser consultada no Site do Museu de Astronomia e ciências afins, no portal dedicado ao acervo do Luiz de Castro Faria http://castrofaria.mast.br/cronologia_LuizCastroFaria.pdf Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 392 comércio, indústria local, ou seja, a cultura geral. Onde se insere o trabalho realizado na Bahia em 1949. Acreditamos que o estudo dessas feiras estava inscrito no interesse do antropólogo não somente em entender as relações do homem com o ambiente em que viviam, mas também estaria relacionado as especificidades das relações economias realizadas nessas feiras. Sendo assim, acreditamos que tal estudo estava inserido na busca de Castro Faria por estudos de antropologia econômica, buscando relacionar as relações econômicas com as relações sociais estabelecidas por esses indivíduos. Acreditamos que o interesse de Castro Faria pela antropologia econômica pode ser pensado no contexto do pós-guerra, quando o Brasil ingressava aos poucos no movimento desenvolvimentista que teve seu ápice no governo de Juscelino Kubitschek. Assim, neste artigo observaremos com mais afinco um aspecto particular da carreira do antropólogo, sua atuação como etnólogo; a partir de um trabalho do campo feito nas feiras da Bahia, em um momento em que valoriza o lado econômico das relações sociais construídas a partir das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos. As Feiras da Bahia No ano de 1949, Luiz de Castro Faria atuava como naturalista do Museu Nacional e recebe o encargo de “realizar estudos de antropologia cultural,” tendo como objetivo principal realizar “um estudo etnológico das ‘feiras’ da Bahia” desde as mais famosas, como a “Feira de Santana” e a ”Feira de água de Meninos” em Salvador, quanto as mais modestas como a Feira de Bonfim e a feira da Penitenciária. 5 Segundo Castro Faria a escolha desse tema, apesar de causar certa estranheza, devido à falta de estudos naquela época sobre o papel desempenhado pelas feiras na história econômica e social do Brasil, acreditava que tal estudo é muito significativo, pois estas eram dominantes no meio rural do Brasil naquele período, e tinham um papel cultural significativo no meio urbano. Dessa maneira, Castro Faria desembarca em Ilhéus no dia 20 de julho de 1949. A primeira feira visitada por Castro Faria foi a de Ilhéus. Buscando analisá-la “nas suas verdadeiras finalidades e nas suas características mais próprias”, além de observar os produtos comercializados no local, Castro Faria se interessa, sobretudo, pela 5 CFDA – 11.03. 079 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 393 interação da população local com a feira. Nesse sentido, percebe a presença de meninos que correm de um lado para outro, trabalhando como vendedores de mingaus ou acarajé ou então fazendo o transporte das mercadorias dos compradores que vão à feira. Castro Faria, manifesta uma preocupação em conhecer mais de perto a participação ativa da população local nas feiras. Ele observa ainda o quanto a feira como lugar de socialização.Registra que “esses garotos participam efetivamente do complexo econômico” da feira, assim como a presença dos cegos cantadores, que “com suas cantigas ditam o seu ritmo”. Para Castro Faria cada um deles tinha uma participação específica e uma função para a economia da feira. Assim, percebe que a feira de Ilhéus não envolvia apenas compradores e vendedores que iam para a cidade comercializar produtos uma vez por semana, mas uma gama muito maior da população sendo essencial para a dinâmica econômica daquelas cidades. Ao observar a feira, Castro Faria faz uma análise interessante sobre a constituição e desenvolvimento dessa forma de comércio. Acredita que, A feira, nos seus primórdios, não foi mais do que um local, escolhido pelo consenso de uma população laboriosa, para a troca periódica do produto das suas atividades rotineiras. Supria a falta de construções destinadas a esse fim, as casas de negócios, e a mais a falta de qualquer sistema regular e formal de distribuição desses produtos, criado pelos próprios produtores, ou desenvolvido pelos intermediários. 6 (grifo do autor) . Dessa maneira, observa que a feira de Ilhéus é uma sobrevivência daquele estágio primitivo de comércio. Todavia, o que torna esse tipo de comércio peculiar é a participação, de um tipo especial de intermediário, que é o “feirante-barraqueiro”. Este é um vendedor ambulante, que transporta em caminhões de aluguel a sua casa de negócios, isto é, uma barraca formada por um balcão de madeira e uma coberta de lona, e várias caixas, onde são guardadas as mercadorias. O “barraqueiro”, nos dias atuais [1949], completa a função econômica das feiras. Ele é o intermediário dos produtos já industrializados, que o pequeno produtor tem necessidade de adquirir, e o faz logo que vende as suas mercadorias, pois em geral, não se demora na cidade e nem mesmo se afasta do local da feira. Mal termina os seus negócios arruma os trens e trata de voltar, porque muitas vezes deixou vazia a casa e a roça sem vigia, pois a mulher e 6 CFDA – 19.01. 016 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 394 os filhos vieram com ele, ou então ficaram por lá sozinhos e de qualquer modo deve regressar depressa. 7 (grifo do autor) Em tal passagem, Castro Faria demonstra como essas feiras semanais faziam parte do cotidiano desses indivíduos e era de suma importância para o desenvolvimento da economia local. Demonstrando o interesse do antropólogo em entender os caminhos pelos quais os grupos humanos passavam para constituírem a si mesmos “e o meio onde viviam.” 8 Sendo assim, eram essas feiras que proporcionavam a esses indivíduos um papel importante de intercâmbio de mercadorias e de culturas entre o litoral e o interior, pois eram esses “feirantes-barraqueiros” que traziam das zonas periféricas para a cidade os produtos produzidos nas regiões sertanejas e as trocavam por produtos produzidos no litoral. Como demonstrado por Castro Faria na observação dos principais produtos vendidos nas feiras de Ilhéus; A venda de carnes-secas e de sol, carne de porco e toucinho – ocupa um lugar de destaque na feira de Ilhéus. É o produto por excelência da região interior, pastoril e sertaneja, trazido ao seu melhor mercado, a zona litorânea ou interior, mas agrícola e monocultora. O litoral, em compensação, oferece camarão seco, peixe salgado e coco, além de farinha. 9 De Ilhéus Castro Faria viaja no dia 29 de Julho para Salvador com o objetivo de conhecer a feira de “Água de Meninos” que ficava na cidade Baixa. Sobre tal feira Castro Faria observa aspectos interessantes que muito a diferenciava da Feira de Ilhéus. Para ele a feira de Água de Meninos representa um estágio intermediário entre a feira periódica e o mercado fixo pois, Dizem todos em Salvador que “a feira de Água de Meninos é aos sábados”. Tal afirmativa não tem mais hoje sentido real, porque se na verdade a feira de água apresenta aos sábados novo suprimento de mercadorias, suprimento que atrai milhares de pessoas, de fato as barracas permanecem em funcionamento a semana inteira, como um mercadocomum. O sábado como “dia de feira em Água de Meninos” é 7 CFDA – 19.01. 016 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. 8 CFDA – 11.03. 079 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. 9 CFDA – 19.01. 016 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 395 uma convenção de conteúdo cultural talvez superior ao econômico. 10 (Grifo do autor) Segundo Castro Faria, o conhecimento da feira de Água de Meninos periodicamente aos sábados era uma convenção de conteúdo cultural e não econômica e o caráter intermediário da mesma oferecia uma oportunidade excelente para estudar a evolução das formas de comércio nesse período. A feira de Água de Meninos também é observada por Faria como lugar de socialização. Ela cumpria também um papel cultural, pois era utilizada não somente para troca de objetos e produtos que representavam a cultura de outras regiões, mas também era local de lazer e divertimento, pois era utilizada como pontos de encontro das pessoas que faziam uso delas e ainda demonstram como se dava a hierarquia da sociedade local. As feiras daqui ainda representam um fator de sociabilidade já inteiramente superado noutras regiões por formas diversas de associação. Os locais de feiras tornam-se locais de passeio, pontos de encontro, nos quais as bebidas e os pratos especiais ensejam entretenimentos e diversões. As feiras quase sempre, à noite, apresentam um ar de festa. Muitas vezes na música e excesso de bebidas. É evidente que os participantes dessa função formam na camada distinta, composta dos próprios feirantes, de tropeiros, barqueiros ou carregadores e demais pessoas do mesmo nível socioeconômico. As pessoas de classe média vão às feiras apenas para comprar e não se demoram nelas. 11 Ainda na cidade de Salvador, Castro aproveita para visitar a terceira feira em seu roteiro, a “Feira da Penitenciária” que ficava a 30 minutos da capital baiana. Sobre tal feira Castro Faria observa a sua semelhança com a feira de Ilhéus, pois em ambas não havia barracas permanentes e eram igualmente movimentadas. O que impressiona particularmente o antropólogo nesta feira é a imensa e variada quantidade de produtos. Nela observa centenas de gaiolas com pássaros, chapéus de couro, objetos de metal entre outros produtos vindos de diversas partes do Nordeste, principalmente do recôncavo baiano. 10 CFDA – 19.01. 016 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. 11 CFDA – 19.01. 016 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 396 Nesse sentido, Faria estabelece como hipótese a existência de um ciclo de feiras semanais realizadas “dentro de uma rede rodoviária interna, que faz da região sertaneja dos vários estados nordestinos uma unidade econômica”. Castro chega a essa conclusão graças a testemunhos constantes e observação da presença de produtos não somente de outras partes da Bahia, mas também de outros Estados do nordeste nesses mercados locais, caracterizando “área nordestina como “região econômica”, na qual a variedade de produtos sub-regionais é superada pela intensidade das trocas efetuadas.” 12 Dessa maneira, percebe refletida nessas feiras todo o Nordeste. Partindo da observação dessas feiras, Castro Faria monta um esquema de zonas em que possibilitavam a integração dessas feiras com diversas partes do nordeste e, sobretudo, um intercambio de produtos. Sendo assim divide essas zonas em três: “a local, a periférica e a regional”. 13 Para ele a expressão “regional” possui um caráter mais amplo, ou seja, referente ao intercambio com regiões mais distantes e com estados vizinhos, tendo que ser transportadas por caminhões. Já a “zona periférica” está relacionada com as áreas adjacentes do seu centro de venda e não é formada em sua maioria por produtos de pequenas lavouras ou de indústrias domésticas, e em geral transportados no lombo de animais. Por fim, a “zona local” ou “semi-urbana” que “apresenta as mesmas condições da segunda, mas as distancias são ainda menores e o vendedor em geral transporta ele próprio as suas mercadorias.” 14 Percebemos nesse ponto uma clara influencia de Raimundo Lopes no trabalho de Castro Faria. (DOMINGUES, 2010)Segundo Faria, Raimundo Lopes contribuiu para formação de vários jovens cientistas que estudaram no Museu Nacional e também para que a etnologia fosse estabelecida como disciplina universitária. (FARIA, 2010). Lopes acreditava na importância da utilização dos conceitos da chamada antropogeografia para o estudo das comunidades humanas; estabaseada no estudo das relações entre agrupamentos humanos e o meio físico. De acordo com Castro Faria, Raimundo Lopes “interessava-se muito mais por esses agrupamentos humanos, importava-se muito por esses aspectos ecológicos que pelos pormenores da técnica.” (FARIA, 2010) 12 CFDA – 19.01. 016 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. 13 CFDA – 19.01. 016 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. 14 CFDA – 19.01. 016 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 397 Para Raimundo Lopes, os objetos em geral utilizados pelos homens eram influenciados pelo meio local, ou seja, possuía a marca da terra. (DOMINGUES, 2010) Qualquer utensílio ou aparelhos utilizados pelos homens possuía um interesse geográfico: A Vassoura, o abano, caixote foram adquiridos na quitanda, na feira livre, etc., em que lugar da zona rural ou interior foram feitos? Que madeiras os fibras forneceram material para cada um desses objetos? Que caminhos percorreu, em carroça ou em costas de animal, que matuto o trouxe à cidade? Como trabalhou ele para o fazer: no rancho no terreiro, em plena mata? (LOPES, 1944) Assim, considera que os objetos também têm interesse etnográfico e entender de onde vieram, como foram produzidos, de que materiais eram feitos, como se deslocam etc., é muito importante para compreender uma comunidade e como se dava as suas inter-relações. Dito em outras palavras, o desenvolvimento de determinado produto “dependia também da história das relações sociais daqueles que exploravam a terra”. (DOMINGUES, 2010) Dessa maneira, acreditamos que a preocupação de Castro Faria em entender como circulavam e como eram produzidos os produtos vendidos nas feiras das Bahia estava relacionado à importância dada por ele em analisar a geografia local para melhor compreender aquelas sociedades. No dia 1 de agosto Castro viaja para o município de Feira de Santana, situado a 108 km de Salvador local onde era localizada a maior feira da Bahia e que dava nome à cidade. Localizada em uma das cidades mais ricas da Bahia de então a feira de Santana, impressiona Castro Faria por sua grandiosidade. Segundo Castro Faria, a Feira de Santana corresponde a um tipo tradicional de feira que possuía como função aproximar o vendedor e o comprador de gado, todavia acredita que essa função já havia sido suplantada pelos mercados internos “de produtos de uma vasta região econômica, unificada pela rede rodoviária que põe em conexão estreita todos os centros produtores no nordeste.” Castro Faria ressalta a importância dos transportes que ligam as diversas áreas do nordeste a Feira de Santana. Sendo assim, identifica 3 tipos, em primeiro lugar estão os caminhões, em número surpreendente elevado e provenientes de diferentes Estados no Nordeste ; em segundo lugar, pelo volume de carga conduzida, estão as tropas de jumentos, com os seus caçuás de cipó ou seus baús de madeira forrados de couro; em terceiro lugar está o transporte feito no lombo Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 398 de um só animal de carga ou nas pequenas carroças de duas rodas; ainda é bem frequente também o transporte individual, às costas ou sobre a cabeça. 15 Acredita que esses três tipos de transportes indicam, que assim como na feira de Água de Meninos a presença na feira de Santana de produtos de todo o Nordeste. Nesse sentido, a feira possui uma quantidade de produtos de uma variedade imensa e surpreendente, uma infinidade de alimentos, quinquilharia, utensílios, roupas entre outros produtos que seu estudo mais detalhado resultaria em várias monografias. Observa que naquela cidade a feira era tudo, ela transformava sua dinâmica determinando o seu ritmo além de ser parte integrante da sua função. “A feira é um mundo!” diz ele. No dia 5 de Agosto se desloca para a cidade de Bonfim, para participar da feira que ocorria aos Sábados. Apesar de possuir um aspecto parecido com o da Feira de Santana, a feira de Bonfim tinha um caráter mais local, observado por Castro Faria pela natureza de seus produtos, pois em Bonfim diferente da Feira de Ilhéus, de Água dos meninos e da Feira de Santana, não possuía produtos de outras localidades do nordeste. Tal pressuposto o faz concluir que Bonfim estava fora do sistema do sistema rodoviário geral. Todavia, apesar de ter um caráter mais local, a feira de Bonfim não esta de fora do esquema estabelecido pelo autor que aponta a importância das feiras para integração com as zonas periféricas, proporcionando trocas essenciais para aquela localidade. Destarte, em Bonfim também se observa a presença de produtos das zonas local, periférica e regional; No local participa sempre da feira por intermédio dos mesmos elementos: barracas de refeições, tenda de doces e biscoitos, de ferro velho e de legumes de outros tipos que se acumulam no centro urbano e que são levados ali por maior participação nos negócios da feira. A periférica também concorre em geral com um certo número constante de elementos - criações, hortaliças, frutas, produtos de pequenas lavouras de mandioca, de milho. A regional, naquele sentido amplo que lhe demos, concorre com os produtos de diferentes especializações, inclusive com os produtos de indústrias diversas. A feira de Bonfim, por exemplo, é o grande entreposto de venda da produção dos municípios vizinhos de Campo Formoso e Jaguarari, ambos grandes fornecedores de ferro em corda, de rapadura e farinha, além de frutas. Mas a região econômica no sentido mais amplo, isto é, 15 CFDA – 11.03. 079 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 399 a nordestina, concorre também com os seus produtos e as suas indústrias. O sal do nordeste, por exemplo, é um produto absolutamente indispensável à economia pastoril dessa zona sertaneja. Em troca do sal, a região litorânea recebe não só a carne, como a farinha, produzida nas áreas agrícolas que se intercalava na zona pastoril. Esta zona concorre também com couros, que em parte recebe depois beneficiado, para emprego na indústria local de calçados. 16 Dessa forma, percebemos a importância da feira semanal, pois é nela essas zonas se aproximam, se integram e se completam formando um sistema econômico vital para a vida dessas comunidades. A última feira visitada por Castro Faria é a de Jacobina, localizada a 330 km de Salvador e a 111 km de Bonfim. Apesar da feira de Jacobina ser menor que a de Bonfim, Jacobina faz parte do sistema rodoviário e possuir economia própria, e assim como as outras feiras é integrada todos os centros produtivos do nordeste. Nesse sentido, as Feiras da Bahia mostram que o trabalho local constituía-se em um sistema altamente organizado. O trabalho dos feirantes e de todos os indivíduos que se envolviam com a feira deixa claro que essas formavam sistemas com um alto nível de complexidade. Elas demonstram que a conexão entre os meios rurais e urbanos iam muita além do nível local, pois proporcionava uma integração das comunidades com regiões de toda a Bahia. Castro Faria regressa para o Rio de Janeiro no dia 28 de Agosto de 1949 após quarenta dias consecutivos de trabalho de campo. No seu relatório de resultados de pesquisa apresentado ao diretor do Museu Nacional em 4 de janeiro do ano seguinte, diz que os resultados dos trabalhos somente só seriam completos quando tivesse oportunidade de visitar as feiras de outras cidades do nordeste como Pernambuco, Paraíba e Ceará, embora acredita possuir uma sólida base para uma futura publicação sobre o significado econômico e social das feiras do nordeste. Apesar de tais publicações nunca virem a ocorrer, o relato de viagem Luiz de Castro Faria aqui descrito mostra um quadro muito rico de analises refinadas feitas pelo autor sobre as feiras da Bahia. Tais análises são institucionalizadas e teorizadas pela antropologia ecológica e econômica. Ele deixa clara a importância de que para compreender as relações sociais e culturais de uma dada sociedade é essencial observar a sua interação com o ambiente onde vive. Sendo assim, percebe que nas feiras da Bahia 16 CFDA – 19.01. 016 - Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 400 daquele período existia uma caráter geral de permuta, mesmo nas feiras mais periféricas as trocas permanentes com outras cidades eram necessárias para a satisfação de necessidades essenciais. Mas, sobretudo Faria mostra como são ricas e complexas as formas econômicas e sociais desta região do Brasil. O despertar o interesse por aquilo que leva essas sociedades se constituírem em relação ao mundo em que vivem tem como pressuposto seu posicionamento de “reconhecer as formas culturais existentes em todo território nacional em seu valor particular, e não como estágios ou margens, a serem superados ou integrados mesmo a custo de sua descaracterização.” (BRONZATO, 2013). Dessa maneira, demonstra a necessidade de cada vez mais conhecer o Brasil, (...) em cada dia do seu passado, nas transformações de cada paisagem, nas tendências de cada imperativo cultural. A nossa terra precisa ser vista, ainda mais, conhecida. As visualizações da poesia têm entretido a nossa fantasia, o pinturesco das crônicas tem feito o encanto da nossa sensibilidade. Mas é preciso mais. E só o saber, que pode ser crônica e revestir-se de poesia, nos dará com a solidez do conhecimento, a serena confiança que buscamos. (FARIA, 1999) Referências Bibliográficas Fontes textuais CFDA – 11.03. 079 - Arquivos de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. CFDA – 19.01. 016 - Arquivos de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. CFDA – 19.01. 020 - Arquivos de História da Ciência do Museu de Astronomia – MAST/MCT, Fundo Castro Faria. Bibliografia ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Trajetória em transcensus: Luiz de Castro Faria (1913-2004). In: CASTRO FARIA, Luiz de. Antropologia: duas ciências. Notas para uma história da antropologia no Brasil. (Organização de Alfredo Wagner Berno de Almeida e Heloisa Maria Bertol Domingues). Brasília / Rio de Janeiro: CNPq / MAST, 2006 FARIA, Luiz de CASTRO. A arqueologia brasileira. [c. 1960]. In: Antropologia: escritos exumados 2. Dimensões do conhecimento antropológico. (Apresentação de Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 401 Antônio Carlos de Souza Lima). Niterói: Ed. UFF, 1999-2. (Coleção “Antropologia e Ciência Política”, v. 19). FARIA, Luiz de CASTRO. Antropologia, duas ciências. Notas para a história da Antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: CNPq/MAST, 2006 FARIA, Luiz de CASTRO.. Viajar. [1942]. In: Antropologia: escritos exumados 2. Dimensões do conhecimento antropológico. (Apresentação de Antônio Carlos de Souza Lima). Niterói: Ed. UFF, 1999. FARIA, Luiz de CASTRO. Dez anos após a primeira Reunião Brasileira de Antropologia. Revista do Museu Paulista. Nova Série: 14, p. 17-37, 1936. Artigo foi republicado em FARIA CASTRO, Luiz, Escritos Exumados I, Rio, EDUFF, 1998 FARIA, Luiz de CASTRO. Um Outro Olhar. Diário da Expedição à Serra do Norte (1938), Rio, Editra. Ouro Sobre Azul, 2001. FARIA, Luiz de CASTRO. Um sábio maranhense no museu Nacional; In: DOMINGUES, H. M. B., ALMEIDA, A. W. B. de. Org. Raimundo Lopes: dois estudos resgatados. 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DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol; A marca da terra. In: DOMINGUES, H. M. B., ALMEIDA, A. W. B. de. Org. Raimundo Lopes: dois estudos resgatados. Ouro sobre Azul. Rio de Janeiro: 2010. PEREIRA, Juliana da Cunha Alves.O arranjo arquivístico e a trajetória profissional: o arquivo doantropólogo Luiz de Castro Faria. Monografia (Especialização em Preservação de Acervos deCiência e Tecnologia). PPACT-MAST/MCTI. Rio de Janeiro, 2009 GARCIA, Afrânio Raul Garcia Jr. e SORÁ Gustavo. Castro Faria, a experiência de Rondônia e a antropologia no Brasil. In: CASTRO FARIA, Luiz de. Um outro olhar. Diário da expedição à Serra do Norte. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2001. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 402 LOPES, Raimundo. Antropogeografia: suas origens, seu objeto, seu campo de estudo e tendências. Revista Nacional de educação, n 11 e 12, agosto e setembro de 1944. LIMA, Tânia Andrade de. Luiz de Castro Faria, também um arqueólogo. Brasília: CNPq, 2009. (Memórias da C&T – Série Produção Científica Brasileira). (Sem numeração de páginas). (Disponível em <http://centrode- memoria.cnpq.br/publicacoes3.html>. SIMÃO, Lucieni de Menezes. Elos do patrimônio: Luiz de Castro Faria e a preservação dos monumentos arqueológicos no Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 4, n. 3, p. 421-435, set.- dez. 2009 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 403 A IMPORTÂNCIA DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA E OS NATURALISTAS-VIAJANTES NO BRASIL *1 Lucio Ferreira Alves Fundação Oswaldo Cruz Doutor (DSc.) [email protected] Resumo: A biodiversidade brasileira sempre despertou o interesse dos naturalistas. Entretanto, por razões políticas e econômicas, a Metrópole impediu a entrada de qualquer estrangeiro na nova Colônia. Assim, exceto pelo breve período da tentativa de colonização do nordeste pela Holanda, o potencial dessa biodiversidade permaneceu virtualmente desconhecido. Com a invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão a situação mudou radicalmente. Naturalistas de diversos países da Europa puderam estudar a fauna e a flora locais. O tema deste artigo é abordar o trabalho de Grigory Ivanovich Langsdorff. Introdução As primeiras descrições sobre a flora e a fauna brasileiras são de espanto e admiração, a começar pela carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, nela o escrivão da frota de Cabral observa não poder fazer qualquer afirmação sobre a existência de ouro, prata, nem coisa alguma de metal ou ferro. Entretanto, ele prossegue, 'as águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águasque tem'. Ciente da riqueza que a nova Colônia abrigava e de sua incapacidade em defendê-la, Portugal adotou uma política de isolamento, proibindo a entrada de qualquer estrangeiro naquele território. Assim, durante três séculos, da chegada de Cabral até o início do século XIX, os estudos sobre a biodiversidade do Brasil foram feitas pelos próprios portugueses ou por pessoas designadas por eles. O naturalista mais importante que esteve no Brasil no século XVI foi, sem dúvida, Gabriel Soares de Sousa pela riqueza de detalhes com que escreveu o Tratado Descritivo do Brasil. Em seguida veio Fernão Cardim. Cardim chegou ao Brasil em 1583, onde residiu até 1598; retornou em 1601, aqui permanecendo até a sua morte em 1625, num total de 36 anos entre nós. Em Tratado da Terra do Brasil, Cardim tratou não apenas da flora e da * Parte da tese de doutorado do autor Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 404 fauna, mas também do clima, da terra e dos costumes dos índios. Ainda no século XVI estiveram no Brasil o Capuchinho André Thevet e o Calvinista Jean de Léry. A vinda de ambos está ligada à fundação da França Antártica por Villegaignon, uma tentativa de expulsar os portugueses do Brasil e estabelecer uma colônia francesa na Guanabara. O primeiro chegou em novembro de 1555, tendo permanecido até janeiro de 1556. Como resultado da sua viagem ao Brasil, escreveu as Singularidades da França Antárticaem 1558. Léry permaneceu no Brasil de março de 1557 a janeiro de 1558, e sua obra, História de uma Viagem Feita às Terras do Brasil, também chamada América, data de 1563. Como resultado da política isolacionista já mencionada, os únicos naturalistas estrangeiros importantes que chegaram aqui no século XVII foram os franceses Claude d'Abeville e Yves d'Evreux e os holandeses Willem Pies (Guilherme Piso) e George Marcgrave. Os dois primeiros, como já havia ocorrido com os seus conterrâneos no século anterior, também vieram numa tentativa de colonização por parte da França, desta feita no Maranhão. D'Abeville escreveu História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas, no qual descreve o clima, a fertilidade e a beleza da terra. Menciona ainda os índios, os pássaros, os peixes, os mamíferos e os insetos. O relato de Yves d'Evreux é semelhante ao produzido pelos que aqui estiveram anteriormente. São descritos os animais e os costumes dos índios, como os seus funerais, economia e as doenças curadas pelas plantas. Todavia, as primeiras descrições da natureza do Brasil, ou de parte dele, só ocorreram no século XVII por Guilherme Piso e George MarcGrave, membros da comitiva de Maurício de Nassau, enviado ao Brasil para a colonização do Nordeste. Como médico do Conde Maurício de Nassau, Piso pôde, ao contrário dos seus antecessores, testar, de maneira empírica, muitas plantas medicinais que ele encontrou. Piso, nome latinizado do holandês Pies, permaneceu sete anos no Brasil, regressando à Holanda, com Maurício de Nassau, em 1644. Nesse período, coletou material para escrever o primeiro tratado de medicina tropical, De Medicina Brasiliensis, cuja primeira edição data de 1648 e onde ele trata com detalhes as doenças então existentes no Brasil e como tratá-las. Piso foi também o primeiro a realizar necropsias no Brasil e a descrever o veneno do sapo cururu, Bufo viridisvulgaris. O livro era, na verdade, parte de outro escrito em parceria com Marcgrave, a Historia Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 405 NaturalisBrasíliae. Foi necessário mais de um século para que outro naturalista de renome se destacasse na história natural do Brasil. O baiano Alexandre Rodrigues Ferreira (1756- 1815) foi enviado a Portugal por seu pai em 1768 para estudar na Universidade de Coimbra, onde se doutorou em Direito e Filosofia Natural. Rodrigues Ferreira voltou ao Brasil em 1783 com a ordem do ministro da Marinha e dos Negócios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro, para averiguar os costumes do povo e o comércio dos três reinos. Entre 1783-1792, ele percorreu as capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, num total de 39.372 quilômetros. Acompanharam-no os desenhistas José Joaquim Freire e Joaquim Codina, além do jardineiro, botânico e coletor naturalista Agostinho Joaquim do Cabo. Suas coleções foram levadas para o Museu da Ajuda em Lisboa,e seus relatos de viagem estão reunidos em um volume intitulado Viagem Filosófica. Na mesma época em que Alexandre Rodrigues Ferreira realizava suas pesquisas, o vice-rei do Brasil, Luiz de Vasconcellos e Souza, ordenou, em 1799, pelo provincial frei José dos Anjos Passos, que frei José Mariano da Conceição Vellozo procedesse à coleta e estudo das plantas brasileiras. Durante oito anos, acompanhado de frei Anastácio de Santa Inez, escrevente das definições herbáceas, e de frei Francisco Solano, pintor e desenhista, Vellozo percorreu a Serra e o litoral do que é hoje o Estado do Rio de Janeiro. O resultado foi a Flora Fluminensis, uma obra monumental em 14 volumes, onde estão descritos e desenhados, incluindo indicações e nomes indígenas, 1.640 vegetais brasileiros. Com a chegada da família real portuguesa para o Brasil a biodiversidade brasileira passou a ser estudada de forma sistemática e científica. A partir daí vieram cientistas da Inglaterra Alemanha, Suíça, Estados Unidos, Suécia Dinamarca, Áustria, Itália, Rússia e França (ALVES, 2010, 2013a. 2013b). O primeiro desses homens a chegar ao Brasil, ainda no início daquele século, foi Grigory Ivanovich Langsdorff, aliás Georg Heinrich von Langsdorff. Embora tenha estado sempre à serviço da Rússia, ele nasceu na Alemanha em 1774 e morreu neste mesmo país em 1852. Sua primeira visita ao Brasil foi feita em dezembro de 1804 na condição de naturalista da expedição russa do almirante Kreuzenstern. Nesta época, esteve em Santa Catarina, mas foi uma viagem curta, tendo durado até fevereiro do ano seguinte. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. Em 1813, voltou ao Brasil, desta vez como cônsul da até 1820 dividindo o seu tempo com pesquisas em botânica e em entomologia. Em 1820, voltou à Rússia, para dois anos mais tarde ser designado pelo Czar Alexandre I com o objetivo de organizar e chefiar uma expedição científica a São Janeiro, Mato Grosso, Minas Gerais, Amazonas e Pará. A expedição chefiada por ele percorreu, terrestre, o que corresponde Gerais, Mato Grosso, Pará, A quilômetros. Foi a mais longa expedição realizada por um estrangeiro em território brasileiro, e também a mais trágica. Dos 39 homens que dela participaram desde o início, somente 12 sobreviveram. seus participantes, pela morte, por afogamento no rio Guaporé, Grosso e Rondônia, do jovem pintor Adrien Taunay e pela loucura, provavelmente provocada pela malária, que acomete ano e meio antes do previsto. Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 406 Em 1813, voltou ao Brasil, desta vez como cônsul da Rússia, cargo que ocupou até 1820 dividindo o seu tempo com pesquisas em botânica e em entomologia. Em 1820, voltou à Rússia, para dois anos mais tarde ser designado pelo Czar Alexandre I com o objetivo de organizar e chefiar uma expedição científica a São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Minas Gerais, Amazonas e Pará. A expedição chefiada por ele percorreu, de 1824 a 1829, por via fluvial e corresponde hoje aos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Mi rá, Amazonas e Rondônia (Figura 1), num total de 17.000 . Foi a mais longa expedição realizada por um estrangeiro em território brasileiro, e também a mais trágica. Dos 39 homens que dela participaram desde o início, somente 12 sobreviveram. Marcada por uma série de desentendimentos entre alguns de seus participantes, pela morte, por afogamento no rio Guaporé, na divisa entre Mato do jovem pintor Adrien Taunay e pela loucura, provavelmente provocada pela malária, que acometeu o seu chefe, a expedição terminou em 1829, um ano e meio antes do previsto. Graduandos em História das ciências – Rússia, cargo que ocupou até 1820 dividindo o seu tempo com pesquisas em botânica e em entomologia. Em 1820, voltou à Rússia, para dois anos mais tarde ser designado pelo Czar Alexandre I com o Paulo, Paraná, Rio de por via fluvial e hoje aos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas num total de 17.000 . Foi a mais longa expedição realizada por um estrangeiro em território brasileiro, e também a mais trágica. Dos 39 homens que dela participaram desde o início, Marcada por uma série de desentendimentos entre alguns de na divisa entre Mato do jovem pintor Adrien Taunay e pela loucura, provavelmente u o seu chefe, a expedição terminou em 1829, um Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 407 FIGURA 1. Roteiro Percorrido pela Expedição Langsdorff (1824-1829). Wikpédia.org/wik/Grigori Ivanovich Langsdorf. Acessado em 03/02/2008 Formado em Medicina e História Natural pela Universidade de Göttingen, aos 23 anos de idade, Langsdorff viveu em Portugal entre 1797 e 1802, onde atuou como médico do príncipe von Waldeck e aprendeu o português. Durante mais de cem anos, o acervo enviado por ele para a Rússia permaneceu guardado em uma sala do Jardim Botânico de São Petersburgo, então capital russa. Foi apenas a partir de 1930, que esse material veio a público (LUVIZOTTO, 2005; PRADA, 2000). Langsdorffconvidou para acompanhá-lo nessa missão cientistas reconhecidos como o astrônomo e cartógrafoNestor Rubzov (1779-1874), o botânico Ludwig Riedel(1790-1861) e o zoólogo Christian Hasse (1826-?), pelo desenhista Antoine Hercule Florence ((1804-1879). Mauricio Rugendas (1802-1858) foi, inicialmente, o pintor da expedição, mas, em 1824, foi desligado da expedição depois de uma discussão acalorada com Langsdorff, com quem já havia se desentendido várias vezes, sendo substituído por Adrien Taunay (1803-1828). De acordo com LangsdorffRugendas lhe dirigiu as seguintes palavras: “Para mim não importa se o senhor é cavalheiro da Ordem de um Rei ou de um Imperador da Rússia, pois vou lhe dizer mesmo assim que o senhor é um cachorro” (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997, volume I, página 208). Langsdorff remeteu-lhe uma carta descrevendo o comportamento do pintor como ‘profundamente imoral’ (volume 1, página 209), desligando-o da missão e substituindo-o por Aimé-Adrien Taunay. Ao mesmo tempo pedia que lhe entregasse todo o material pertencente à expedição, bem como os desenhos feitos para a mesma, inclusive a mula que lhe havia sido dada para a viagem. Não há registro de que isso tenha sido feito, mas Langsdorff relatou o caso ao vice-cônsul da Rússia, chamando Rugendas de ‘mau-caráter’, ‘intrigante’, ‘agitador’ e ‘provocador’ (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997, volume 1, página 211). Mais tarde, também se desentendeu com Taunay, dizendo-se satisfeito por este se ter demitido da expedição, pois evitou que o próprio Langsdorff tivesse que fazê-lo. Langsdorff comprou uma fazenda no Rio de Janeiro, a Mandioca, ponto de encontro de diversos naturalistas que por aqui passaram, entre eles von Martius, Pohl, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 408 Natterer, Mikan e Schott (membros da Expedição Austríaca) além de Eschwege, Freyreiss e Sellow. Quanto a esses dois últimos Langsdorff não apenas os hospedou, mas foi também responsável pela vinda de ambos. A Sellow emprestou dinheiro para este empreender a viagem ao Brasil. Langsdorff deixou um diário, em três volumes, onde fala da agricultura, clima, comércio, riqueza (principalmente ouro e diamantes), escravos, índios, botânica e zoologia (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997). No final do primeiro volume, ele alerta os futuros naturalistas estrangeiros para as dificuldades que iriam encontrar em suas jornadas pelo Brasil. ‘É impossível fazer uma viagem confortável neste país’, diz ele (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997, volume 1, página 372). A partir de 1828, passou a sofrer de febres constantes, o que lhe acabaria provocando a perda total da memória. Em 22 de abril de 1828, ele anotou no seu diário: ‘apesar da febre, ainda estou vivo’ (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997, volume 3, página 274) e em 13 de maio, ele diz ter estado praticamente inconsciente, com sonhos fantásticos, desde o dia 24 de abril. Ferri ([1954], 1994, página 185) salienta: ‘Langsdorff fez mais pela botânica possibilitando o trabalho de outros naturalistas do que pelas próprias investigações’, enquanto Mello-Leitão (1937) observa que devido a sua insanidade, o resultado da expedição foi nulo. A pergunta é: nulo para quem? Certamente não para o museu de São Petersburgo. E é Langsdorff que deixa isso claro: ‘Despachamos o material de História Natural coletado até agora para o seu lugar de destino que é São Petersburgo’ (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997, volume 2, página 83). Modestamente, ele acrescenta: ‘Certo de estar prestando um serviço à humanidade, mandei colher cainca, raiz medicinal muito eficaz contra a hidropisia’ (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997, volume 2, página 83. Grifo acrescentado). A expedição comandada por Langsdorff reuniu um herbário de 60.000 exemplares de plantas brasileiras que foi remetido ao museu da então capital russa (FERRI [1954], 1994). Mas a coleta de material não se restringiu à parte botânica. Foram também despachadas caixas com pássaros, insetos, peixes e minerais. Sobre esses últimos é o próprio chefe da expedição que relata: A Vila Diamantina me ofereceu muito pouco em termos de insetos, plantas, peixes ou aves, mas em compensação, em termos de cristalografia, pude formar uma boa coleção de cristais de diamantes maravilhosos: todos os dias eu adquiri um novo exemplar, um feito que ninguém antes de mim conseguiu fazer. Qualquer museu terá Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 409 orgulho em expor essa coleção um dia” (LANGSDORFF, [1826- 1828], 1997, volume 3, página 173). A condição em que se encontravam os negros naquela época, é expressa de maneira eloqüente quando ele relata que tendo um dos seus escravos contraído bouba, era melhor vendê-lo, pois o tratamento no hospital custava 9.800 réis por mês e a viagem de volta entre 4.000 e 6.000 e ele perderia de qualquer maneira o trabalho de um homem para a viagem. Assim, a ‘mercadoria ‘ foi vendida por 150.000 réis em prata (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997, volume 1, página 37). Algumas vezes, as suas observações parecem ter sido retiradas de um viajante que visitasse uma boa parte do interior do Brasil ainda hoje: Até agora o governo não tomou qualquer iniciativa no que se refere à assistência médica ou cirúrgica de seus súditos. Em toda capital da província [de Minas Gerais] existe um médico-mor e um cirurgião- mor, mas nos muitos outros locais, vilas e aldeias, não há nem médicos nem cirurgiões. Posso dizer que, diariamente, éramos abordados por doentes de todo tipo. Não estávamos satisfeitos com isso, pois víamo-nos impedidos de nos ocupar com nossos próprios afazeres profissionais: mas, ao mesmo tempo, nossa consciência cristã não nos deixava fugir da obrigação de fazer o bem e de praticar a caridade. Com esse tempo tão instável, ouvem-se muitas queixas de febre reumática e, ocasionalmente, também surgem casos de cirurgia. Conseguimos endireitar a perna quebrada de um menino de 8 ou 9 anos; É triste ter que dizer: ele ainda não havia tomado qualquer vacina (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997, volume 2, página 32). E mais adiante A falta de médicos e cirurgiões merece atenção total do Estado. A única explicação que se pode dar para a ausência do Estado nessa área é o fato de ser esta a terra mais saudável do mundo, onde as pessoas sem assistência médica, sem doenças ou mal-estares, atingem a idade de 100 anos ou mais (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997, volume 1, página 143). É claro que as pessoas não viviam 100 anos, muito menos sem assistência médica, mas, exceto pelo exagero geriátrico, a atenção que o Estado dava à saúde não parece ter mudado muito em quase dois séculos. Ele descreve ainda algumas receitas ‘medicinais’ praticadas pela população. Um dos seus guias e acompanhante lhe assegurou ter ficado curado de um abscesso crônico provocado, por uma sangria no braço direito com aplicação de um emplastro preparado Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 410 com minhoca cortada em pedacinhos, limpa de toda a terra, torrada em azeite de oliva ou gordura de miúdo de porco fresca e sem sal (LANGSDORFF, [1826-1828], 1997, volume 1, página 123). Conclusão O avanço da química e da farmacologia no século XX permitiu a comprovação científica das atividades terapêuticas de muitas das plantas medicinais mencionadas pelos natruralista e, mais do que isso, mostrou que os naturalistas europeus não vieram ao Brasil para fazer turismo. Eles sabiam perfeitamente o que queriam e o valor do que vieram buscar. Eles não vieram fazer turismo. Após um estudo detalhado com 23 espécies de plantas medicinais brasileiras mencionadas por Saint-Hilaire, Burton, Mawe, Langsdorff, Pohl, Martius e Spix, BRANDÃO e colaboradores (2006) verificaram que todas elas estão inscritas na primeira edição da Farmacopeia Brasileira, três espécies se mantiveram na segunda edição e cinco na quarta edição. Oito dessas plantas (carapa, carqueja amarga, copaíba, guaco, imbaíba, ipecacuanha, jaborandi, japecanga, pacova e sucupira) foram registradas junto a ANVISA, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, (procedimento necessário para a comercialização de qualquer medicamento no Brasil), enquanto sete (barbatimão, cainca, carqueja amarga, copaíba, ipecacuanha, jaborandi e japecanga) foram também patenteadas por empresas estrangeiras. O mercado para os produtos derivados da natureza, medicamentos, cosméticos, aromatizantes, flavorizantes, é uma realidade. A transformação do conhecimento acumulado nesta área, através do uso racional da biodiversidade, é uma oportunidade única para o desenvolvimento econômico, social e tecnológico do Brasil. Referências Bibliográficas ALVES, L.F.Plantas Medicinais e Fitoquímica no Brasil: Uma Visão Histórica, Editora Pharmabooks: São Paulo, 2010. ALVES, Lucio. Produção de Fitoterápicos no Brasil: História, Problemas e Perspectivas. Revista Virtual de Química, 2013a, 5, 450. ALVES, Lucio; Santos,P.F.P. Brazilianbiodiversity as a sourceof new medicines. Revista Brasileira de Farmácia, 2013b, 94, 307. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 411 BRANDÃO, Maria das Graças L; GOMES, C.G.; Nascimento, A.M. Plantas nativas da medicina tradicional brasileira: Uso atual e necessidade de proteção. Revista Fitos 2006, 2, 2. LANGSDORFF, G. Diários de Langsdorff: Editora Fiocruz. Rio de Janeiro, [1826- 1828] 1997. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 412 CIÊNCIA MÉDICA EM REVISTA: EMBATES ENTRE SABERES MÉDICO E TRADICIONAIS SOBRE A CURA NOS ALMANAQUES E JORNAIS, FLORIANÓPOLIS, 1950. Marcelo Sabino Martins Universidade Federal de Rondônia Professor– UNIR - Mestre [email protected] Resumo:Analisando anúncios de remédios e de médicos em jornais, revistas e almanaques que circulavam em Florianópolis na década de 1950 é possível verificar um forte apelo didático e “científico” para fazer valer a utilização desses “novos” remédios e práticas de cura. Defende-se que sejam indícios de um investimento para uma “legitimação” de um saber médico científico dado a ler e a ver, como escreve Roger Chartier, sobre este novo saber, esta “nova” Ciência Médica. Nas palavras de Michel Foucault, há ainda o exercício do poder por meio de instâncias, o que se verifica com a criação do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina – CREMESC, fundado em 1958. Criado para “regulamentar” e divulgar a prática de cura dos médicos. Assim, apropriando-se dos conceitos de representação proposto por Chartier e do exercício de poder por Foucault, tenciona-se contribuir para discussões acerca da História da Ciência e da Medicina no Brasil, de um modo geral, e em Santa Catarina, em particular, tentando identificar a sobreposição de um saber científico sobre o corpo em detrimento de um saber tradicional que, ao que tudo indica, em Santa Catarina, ocorre na virada da segunda metade do século XX. Palavras-Chave: História, Ciência, Medicina. Abstract:Analyzing advertisements of medicines and doctors in newspapers, magazines and almanacs that circulated in Florianopolis in the 1950s is possible to verify a strong educational appeal and "scientific" to enforce the use of these "new" medicines and healing practices. They are indications of an investment for a "legitimization" of a given scientific medical knowledge to read and see is argued, as Roger Chartier writes on this new knowledge, this "new" Medical Science. In the words of Michel Foucault, there is the exercise of power by means of instances, which is verified with the creation of the Regional Council of Medicine of Santa Catarina, CREMESC, founded in 1958. Created for "regulatory" and promote healing practice of physicians. Thus, appropriating the concepts of representation proposed by Chartier and the exercise of power by Foucault, it is intended to contribute to discussions about the History of Science and Medicine in Brazil, in general, and in Santa Catarina, in particular, trying to identify the overlap of a scientific knowledge about the body at the expense of traditional knowledge which, it seems, in Santa Catarina, occurs at the turn of the second half of the twentieth century. Keywords:History, Science, Medicine . Convém, a priori, esclarecer que o termo “revista”, do título, é tomado de empréstimo da obra deLudwikFleck (1986) quando este se refere às publicações médico-científicas publicadas nos periódicos Médicos (mais especificamente a Revista Arquivos Médicos da Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 413 Alemanha). Tais publicações são feitas de forma detalhada e tal como sugere Ana Carolina VimieiroGomes (2009), possuem um caráter pessoal, incerto, aberto a controvérsias. Recebem uma descrição detalhada, estão relacionadas com um caráter provisório, pessoal e, por vezes, incerto, típico dos conhecimentos publicados em periódicos. A essa publicação Fleck denominou “ciência de revista”. É desta “ciência de revista”, incerta, provisória, “experimental” veiculadas em livros, jornais e almanaques que trata o presente artigo no tocante às práticas de cura advindas do saber popular e científico. Nas décadas finais do século XX, é recorrente a“fé” nas ervas para a cura das mais diversas doenças por parte considerável da população da Ilha de Santa Catarina, porção insular do município de Florianópolis. Acredita-se que esta fé teve como seus principais disseminadores, curandeiros e boticários, além de benzedores e toda a sorte de personagens ligados à cura por rezas e ervas. Cascaes (2003) mostra que não surtindo o efeito desejado pela “poderosa” oração de espanta-bruxa, a “médica de sítio, a benzedeira-curandeira, a sinhá Marculina do Joronço”, apela para o poder das ervas: A velha terminou a oração milagreira bocejando tanto que até dava dó de se ver, mas o Zeferino, nem conta nem caso. Não tugia nem mugia. Diante do caso tão sinistro que se apresentou, a benzedeira chamou o Manuel Pereira e pediu-lhe que fosse arranjar um punhado de folha de pessegueiro, erva-de- bicho e um pouco de mostarda. Ela tomou as folhas e a mostarda, socou-as e misturou-as com sabão virgem derretido, para obter um emplastro, que colocou nas solas e raízes das plantas dos pés do Zeferino. Nada de resultado. [...] Apanhou um monte de algodão, colocou fogo e o queimou nas fossas minéricas nasais do Zeferino. Nada![...] Mandou botar uma brasa viva dentro de um copo com água, abriu a boca do Zeferino e despejou uma colherada pela goela abaixo. Porém nada sem resultado, pois o Zeferino não reclamou nem de queimadura nem de friagem. A mulher de Manuel apresentou-se água benta recolhida na sexta-feira santa, antes de o sol ser parido. Ela tomou um instrumento cirúrgico vegetal, molhou-o na água benta e deu início a mais uma operação cirúrgica espiritual: benzer o Zeferino contra o pesadelo. Persignou-se e começou a oração da benzedura: “Pai Nosso, João Cantero, bem me disse São Mateus que eu andasse onde quisesse que medo eu não tivesse nem da sombra, nem da lomba, nem daquela mais pesada, que tem as palma das mão [sic] furada e as unha entravada. Amem! Terminou a oração, mas o Zeferino não via, não ria, e não grunhia. Desanimada já um tanto, por haver esgotado todo o manancial precioso da sua medicina curandeira espiritual, tratou de descansar um pouco [...] Nesse meio tempo, a boca da noite veio, engoliu e triturou toda aquele dia tão fatídico para ela. (CASCAES, 2003, p. 37-38) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 414 Dessa história, datada por volta do ano de1950, fictícia ou não 1 , pode-se inferir que as práticas de curas religiosas eram resultantes de experimentações de rezas e procedimentos, que iam sendo “testados” um a um de modo a “acertar” qual delas poderia servir para curar o enfermo. Portanto, resultado de um conhecimento empírico e cumulativo. Também as práticas de cura religiosas, consideradas de cunho popular, caracterizavam-se por medidas pouco invasivas, quando muito “uma água com brasa”, um chá ou uma infusão de ervas, ao contrário da medicina tradicional européia, muito mais invasiva com praticas de sangrias, incisões, vomitivos e laxantes. Cascaes relaciona uma grande quantidade das ervas que ele catalogou pesquisando junto às comunidades do interior da Ilha: O chá de losna era muito usado, e o chá do reino. Eles também combinavam as rezas com os chás, algumas vezes. Se os benzedores achavam que podia ser espírito ou alma penada que estava encostada no fulano, então faziam exorcismo com remédio e aquelas benzeduras. [...] O alho era e ainda é muito usado para curar gripe, basta amassar e misturar com água fria. Baixa a pressão mas é muito bom. Era usado muito na comida. Tinha famílias que enchiam mesmo de alho o feijão que ficava com mais gosto de alho. Também nos cozidos de carne, nos ensopados, nos caldos, usavam bastante. E amarravam no pescoço das crianças para não apanhar quebranto, para não ser perseguida por bruxas. [...] Tem o chapéu de couro, ótimo para o fígado. Tem o boldo nacional, também muito bom. [...] A massanilha, muito usada pelas mulheres mestruadas, ela ajuda a aliviar [...] o limão [...] pra febre, pra gripe, intestino, estômago [...] Tem a erva santa muito boa pra acalmar o sistema nervoso [...] a marcela galega, bom remédio para as pessoas pálidas, [...] coloca-se um punhado daquela erva no vinho, com duas ou três gemas de ovo. Depois deixa-se em infusão durante nove dias e põe-se um pouquinho de canela. Ah! o amarelo lobisômico num instante fica vermelho. (op.cit, 1981, p.135-146). Além do uso das ervas como inventariado por Cascaes (1981), existiam mezinhas e remédios caseiros, como o fortificante contra o “amarelo lobisômico” como relatado pelo autor. Revisitando as pueris lembranças do tempo vivido na localidade de “Costa de Cima”, na década de 1980 e 1990, trazida à memória pela leitura do texto acima, um “remédio” 1 Fr ankl i n Joaqui m Cascaes ( 1908-1983) foi um amant e do “fol cl or e” da I l ha de Sant a Cat ar i na. Cascaes não fr equent ou os bancos acadêmi cos, nem sequer def endeu t eses sobr e a cul t ur a popul ar do l i t or al de Sant a Cat ar i na. Cont udo i nt er essou- se demasi adament e pel as coi sas e pel a gent e da “I l ha do Dest er r o” como a chamava. Pi nt ou, escul pi u, escr eveu, pesqui sou e ensi nou o cot i di ano, a vi da das pessoas si mpl es mor ador as do i nt er i or da i l ha que abr i ga a mai or par t e da capi t al cat ar i nense. Em seus escr i t os er am baseados em r el ados, cont os, causos, depoi ment os de habi t ant es da I l ha nos quai s mui t os f azem menção às pr át i cas r el i gi osas de cur a r eal i zadas por f ei t i cei r as/ os, benzedei r as/ or es que t ent avam cur ar os mal es pr ovocados pel as br uxas e pel as “f or ças fadór i cas e mal éf i cas” da I l ha. Cascaes t ambém i nvent ar i ou al gumas er vas, si mpat i as e mezi nhas ensi nadas pel os i l héus par a a cur a dos mai s di ver sos mal es f í si cos e do espí r i t o. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 415 semelhante feito pela senhora Custódia Maria de Jesus 2 chamado de “chocolate” que combatia a fraqueza, o cansaço, além de depurar o sangue, segundo a crença popular. A beberagem era preparada com as ervas conhecidas como “massanilha” ou “marcela galega”, gemas de ovos de galinha, vinho ou café e açúcar. A erva era colocada de molho na bebida, e, no dia seguinte, vigorosamente batida acrescentando o açúcar e as gemas de ovo e ao final canela em pó. Neste atar, desatar, tecer e entretecer, “trazendo à memória umas lembranças pelas outras” (VIÑAO FRAGO, 2001, p.12); recordamosde mais cuidados e práticas de cura caseiros. Para torções, hematomas, “mau jeito” nas articulações, havia o “emplastro”. Preparado com cerca de 300 mililitros de vinagre, 100 de água, farinha e sal. A senhora Maria Custódia de Jesus aquecia o vinagre, a água e o sal e ia acrescentando farinha até formar uma massa de consistência pastosa e quente, espalhava-a num pedaço de pano e colocava sobre o local lesionado. A “pasta” bem quente exalava um forte odor ocre. Aliado ao emplastro, quando necessária, uma benzedura complementava o tratamento. Munida de uma agulha, linha e um retalho “virgem” que era colocado sobre o local “emplastrado”, a senhora Maria Custória ia costurando o tecido fazendo uma cruz enquanto dizia as seguintes palavras: “Nossa senhora quando andava pelo mundo, tudo curava tudo fazia tudo benzia também eu te benzo em nome de Deus e da Virgem Maria e de São ‘Virtuoso’”. Ao final perguntava para pessoa contundida: Que cozo? E o benzido respondia: Carne quebrada, nervo torto, osso rendido. E a ela continuava a benzedura dizendo: “isso mesmo eu cozo”. Sobre a utilização do tecido na benzedura Brignol (2003, p.16) refere-se a uma “benzedeira afro-descendente de 97 anos” que identificava-se como católica e utilizava um crucifixo e uma benzedura semelhante utilizando-se de oração tal como a descrita. O que pode denotar a circulação de saberes e práticas sobre a cura na Ilha de Santa Catarina. Esses homens e mulheres eram respeitados. Tinham o carinho da comunidade que a eles ou a elas atribuíam dons de cura e de certa elevação espiritual que os capacitava a praticar benzeduras, ministrar mezinhas, chás, ervas e garrafadas. Eles são muitas vezes a primeira pessoa a quem se recorre quando se está com algum problema. Além de exercerem esses poderes curativos eram os benzedores/benzedeiras, mentores espirituais. Sabiam como lidar com as forças escatológicas, capazes de enfrentar as forças maléficas, que acreditavam ser as causadoras das enfermidades e mortes, como as bruxas, demônios, feitiços, inveja. 2 A Senhora Maria Custódia de Jesus foi avó materna do autor. Aqui o historiador-autor é ele próprio, no exercício de seu ofício, um lugar de memória. (HARTOG, 2013, p.187) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 416 Tendo em conta a maioria dos casos de doenças e mortes relatados por Cascaes (2002 e 2003), como o que aconteceu com Zeferino, por exemplo (p. 55), pode-se inferir, que os personagens das histórias atribuíam como causas as forças “maléficas, fadóricas, bruxólica, mágicas, cachinante e esconjunturante” da malinas das bruxas, servas do Lúcifer. quando depararam com o Zeferino esticado no chão, que nem um gambá surrado, com os pés, as mãos e a cara crivados de manchas roxas como amora madura. Tal coisa havia sido praticada pelas bruxas [...] (CASCAES, 2003, p.36) Noutra história intitulada “Baile de Bruxas dentro de uma tarrafa de pescaria”, Cascaes (2003, p.49-53) é narrada a triste sina de um senhor que preocupado com a doença de seus filhos gêmeos tenta de tudo para trazer saúde às crianças, chegando a procurar até mesmo um boticário. Mas, ao final, a cura é atribuída a uma benzedeira de nome Maria Gamboa. As vossas crianças tão atacada pelo terrivemáli do bruxedo e acho memo que elas táomunto chuchada. Pro pocomemo é que vances já náoperdero elas. Magi agora não vai te magip’rigo, proqu’eu já corte o sortilejo dessa frasantediscarada mula-sem-cabeça, que tão ai assentada no canto do quarto da vossa casas incuiidinhas que nem cachorro moiado. (CASCAES, 2003, p.52) Das memórias e histórias relatadas, infere-se que essa visão de mundo na qual as doenças seriam provocadas por forças maléficas como demônios e bruxas, possa ser fruto de um investimento da Igreja Católica, que desde a Idade Média alimentava tais temores junto aos fiéis. Esses temores atravessaram os séculos, encontrando guarida na sabedoria e conhecimentos populares. A visão de mundo no medievo, sobretudo até o ano de 1500 na Europa, era uma visão de mundo pautada principalmente em duas autoridades: Aristóteles e a Igreja, muito embora se saiba que o povo não conhecia “Aristóteles” e suas teorias e tão pouco participava ativamente dos cultos da Igreja (CAPRA, 2006). O sistema de organização social era orgânico que guardadas as devidas proporções se assemelha com algumas comunidades do interior da Ilha. Nesse sistema orgânico as pessoas viviam em comunidades pequenas e coesas, os fenômenos espirituais e materiais tinham uma interdependência. Havia uma maior consciência e logo, um maior embate entre esses dois tipos de conhecimentos: o intuitivo e o racional. O primeiro têm sido tradicionalmente associados à religião ou ao misticismo já o segundo à ciência”(CAPRA, 2006, p.35-46). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 417 É aventada a possibilidade de essa visão de mundo orgânica, aristotélica e cristã, que pautava as ações dos homens e mulheres até 1500, aproximadamente, ter sido mantida e transladada com fortes reverberações na Ilha-Capital de meados do século XX. Tal cogitação não parece de todo descabida se levar em conta que em 1750 o litoral catarinense recebeu cerca de 4.000 imigrantes oriundos do arquipélago dos Açores, composto por pequenas ilhas vulcânicas localizadas no meio do oceano Atlântico, praticamente isoladas, à época, do restante do mundo. Ali, voltados para si mesmos, os açorianos, quando colonizados pelos portugueses, por volta de 1400, já mantinham sua relação com o mundo, com a cura. O arquipélago dos Açores era um campo fértil para o surgimento de explicações supersticiosas sobre os vários fenômenos da natureza a que estava sujeito, tais como tempestades, terremotos, doenças. Cascaes, referindo-se ao arquipélago dos Açores e suas superstições, acrescenta: Ali [Açores] deu-se a grande superstição, plantada e trazida pelos colonos de vários grupos étnicos, entre eles espanhóis e franceses, principalmente. Colonos de vários lugares, náufragos, tudo que aparecia lá, encostava. Parecido também com o que aconteceu aqui [Ilha de Santa Catarina]. Açores estavam no caminho de tudo. Ali surgiram também muitos piratas e, por qualquer avaria no barco ficavam por lá mesmo, desertavam. Achavam uma mulher, um agasalho, e ficavam por lá trabalhando, como aconteceu aqui também. (CASCAES, 2003, p.68) A visão orgânica de mundo deveria também estar presente nas pessoas daquelas ilhas que a trouxeram guardada na memória, a qualArend (2005, p.31) “é apenas um dos modos do pensamento humano, que embora seja um dos mais importantes, é impotente fora de um quadro de referência”. Os migrantes açorianos que se instalaram na Ilha de Santa Catarina por volta de 1750 (FLORES, 1998, p.122), local com geografia semelhante a de Açores, passam a ter um “quadro de referencias”, físicas, climáticas, com tempestades, mar agitado que, grosso modo,permitiram-lhes acessar facilmente suas memórias e com elas seus usos e costumes. Também suas crenças em bruxasesuperstições, além do que, uma vez desembarcados passam a contribuir com as relações e culturas já existentes na ilha. Certeau (2006, p.151/166) sugere que é na memória que se pode encontrar a relação tempo e espaço:“A justaposição de dimensões heterônomas diz respeito ao tempo e ao espaço ou estado de ação de um determinado grupo ou indivíduo”. Tal fenômeno pode ter ocorrido com os açorianos quando se instalaram na Ilha de Santa Catarina e aqui encontram fortes referências com o seu lugar de origem, acionando assimsuas memórias. Para Certeau (2006) o mundo da memória intervém no momento oportuno e produz modificações no espaço. A Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 418 seqüência da composição do lugar, inicial, mundo da memória e suas modificações do espaço, produzem uma seqüência que tem por começo e fim uma organização espacial. O tempo fica como intermediário entre o lugar inicial, mundo da memória e modificações do espaço final, podendo ser acionada a qualquer tempo. “A memória vem de alhures, ela não está em si mesma e sim noutro lugar, e ela desloca. As táticas de sua arte remetem ao que ela é, e à sua inquietante familiaridade” (CERTEAU, 2006, p.163). O espaço de origem (Arquipélago dos Açores) ora abandonado e o novo espaço, ora habitado (Ilha de Santa Catarina), guardam semelhanças geográficas e climáticas que contribuíram ainda mais para a manutenção dos usos e costumes trazidos na memória de lá para cá e reunidos num só conjunto e com pluralidade de tempos. Os seres humanos, aparentemente, exercem um poder capaz de construir a idéia de tempo a partir da consciência de certos traços que caracterizam a experiência. O tempo não é, neste caso, uma duração contínua, reta, é mais uma obliqüidade composta por aglomerados de instantes. Para Certeau (1994) o poder de fazer renascer o passado e torná-lo presente subjaz, pois, na escuridão insondável da reminiscência. Contudo, é evidente que essa relação entre cura e religiosidade na Ilha é ainda mediada, por outras memórias, outras reminiscências, provenientes de outras visões de mundo de outros personagens, grupos que aqui estavam, ou que para cá foram trazidos, personagens como o Tio Adão, por exemplo, citado rapidamente por Cascaes (1981, p.23): Por exemplo: no Ribeirão tinha um preto que era feiticeiro, todo mundo chamava ele de Tio Adão. Ele fazia feitiço, curava, benzia, dava remédios. Era um curandeiro. Somando-se a informação de Cascaes com algumas proibições constantes do Código de Postura de Desterro de fins do século XVIII, pode-se inferir que, na Ilha de Santa Catarina, as artes de curar com ervas, eram também exercícios dos afro-descendentes, e embora possam compartilhar de um catolicismo popular dado a ler como hegemônico; guardavam valores e uma visão de mundo, também, das religiosidades africanas. Data de 1831, em Desterro (nome anterior atrubuído à Florianópolis), por exemplo, Normas de Posturas, aprovadas pela Câmara, que visavam coibir “feitiçarias ou Bangalez”: Todo indivíduo branco ou preto forro que em sua caza fizer ajuntamento de pretos, que dizem feitiçarias ou Bangalez ainda mesmo que consinta de nouteem sua Caza desamparando por esta forma a de seus senhores, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 419 incorrerá na pena de 15 dias de prizão e dez mil reis de condemnação pagos na Cadêa. (LIVRO DE POSTURAS DE DESTERRO, 1831) Para os africanos a doença poderia ser vista como uma dádiva, ou uma vingança ou castigo, dependendo, do grupo étnico a que pertencia. Na maioria das vezes a doença, como a varíola, por exemplo, podia ser vista como uma vingança. Na visão de mundo de alguns africanos e descendentes existem orixás exclusivos para as pestes/doenças humanas. Estes mesmo Orixá provocador das pestes e doenças do mundo era também o portador da cura. O orixá da terra conhecido como Obaluaiê ou Omolu ou também chamado de Xapanã. Temido e respeitado pelos africanos e seus descendentes Yorubás, este orixá também era o responsável pela cura daqueles que haviam sido por ele acometidos por pestes ou doenças, como a varíola Sendo a etiologia da varíola de ordem sobrenatural, a cura teria de acontecer prioritariamente por meio de práticas rituais; por conseguinte, e seguindo a lógica do culto a Omolu, cabia a seus sacerdotes (curandeiros) mediante procedimentos apropriados – e que provavelmente incluíam a variolização e outros rituais de purificação – aplacar a vingança de Omolu e obter dele proteção contra a peste reinante. Sabemos talvez agora a fonte do “horror” que os médicos e suas vacinas inspiravam aos populares, ao menos àqueles dentre eles que adoravam Omulu e temiam provocar a sua ira: obstaculizar a ação dessa divindade era provocar mais devastação e morte, uma noção já presente na versão do culto entre os daomeanos, e que através de saltos e saltinhos, teóricos e empíricos, que são um método mui rigoroso de escrever a história [chega-se aos tempos atuais].(CHALHOUB, 1996, p.151). Shalhoub (1996) ao se debruçar sobre as possíveis razões da incidência do movimento que ficou conhecido como “Revolta da Vacina”, ocorrido no Rio de Janeiro no ano de 1904, levanta como uma das possibilidades a relação com a visão religiosa de mundo que os africanos emprestavam às coisas da vida e da morte, assim como à doença e a cura. E como a população do Rio daquele período era composta por uma grande parcela de africanos e afros- descendentes essa visão religiosa de mundo deveria ter sido levada em conta pela autoridades médico-sanitaristas do período quando saíram vacinado a população e prometendo, assim imunizar a todos contra a varíola. Dessa forma o autor traz à tona importantes discussões acerca da maneira como os africanos e descendentes lidavam com a cura e com a doença, maneira esta que entra em divergência com a visão cientificista de combater e erradicar a doença. Disseminada e implementada pelos órgãos públicos a vacinação compulsiva da população pode ter Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 420 contribuído para a ocorrência da revolta contra a vacinação encabeçada, de um modo geral, por africanos e afros-descendentes. Alguns desses exemplos são trazidos à baila para dar uma idéia da importância de se perceber essas diferentes visões de mundo, esses diferentes tempos, vividos num único espaço geográfico e temporal. Ao historiador é preciso saber “misturar” esses diferentes tempos para não incorrer em erros e evitar maiores catástrofes. À estes tempos e suas respectivas visões de mundo, soma-se o conhecimento proporcionado pela Ciência Médica. Em princípio, supõe-se não ter sido tarefa fácil fazer valer este “novo” conhecimento” dito científico sobre a cura, posto que era incapaz de ser compreendido/apreendido pelo pensamento dos moradores do “sítio” principalmente, tendo em vista que o referencial a que estavam acostumados era que todo processo de cura deveria ser intermediada por uma pessoa que dominasse, também, o sobrenatural, o espírito. Logo, foi necessário que a classe médica, organizada em Conselhos, se apropriasse de linguagens e identificações que mostrassem, permitissem que essa nova realidade social, ou visão de mundo, fosse “construída, pensada, lida e dada a ver” (CHARTIER, 2002, p.13-28). Esse processo é por vezes difícil e complexo, demandando tempo e esforço: A passagem de um sistema de representações a outro pode, desde logo, ser entendida simultaneamente como uma ruptura radical (nos saberes, mas também nas próprias estruturas do pensamento) é como um processo feito de hesitaçoes, de retrocessos, de bloqueios” (BACHELARD, apud CHARTIER, 2002, p.52) Os próprios médicos organizam-se e anunciam seus serviços, cada vez mais especializados. Em 1950 anunciavam-se em jornais. Cada qual possuía uma especialidade: “Clinico Geral, Moléstias de Senhoras, Parto, Doenças Nervosas”. Como se pode observar na figura abaixo: Há a constante repetição da formação dos médicos, como que a atestar a capacidade e o aval da ciência, como se pode observar nos anúncios dos médicos abaixo: Figura 1: Anúncios de Médicos Fonte: Jornal O Estado 29 jan 1950 Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 421 Da década de 1950, também é grande o número de propagandas e anúncios no Jornal “O Estado” de remédios “preparados” industrialmente, para combater moléstias como a sífilis, doença que entre outras coisas afastava o trabalhador da indústria. O que era visto como um grande prejuízo para o povo brasileiro que se constituía como nação. Sobretudo, a partir do espaço urbano, por meio de um processo de mitificação do trabalho com os discursos paternalistas e nacionalistas de Getúlio Vargas (1930) que enobreciam o trabalho. O trabalhador era chamado para que, com seu labor, engrandecesse e enriquecesse a si e a pátria. Todavia o que se constata é um aumento de um processo de industrialização que contraditoriamente ao dito empobrece cada vez mais determinados setores da classe trabalhadora. Figura 2: Anúncio do Elixir 914 Fonte: Jornal O Estado 10 jan 1950 No anúncio é possível observar a gravura de dois homens. Enquanto um homem fala e gesticula o outro parece acabrunhado, ancorando a cabeça com a mão numa posição de desânimo. Lê-se ainda as inscrições “não faça isso” “não desanime! Trate-se!. O que sugere que o homem deve se tratar da doença que contraiu, provavelmente quando da visita a algum prostíbulo na cidade, visto que a sífilis era, à época, associada à prostituição. Note-se que o Elixir que promete combater a sífilis recebe, segundo o anúncio, a aprovação do “D.N.S.P.” Departamento Nacional de Saúde Pública, o que sinaliza para uma mudança na visão da saúde, que de uma condição individual e privada passa a ser tutelada pelo Estado, que analisa e avalia o que deve ser mais indicado para o tratamento dessa ou daquela doença. Noutro anúncio escolhido para compor este texto, pode-se perceber um processo de controle e de medicamentação do corpo feminino. No remédio oferecido no anúncio pode-se ler uma série de problemas relacionados ao ciclo reprodutivo da mulher. Chamada novamente ao lar na tentativa de implementar o modelo familiar burguês em que o homem é o provedor e a mulher a responsável pelos filhos e pelo lar. Assim esta mulher precisa ter sob forte controle Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 422 e constantemente “regulado” as suas “regras” bem como manter uma suficiente ovulação para garantir novos braços à nação. Figura 3: Anúncio Regulador Xavier Fonte: Jornal O Estado 14 jan 1950 E para aqueles, homens ou mulheres analisados, avaliados e considerados inaptos para o trabalho ou para a reprodução por um discurso científico encampado pelo Estado, havia a possibilidade de se tornar um provedor ou dona de casa e mãe exemplares, para tanto bastaria tomar regularmente o fortificante abaixo indicado, que também é licenciado pela Saúde Pública e conhecido de “grandes médicos”. Figura 4: Anúncio Vanadiol Fonte: Jornal O Estado 13 jan 1957 Além dos anúncios nos jornais, o consumo desenfreado de remédios, fortificantes e xaropes e tantos outros produtos industrializados voltado para o processo de medicamentação do corpo, ganha reforços significativos com a publicação e distribuição dos almanaques de farmácia, cuja leitura por parte da população é confirmada pela, entre outros estudos, pesquisa elaborada por Brandini (1999). Desde 1945 o Almanaque Renascim/Sadol tem servido de veículo para os anúncios e informações acerca das “novas” maneiras de tratar o corpo. Constituintes de uma rica fonte para trabalhos e pesquisas voltados para a área de medicamentação da sociedade, os Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 423 almanaques são trazidos para esta pesquisa para contribuir, por ora, com dois argumentos propostos: o primeiro acerca do uso inteligente por parte dos laboratórios de um conhecimento já disseminado na população sobre o poder das ervas para vender os xaropes e demais produtos e de utilização da leitura e da palavra, mais uma vez, para disseminar o saber médico científico para a população. Como pode-se conferir nas figuras a seguir: Figura 5: Anúncio do Melagrião Fonte: Almanaque Renascim-Sadol 1970 p. 7 Mesmo nas décadas de 70 e 80 do século XX é presente a preocupação em manter o corpo são e apto para o trabalho e para a “procriação. Para tanto os laboratórios apelam para as propriedades curativas e estimulantes de elementos da natureza como mel, ou mesmo para os chamados princípios ativos das ervas e plantas, invocando a “seiva do agrião”, sendo utilizados até mesmo no nome do xarope, neste caso. Figura 6: Anúncio do Extrato Composto de Catuaba Composto Fonte: Almanaque Renascim-Sadol 1980 p. 17 Neste outro anúncio, para além da já conhecida vulgarmente propriedade afrodisíaca da catuaba, como um estimulante natural, ela é aqui apresentada como um concentrado “extrato” capaz de garantir “potência para todo o organismo”. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 424 Talvez essa apropriação do poder curativo atribuído às ervas pelos laboratórios farmacêuticos, conforme foi possível verificar nos anúncios dos almanaques, seja uma maneira encontrada pelos próprios Laboratórios Industriais para aproximá-los de seus consumidores já que a população, de um modo geral, já estava acostumada a utilizar ervas e produtos naturais para aliviar suas dores e curar suas doenças. Havia na população da Ilha de Santa Catarina, como foi possível verificar através dos estudos realizados por Franklin Cascaes, o hábito de usar dessa “fitoterapia caseira” receitada, em grande medida, pelos benzedores/as, curandeiros/as, feiticeiros, por essas pessoas que, num primeiro momento, se encarregavam das artes de curar. Também outro recurso utilizado, é a apresentação de depoimentos de pessoas, muitas vezes famosas, onde estas se apresentam como uma “consumidora” de determinado produto e através daquele depoimento atesta a eficácia do mesmo, este recurso é bastante utilizado pelos médicos no inicio de suas carreiras na cidade no início do século XX. Quanto a utilização da palavra e da leitura estimulados pela publicação e distribuição dos almanaques, cogita-se ser, mais um artifício dos médicos e, principalmente das indústrias de remédios, para convencer essa população, tanto a burguesa já mais familiarizada com o saber médico, quanto aos populares que, nas décadas de 70 e 80 estão a morar nos morros e periferias de Florianópolis. Figura 7: Anúncio do “Expectorante Sian” Fonte: Almanaque Renascim-Sadol 1973 p. 30 A figura parece deixar evidente esse caráter didático-pedagógico assumido pela medicina científica na Ilha-Capital, que passa a adquirir uma visão mais científica do mundo, que ganha destaque nas duas últimas décadas finais do século XX. Ao menos é essa a visão de Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 425 mundo que se percebe ao analisar os anúncios dos remédios industrializados, constantes dos almanaques de farmácia. Ao apresentar um homem, cuja identificação aparente (roupas brancas e óculos) remete a um médico ou cientista, mostrando o desenho esquemático do que se assemelha ao sistema respiratório humano. Nele indicava o que provocava a tosse e explicava o funcionamento do remédio que atuava na eliminação do problema. A relativa repetição de figuras como essa nos almanaques analisados faz pensar sobre a possibilidade de uma “pedagogia” do corpo por meio da Medicina e da Ciência. Não mais parteiras, curandeiros, benzedores, ervateiros, feiticeiros, a cura do corpo passa a ser um “fenômeno” perfeitamente explicado e estudado pela Ciência, assim como as tempestades, a chuva, os ventos, fenômenos naturais, os quais eram considerados como uma manifestação da vontade divina. A eficácia desse novo método de cura proporcionado pelos remédios industrializados e pela ação do médico tem sua eficácia mostrada, dada a ler aos moradores da Ilha-Capital através desses anúncios que ensinavam o “funcionamento” do corpo humano e a atuação desses remédios e “cirurgias” num processo de medicamentação do corpo que é colocada em oposição aos métodos e ao saber popular de cura. Embates entre saberes que possuem em sua essência, a mesma gênese, qual seja, o conhecimento humano. Referências Bibliográficas ARENDT, H.Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva: 2005. BRANDINI, M. P. Historias e leituras de almanaques no Brasil. Campinas/SP. 1999. BRIGNOL, J. M. Bordados do destino: Saberes das mulheres afro-descendentes na passagem do século XIX ao XX na capital de Santa Catarina. Florianópolis: UFSC. Dissertação de Mestrado em História. 2003. CAPRA, F.O ponto de mutação: A Ciência, a sociedade e a Cultura emergente. São Paulo: Cultrix. 2006. CASCAES, F. 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Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 427 A GEOMETRIA VEICULADA NOS LIVROS DE MATEMÁTICA PARA A ESCOLA BÁSICA ESCRITOS POR AUTORES MINEIROS NO MOVIMENTO DA MATEMÁTICA MODERNA Marger da Conceição Ventura Viana Universidade Federal de Ouro Preto Doutora [email protected] Pedro Henrique da Silva-licenciando Universidade Federal de Ouro Preto Bolsista CNPQ [email protected] Resumo:Neste artigo são analisados conteúdos de matemática disseminados em livros didáticos escritos por autores mineiros durante o Movimento da Matemática Moderna (MMM) no estado de Minas Gerais, recortedeste movimento no Brasil, com ênfase na Geometria. Justifica-se, porque livros didáticos elementos fundamentais para a pesquisa do trajeto histórico da educação matemática, enquanto objeto e fonte de pesquisa, são importantes elementos da cultura escolar presentes na relação professor aluno e no processo de ensino/aprendizagem das disciplinas por armazenarem saberes construídos por gerações, em especial da Geometria. É utilizada a análise documental de André Cellard, livro didático Alain Chopin, História e das Disciplinas Escolares André Chervel, escrita da História Fernand Braudel e do MMM Wagner Valente e Marger Viana. Sobre conclusões, análises preliminares indicam coexistiro novo e o antigo com relação à Geometria Euclidiana e a incipiente presença da geometria das transformações. Palavras-chave: História da Educação Matemática, Livro didático, Movimento da Matemática Moderna. Resumen: En este artículo se analizan contenidos de matemáticas diseminados por los libros de texto escritos por los autores del estado de Minas Gerais en el Movimiento de Matemática Moderna (MMM), recorte de este movimiento en Brasil, con énfasis en la Geometría. Se justifica porque los libros de texto son elementos fundamentales para la investigación de la trayectoria histórica de la educación matemática; en tanto que objeto y fuente de investigación son elementos importantes de la cultura escolar presentes en la relación profesor-alumno y en el proceso de enseñanza/aprendizaje de las disciplinas para almacenar conocimientos construidos por generaciones, en especial de la Geometría. Se utilizó el análisis documental de André Cellard, del libro de texto de Alain Chopin, Historia de las disciplinas escolares de André Chervel, de la escritura de la historia de Fernand Braudel y del MMM de Wagner Valente y Marger Viana. Acerca de las conclusiones, análisis preliminares indican que lo viejo y lo nuevo coexisten con respecto a la Geometría Euclidiana y a la incipiente presencia de la geometría de las transformaciones. Palabras clave: Historia de la Educación Matemática, libros de texto, el Movimiento de la matemática moderna. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 428 I. Introdução A Educação Matemática no Brasil, embora recente, já é um campo que concentra pesquisas com enfoques diversos. Entre esses está a História da Educação Matemática no qual esta investigação se insere, particularmente na História das Disciplinas Escolares, a Matemática, por meio de livros didáticos de matemática escritos no período do Movimento da Matemática Moderna (MMM) iniciado no Brasil por volta da década de sessenta do século XX. Assim, eleger a disciplina Matemática como alvo de estudo, visando os conteúdos escolares, também está de acordo com André Chervel que considera a história das disciplinas escolares relevante “não somente na história da educação, mas na história cultural” (CHERVEL, 1990, p.184). No entanto, escrever a história do MMM se constitui um desafio para os pesquisadores da Educação Matemática, pois a história não é seu objeto de estudo. Assim, foi necessária uma incursão, ainda que breve, ao campo da história para conhecer, estudar e utilizar ferramentas conceituais de outro campo do conhecimento, assim como novas ferramentas metodológicas para diferentes abordagens em vista de apreender o sentido do fazer historiográfico. Para Braudel (2009), livros textos (ou didáticos ou, ainda manuais escolares), são importantes do ponto de vista pedagógico para o processo de ensino/aprendizagem das disciplinas constantes dos currículos escolares, pois armazenam saberes construídos por gerações, consequentemente sua existência é dependente do contexto social, político e econômico de uma época. Eles estão geográfica e historicamente determinados, como produto de uma certa sociedade num determinado tempo. Nessa perspectiva, o objetivo desta pesquisa é analisar e comparar conteúdos de Geometria veiculados em livros textos (ou didáticos ou, ainda manuais escolares) de matemática, escritos por autores mineiros no período do MMM. Assim se delimitou o tempo e o espaço. Com isso a pesquisa se deu sobre conteúdos de geometria veiculados em livros de matemática para a escola básica, no período em que se considera haver ocorrido o MMM no estado de Minas Gerais. A relevância social do trabalho reside no fato de que seus resultados podem contribuir para o entendimento e melhor compreensão dos problemas atuais referentes aos currículos e principalmente ao processo de ensino/aprendizagem da Matemática. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 429 Com isso, a pesquisa tem caráter qualitativo é realizada a partir de livros didáticos utilizados em Minas Gerais durante o MMM e nomeadamente escritos por autores mineiros apoiando-se em estudos sobre o MMM, a História das Disciplinas Escolares e dos Livros Didáticos. Isto porque livros didáticos são considerados objeto e fonte de pesquisa, como importantes elementos da cultura escolar presentes na relação professor aluno. Para Valente (2008a, p. 143), “no caso de matemática, (...), os livros didáticos constituem-se em elementos fundamentais para a pesquisa do trajeto histórico da educação matemática”. Assim, entre os autores que dão suporte teórico-metodológico, destacam-se, em relação ao MMM, Valente (2005, 2008a, 2008b) e Viana (2004), sobre o livro didático Chopin (2000), em relação à História das Disciplinas Escolares Chervel (1990), análise documental, André Cellard e Braudel (2009) para escrita da história. Para Chervel (1990), a primeira tarefa do historiador das disciplinas escolares é o estudo dos conteúdos que compõem o ensino da disciplina, o que foi feito neste trabalho. Assim, o objetivo foi analisar conteúdos de geometria veiculados nos livros mineiros, buscando subsídios para a compreensão do estado atual da escolarização em Matemática, pois conjectura-se que há relações da Educação Matemática atual com o MMM. Educadores matemáticos de hoje foram formados sob a influência desse movimento, usando livros objeto deste estudo. Em resumo, a questão é esta: como a Geometria foi tratada nos livros didáticos de matemática para a escola básica escritos por autores mineiros à época do MMM que caracteriza este movimento em Minas Gerais? Como no Brasil o MMM é objeto de diversos estudos em alguns estados, mas ainda carece de pesquisas sobre o mesmo em Minas Gerais e pela importância de Osvaldo Sangiorgi nesse movimento, por atuar em sua divulgação em eventos e cursos e, principalmente por seus livros, distribuídos até fora do país, julgou-se importante comparar conteúdos de geometria contidos em seus livros com os dos autores mineiros deste estudo. O estudo comparativo tem sentido, pois de acordo com Chervel (1990) em cada época, o ensino dispensado pelos professores é, grosso modo, idêntico, para a mesma disciplina e para o mesmo nível. Todos os manuais ou quase todos dizem então a mesma coisa, ou quase isso. Os conceitos ensinados, aterminologia adotada, a coleção de rubricas e capítulos, a organização do corpus de conhecimento, mesmo os exemplos utilizados ou os tipos de exercícios praticados são idênticos, com variações aproximadas (CHERVEL, 1990, p. 203). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 430 Além de enfocar o MMM em MG, que ainda carece de pesquisas nesse estado,a comparação dos conteúdos dos livros textos de autores mineiros com os propostospor Oswaldo Sangiorgi, se justifica, pois se trata de um proeminente professor, escritor de livros textos principalmente à época do MMM, quiçá no Brasil, o ator principal. Isto pode ser justificado, pois seus livros atingiram o auge, segundo Wagner Rodrigues Valente “produzidos à casa dos milhões, os textos de Sangiorgi fizeram escola”(VALENTE, 2008, p. 149). Seus livros ultrapassaram as fronteiras do Brasil tendo sido aceitos em alguns países da América do Sul (VALENTE, 2008, p. 156).Além disso, segundo Bertoni (2010, p.307), “com sua dinâmica prática profissional, Osvaldo Sangiorgi marcou historicamente a modernização da disciplina Matemática em nosso país”. O estudo está sendo efetivado tomando como base livros didáticos de matemática produzidos por autores mineiros na década de sessenta e início da de setenta do século XX, e se apóia em diferentes estudos que envolvem o MMM. O caminho percorrido foi: escolha do período a ser investigado, seleção de autores de livros didáticos do período, localização/aquisição dos livros, leitura e seleção de categorias de análise para posterior comparação. Selecionados autores e seus livros, foram compostas as coleções para serem analisadas. Seguimos Chervel (1990), para o qual a primeira tarefa do historiador das disciplinas escolares é o estudo dos conteúdos que compõem o ensino da disciplina. Assim, foram identificados os conteúdos de geometria dos livros dos autores mineiros selecionados e a geometria contida nos livros de Oswaldo Sangiorgi, com base em trabalhos realizados por outros autores e o nosso. Com isso,procurou-se identificar como diferentes autores de livros didáticos trataram o ensino de geometria a partir das sugestões e ideias decorrentes do MMM. Além do estudo dos conteúdos dos livros, já concluído, tarefa sugerida por Chervel (1990), verificar-se-á as funções exercidas pelos livros didáticos, a partir da leitura interpretativa dos textos, a exemplo da apresentação do conteúdo, da apresentação gráfica, da contextualização e da correção. Pois segundo Choppin (2004, p. 505), “o estudo histórico mostra que os livros didáticos exercem quatro funções essenciais, que podem variar consideravelmente segundo o ambiente sociocultural, a época, as disciplinas, os níveis de ensino, os métodos e as formas de utilização”. São as seguintes: 1. Função referencial.2. Função instrumental3. Função ideológica e cultural. 4. Função documental. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 431 2. O Movimento da Matemática Moderna Nas décadas de 30 e 40 do século XX, em Nancy (França), o grupo Bourbaki buscou a unificação da Matemática em estruturas gigantescas, a algébrica e a topológica, unidas pela estrutura de espaço vetorial. Nesse contexto, pensou-se em reformular o ensino de Matemática na escola pré-universitária, tendo como objetivo a modernização, pela reformulação dos conteúdos a serem abordados, aliando-se ao tipo de Matemática ensinada na universidade (VIANA, 2004). Este estudo de Viana (2004) demonstrou que a atualização do currículo da Matemática decorreu das ideias do matemático Felix Klein no início do século XX, que sentia necessidades de reforma do ensino de Matemática, o que de fato ocorreu após as duas guerras, na década 50 do mesmo século. Da ideia de atualização passou-se à de modernização. Este esforço gerou um movimento que ficou conhecido como o Movimento de Matemática Moderna (MMM). E o que é ou foi a Matemática Moderna? Segundo o autor português José Matos (2006), Designa-se por Matemática Moderna uma reforma curricular que ocorre um pouco por todo o mundo entre a segunda metade dos anos 50 e a primeira metade dos anos 70 do século passado. Trata-se de um movimento procurando renovar fundamentalmente o ensino da Matemática. Um seu traço marcante é a preocupação com uma renovação dos conteúdos, adotando grandes eixos organizadores do currículo, que vai ser centrado em grandes estruturas que na época se pensava estarem na base de toda a matemática conhecida (MATOS, 2006, s/p). Nos EUA, que muito contribuíram para a difusão do MMM na América Latina, principalmente com financiamento, a reforma do currículo de Matemática começou a ser feita em 1952, pela Comissão de Matemática Escolar da Universidade de Illinois, presidida pelo professor Max Beberman (VIANA, 2004). Mas segundo Viana (2004) os EUA contribuíram com o movimento de forma financeira e os europeus com a ideologia, com o que concorda Matos (2006): A origem das idéias é essencialmente européia (francófona, espanhola ou italiana) e apenas Gonçalves refere materiais anglo-saxónicos como uma via alternativa. Contrariamente ao que é por vezes referido, nenhum destes autores menciona a rivalidade com os países de Leste ou o lançamento do Sputnik como motivação para os seus trabalhos. Todos procuram melhorar o ensino da matemática como condição essencial de progresso do país, quer de Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 432 aproximação a outros países europeus, quer como fator de desenvolvimento econômico, social e cultural (MATOS, 2006, s/p). Para Ruiz e Barrantes (apud VIANA, 2004) as causas do MMM, se devem à ação dos matemáticos das universidades, à ideologia e à filosofia da matemática, e ao contexto político e histórico do pós-guerra. Segundo Viana (2004) e Matos (2006), a Organização de Cooperação Econômica Européia (OCEE) reuniu, em 1958, na França representantes de 20 países e realizou, em 1959, o Seminário de Royaumont com 60 professores de 20 países, quando se prescreveram linhas centrais da Reforma pré-universitária e políticas de implementação, tendo como objetivo unificar esforços que vinham sendo desenvolvidos em diversos países como a Bélgica, Estados Unidos, França e outros. No mesmo trabalho de Viana (2004), pode se ver que outras reuniões se seguiram: 1960 em Arthus na Dinamarca, sob os auspícios do International Comite of Mathematical Instruction (ICMI), e outras duas em Zagrev e Dubrovnik na Yuguslávia; em 1961 é fundado o Comitê Interamericano de Educação Matemática(CIAEM) para a reforma do ensino de Matemática, apoiado pelo ICMI, UNESCO, Organização dos Estados Americanos(OEA), Fundação Ford, Fundação Rockefeller, Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos, e outros; em 1962 a reunião foi em Bolonha, 1963 em Atenas, 1969 em Lyon França e continua até hoje. A última CIAEM realizou-se em 2011 no Recife, Brasil, e será realizada em 2014, na Costa Rica, no entanto hoje a CIAEM não está mais centrada em reformas, mas em pesquisas em Educação Matemática. O Brasil recebeu várias influências. As mais marcantes foram as de Georges Papy (no PREMEM), de Zoltan Dienes, no Rio Grande do Sul e do grupo americano School Mathematics Study Group (SMSG) em São Paulo e do Grupo de Estudos em Ensino de Matemática (GEEM) fundado por Oswaldo Sangiorgi introdutor da Matemática Moderna nos livros-texto brasileiros, podendo-se dizer até mesmo no Brasil. Sangiorgi participou das primeiras reuniões americanas a respeito das mudanças nos programas de Matemática, organizou no Brasil, congressos sobre o Ensino de Matemática e ministrou cursos sobre Matemática Moderna em vários estados do país. No entanto, segundo Viana (2004), as propostas de Matemática Moderna não eram uniformes: O grupo francês, por exemplo, preconizou Álgebra Linear desde o artigo curso ginasial. Já o belga insistiu nas transformações geométricas. Nos EUA Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 433 destacou-se o School Mathematics Study Group (SMSG), cuja proposta eram conteúdos tradicionais acrescidos de outros, como conjunto, mudança de base, estudo de congruências, desigualdades, matrizes, lógica simbólica, Álgebra de Boole, grupo, anel corpo. Já Zoltan P. Dienes (inglês, professor da Universidade de Sherbrook, Canadá, no período) enfatizou o uso de material concreto e transformações em planos finitos e estruturas algébricas (VIANA, 2004, p.31). Ainda segundo Viana (2004), ocorreram influências nos conteúdos: numeração com bases não-decimais, enfatizando algoritmos de mudança de base; propriedades dos conjuntos numéricos em exercícios de preenchimento de lacunas com falso ou verdadeiro; funções e coordenadas cartesianas a partir da 6ª série; inequações; trinômio do 2º grau, como função quadrática. Houve supervalorização de sentenças matemáticas na resolução de problemas e valorização da Álgebra em detrimento da Geometria. Muitos professores, não dominando os novos conteúdos, repetiam o que continham os livros-textos. Não abordaram a Geometria de Transformações e abandonaram a euclidiana. 3. A Geometria das Transformações Uma transformação geométrica no plano é uma aplicação bijetora do conjunto de pontos do plano sobre si mesmo. As principais transformações no plano euclidiano são reflexões em retas, translações, rotações, reflexões centrais e homotetia. A imagem de uma figura por uma transformação geométrica é o conjunto de pontos que são imagens de pontos de figuras pela transformação. Para Alves (2005, p. 57) “no processo de ensino-aprendizagem um conceito não pode simplesmente ser reduzido à sua definição, e é através da contextualização por meio de diferentes atividades e situações-problemas que ele adquire um significado para o aprendiz.” Segundo este autor, pode-se lançar mão de ferramentais que dão suporte pedagógico ao ensino-apredizagem de alguns conceitos matemáticos ligados à Geometria. Associando o estudo da Geometria à arte, desenvolvem-se habilidades de percepção e de visualização dos conceitos geométricos. Assim, Alvescaracteriza o ensino da geometria das transformações desta forma, pois é possível utilizar diferentes contextualizações principalmente a arte para abordar seu processo de ensino-aprendizagem. A geometria das transformações teve seus primeiros passos no período do renascimento. Segundo Mabushi (2000), os arquitetos se interessaram pela representação plana de figuras espaciais a partir do ponto de vista constituído pelo próprio olho. Desenvolveram o estudo da Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 434 projeção central, ainda chamada de projeção cônica, e, em particular, a noção de ponto de fuga. No século XV surgiram alguns elementos de perspectivas. A relação entre a arte e a Matemática também era forte na obra de Leonardo da Vinci (1452-1519), e a mesma combinação de interesses artísticos e matemáticos se encontra em Albrecht Durer (1471- 1528), na Alemanha. As noções renascentistas sobre perspectiva matemática seriam expandidas mais tarde para um ramo da geometria. A preocupação dos pintores e artistas em representar objetos do espaço fez surgir a idéia de projeções centrais e paralelas e, Consequentemente, aparecerem as noções de geometria projetiva e de descritiva, importante na gênese do conceito de transformações. Um personagem importante na história da Geometria das Transformações e, de certa forma, também do MMM foi o Matemático Alemão Felix Klein. Felix Klein (1849-1925), matemático alemão, impressionado com as possibilidades unificadoras do conceito de grupo, dedicou-se a desenvolver, aplicar e popularizar tal conhecimento. Numa aula inaugural em 1872, quando se tornou professor na Universidade de Erlangen, mostrou como o conceito de grupo podia ser aplicado para caracterizar as diferentes geometrias elaboradas até o século XIX na conferência que ficou conhecida como Programa de Erlanger. Além disso, desenvolveu importantes trabalhos tais como, investigações sobre geometrias não-euclidianas - reconhecimento de duas classes de geometrias elípticas; e contribuição no campo da topologia. A época do MMM foi a primeira vez que se propôs o ensino da Geometria das Transformações no Brasil. Assim a análise de livros didáticos feita nesta pesquisa verifica o que de fato foi disponibilizado sobre esta Geometria. Segundo Bastos (2007) no ensino básico e secundário, fala-se em transformações geométricas. De uma maneira geral se pensa nas isometrias-translações, rotações, reflexões e todas as composições destas. No entanto, quando se aborda o conceito de semelhança no ensino básico, raramente se trabalha o tema encaixado no das transformações geométricas do plano ou do espaço. Normalmente, limita-se a falar de figuras semelhantes, em especial triângulos (lados proporcionais e ângulos congruentes) e utilizar isto em exercícios e problemas. 4. A pesquisa Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 435 Este trabalho, de caráter qualitativo, apóia-se em diferentes estudos que envolvem o Movimento da Matemática Moderna, a História dos Livros Didáticos, inserindo-se na História da Educação Matemática, mais precisamente na História das Disciplinas Escolares. O valor do livro didático como fonte de pesquisa para indicar a ligação entre textos didáticos e a matemática escolar no país, é citada por Wagner Valente (2005), talvez seja essa disciplina que mais tenha atrelada sua trajetória histórica aos livros didáticos, pois desde as origens de seu ensino (enquanto saber técnico militar) até sua promoção a saber de cultura geral escolar, sua trajetória histórica de constituição e desenvolvimento pode ser lida nos livros didáticos (Valente 2005, p. 151). O método de coleta de dados foi a análise documental, pois segundo Cellard (2008) é opção adequada para trabalhar com os livros didáticos. Para esse autor, esse tipo de metodologia exige uma análise preliminar das fontes analisando o contexto em que o documento foi produzido, sua natureza, confiabilidade, etc. Assim, foram analisadas as capas, prefácios, folhas de rosto, buscando elementos para analisar a natureza, a linha editorial, os aspectos materiais, os conteúdos tratados, exercícios e problemas propostos e os modelos apresentados. Assim, considerando os livros didáticos como objeto e fonte de pesquisa, dada sua importância como elemento da cultura escolar presente na relação professor aluno, o presente estudo se propôs a analisar o que estava sendo produzido e quais eram os aspectos matemáticos que deveriam ser seguidos pelos autores de livros didáticos de Matemática da época do MMM. Para Chervel (1990), a primeira tarefa do historiador das disciplinas escolares é o estudo dos conteúdos que compõem o ensino da disciplina. Assim, foi realizada a análise da apresentação dos conteúdos de Matemática Moderna pelos autores em seus livros-textos. E para fazer a interpretação dos textos dos documentos usados como fontes, é necessário o conhecimento prévio da identidade do autor, seus interesses e motivos que o levaram a escrever. Para isso foram consultadas entrevistas (CARVALHO, 2010), concedidas pelos autores vivos e traços de biografias encontradas em documentos, como por exemplo em Valente (2008). Foi feito um estudo dos conteúdos de livros didáticos de Matemática de autores de Minas Gerais como Reginaldo Naves de Souza Lima e Maria do Carmo Vila e de Mario de Oliveira, Antonio David de Souza Sobrinho e Alceu dos Santos Mazzieiro, pois o foco do trabalho é essa produção. Vale a pena citar outro autor que em Minas Gerais escreveu livros Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 436 textos com Matemática Moderna, o professor Henrique Morandi (falecido em 2010). Suas obras estão sendo adquiridas em “sebos” para posterior pesquisa. No entanto, como o MMM teve maior ênfase em São Paulo, principalmente com Osvaldo Sangiorgi um dos precursores do MMM e recordista de venda de livros contendo Matemática Moderna em todo o Brasil, seus livros-textos foram analisados com o objetivo de comparação. Para organização do trabalho, os livros a serem analisados foram agrupados no que chamamos coleção, por autores, formando cinco coleções. Foi realizada uma análise comparativa dos conteúdos dos livros das 5 Coleções centrada, inicialmente, nos conteúdos das obras, pois de acordo com Valente (2008), baseando-se em Chervel, (1990), os conceitos ensinados, a terminologia adotada, a organização da seqüência de ensino e dos capítulos, o conjunto de exemplos fundamentais utilizados ou o tipo de exercícios praticados nos livros didáticos são praticamente idênticos ou apresentam pouquíssima variação. Essas poucas variações, que envolvem, por exemplo, um ou outro exercício ou exemplo, é que justificam as diferenças entre as produções didáticas. Neste contexto, a análise dos conteúdos faz todo o sentido. No entanto, segundo Choppin (2004), outros caminhos (internacionais) vêm sendo seguidos a partir dos estudos iniciais que versavam tão somente sobre o conteúdo interno dos livros -textos: [...] a pesquisa desenvolvida sobre o livro escolar de início dizia respeito ao próprio produto, ou seja, essencialmente ao seu conteúdo (product-oriented researches); apenas recentemente os historiadores têm se interessado pelas diversas etapas que balizam a existência de um livro (process-oriented researches) sem deixar de privilegiar alguma delas, como as reações e as críticas que podem ser suscitadas pelos livros didáticos (reception-oriented researches). (CHOPPIN, 2004, p. 563). Para Valente (2008a) “como produto cultural complexo, o livro didático de matemática deverá ser compreendido para além do conteúdo de matemática que encerra”. Daí, a análise do conteúdo por si só, não é capaz promover uma história da Educação Matemática. Dessa forma, foi importante conhecer mais profundamente a biografia dos autores dos livros a serem analisados, para possibilitar desvendar os motivos e razões que os moveram a escrever, para que as conclusões pudessem ser melhor fundamentadas. Neste sentido, foram aproveitadas as entrevistas realizadas com autores mineiros por Alexandre Vasconcellos (2009) e Allana Carolina de Carvalho (2010). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 437 Essas entrevistas auxiliaram a compreensão das escolhas dos autores por um ou outro caminho seguido e os motivos de suas obras permanecerem ou não no mercado. De fato, no dizer do pesquisador francês Choppin (2004), atenção deve ser dada a “diferentes etapas na trajetória de existência de um livro: aquelas que tratam da concepção, da produção e da difusão da obra (CHOPPIN, 2004, p. 563). Além dessas etapas há, ainda, o interesse relativo à pesquisa do uso e da recepção que se faz do livro didático. Para tanto, Choppin pondera que há questões fundamentais a serem respondidas, como: Que tipo de consumo se faz deles? Seguem os educadores fielmente o texto didático? O papel de determinado livro está ligado à consulta ou à sua simples “decoração”? (CHOPPIN, 2004, p.565). Nesta pesquisa, foram agrupados livros-textos, por coleções, e analisados seus conteúdos. Foram analisadas cinco coleções, mas nesse artigo citaremos três, detalhando duas. Na sequência, algumas respostas às questões de Chopin. Noutro artigo ofereceremos respostas mais completas. 5. As Coleções estudadas As Coleções foram constituídasde livros dos autores selecionados para a pesquisa, pertencentes a uma das autoras, adquiridos ao longo de sua vida acadêmica, pois suas pesquisas na área datam da década de 80 do século XX. A Coleção I foi formada por livros de Reginaldo de Sousa Lima e Maria do Carmo Vila; a Coleção II, por livros de Mário de Oliveira; a Coleção III, por livros de Osvaldo Sangiorgi; a Coleção IV, por livros da dupla Antonio David de Souza Sobrinho e Alceu dos Santos Mazzieiro, denominada de DaviMazi; a Coleção V, por livros de Alceu Mazzieiro Foram analisadas cinco coleções, mas nesse artigo detalhamos duas. 5. 1 A Coleção I Chamamos Coleção I a intitulada:Matemática para o Curso Fundamental, dos autores Reginaldo Naves de Souza e Lima e Maria do Carmo Vila, considerando os volumes 1, 2 , 3 e o caderno de exercícios referente ao vol 1, que denominamos Vol 1a, cujas capas foram escaneadas e estão contidas na figura 1, a seguir, porém com a numeração 5, 6 e 7 correspondentes à nomenclatura 5ª. , 6ª. e 7ª. Séries do então chamado Ensino Fundamental. Não foram analisados os cadernos de exercícios devido ao objetivo desse estudo, análise dos conteúdos tratados nos livros textos e não cadernos de exercícios ou manual do professor, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 438 embora isso seja importante para uma análise mais completa e que será feita num trabalho posterior. O 1.o primeiro volume da Coleção I contém 272 páginas, apresentando os conteúdos separados por “unidades”. Uma característica interessante da Coleção é a utilização de histórias em quadrinhos que sugerem aos alunos interagir com elas. O rigor característico do MMM com a linguagem matemática aparece nas definições. São destinados à Geometria 5% do livro. A Unidade “Explorando o Espaço Geométrico” apresenta: o plano, a reta, semirretas e semiplanos. O 2.o segundo volume da Coleção I contém 276 páginas e também apresenta os conteúdos separados em “unidades” por meio de histórias em quadrinhos, porém em número menor. Embora se usem histórias e crianças como protagonistas, a Matemática ainda é tratada com rigor. Quanto à Geometria tratada na última unidade, contempla plano, reta e semirreta e brevemente transformações de unidades de medida de comprimento e de ângulos. Na sequência, a figura ilustra um tema incluído no terceiro volume desta coleção I. Figura-Homotetia Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 439 Fonte: Lima e Vila (1973, p.109) O terceiro volume contém 259 páginas, apresentando os conteúdos também separados em “unidades”. É possível ver que todos os capítulos são abordados sob o manto da teoria de conjuntos. A Unidade III foi denominada Estudo Ingênuo da Geometria Afim (estudo da Geometria afim por meio das transformações lineares e métodos vetoriais): espaços de pontos, soma de flechas, reta, paralelismo de retas, plano, projeções paralelas, etc., incluindo a “proposição” de Tales); e o IV denominado Complementos à Geometria Afim (grupo de transformações - rotações, reflexões e translações) Os Quatro Pilares da Geometria Afim, O Plano Afim tem Estrutura Vetorial, Notação de Grassman, Fórmulas de Chasles, Intervalos Reais e Partes importantes da Reta. São destinados 40,1% do livro à Geometria, focadas as sugestões do MMM. Por exemplo: translações e homotetias, assuntos que, em geral, não foram vistos nas demais obras, são abordados de forma interessante e com ilustrações. 5.2. A Coleção III Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 440 Formamos a Coleção III pelos livrosMatemática Curso Moderno para os ginásios (1º. volume e 4º. Volume), Matemática 2 Curso Moderno para cursos ginasiais e Matemática 3 Curso Moderno para cursos ginasiaisdo autor Osvaldo Sangiorgi. Denominamos os livros por volume1, volume 2, volume 3 e volume 4. Foram obtidas cópias dos anos 1965 (Vol 2), 1966 (Vol 3), 1968 (vol 1) e 1969 (Vol 4); as diferentes datas não significam renovação masreimpressões ou novas edições, pois esses livros tiveram inúmeras edições. O 1.o volume é de 1968, 11.ª edição, e contém estas informações: “Prêmio Jabuti (1963) em Ciências Exatas, outorgado pela Câmara Brasileira do Livro” e “Homenagem à 1.ª Olimpíada de Matemática do Estado de São Paulo (1967)...” É destinado à 5.a série. Na primeira página já se percebe a utilização de ilustrações compreensivas. A Geometria é apresentada no Capítulo 4 – Medidas: Polígonos, Circunferência, Área de figuras planas (quadrado, retângulo, paralelogramo, triângulo, trapézio, círculo), Volume (cubo, paralelepípedo retângulo, prisma, cilindro reto, pirâmide reta, cone circular reto). Medida de ângulos planos. São destinados à Geometria 15,5% do conteúdo do livro. Uma característica da Matemática Moderna desenvolvida neste livro-texto é o entendimento de determinado conteúdo segundo práticas experimentais em sala de aula: Classes Experimentais – Laboratório de Matemática. O 2.o volume é de 1965. Nele o autor agradece aos colegas do GEEM que contribuíram com “magníficas sugestões e discussões de certos tópicos”. Em uma parte do livro-texto denominada “Razões Especiais”, o autor relaciona razões com conteúdos de outras disciplinas, como Física, Geografia e Química. Este volume não apresenta conteúdos de Geometria. O terceiro volume é de 1966. Nele o autor homenageia o V Congresso Brasileiro de Ensino da Matemática realizado em janeiro de 1966, no CTA, em São José dos Campos, pelo GEEM de São Paulo. E anuncia ao aluno, no Prefácio, que a Matemática vai ser mais interessante. Sangiorgi fala sobre o estudo da Geometria no 3.º ano como o “bom-bocado”. E diz ao aluno: “Agora, não será mais preciso que você ‘decore’ enfadonhos teoremas e mais teoremas, contra o que, erradamente alguns colegas mais adiantados costumam ‘preveni-lo’” (SANGIORGI, 1966, p.15). Diz também: “se deduzir é uma das principais qualidades de ‘ser racional’, o estudo da geometria o fará mais racional ainda!” Em “Fazendo Geometria” apresenta: ponto, reta e plano; topologia; semirreta, segmento de reta, semiplano; ângulos; polígonos; congruência de triângulos; teoremas; quadriláteros; Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 441 circunferência (arcos). Foram destinados à Geometria 63,3% do livro. Apesar do anúncio, no corpo do texto tudo foi apresentado da forma tradicional, diferindo pouco de Mário de Oliveira, a novidade, Geometria das Transformações, está colocada num Apêndice. XI Encontro Nacional de Educação Matemática Curitiba – Paraná, 18 a 21 de julho de 2013 Anais do XI Encontro Nacional de Educação Matemática – ISSN 2178-034X Página 13 O 4.o volume é de 1969, 4.ª edição. Nele o autor homenageia a Segunda Conferência Interamericana de Educação Matemática, realizada em Lima-Peru, em dezembro de 1966. A figura 5 ilustra como a Geometria é apresentada no Capítulo 3. Semelhança. 1.ª parte - Razão e proporção de segmentos, teorema de Tales; 2.ª parte - Semelhança de triângulos, polígonos, razões trigonométricas de ângulos agudos; 3.ª parte - Relações métricas no triângulo retângulo, Teorema de Pitágoras, relações métricas num triângulo qualquer, relações métricas no círculo; 4ª parte - Polígonos regulares, relações métricas nos polígonos regulares, medida de circunferência. A Geometria apresentada é a euclidiana, e ocupa 36,2% do livro. O autor apresenta também um Apêndice, com os seguintes conteúdos: números complexos; áreas de regiões planas, práticas usuais e mapas topológicos. 6. Considerações Os livros de Lima e Vila (1972a, 1972b, 1972c, 1973), cuja publicação foi interrompida devido ao fechamento da Editora Vega, apresentam a Geometria por meio do estudo das transformações lineares e espaços vetoriais, enquanto que Sangiorgi (1968,1965, 1966,1969) apresentou em um apêndice a Geometria de Transformações, embora tenha prometido ao aluno outro tratamento à geometria. Os livros de Oliveira (1971, 1972a, 1972b) e DaviMazzi ((1973) apresentam a Geometria Euclidiana. Os de Lima e Vila ((1972a, 1972b, 1972c, 1973) e os de DaviMazzi (1973) utilizam histórias em quadrinhos ao gosto dos estudantes. Os textos dos autores mineiros ficaram restritos a Minas Gerais, que sofria forte influência de São Paulo, principalmente de Sangiorgi e sua Companhia Editora Nacional, aceitos em todo o Brasil, com o Programa de São Paulo. Quanto à utilização da linguagem da Teoria dos Conjuntos, ocorreu principalmente na Álgebra. Foi possível compreender, no processo de ensino-aprendizagem, relações entre as propostas de ensinar Matemática Moderna contidas nesses livros e as ideias de renovação defendidas pelos promotores do MMM. Entretanto, embora este estudo ainda não esteja Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 442 completo, análises preliminares indicam que não houve padronização quanto ao conteúdo e à forma de tratá-lo. De certa forma, foi incorporada pela cultura escolar a partir do MMM, a linguagem dos conjuntos para o tratamento de equações, funções e conjuntos numéricos. Quanto à Geometria, apesar de poucas tentativas de mudanças, pois muito pouco foi encontrado nos textos estudados, à exceção de Lima e Vila,que são bastante representativos para este estudo, permaneceu a Euclidiana. Talvez os brasileiros tenham seguido o grito de Omar Catunda: “No Brasil pelo menos Euclides!” (VIANA, 2004). Concluindo, embora o estudo ainda não esteja completo, análises preliminares indicam que não há padronização em relação tanto ao conteúdo quanto à forma de tratamento. No entanto, a ideia de Chervel (1990), de que os sistemasantigos permanecem nas disciplinas escolares, no momento em que o novo se instala, coexistindoo novo e o antigo, parece ocorrer com relação ao enfoque dos teoremas e algo incipiente, a presença da geometria das transformações. Como complementação desse estudo, pretende-se análises para além dos conteúdos dos livros textos, pois o que já foi feito, ainda consideramos insuficiente. Referências Bibliográficas ALVES, Antônio Maurício Medeiros. Livro didático de matemática: uma abordagem histórica Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Federal de Pelotas. 2005. 178f. BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. 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ISBN 978-85-62707-52-0 444 RELATOS DE VIAGEM EM EMBATE: “RONDONIA” X “AO REDOR E ATRAVEZ DO BRASIL” * Mariah Martins Mestre HCTE-UFRJ [email protected] Resumo: Este trabalho pretende compreender a atuação do campo científico brasileiro no início do século XX a partir do estudo da construção de relatos de viagem de dois cientistas brasileiros. Edgard Roquette-Pinto, médico e antropólogo, e Alípio de Miranda Ribeiro, zoólogo, trabalharam ambos no Museu Nacional, primeira instituição científica do país, e participaram ativamente da Comissão Rondon, (Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas 1907-1915). Dada a importância da Comissão Rondon, que proporcionou intensas experiências a diversos cientistas brasileiros, será aqui priorizada a relação que esses cientistas desenvolveram com a mesma. Buscaremos, a partir da análise da produção e escrita do diário de campo dos dois cientistas, apontar alguns aspectos que estavam em voga na constituição das ciências e dos cientistas no Brasil, como a importância da experiência de uma viagem que tem como justificativa o trabalho de campo e a elaboração de um diário de viagem. Ao fim do trabalho pretendemos obter possibilidades acerca do ideal e da representação que se pretendia da ciência brasileira nas primeiras décadas do século XX, influenciados por uma tradição cientificista do século XIX e ao mesmo tempo caracterizada por um período de transição. Palavras-chave: Relato de viagem, cientistas, Comissão Rondon. Abstract: This woks aims to understand the performance of Brazilian scientific field in the early 20th century from the study of production the travel reports of the two Brazilian scientists. Edgard Roquette-Pinto, doctor and anthropologist, and Alipio de Miranda Ribeiro, zoologist, worked at the National Museum, the first scientific institution in the country, and participated actively in the Rondon Commission (Commision of Strategic and Telegraph Lines from Mato Grosso to Amazon 1907-1915). Given the importance of the Rondon Commission, which provided intense experiences to several Brazilian scientists, here will be prioritized the relationship developed between these scientists and the Commission. Starting from the analysis of the production and the travel report of both scientists, we point out some aspects that were in vogue in the constitution of science and scientists in Brazil, such as the importance of the experience of a trip that is justified by the field work and the development of a travel journal. At the end of work we plan to obtain possibilities concerning the ideal and representation what was expected of Brazilian science in the early decades of the 20th century, primarily from its ideal and representation that was influenced by a scientific tradition of the 19th century. Keywords: Travel reports, scintists, Rondon Commission. * Este texto faz parte da dissertação de mestrado da autora defendida no dia 08 de julho de 2013, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulada “CIÊNCIAS, VIAGENS E MITO: o estudo do campo científico brasileiro no início do século XX a partir de relatos de viagem de cientistas da Comissão Rondon”. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 445 A Comissão Rondon, Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMA), foi palco para o desenvolvimento de diversos naturalistas advindos de importantes instituições científicas da então Capital Federal, como o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil 1 . Mas foi o Museu Nacional, da cidade do Rio de Janeiro, o principal contribuinte na formação de uma comissão de ciências naturais inserida na própria CLTEMA, além de ter sido o receptáculo de grande parte dos materiais adquiridos durante a viagem. Dessa forma Alípio de Miranda Ribeiro se torna o primeiro zoólogo a participar da comissão, assim como o primeiro naturalista a ser convidado para essa missão, sendo também responsável pela indicação de outros nomes que ocupariam o lugar das pesquisas nas áreas correlatas. Edgard Roquette-Pinto será o antropólogo da CLTEMA durante alguns meses do ano de 1912, tendo, antes de sua participação em campo, tratado de materiais etnográficos que recebera no início desse mesmo ano vindos da região de atuação da CLTEMA. O próprio Rondon mantinha os trabalhos de campo dessa área a seu cargo. Outros naturalistas do Museu Nacional também tiveram participação, indo a campo ou mesmo no tratamento dos materiais já na sede da instituição, como o botânico Frederico Carlos Hoehne, e os naturalistas Emil Stolle e Henrique Reinisch. Mas foi a existência de um tipo de material que extrapola os limites da ciência objetiva que fez de Miranda Ribeiro e Roquette-Pinto os protagonistas dessa história. Na Seção de Memória do Museu Nacional 2 , sediada no Paço Imperial na Quinta da Boa Vista, se encontra no arquivo pessoal de Miranda Ribeiro seu relato da viagem feita durante os anos de 1908 a 1910 como zoólogo da CLTEMA. Esse relato não teve uma 1 O Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil é criado em 1907, ocupando o cargo de diretor Orville Derby, que atuou nas mais importantes organizações da área desde a monarquia brasileira, como já abordado, a Comissão Geológica do Império (1875), foi chefe da Seção de Geologia do então Museu Imperial (1879), e chefe da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886). Subordinado ao Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, o Serviço tinha como objetivo “realizar o estudo scientifico da estrutura geológica, dos meios e recursos mineraes da Republica, e a colleta de informações sobre a natureza dos terrenos (...)”. BRASIL. Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. 1907, Imprensa Nacional: Rio de Janeiro. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2274/ Acesso em 15 de junho de 2011 2 A Seção de Memória e Arquivo (SEMEAR) do Museu Nacional tem sua criação motivada pelo Projeto Memória do Museu Nacional/UFRJ desenvolvido nos anos 1990. Com o objetivo de organizar e divulgar a documentação arquivística da instituição e suas informações. A SEMEAR tem hoje um extenso número de fundos e coleções referentes aos cientistas e à instituição, onde se encontra o Fundo Alípio de Miranda Ribeiro. Informações ver: http://www.museunacional.ufrj.br/MuseuNacional/Principal/ARQUIVOHIS.htm Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 446 publicação integral, e o que há no arquivo é um encadernado de 141 páginas contendo a narrativa de seu primeiro ano de viagem, e outras cadernetas e cadernos de campo, que aparentemente não foram unidos à primeira compilação, referentes à continuação de seu percurso. De forma geral parece bastante clara a existência das intenções autorais do naturalista, que desejava a construção, e consecutivamente, a publicação do relato de viagem como obra. Em 1912 é publicada a primeira parte da viagem na revista Kosmos 3 , e nesse mesmo ano, também tem parte do relato publicado na revista bilíngue Brasilianische Rundschau 4 , tendo ainda outra publicação de trechos do diário em 1920 na Revista do Brasil 5 , como continuação da publicação na primeira revista citada. Não há nenhum indício de que haja alguma publicação posterior e completa do relato que fora intitulado como “Ao redor e atravez do Brasil”. Assim como o zoólogo e outros participantes das “Comissões Rondon”, incluindo o próprio chefe, o antropólogo Edgard Roquette-Pinto ao participar da CLTEMA, durante quatro meses de 1912, produz uma obra por meio de seu relato de viagem que, de maneira bem distinta, ganha amplos rumos e várias edições, tornando-se sob certos aspectos uma obra de referência. “Rondonia: anthropologia – ethnografia” é o livro de Roquette-Pinto onde relata sua viagem ao então estado do Mato Grosso. Obra largamente conhecida, reverencia o trabalho do chefe da comissão no título e que mais tarde daria nome à região percorrida 6 . Em 2005 o livro chega a sua 7ª edição numa parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz e a Editora da Academia Brasileira de Letras 7 , instituição a qual Roquette-Pinto era membro, num fac- símile da primeira edição, de 1917 do volume XX dos Archivos do Museu Nacional, incluindo a apresentação e todos os prefácios. 3 A Kosmos, Revista Artistica, Scientifica e Literaria, teve sua primeira publicação em 1904 seguindo até 1920. Seus exemplares se encontram na Biblioteca Nacional e no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Parte inicial do diário de viagem de Miranda Ribeiro é publicada no ano V da revista. 4 Na página 6 do encadernado do diário de Alípio de Miranda Ribeiro há uma nota de rodapé sobre essa publicação, feita no ano II, nº 2, da revista, em Fevereiro de 1912. Existem 3 exemplares da revista na Biblioteca Nacional, muito poucas informações temos sobre o periódico. 5 A Revista do Brasil foi criada em 1916 na redação do Jornal O Estado de São Paulo e discutia problemas fundamentais para o Brasil e seu direcionamento futuro. A Biblioteca Nacional possui alguns exemplares da revista em seu acervo de periódicos. Na página 62 do relato de Miranda Ribeiro, há uma nota de roda-pé em que o autor revela que o capítulo “Excursão à Jacobina” é publicado nessa revista, nº49, em Janeiro de 1920, com o título “Na bacia do Prata”, sem explicar o porquê desta inversão. 6 Pelo Decreto-lei nº 5.812, de 13 de setembro de 1943, a região que pertencia aos estados do Amazonas e Mato Grosso, é estabelecida como Território Federal do Guaporé. E somente em 1956 a região passa a ser reconhecida como o Território Federal de Rondônia. Disponível em: http://www.rondonia.ro.gov.br/conteudo.asp?id=180. Acesso em: 15 de outubro de 2011. 7 A Academia Brasileira de Letras é detentora de grande parte do acervo pessoal de Edgard Roquette-Pinto, possuindo um conjunto de mais de 6.000 documentos textuais compreendendo os anos de 1871 e 1956. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 447 Os relatos de forma alguma almejavam um caráter neutro. O período da história do país assim como a circulação de ideias na instituição à qual os cientistas eram filiados proporcionam uma direção para os pensamentos e para a maneira de expô-los, não necessariamente a favor dos ideais mais difundidos. De qualquer maneira, nas narrativas é possível constatar a presença das principais reflexões em voga no campo da elite intelectual, e igualmente de valores constituintes da CLTEMA desenvolvidos anteriormente. As experiências das significativas mudanças no cenário econômico e social na segunda metade do século XIX brasileiro, como a abolição da escravidão em 1888, a entrada de imigrantes na região sul do país, o desenvolvimento da rede de transportes, e a Proclamação da República em 1889 povoavam o país de projetos e promessas para o futuro, suscitando um desejo de inserção no cenário político mundial. A expansão do mercado econômico mundial abriu espaço para a economia brasileira de produção agrícola. A urbanização, auxiliada por estas transformações, não diminuiu a disparidade entre litoral e interior brasileiro, todavia essas terras anteriormente pouco exploradas já produziam para os mercados urbanos, sendo também imprescindível para o crescimento da economia brasileira o desenvolvimento na região interiorana do país. (COSTA, 1999) A Guerra do Paraguai, ocorrida entre os anos de 1864 e 1870, impulsionou novamente às discussões políticas a questão da fragilidade da fronteira do Brasil, já que o conflito entre os países sul-americanos, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, é iniciado pela transposição da fronteira sul do Mato Grosso pelo exército paraguaio. A inesperada dificuldade encontrada para se derrotar o Exército paraguaio, considerado muito inferior ao brasileiro, deixou latente a situação de atraso na organização e infraestrutura do Exército brasileiro num momento de busca pela modernidade em âmbito mundial. A guerra gerou igualmente discursos de descontentamento em relação à identidade nacional do povo brasileiro, considerado como disperso e sem espírito cívico, uma das causas do fracasso nas expectativas relativas a essa guerra. (DIACON, 2006, p.20) O relato é feito de desejos, projetos, curiosidade e surpresa. A partir da vivência num mesmo empreendimento os dois cientistas produzem interessantes materiais de valor significativo para a história das ciências no Brasil, que, tendo em comum o mesmo gênero letrado, contudo exibem análises opostamente singulares. Desde os mais simples comentários até a trajetória e recepção das obras observa-se os caminhos distintos na construção dos relatos de viagem, que não diminuem, e muito contribuem, para a riqueza e desenvolvimento Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 448 dessa análise. “Atravessar o Brasil fôra sempre aspiração minha; eu o preferiria, mesmo a qualquer digressão por terras mais antigas, em geral tão apreciadas pelos meus patrícios. Vêr de perto as extensões enormes da minha patria, estudar a sua natureza, eis ahi o que eu considerava uma necessidade para mim, que abracei o estudo da zoologia aplicada ao Brasil”(RIBEIRO, 1908, p.1) 8 Miranda Ribeiro inicia sua narrativa com uma introdução “aos leitores”. Intitulada por essa mesma expressão, seu capítulo introdutório ratifica o desejo por uma recepção da obra não concluída por outrem. A Introdução, produzida a posteriori, apresenta uma reflexão conclusiva inicial do significado da viagem como um todo, além de reafirmar sua presença nessa viagem não apenas como uma conveniência, mas principalmente por um mérito pessoal que excede os limites do bom funcionário, esbarrando no merecimento do filho digno da pátria mãe. Na Introdução, o zoólogo procura ainda informar “aos leitores” a forma como conceberá a narrativa, valorizando o tempo ao longo das anotações diárias, considerando esse “o processo mais seguro” para a composição. Ribeiro apresenta os objetivos de mais essa missão, “revelar a natureza do trabalho executado por épocas certas” e “fornecer a viajantes futuros uma fonte segura de informações”. Ribeiro prezava pela verdade nas informações passadas visualizando a importância de seu trabalho e da própria história da qual estava fazendo parte, e tinha a intenção de ser lido e estudado. Seria ingênuo pensar que não visualizavam a relevância do empreendimento que faziam parte, e que por serem relatos pessoais eles não teriam interesses em sua recepção. Outrossim Ribeiro em sua última fala supracitada presume a existência de viagens e viajantes futuros, considerando de grande relevância a experiência em uma viagem a campo para a pesquisa científica. É importante elucidar aqui a “viagem” que se faz, igualmente, na construção do relato de viagem enquanto obra. A viagem e a escrita dessa experiência começam antes mesmo da partida, pois que é necessária uma preparação intelectual, técnica e pessoal, como demonstra Ribeiro em seu capítulo introdutório, para seguir viagem. Assim, como não se faz um diário somente com escolhas daquele presente, a posteriori serão modificados termos e estruturas daquele relato que é, em termos de representação, a viagem. O diário é a viagem e ao mesmo 8 As referências a Ribeiro nesse capítulo são todas relativas ao relato da viagem feito com a CLTEMA, nesse caso ao “Livro A.”, seu diário de viagem intitulado “Ao redor e atravez do Brasil” que, assim como os cadernos e cadernetas de campo, se encontra no fundo Alípio de Miranda Ribeiro no Museu Nacional. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 449 tempo não é, sendo o que restou daquela experiência, e ao mesmo tempo, sendo algo construído também fora de sua vivência. O trecho a seguir retirado do diário de Miranda Ribeiro ilustra a viagem não literal e ao passado que uma viagem literal, no espaço/tempo real, proporciona, além de referenciar esse caráter da própria construção do diário de viagem que perpassa o tempo. A minha terra, o Brasil, existe há 400 anos; dispondo de uma extensão territorial verdadeiramente fantástica, das florestas mais belas da superfície da terra, de uma multiplicidade espantosa de formas vivas, - ignora quase completamente o que possui! Onde os livros didáticos ‘escritos’ na nossa língua? Os que são encontrados nas escolas, pode-se dizer, reproduzem a natureza da França com especialidade. Entretanto já a velha Europa está farta de saber o que nós temos. As principais obras sobre a natureza brasílica estão nas revistas das academias e sociedades científicas da Inglaterra, da Alemanha, da Áustria, da America do Norte e, por fim da França. E porque isso sucede? Porque é que os europeus e os norte-americanos conhecem melhor a nossa natureza do que nós? Porque eles já aprenderam que o conhecimento exato de todas as coisas é o melhor meio de tirar delas ‘todas as vantagens possíveis para nossa vida na terra. Vivemos na Natureza e da Natureza; precisamos, portanto, conhecê-la. E como chegaram os estrangeiros ao melhor conhecimento do Brasil do que os brasileiros? Muito simplesmente por meio das expedições que sucedem, seja qual for o custo em que importem e ás quais nem sempre estão alheios os governos das nações á que pertencem os excursionistas. (RIBEIRO, 1908, p.3-4) Miranda Ribeiro desejava ser objetivo em sua narrativa, escrever o que viu e viveu, se dedicando em primeiro lugar à ciência, com especial atenção aos problemas zoológicos. Destarte, desde o momento do adeus ao Rio de Janeiro até a chegada em terras mato- grossenses, percurso que se estendera de 27 de junho de 1908 até 17 de julho do mesmo ano, o zoólogo perpassa cidades ao sul do país e capitais sul-americanas descrevendo a imagem dessas cidades, características geográficas, sociais e obviamente detalhes da fauna e flora locais. Pode-se encontrar no diário de viagem de Miranda Ribeiro aspectos que definam a ordenação da obra. São percebidos do início ao fim, já que a estrutura primordial da construção da narrativa se dá numa linearidade espaço/temporal, descrevendo a cada dia onde se encontravam e o que faziam. Os aspectos primordiais que concernem ao gênero do relato de viagem, e os quais serão notados na análise presente são: o da experiência iniciática, referente a um processo de iniciação gerado pelo corpo que sente e vive, não podendo ser omitidas as sensações e Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 450 prazeres, além do caráter autobiográfico que o relato remete; o inventário, onde se escreve o que se vê não necessariamente questionando ou concluindo algo, referindo-se também à justificativa primeira da presença do zoólogo na comissão, o inventário científico da fauna interiorana brasileira; e o comentário, aspecto que enriquece grandemente o gênero, sendo um item imprescindível aos relatos, que permite ao viajante as diversas digressões, assentindo o indivíduo “viajar” em seus pensamentos e comentários sem uma austeridade demasiada. A viagem em volta do Brasil propiciou ao autor os diversos comentários a partir das digressões geradas pelo contato com extremos, em modelos comparativos que se tornam peças primordiais na construção do relato. De maneira geral a comparação, mui cara aos viajantes, é proporcionada pela visão de mundo ao qual o viajante pertence e do mundo com que se depara. Ribeiro vivencia isto logo na parte inicial do percurso, quando conhece cidades das nações vizinhas sul-americanas e seus cidadãos. O naturalista reflete partindo do confronto entre a realidade brasileira e a estrangeira, essencialmente no que tange aos indivíduos e suas perspectivas socioculturais. Entretanto o que apresenta-se aqui como fundamental para a produção que se analisa é o modelo comparativo aplicado ao próprio Brasil. A partir desta análise se observou o produto desta comparação nas representações da natureza brasileira e no próprio ser brasileiro. Observa-se sua crítica aos materiais e práticas da construção das casas, o que é considerado aqui nesta pesquisa como uma parte do que abarca o homem em termos de análise e descrição na narrativa do naturalista, são produtos da criação humana. Ribeiro tem um olhar específico tanto para os homens, cidadãos brasileiros, que se assemelha bastante ao modo como observa as construções (ou produções) humanas. As criações do homem não podem ser díspares ao que o próprio homem apresenta de si mesmo. No caso de Cáceres encontra diversos problemas na cidade onde alega falta de meios para a instrução e infortúnios quando da ocorrência de chuva. Além da preocupação veemente com o que chama de “falta de estética” nas cidades. Assim como em outras paragens dessa viagem o zoólogo consegue encontrar a beleza singular na natureza, sem grandes esforços a natureza brasílica se apresenta prontamente nas áreas mais longínquas desse país. Ribeiro continua a revelar a variedade dessa flora carcerense que possui Tarumã, “piúva de cerne vermelho”, “flores amarelo ouro”, “piúva roxa”, “caroba de flores azuis” e o “pau de novato”, como descrito no relato. A multiplicidade de tipos e cores, essa exuberância e preciosidade identificada pelo zoólogo é a merecedora dos Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 451 mais belos elogios, com toda a criatividade poética que não percebida em outros temas no diário, a não ser a natureza. Ribeiro constrói seu relato de viagem, atravessando o Brasil de lado a lado, da ponta de Mato Grosso até a cidade de Manaus, saindo do Rio de Janeiro, circundando todo o sul do país, e retornando pelo nordeste, passando pelas cidades de São Luís do Maranhão, Natal e Recife, e retornando, chegando a casa e saindo da viagem, fechando a circunferência, o círculo, redondo, ao redor. Rodeando e atravessando o território, assim se faz na trajetória, mas não somente, pois não atravessa apenas o espaço, atravessa também o tempo, pois somente através do tempo Ribeiro é capaz de constituir seu relato. Assim define sua forma de narrar, “observa a ordem natural dos fatos através dos tempos”. A importância do tempo para uma narrativa dessa natureza, que valoriza dia após dia, de instante em instante, onde cada experiência vivida pode refletir em um pensamento qualquer. Os usos para a expressão do título não terminam por aqui, ‘através’ é igualmente a ‘por meio de’, e é por meio dessa viagem, dos materiais encontrados, das experiências colhidas, das verdades criadas que o naturalista constrói seu relato de viagem e acima de tudo sua representação de Brasil. Comparando natureza e homem, buscando (des)cobrir a ciência ainda não conhecida e criar um homem nacional, procurando construir um Brasil. “Salvo os typos de escolha, que representam a humanidade do futuro, os homens cultos do Planeta mostram-se indios de pelle branca, cobertos por uma crosta, mais ou menos espessa, de verniz brilhante. Si é que não irrogo uma injustiça aos pobres indios, que nem palavra créaram para o “altruísmo”, e, mais de uma vêz, têm realizado, apezar de tudo, aquillo que elles não sabem que se chama – “solidariedade humana” – e que nós outros sabemos bem como se escreve e como se não pratica. Um dia, quando nada mais houver a melhorar, o homem culto acabará, eu o creio, aperfeiçoando-se a si mesmo.” 9 O título da obra concebida a partir do relato de viagem de Edgard Roquette-Pinto quando participa, em 1912, da CLTEMA, tem grande representação em duas primordiais perspectivas para sua obra: referencia o homem que chefiava aquela missão e abrira caminho para um sem-número de outros conhecerem aquelas terras e, os novos velhos homens, os constituintes da Rondonia, os quais o antropólogo dedicou notável esforço para uma 9 ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondonia: anthropologia – ethnografia. 7.ed. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. p. XI-XII Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 452 compreensão científica, e que impulsionaram no autor reflexões acerca de sua própria sociedade. Assim o termo é uma homenagem ao líder da empreitada nas matas brasileiras, considerado por Roquette-Pinto como um indivíduo de valor imensurável por sua dedicação ao Brasil e a seus cidadãos, e igualmente distingue toda aquela região, especialmente seus habitantes, índios e sertanejos, que representam um distinto caminhar para os homens do Brasil. O relato de Edgard Roquette-Pinto se detém em grande parte à localidade de Aldeia Queimada, quando inicia contato direto com índios Pareci que já mantinham relações com os excursionistas da CLTEMA. E na continuidade de seu trajeto até José Bonifácio, quando mantém relações com os tão esperados índios Nambiquara. A intenção do antropólogo foi tirar um “instantâneo”, como o próprio diz, ou uma fotografia, da situação desses índios antes que o contato com o desenvolvimento modificasse de forma profunda aquela sociedade e seus costumes específicos, o que no entender do autor ocorreria inevitavelmente. Destarte as intenções de Roquette-Pinto estavam diretamente voltadas na apreensão da sociedade indígena daquela região como forma de conhecimento do passado, ao recolher a imagem presente “sem retoques”, com suas “sombras” e “contornos” originais, que já se tornava passado, porém possibilitando reflexões sobre os homens futuros. A dimensão da experiência iniciática é igualmente manifesta por Roquette-Pinto. O relato de viagem é autobiográfico, além de possuir uma série de expectativas o autor está de corpo e mente entregues à jornada. O corpo sente e o relato busca atingir em sua construção literária as sensações vividas. Dentre o tópico de descrições, o aspecto inventário se destaca por ser constituído primordialmente por esse método. O inventário crucial para Roquette-Pinto é a descrição de tudo o que pertencia ao universo dos indígenas da região, sendo a justificativa primeira de sua presença na viagem. Contudo, o antropólogo compreende que a vastidão das informações geradas por aquelas terras deveria sensibilizar a todos. Isto posto, suas descrições abarcaram muito além dos indígenas. O comentário, terceiro aspecto básico notado em relatos de viagem, reflete as inúmeras divagações e observações sobre os mais diversos assuntos, que podem ou não acharem-se dentre os temas a priori definidos para figurarem no diário de campo. Ele tende a fortalecer o caráter plural, criativo e pessoal do relato que permite as mais diversas divagações em momentos não determinados e fora de uma ordenação pré-delimitada. Apesar da Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 453 estruturação primeira desse gênero que remete às notas diárias, as divagações fazem o leitor percorrer distâncias imensuráveis durante o percurso da narrativa. Desta maneira, ao se deparar com a realidade da existência sertaneja, Roquette-Pinto percebe o quão significativo era para seu pensamento o reconhecimento desta condição, revelando-a na definição das circunstâncias de produção do diário. Como antropólogo da CLTEMA Roquette-Pinto detinha um claro objetivo de identificar e analisar a situação dos povos indígenas da região. Como assevera no princípio de sua obra, desejava um “instantâneo” daqueles que futuramente não existiriam mais naqueles contornos. Contudo o contato com a população sertaneja impulsionou-o a reflexões primordiais se tornando necessidade fundamental o relato minucioso da vida sertaneja brasileira. Para o antropólogo lidar com a condição dos “homens daquela terra” foi determinante para a constituição de seu relato e de seu pensar. Quando fala de Rondônia pensa em tudo o que a integra. Desde os rios e florestas, aos animais e habitantes, que tinham no índio e no sertanejo os dois polos básicos. A viagem do antropólogo, idealizada no diário de campo, deve manter uma linearidade envolvente e, como numa trama literária, momentos de ápice. Assim, como já retratado, a alta expectativa do encontro com os índios “não civilizados”, finalidade primeira da viagem, não fora alcançada, e começava a transparecer manifesta indefinição sobre o tema. A grande demora não causara apenas uma certa decepção e cansaço, tornou a expectativa ainda mais alta quando os indícios do encontro se apresentavam indefectíveis. Os próximos trechos retirados da obra de Roquette-Pinto representam por meio de suas palavras a emoção e expectativa do encontro que se apresentava cada vez mais próximo, no descobrir de pistas, como numa busca pelo “tesouro perdido”, produzindo um texto mais intenso e sensível. Havia já um mez que viajava pelo sertão, atraz dos indios. Nos pontos em que contava encontral-os, Uáikoákorê, Juruena, Juina, nenhum me apparecia. Mas, ao saír do posto do Juina, começaram a surgir, pelo serrado, e mesmo pela pecada, signaes evidentes de Nambikuára próximo. (...) Sempre de ouvido alerta, parando cada vez que se nos deparava um dos taes toldos de folhagem, arregalando para o serrado, que os raios da lua pareciam cobrir de espumas, íamos andando na frente, anciosos por encontrar os primeiros índios. Alta noite, numa colina, á beira da linha, próximo do Ribeirão 20 de Setembro, avistamos, longe, uma fogueira. Eram elles. Apressámos o passo dos nossos animaes, e á grande distancia, começamos a gritar, para os prevenir de nossa presença: - O! O! Nen-nen! Nen-nen! (Amigo! Amigo!) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 454 (ROQUETTE-PINTO, 2005, p. 106) A partir das realidades experienciadas pelo antropólogo, sua viagem à Europa e o contato com os “índios da idade da pedra”, concebe como seu pensamento a percepção de que, por mais tecnologias que os homens da primeira sociedade dominassem, de nada podiam se envaidecer, no que concernem as questões ontológicas, sobre os segundos. Permaneciam em grande parte com os mesmos vícios que os “primitivos” índios, chegando até a um nível de maior embaraço, já que muitas vezes se intitulavam como pertencentes ao topo da civilização sem mesmo praticar aquelas enormes qualidades divulgadas. Isto posto, para Roquette-Pinto era necessário uma efetiva transformação do homem, a evolução para um novo homem, o qual o antropólogo acreditava ser possível. Talvez tendo admitido esta esperança ao lidar com os homens de Rondonia, o índio que mesmo sem saber definir com palavras pratica a “solidariedade humana”, e o sertanejo, “magro e feio”, mas tão forte para “amarrar os extremos da pátria”. O que é encontrado no relato de Roquette-Pinto é o processo de naturalização do homem rondoniano, simples e belo como a natureza e como a arte. Não havia, no pensar do cientista, tensão entre o homem e natureza rondonianos, pois que ali sim era o local onde os dois polos brotavam do natural, da terra. Assim conseguiam dialogar. Lá, naquelas terras onde a natureza é humana e o homem é natural. A tensão ocorria no mundo civilizado pois ali o homem não acompanhava as modificações que ele mesmo promovera no mundo, mantendo um desequilíbrio constante representado pelas guerras e injustiças irradias pelo mundo. Os relatos de viagem de Alípio de Miranda Ribeiro e Edgard Roquette-Pinto se constituíram de maneira consideravelmente distinta, tanto nas estratégias de escrita escolhidas pelos respectivos autores como nas trajetórias das obras ao longo do tempo. Apesar de serem resultantes de um mesmo projeto, em viagens distintas, entretanto pertencentes à mesma Comissão, a forma em que se retrataram seguiu algumas similitudes advindas do próprio gênero literário, como as notas diárias, mas também puderam ter suas particularidades bem definidas, valendo isso igualmente para suas conclusões centrais. Miranda Ribeiro desejou tecer um comentário amplo, sem extensas explanações científicas, que poderiam tornar seu relato um monótono estudo de classificação e sistematização zoológico, privilegiando a elucidação da natureza num plano maior, onde estabelece como principal viés o modelo comparativo entre o homem e a natureza brasileiros. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 455 Já o antropólogo Edgard Roquette-Pinto torna seu relato muito mais científico 10 , contudo com uma suavidade distinta pela própria temática de seu trabalho, a antropologia e a etnografia. Encontra-se no relato uma boa dose de inventário científico pelas tabelas de medições dos indígenas e imagens de artefatos coligidos com as indicações de localização no acervo do Museu Nacional. Obviamente deve-se considerar que esse relato foi integralmente publicado em algumas edições, permitindo uma organização mais eficiente. Seu relato detinha como objeto de estudo também seu objeto de divagação de modo que a maior parte de suas páginas é dedicada a essa atividade. Todavia igualmente é possível perceber o modelo comparativo entre o homem e a natureza brasileiros como peça fundamental no desfecho do pensamento que o antropólogo pretende divulgar em sua obra. Enquanto Miranda Ribeiro caçava e estudava os animais, travava digressões não somente para com esses, mas igualmente sobre a paisagem natural local, e principalmente a respeito dos homens. O zoólogo representou um embate entre os homens (e suas construções) e a natureza interioranos. Para ele os homens representavam o que o Brasil precisava modificar, a imigração foi citada por vezes. Comum às discussões científicas da época a miscigenação não levaria o país a seu patamar de progresso tão desejado. Entretanto a natureza brasileira, que Ribeiro reencontrava ali, era merecedora de todos os elogios e cobiça dos países vizinhos. Era como se fora criada nos mínimos detalhes como os melhores materiais que se encontravam disponíveis na Terra. Já Roquette-Pinto estudava cientificamente os homens e divagava também sobre o mesmo objeto, mantendo em grande parte suas palavras em construções científicas ou não acerca desses. Contudo foi possível identificar durante a narrativa a existência também de uma relação entre a natureza e o homem brasílicos. Assim como o relato do zoólogo muitos foram os elogios derramados pelo antropólogo para com as belíssimas paisagens por onde passara. Faziam parte de suas notas de forma muitas vezes poética as descrições desses cenários e de seus personagens principais. O que foi constatado também para com os habitantes da região. Não deviam nada àquele panorama natural pois que eram constituintes e constituídos por ele. Assim como os animais, o sertanejo e o índio eram personagens daquele paraíso, e por isso Roquette-Pinto não concebia choque entre os dois, contemplando um com um pouco mais de “humanitude” (sic) e o outro com mais “naturalização”. 10 Sá ressalta a atuação singular de Edgard Roquette-Pinto no movimento, no início do século XX, em prol da distinção entre literatos e cientistas, e consequentemente na redefinição de suas respectivas práticas. (2006, p. 117-126) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 456 Apesar das distintas concepções pode-se perceber que tanto um como o outro cientista compreendiam a simplicidade natural como o mais belo aspecto a ser analisado. Pois que as representações que para cada um receberam o aspecto do natural revelado receberam a exaltação. Contudo, apenas o antropólogo conseguia extrair do homem rondoniano essa qualidade, por isto mesmo admitira ali uma terra distinta a ser chamada de Rondonia. As obras analisadas encerraram representações do Brasil; Por um lado através da tensão entre a noção de homem e de natureza, e por outro pela visão de uma natureza humanizada e de um homem naturalizado. Porém os dois relatos se encontram na adoração pela natureza, tanto o zoólogo como o antropólogo vislumbram nessa a beleza. Para o zoólogo apenas a natureza local é realmente pura e bela, já o antropólogo consegue reconhecer também no homem de Rondônia o estado natural, por isso dimensiona-o como mais dignino do que homens ditos “civilizados”. As duas obras são representativas de visões de um campo participante em um empreendimento, e ainda de um momento peculiar deste campo de atuação. Em coreografias que se alternam, os cientistas constroem suas representações de Brasil (ou de algum Brasil), privilegiando como fim o pensamento sobre a sociedade e seus indivíduos, pensando ainda em sua própria constituição. Para Miranda Ribeiro, naturalista baseado nas referências dos ilustres naturalistas viajantes do século XIX, era fundamental pertencer a uma experiência como esta, tendo na constituição do relato de viagem a consolidação do evento. Roquette-Pinto igualmente tem na prática, com a publicação e ampla divulgação de sua obra, o alicerce de sua figura enquanto antropólogo. Referências Bibliográficas BOURDIEU, Pierre. O Campo Científico. In: Ortiz, Renato (org.). Coleção Grandes Cientistas Sociais, n 39, Editora Ática, São Paulo, 1983. ________________. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002. _______________. 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ISBN 978-85-62707-52-0 458 A RAZÃO E SEUS PESADELOS: SONHO, HIPNOTISMO E EMBRIAGUEZ NOS DISCURSOS MÉDICO JURÍDICOS EM SANTIAGO DO CHILE A COMEÇOS DO SÉCULO XX Mauricio Becerra Rebolledo Mestrando Casa Oswaldo Cruz, COC Fiocruz Bolsista CNPQ Resumo:A pesquisa analisa a racionalidade que emergeu nos discursos médico legais do Santiago do Chile a començos do século XX sobre as externalidades da razão. Serão marcados como momentos de consciência alterada o sonho, hipnotismo e embriaguez.Os discursos estão inseridos no momento de medicalização de comportamentos e seu arranjo nos jogos de verdade que exigem distinguir na distinção aparência/realidade, inquerito expresso na pergunta se os sujeitos têm realmente uma das formas da loucura ou se houver simulação. Isto levará a questionar nos discursos de medicina legal a responsabilidade de aqueles sujeitos com estados alterados de consciência. Resumen: La investigación analiza la racionalidad que emergió en los discursos médico legales de Santiago de Chile a comienzos del siglo XX sobre las externalidades de la razón. Serán marcados como momentos de conciencia alterada el sueño, el hipnotismo y la embriaguez. Los discursos están insertos en un momento de medicalización de los comportamientos y su disposición dentro de los juegos de verdad que exigen distinguir entre apariencia y realidad, investigación expresada en la pregunta si los sujetos tienen realmente una de las formas de la locura o si hay simulación. Esto llevará a cuestionar en los discursos de medicina legal la responsabilidad de aquellos sujetos con estados alterados de conciencia. Palavras-chave: razão, estados de consciência alterada,Psiquiatría Chile. A razão e seus pesadelos A racionalidade instrumental e o sujeito moderno que vimos surgir ao longo dos séculos XVII ao XIX, vão ter seus pesadelos. Nos momentos de alteração da consciência do sujeito cartesiano racional são o sonho, o hipnotismo e a embriaguez. Entendidos como ‘estados’ pela ciência psiquiátrica em formação, aqueles momentos liminares daexperiência consciente diluem o sujeito da modernidade ocidental, obrigado a ser responsável pelos seus atos. Foucault diz que entre 1860 e 1879 Jean Pierre Falnet, discípulo do alienista Jean-Étienne-DominiqueEsquirol, começa a usar a noção de ‘estado’, com a finalidade de descrever e organizar toda uma seria de condutas aberrantes de uma maneira específica, autônoma e reconhecível. A noção de ‘estado’ Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 459 tem uma “fecundidade etiológica totalmente absoluta”; comenta Foucault(FOUCAULT, 1999, p. 287). Ditos ‘estados’ geram uma tensão da noção de livre arbítrio, condição sinequa non do sujeito racional. O sonho tem seu invés na vigília; o automatismo da hipnose na consciência de sim e a dissolução do eu acontecida nos estados extáticos da consciência ordinária tem seu oposto na sobriedade.Os momentos em que a consciência ordinária é alterada irão causar um terremoto nos jogos de verdade da modernidade, especialmente a distinção inalienável entre a aparência ea realidade, o eixo constituinte na precisão necessária para a noção de sujeito. Neste eixo a consciência alterada não funciona com a dialética esperado édissolvido em um salão desconcertante de espelhos. Este artigo vai se trabalhar em dois niveles. O primeiro vai ser uma revisão a produção destes saberes, fato acontecido principalmente na Europa, e depois vai se apresentar o caso da sua circulação no Chile, especificamente nos debates sobre Medicina Legal. O sonho, segredo da personalidade Uma grande complexidade para a razão ocidental vai ser o sonho. O velho enigma da mente que nas religiões pagãs da antigüidade eram o espaço para os mensagens dos deuses e demônios que deviam ser interpretados pelos oniromantes; ou que ainda na tradição cristã eram as tentações quando não amostra do misticismo espiritual, como o caso dos sonhos de Teresa de Ávila. Já para Descartes o sonho esta ao lado da loucura. Com o descortinar da Modernidade não vão a ser poucos os empredimentos por darle uma funcionalidade e uma explicação, cujo intento mais presuntuoso foi Sigmund Freud e seus simbolismos sexuais. No século XIX, ocorre uma diversificação das imagens oníricas nas sociedades européias. Há maior interesse pela ciência para desvendar a verdade dos estados de sonho, expressa em uma "grande atenção deste século a os procedimentos do sonho,percebido como o centro mais secreto da personalidade, protegido por as múltiples envolturas da vida diurna" (CORBIN; PERROT, 1990-1991, p. 172). CorbinePerrot encontram entre 1845e 1860,todo um desenvolvimento do saber sobre os sonhos, especialmente na França, o que vai deixar uma renovaçãodesua conceituação, que irá a lançar-los no espaçodas patologias. O sonhovai ser assim como"um dosváriosmecanismos de regressãoe dissolução, dasformas superioresdo psiquismo; e se le relegajuntamente como delírio ealoucura apatologia”(CORBIN; Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 460 PERROT, 1990-1991, p. 173). Para a racionalidade em ascenso resultam estranhos aqueles momentos em que se desintegra a coerência do pensamento. Omédico e fisiologista inglês William Carpenter propôs o termo ‘automatismo inconsciente’ em meados do século XIX na Inglaterra para explicar os sonhos, os devaneios e as alucinações. Nessa época as pesquisas sobre a mente humana explicavam o comportamento normal como um efeito de bom funcionamento dos chamados ‘centros cerebrais superiores’. Isto era refletido no comportamento dos sujeitos, os quais obedeciam a tendências superiores e inferiores do instinto que acabavam influindo na ‘vontade’. A ‘vontade’ se refletia na “perfeita coordenação hierárquica dos impulsos instintivos e reflexos inferiores com o desenvolvimento moral e intelectual superior” (HARRIS, 1993, p. 50). Na mesma época, os sonhos e as alucinações eram considerados próximos da loucura. Nas pesquisas de Jean-Martin Charcot sonhos e fantasias “não eram considerados material crucial para a ‘decodificação’ do inconsciente, mas sim evidência de ‘desinibição’, sempre potencialmente patológica se deixada sem controle”(HARRIS, 1993, p. 55). Um psiquiatrada época preocupado pelos sonhos, Jacques-Joseph Moreau 1 ,diz o dormir é como uma grande barreira entre o mundo exterior e o interior "o ponto fisiológico onde a vida exterior termina e começa a vida interior" (FOUCAULT, 2005, p. 325). Nesta ‘vida interior’ para ele "os normaistambémsão loucos, pelo menos quando dormem, ou seja, cerca de um terçode suas vidas" (ROA, 1991, p. 119) 2 . Moreau de Tours estabelece “do ponto de vista psicológico, uma identidade absoluta entre os estados de sonho e de insanidade mental” (HARIS, 1993, p. 58) devido a que no sonho os centros inibidores estavam perigosamente afrouxados. Os sonhos são também para Moreaude Tours uma janela para a loucura. O psiquiatra esteve muito interessado nos efeitos da desorganização inconsciente das faculdades mentais durante os estados alucinatórios. Seu monografia “O haxixe e alienação mental” (Du hachish et l´aliénationmental, 1845), trata sobre os efeitos de aquela sustância no tratamento das doenças mentais e também vê nos efeitos do cannabis uma janela para a loucura, tentando assim estabelecer uma relação entreos efeitos dohaxixe, sonhos e delírios. Moreau de Tours é o pai da psicofarmacología ao ser quem recomenda o uso de um modificador da perceção no tratamento das doençãs 1 En Sobre la intimidad del estado de sueño y la locura (1855). (ESCOHOTADO, 1999, p. 471). 2 De aqui em diante as citas usadas são traduzidas do espanhol pelo autor do artigo. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 461 mentais e também como posibilidade para os psiquiatras de uma visita ao universo da loucura. Ele se preocupou de fazer uma completa descripção dos efeitos do cannabis, relato que colinda com o modelo de doenças mentais da sua época. Moreau de Tours fornece a oportunidade de modelar a loucura, vê a oportunidade para os psiquiatras de poder entrar em ela.Foucault comenta que "a experiência de haxixe dá acesso ao sonho, em quanto mecanismo que pode constatar-se no homem normal e vai servir precisamente como princípio de inteligibilidade da loucura" (HARRIS, 1993, p.324). O interesse emsonhostambém encontrado emAuréliadeGerardde Nerval, Charles Baudelaire e outros escritoresda segundametade do séculoXIX.O haxixe usado por eles como veículo criativo foi dado a experimentar pelo própio Moreau de Tours. Isto fornecesubstratos paraaciênciado sonhona França que vai governarsemdiscussão até o rearranjoepistemológicodadopela psicanálisenas primeiras décadasdo século XX. No Chilejá nos fines do século XIX aparece uma referencia em una breve nota publicada na Revista Médica de Chile sobre os usos terapêuticos da cannabis, na qual é recomendada como xarope para os nervos 3 . Mas não vai ser até avançado o século XX que tem informes sobre ensaios feitos testando sustâncias e seus efeitos sobre a consciência. Em 1941 o psiquiatra Victor Arroyo comenta que o álcool organiza experiências demonstrativas da loucura no concernente ao estudo das alucinações. Poe de exemplo um caso de síndrome alucinatorio-delirante esquizomorfo (ARROYO, 1941).Arroyo cita ao psiquiatra e etnólogo francêsGaëtanGatian de Clérambault, quem dizia que “o álcool fornece experiênciasdemonstrativas no que diz respeitoao estudodas alucinações”(ARROYO, 1941, p. 27). Um pouco antes, ao fines da década dos ’30, Jaime Castillo Velasco desenvolve a sua monografía jurídica sobre o sonho. É um momento de ajuste pelo saber de aqueles estados da consciência ainda ininteligiveis e em fuga. O Artigo 10 do Código Civil da época estabelecía que “estão isentos de responsabilidade penal: o louco ou demente, a menos que tenha obrado um intervalo lúcido, e quem por qualquer motivo além de seu controle é totalmente privado razão" (CASTILLO, 1939, p. 3). O problema de discernimento tinha como fronteira a ausência de desenvolvimento mental (o caso dos menores de idade); a alienação mental; e a falta 3 Revista Médica de Chile. Tomo XII. 1883-1884, p. 202. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 462 de consciência, seja o sonho, o sonambulismo, a sugestão hipnótica e a embriaguez; a febre e falta de espontaneidade, definida como uma ‘força irresistível'”(CASTILLO, 1939, p. 5). Castillo Velasco vai se preocupar por o sonambulismo, o hipnotismo e sugestão, concluindo que são estados alterados de consciência que não podem impor responsabilidade penal. A hipnose A hipnosis no ocidente tem seu origem nos ensaios de Franz Mesmer no século XVIII, denominado mesmerismo. Foucault diz que na história dos primordios da Psiquiatria para acessar a questão da verdade dos defenidos como doentes mentais, se faz por meio de tres tecnologías: O interrogatório, o magnetismo e hipnose, e as drogas (FOUCAULT, 2005, p. 266). A cura magnética se bem é usada no século XIX, vai ser deixada fora com a entrada do hipnotismo. A data de entrada são os ensaios de Hipnotismo de Paul Broca apresentado em 1859 no Hospital Necker, onde a hipnose e mostrada como um sedativo. Sua diferença com o magnetismo e por isso seu sucesso por décadas na Psiquiatría vai ser porque serve para dispor do comportamento do paciente. No final do século XVIII, aconteceu uma controvérsia e disputa sobre a hipnose entre as escolas deSalpêtrièredirigida por Jean-Martin Charcot e Universidade de Nancy por HippolyteBernheim sobre o uso da hipnosis na prática terapéutica. Charcot desenvolveu uma teoria patológicana qual a hipnose era um síntoma da histeria. Suas pesquisas eram orientadas procurando uma formulação da doença mental com um sustrato orgánico, Charcot em 1884 apresentava a hipnosis como uma reprodução artificial da paralisiaorgânica. Harris comenta que no século XIX na Salpêtrière “descrevia-se a hipnoses como uma especie de vivissecção psicofisiológica durante a qual os efeitos de magnetos, luzes fortes, ruídos, substâncias metálicas e estímulos eléctricos poderiam todos ser examinados” (HARRIS, 1993, p. 43). No entanto Bernheim diferia com Charcot sobre a natureza psicológica da hipnose. “Em vez de considerar o hipnotismo necessariamente associado à histeria, eles viam com uma ferramenta terapêutica universal e poderosa, e por isto desejavam tornar o seu uso popular, e não limitá-lo”(HARRIS, 1993, p. 195). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 463 Foucault comenta que a "hipnose é o que vai permitir intervir de maneira efetiva sobre o corpo, não só no no plano disciplinario dos comportamentos manifestos, mas sim ao nível dos músculos, nervos, e as funções elementares" (FOUCAULT, 2005, p. 335). No Chile foi Augusto OrregoLuco. Médico da Universidade de Chile sua monografia foi intitulada ‘AlucinaçõesMentais’ e foi alumo de Charcot na Salpêtrière colaborando na Iconographie de laSalpetriére (1912-1915) 4 .Seguindo seututor, Orrego Luco desenvolveu o método anátomo clínico atraves da Cátedra de Doenças Nervosas. Em 1882, Orrego Luco envia a Charcot um estudo sobre a histeria traumática (CAMUS, 1993, p. 127), onde reflete sobre a natureza da sugestão hipnótica e os mecanismos para produzir as hipnosis. Por as suas práticas foi chamado “o mago dacañadilla”. A hipnose junto a aplicações elétricas foram utilizadas desde os fines do século XIX ate as primeiras décadas do século XX para o tratamento das doenças mentais no Chile, particularmente da histeria. Um informe do médico DávilaBoza reproduz um diálogo com uma paciente tratada por ele: - Você está dormindo?- pergunta Boza. - Sim. - Por que você deu ataques histéricos? - Porque eu acho que não vou me recuperar da doença que me aflige. - Vai se a repetir os ataques? -Talvez. - Pois eu te ordeno que não vá sofrer mais deles! -Bom. - Você quer acordar? 5 Ao decorrer o tempo a hipnose vai deixar de ser mencionada nos escritos médicos de Chile, o que sugere que deixo de ser usada como prática terapêutica. Já na décadas dos ‘40 os discursos sobre ela, darão conta de uma mudança já não como tecnologia o ferramenta dos médicos da conduta, senão como saber espalhado pela sociedade e que frente ao qual tem que ter certeza jurídica respeito da sua interpretação. 4 Otras obras de Orrego Luco foram "Los Asilos de Alienados" (1875), "Un Experimento sobre el Cerebro Humano" (1878) e "Estudio sobre las Circunvoluciones y Surcos del Cerebro Humano" (1879). 5 BOZA, Davila. “Algunas Curaciones por el Hipnotismo.” Revista Médica de Chile. V. 19. 1890-1891. p. 74-75. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 464 Cousiño Mac- Iver , Professor de Medicina Legal , diz em 1941 que tanto o sonambulismo como a sugestão, se relacionam com os crimes cometidos no " período crepuscular do acordar, por erro da percepção" (COUSINO, 1941, p. 251), acusando uma falta de vontade que os absolve de responsabilidade criminal para quem consegue provar estos estados. A mesma coisa e aceita respeito da hipnoses.Se no primeiro estagio a hipnose foi uma alternativa terapéutica, agora, fora das práticas psiquiátricas são reglamentados seus efeitos. O problema da simulação de loucura Os jogos de verdade da modernidade significam também importantes interrogantes para a criminologia. Uma questão que vai surgir após a psiquiatrização da loucura vai ser a distinção entre aquela e sua simulação. A relação entre a loucura e criminalidade é a partir de 1820-1825, segundo Foucault, que é quando a Psiquiatria começar a dar as suas opiniões sobre os crimes. Emerge na aquele momento a noção de monomania, que é um evento episódico que acaba no crime. Já em 1829 o alienista Charles Henri Marc Chretien diz que “um dos mais graves e sensíveis funções que podem tocar ao médico legista é determinar se a alienação mental é real ou fingida" 6 .Isto acaba por entroniza o exame médico psiquiátrico nas práticas de justiça e atribuição de responsabilidade.Foucault vai mais além da prática e comenta que "não se trata de mostrar que todo criminoso é um possível louco, senão de provar que tudo insano é um possível criminoso" (FOUCAULT, 2005, p. 297)- diz Foucault.Dessa forma a Psiquiatria fundou sua prática como Defesa Social. Em Latino América um dos primeiros intentos de sentar alguma verdade da distinção entre simulação e loucura vai ser o intento de o médico e criminologistaJosé Ingenieros, em Buenos Aires, em 1918, a partir de um processo onde se hesitava se o assassino estava alienado ou fingia loucura. Ingenieroscomenta que "a persistência de alguma razão e a inconsistência de seu verdadeiro estado mental mórbido, permite a alguns alienados entender os benefícios oferecidos por simular a loucura em certas circunstâncias, produzindo o fenômeno da 6 Em Annales d'Hygiene Publique et de Medicina Legale, Paris, Gabão, 1829. Pág. 298. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 465 'sobresimulação' ou simulação de a loucura por alienados verdadeiros. Em vez disso, sempre que um alienado é consciente de sua loucura ou compreender as desvantagens que isso o afeita, ‘esconde’ seu alienação’, equiparando este fenômeno para a simulação de saúde, utilidade subordinados aos mesmos critérios” (INGENIEROS, 1918, p. 77). Embora ocriminologistaconsidera que “as loucuras simuladas não tem unidade nosológica” (INGENIEROS, 1918, p. 210), vai classificar as formas simuladas da loucura em cinco grupos de síndromes: maníacos, depressivos, delirantes ou paranoides, episódios psicopáticos e estados confusos demenciais. Em 1938, a pós-graduação em Direito e Ciências Políticas da Universidade de Chile, HernánLillo Quintana, vai refletir sobre esta situação, propondo um exame psiquiátrico para estabelecer uma verdade do estado mental do sujeito: "O exame psiquiátrico não deve apenas comentar sobre o fato mesmo da simulação, mas tente explorar o verdadeiro estado mental do sujeito examinado, pois pode haver simuladores que são alienados e outros que estão sãos e astutos. É a isso último que tem que chegar o psiquiatra a cargo de o inquérito sobre o assunto" (LILLO, 1938, p. 78). Lillo disse que "mais do que encontrar a simples simulação, mostrar o verdadeiro estado mental do indivíduo, é necessário dar um passo adiante: o perito deve opinar sobre o perigo que manifesta o sujeito de acordo com as tendências de sua psique, já seja normal ou psicótica" (LILLO, 1938, p. 79). ParaLilloé necessário pesquisar o mais profundamente possível nas mentes dos indivíduos analisados, considerando as características hereditárias, morfológicas, endócrinas, história de vida, o caráter, aplicação da psicanálise. Assim, a questão de saber se alguém está realmente demente ou e simulado, ao invés de ser uma fronteira epistemológica para a psiquiatria, ao invés de ser a oportunidade de rever todas as técnicas aplicadas para o deciframento da verdade do sujeito, será um nó para resolver e oportunidade de convocar todo o conhecimento desenvolvido sobre a psique do indivíduo: "É necessário que o perito é fornecido de todos os elementos possíveis a fim de incluir em seu maior extensão os aspectos da personalidade susceptíveis de proporcionar resultados práticos e proveitosos. Assim, este estudo deve ir diretamente para o conhecimento do sujeito, independente de qualquer simulação que se deseja atribuir, dirigindo-se de modo especial ao estudo de sua sinceridade.Terá, portanto, necessário se pronunciar sobre os dados relativos àherança psicopatológica, o estudo médico e antropológico da constituição somática e temperamento (periodicidade, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 466 acessos ocasionais, etc.), o estudo das funções endócrinas e vegetativa, a análise psicológico experimental da inteligência com suas reações, à história serializada das experiências e gênero de vida, a análise de mudanças na evolução da personalidade, o estudo psicanalítico do subconsciente e dos instintos primitivos, etc.. Uma vez que o inquérito para descobrir a simulação não só ser reduzida ao objeto de este, mas alargado a toda a personalidade do sujeito"(LILLO, 1938, p. 79). A distinção aparência/verdade, necessária para os discursos médicos e jurídicos, vai ser assim resolvida com a figura do individuo perigoso latente em todo comportamento anormal. É claro que novos problemas vão surgir a partir desta problematização. Além de distinguir quando o louco é louco, saber vai se preocupar para detectar a embriaguez, se alguém para cometer um crime se embriagou ou foi produto embriaguez o se o viciado curou realmente ou ta mentindo. O pecado de Dionisios Desde o surgimento do cristianismo em Roma, o Ocidente terá uma relação complexa com a embriaguez. A tradição pagã e vários povos indígenas entendiam as experiências com os modificadores da percepção como um momento transcendental ligado a uma reconexão com a natureza. Seja nos rituais de peyote dos huicholes, a Amanita muscaria comida pelos siberianos ou os quinze séculos que a Antiguidade clássica freqüentou os mistérios eleusinos, o certo é que nessas experiências de alteração da consciência apareceu uma forte ligação com os deuses, quando não os próprios celebrantes tornavam-se deuses. Nietzschevê na embriaguez o jogo da natureza com o ser humano, ato criativo a partir da dissolução do eu consciente: "Quando não se experimentou em se mesmo, esse estado só pode ser entendido simbolicamente (... )o servidor Dionísio deve estar bebido e, por sua vez, estar à espreita atrás de si como observador” (NIETZCHE, 1973, p. 233). Para Nieztcheo sonho e à embriaguez, que perseguem o êxtases e é simbolizado na figura de Dionísio, fazem naufragar a consciência ordinária e seus edifícios. "Em ambos os estados o principiumindividuationis (princípio de individuação) está quebrado, desaparece o subjetivo completamente diante da violência disruptivado geral. Humano, ainda mais, do universal natural. As festas de Dionísio não só estabelecem um pacto entre os homens, também reconciliam os seres humanos com a natureza (...) O ser Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 467 humano não é mais um artista, ele tornou-se uma obra de arte, como em êxtase caminha ereto como andando em um sonho viu caminhar os deuses” (NIETZCHE, 1973, p. 232). Nietzche é um homem do século XIX, que escreve justo no momento de mudança das inteligibilidade dada a prática profana embriaguez. Ao decorrer o século XIX o uso de veículos de ebriedade vai ser patologizado pelo estamento terapêutico e as sustancias vão ser testadas para seu uso terapêutico. Já em 1840 o étersofre uma expansão de seu uso no tratamento da neurose e da revelação da simulação do doente. O clorofórmio começou-se a usar em 1847. Os opiáceossão recomendado por Jean-Baptiste Van Helmont (1577-1644) e Thomas Sydenham (1624-1689) para interromper ataques de raiva e restaurar a ordem das idéias. A partir do século XVIII, é usado para as monomanias (NIETZCHE, 1973, p. 232). O veneno da vontade Nietzsche diz que "no impetuoso percorrido de todas as escalas anímicas durante as excitações narcóticas, ou no desencadeamento dos instintos primaverais, a natureza se manifesta em sua mais alta potência: volta a juntar aos indivíduos e os faz sentir como uma só coisa, de modo que o principiumindividuationis (princípio de individuação) aparece, por assim dizer, como um estado permanente de fraqueza davontade ” (NIETZCHE, 1973, p. 235). A vontade é um conceito axial da patologização dos estados extáticos. Os principais desordenem acusados por efeito do uso de embriagantes acontece na vontade dos corpos embriagados. Assim os enteógenos, chamados agora ‘drogas’, vão a ter características animistas no discurso terapêutico, são descritas como uma entidade cuja ação altera o poder de decisão e ordem dos corpos. No Chile, já em 1870teve tensão sobre a imputabilidade penal das pessoas afetas a estados alteradosda consciência.O profesor de profesor de Higiene e Medicina Legalda Universidad de Chile, Federico Puga Borne, em as suas aulas incluiuosonâmbulismo e'estados mentais transitórios’ da ebriedade (MERINO, 2000, p. 161). Vai ser um engenheiro, Francisco Beze, quem faz a primeira quantificação do uso de álcool reduzido como problema social em seu estudo sobre o alcoolismo no Chile: El alcoholismo, estudio y estadística, em 1897. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 468 Pouco antes, em 1891, Puga Borne, publica ‘Elementos de higiene’, compêndio de medicina que visibiliza o pensar da medicina higienista do fins do século XIX, onde inclui os modificadores da consciência no capítulo sobre alimentação, o que pode -se inferir que até esse momento, as substâncias que alteram foram inteligibilizadas como parte de um universo referencial nutrição. A sua divisão contempla os alimentos básicos, condimentados e nervinos. Dentre de estes inclui as bebidas alcoólicas, chá, café, mate, cacau, coca, guaraná, e acrescenta que podem ser adicionados a eles tabaco, haxixe, ópio i arsênico” (PUGA, 1891, p. 490). Puga Borne acusa o alcoolismo como provocador da degeneração dos tecidos e de aquele momento em diante o alcoolismo vai ser explicado como degerador e inimigo da raça, produtor de loucura e principal problema social. Nas primeiras décadasdo século XX, o alcoolismo é classificado pelaMedicina Legal como ‘doença ideopática adquirida’. Todos os veículos de embriagez vão a ser conceitualizados nos manuais de Medicina Legal como ‘Locuras Tóxicas’, ou seja, como um agente externoque altera a mente dos sujeitos. O corpo do alcoólatra vai ser também o local de um teatro da degeneração e seus estadios sucessivos: demencia, delirium tremens e morte. Ao transcorrer o tempo o alcoolismo vai ser inteligibilizado emtre as Enfermedades de Trascendença Social (ETS), junto a sífilis, a tuberculosis e as toxicomanías. Em 1912 vai ser aprobada a Lei de Alcooles, que estabelece ao lado da casa de orates um Asilo de Temperancia onde os alcoólatras vão a ser internados forçõsamente, mas será que a inauguração do Instituto de Reabilitação Mental (IRM), em 1943, o tempo de institucionalização definitiva de um espaço específico para alcoólicos e toxicodependentes como doentes mentais. Um médico enviado a América Latina pelas Nações Unidas para difundir a proibição dos derivados da coca e do ópio, que teve ampla circulação nos discursos médicos de Chile na segunda década do século XX, Antonio Pagador, diz que o ópio é um veneno da vontade: "A vontade é cancelada por completo e fumantes seres tornar impulsivo e irresoluto" (PAGADOR, 1923, p. 91). Uma tesista de Química e Farmácia, Laura Monetta,descreve que "o vício do ópio é um hábito funesto quepara o vicioso empedernido não é fácil livrar-se, pela razão que a mesma droga ao infiltrar-se em eles, lêmata As energias físicas e anula a vontade" (MONETTA, 1929, p. 21). Um tesista de medicina, Salvador Allende, diz em 1933 que "a vontade do toxicômano desaparece completamente e apesar do dar conta do efeito nocivo, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 469 pernicioso e degradante que a droga tem sobre ele, não tem coragem nem força para abandonar seu uso” (ALLENDE, 1933, p. 21). Mas a patologização da mudança de consciência não resolve o problema da imputabilidade penal. Para que possa operar a medicalização dos ébrios ou usuários de drogas proibidas é preciso despojar-los de razão. Como o Código Penal de 1931 não se refere aos viciados em drogas, um tesista jurídico, Roger Zelada, propõe que estes compartilhem a condição do bêbado respeito à responsabilidade como criminoso devido a que eles "estão totalmente destituídos de razão, por causa independente da sua vontade" (ROGER, 1939, p. 41). Na Segunda Jornadas Chilenas de Ciências Penais, realizada em agosto de 1954, a pergunta é se "é imputável o narcómano que obtém fornecimento de entorpecentes sem receita médica ou através dela?" (MERINO, 2000, p. 160). Francisco Hernandez, que era o chefe da Seção de Medicamentos da DireçãoGeral da Saúde e representante do Chile para a Convenção sobre Trânsito Ilícito de Drogas Perigosas em Genebra em 1936, respondeu que havia algum tipo de acordo, a fim de compreender como as doenças mentais tais incardinablesas psicoses ou doenças mentais propriamente assim, sejam de caráter endógeno ou exógeno, entre as quais incluem as loucuras tóxicas(MERINO, 2000, p. 160). Considerações finais A tensão da noção de livre arbítrio que se produz em estados de consciência alterada foi um tema cardinal para o desenvolvimento da Psiquiatria no Chile. Quando Alicia deixa aberta a porta do salão de espelhos da consciência a entrada a o mundo inverso é um verdadeiro problema para o os jogos de verdade num momento em que a Medicina passa a controlar cada vez mais aspectos das relações humanas. O problema da vontade, seé original ou é submetida a outras forças, é a temática a discernir num momento em que o principio de individuação se esta articulando. No caso do sonho nem a patologização de Moreau de Tours, nem a posterior psicanálise, serão capazes de dar resposta e uma inteligibilidade segundo os parâmetros desenvolvidos pelos científicos. O estado mais cotidiano e o mais inascível. Impossível de codificação, de ser reduzido a uma verdade, o sonho segue sendo um limite para a razão moderna. Embora tivesse sido reduzido a uma contabilidade das horas estabelecidas como necessárias para dormir, se foram padronizadas as suas fases ou as Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 470 tecnologias dos escâner sejam aplicadas para compreender-lo, todo aquele saber responde só a medidas físicas. Os restantes discursos que falam sobre o sonho não são reconhecidos como saberes científicos. No caso da hipnose, primeiro muito usada pelos terapeutas e depois esquecida hoje se mantém em um regime de incerteza sobre seus efeitos. A sua experiência tem que ver mais bem como uma modalidadede terapia psicológica pouco usada ou, ainda mais, com os espetáculos de variedades.Os manuais e teses revisados só chegam a inteligibilizar o problema do sonho, a hipnose e a simulação da loucura com o um ‘momento crepuscular’ e um ‘erro da percepção’, e no caso de Lillo, exige uma análise total do sujeito, que incluindo o corpo em a sua totalidade, a mente na sua possibilidade máxima de captura pelo saber científico e a biografia com seu objetivo totalizante sobre a vida dos indivíduos. Uma procura pelo ‘verdadeiro estado mental’ dos sujeitos que exige um sujeito totalmente a transluz. A embriaguez é o estado mais colonizado. Submetido a um regime de proibição que abrange desde o controle farmacrático, que ensaia doses com pacientes, a uma sociedade sim direito a usar veículos de ebriedade à vontade. O toxicômano em se é um sujeito de intervenção e radica esta no problema da vontade. Referências Bibliográficas ALLENDE, Salvador: Higiene mental y delincuencia. Tesis para optar al título de médico cirujano de la Universidad de Chile, 1933. Ediciones Chile América-CESOC. Santiago, 2005. ARROYO, Víctor: Contribución al estudio de la alucinación y del delirio. Pág. 27. Em Revista de Psiquiatría. Año VI. Enero junio. Nº 1 y 2. 1941. BOZA, Davila: Algunas Curaciones por el Hipnotismo.Revista Médica de Chile. V. 19. 1890-1891. P. 74-75. CAMUS Gayan, Pablo: Filantropia. medicina y locura: La Casa de Orates de Santiago. 1852-1894. Revista HISTORIA, Vol. 27, 1993. CASTILLO Velasco, Jaime: El sueño, el sonambulismo y la sugestión hipnótica como causales de irresponsabilidad criminal. 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Especialmente, por ser um encontro proposto e organizado por jovens pesquisadores, isto é, aqueles que darão prosseguimento aos estudos de história da ciência, ampliando e fortalecendo esse campo de saber no Brasil. Inicialmente, pensei em algumas possibilidades de abordagem do tema nas quais eu confrontaria as diferentes compreensões da ciência feitas por filósofos e historiadores, bem como as diferentes metodologias de abordagem dosaber científico praticadas por esses profissionais. Talvez, depois disso feito, no final, concluiria que filósofos e historiadores são profissionais que, sob muitos aspectos, trabalham de modo muito próximo e semelhante, às vezes se misturando, se confundindo um com o outro, ainda que, sob outros aspectos, existam profundas diferenças, ou para usar um termo já bastante gasto, haja uma incomensurabilidade entre eles. Esta seria a minha fala. Fala essa que eu não vou dizer. Pelo menos não vou dizer tão diretamente o que acabo de resumir. No lugar disso, dada a natureza, já assinalada, desse encontro procurarei dar um tom mais pessoal e tentar dizer o que me move a ponto de passar boa parte de minha vida tentando compreender o que é a história e filosofia da ciência. Faço isso na esperança de que possamos ter uma cumplicidade, mais até que profissional, quase que existencial. Afinal, vocês jovens historiadores da ciência passarão o resto de suas vidas envolvidos com as questões de nossa área e, certamente, isso muito marcará suas existências. Então, no breve texto que se segue, inicialmente, colocarei alguns pontos subjetivos (existenciais!) para estreitar essa nossa cumplicidade e depois, ao final, irei assinalar alguns aspectos que penso serem importantesnessa relação entre história e filosofia da ciência, e com isso, tentarei atender, minimamente, a demanda do que foi solicitado para essa mesa e, assim, não destoar muito de meus colegas. Esses pontos subjetivos são como que “pistas” para evitarmos certos preconceitos com relação à história da ciência, que fui vendo ao longo do caminho. Essas * Texto apresentado na mesa redonda “História e Filosofia da Ciência” no Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História da Ciência – Enapehc, Mariana – MG, 18 de outubro de 2013. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 473 pistas não são exatamente como os ídolos de Bacon (Mercado, Teatro, etc.) que nos cegam para o “avanço do conhecimento”, mas de algum modo tentam mostrar os preconceitos que dificultama consolidação plena da nossa carreira de historiadores e filósofos da ciência. I- O ídolo das origens: quem está autorizado a fazer história da ciência? Basicamente, sou um filósofo de formação com um grande e profundo encantamento pela história da ciência, isto é, com as aventuras e desventuras da humanidade em produzir conhecimento ao longo do tempo, em diferentes contextos, com diferentes propósitos, dificuldades, invenção e criatividade. Em especial, me encanta mais as ideias científicas – também seus contextos sociais de produção – surgidas na Europa de fins do século XIX e início do XX. Elas são plenas de aspectos filosóficos. Pela minha própria formação, advogo assim a tese de que não existe uma porta “única” de entrada na história da ciência. Existem várias! Seja pela história, seja pela filosofia, ou por qualquer uma das múltiplas formações científicas. Ignorem a idolatria da origem!Acolham todos! Interajam com todos! As ciências são multifacetadas e precisamos de todos para entender seu complexo processo histórico. Estimulem diferentes formações a fazer história da ciência. II- O ídolo das fontes: apenas o saber especializado nos interessa? Meu primeiro contato com a história da ciência se deu, sem que ao menos eu soubesse o que era história da ciência, através de um tipo de divulgação científica. Por volta dos meus 15 anos, semanalmente parava um carro biblioteca nas imediações da minha casa, do qual eupegava livros emprestados. Li com muito interesse toda uma enciclopédia sobre as aventuras das ciências naturais e também um pouco das ciências humanas.Depois de lido um livro, era uma grande expectativa esperar o carro biblioteca, na semana seguinte, para ler o próximo volume. Com isso aprendi que a inspiração e motivação pelo interesse na aventura da ciência pode se iniciar de muitos lugares e de diferentes fontes. Anos mais tarde, já professor, ao incluir na minha bibliografia para os estudantes de graduação um texto de divulgação científica, fui advertido por um dos colegas historiadores da ciência (a quem muito respeito, apesar disso) de que na minha bibliografia havia uma inconsistência: eu tinha cometido a heresia de incluir um texto de divulgação científica. Discordei completamente de meu colega. Discordei e discordo. Pra mim, a princípio, tudo Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 474 pode ser fonte. O importante é o que você faz com sua fonte. Qual o seu propósito com ela. Divulgação científica é um forte aliado para atrair a atenção dos jovens! Não hesitem em usá- las como estimulante para uma discussão e posterior leitura de textos mais técnicos. III- ídolo da centralidade (ou do patinho feio): ser historiador da ciência é algo menor frente a ser cientista? O historiador da ciência parece ser um constante “patinho feio”, seja entre os historiadores, seja entre os cientistas. A própria sociedade comete essa idolatria mesmo porque as pessoas não sabem exatamente o que o historiador ou o filósofo da ciência fazem.Todos ouvem falar dos cientistas, dos avanços da ciência, etc., mas vai lá explicar o que é um historiador da ciência para o senso comum. Quando meu filho mais velho tinha uns oito ou nove anos, na escola,a professora pediu para cada aluno fazer uma entrevista com seus pais sobre suas profissões. Sentei com o meu filho e comecei. João você já ouviu falar da ciência, né? “Lógico pai! Ela faz muitas coisas boas, resolve problemas e é um grande conhecimento. Gosto muito de ciências!” Pois é João, os cientistas vão pesquisando, inventando e descobrindo coisas. Como esse processo se dá no tempo, a ciência tem uma história! Assim, existem profissionais que fazem ciência, os cientistas, mas também existem aqueles que estudam essa história da ciência. E o seu pai faz essa segunda coisa! Eis que ele falou todo entusiasmado e em bom tom: “pai, que legal, você “quase” conseguiu” ser um cientista!” Não liguem para esse “quase”, tudo depende de um ponto de vista. Pense que o cientista “quase” se tornou um historiador da ciência, se tivesse ido um pouco além. Muitos dos meus orientandos de pós-graduação vindos de uma formação científica enfrentam algum tipo de preconceito de seus professores e colegas nos seus cursos de origem quando dizem que estão freqüentando a história da ciência. E o que é pior, às vezes eles sofriam esse preconceito também no Departamento de História. Acho que hoje a situação é melhor, pelo menos no Departamento de história da UFMG. Como costumo dizer,no caso da UFMG, é difícil atravessar a avenida que separa, de um lado, os institutos de ciência, e do outro, o Departamento de História. A pressão é grande, tanto externa quanto interna. Muitas vezes, eles próprios se cobram por terem essa “estranha” atração pela história e filosofia da ciência. A maioria desses alunos realmente tem uma trajetória brilhante em suas graduações científicas de origem (boas notas, bolsas de iniciação científica, etc.). E para quem iria ocupar o primeiro plano sendo um excelente cientista (potencialmente candidato ao Nobel!) ser Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 475 destinado à condição de historiador da ciência não parece, a princípio, algo mais do que um “patinho feio”.Na outra via, também os alunos da graduação em História parecem sofrer um tipo de preconceito similar, pois a história da ciência não goza, entre os historiadores, do mesmo grau de prestigio que a história política ou mesmo a história das artes e da cultura. Novamente, o historiador da ciência, dessa vez vindo da formação em História, parece também ser um “patinho feio”. Não se sintam incomodados com essa apenas “aparente”posição. A história da ciência não é um patinho feio. O nosso conhecimento, embora extremamente importante, é semelhante ao que Hegel disse sobre a filosofia que seria como “a coruja de Minerva que alça vôo ao entardecer”, isto é, a história da ciência, enquanto disciplina, é uma atividade que se realiza depois da produção do conhecimento científico e de seus impactos. Continuando com Hegel, ela também é “pintar o cinza sobre o cinza”, uma tarefa que não aparece como sendo a “central”, cabendo essa ao cientista com a sua produção do conhecimento científico. Contudo, não se trata de pensar uma “centralidade”em relação a uma “periferia” do conhecimento. O saber da história e filosofia da ciência é o saber da “transversalidade” ao processo de produção científica. O papel de nosso saber é, assim, nunca operar paralelamente a essa produção científica, mas sempre nos posicionar transversalmente a ela. Sendo transversal a essa produção tecno-científica, a história da ciência constitui um tipo de saber “inútil”, como caracterizado pelo filósofo Bertrand Russell em seu divertido livro Elogio do Lazer. (Russell, 1977)Podemos pensar a História da ciência como algo análogo ao conhecimento das humanidades no modelo da sociedade industrial quando essas não tinham uma “utilidade” direta na engrenagem de produção. Entretanto, no mundo contemporâneo essa relação ganha novas perspectivas. Inútil para a produção, mas essencial na compreensão dos processos de produção. Para compreendermos tais processos de produção científica e seus impactos nas sociedades contemporâneas torna-se importante a compreensão das várias possibilidades de conexões das múltiplas redes rizomáticas sociais, científicas e tecnológicas: a história da ciência é excelente para isso! Diria fundamental. Em outros termos, essa transversalidade (ou inutilidade) da história e filosofia da ciência, em contraposição à centralidade dos processos científicos e tecnológicos, é uma das ricas possibilidades de compreensão das razões dos ordenamentos (e desordenamentos) das redes sociais, científicas e tecnológicas que crescem em proporção vertiginosamente geométrica, dificultando, assim, nossa visão panorâmica, nosso entendimento da realidade. É preciso cada vez mais educar em história e filosofia da ciência não apenas as pessoas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 476 treinadas em ciência, os cientistas, mas também, os usuários daciência e da tecnologia. Assim, o cidadão poderá ter com o auxílio da reflexão oferecida pelo nosso conhecimento uma chave para compreender questões tais como a sua própria condição de homem moderno, fruto dessa sociedade tecno-científica. IV- Ídolo da instituição: em que departamento se deve praticar a história da ciência? Poucas universidades têm um departamento próprio de história da ciência, como por exemplo, a Universidade de Harvard. Assim, a história da ciência emerge em diferentes lugares: departamentos de filosofia, física, educação, institutos autônomos dentro de universidades, etc. Podemos até pensar que seria natural a história da ciência emergir em um Departamento de História, mas se formos analisar os múltiplos lugares em que ela surgiu, veremos que os departamentos de história estão em número reduzido. Em parte, por esse tipo de história agregar a ciência, elemento estranho ao corpus histórico. Essa parece ser uma das razões porque, segundo Carlos Maia (2013), a história da ciência se torna uma “história de historiadores ausentes”. Felizmente, esse quadro hoje já é muito melhor. Os historiadores da ciência começam a aparecer nos departamentos de história. Quando iniciei minha jornada em um departamento de história, há pouco mais de 20 anos, era professor de teoria da historia, algo que era permitido, mas alguns anos depois quando fui para a UFMG ser responsável pela sua primeira disciplina obrigatória de história da ciência o tom mudou um pouco. Na primeira assembléia departamental da qual participei um de meus colegas olhou para mim e manifestou seu descontentamento em um bom tom de voz: “Não é nada pessoal, mas aqui não é lugar de história da ciência. Isso é coisa de filósofo, por isso que um filósofo foi aprovado no concurso. Isso deveria estar no departamento de filosofia ou em algum outro de ciências”. Diante desse quadro pouco receptivo, a solução foi me alinhar com algumas pessoas do Departamento de História e com vários simpatizantes de história da ciência nos outros departamentos. Portanto, se organizem! A divisão do saber não é apenas epistemológica, mas, na prática, é uma divisão política. Se associem, busquem aliados, façam barulho! V- O ídolo do hibridismo: história da ciência é mais que história? Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 477 Certamente, a história da ciência não é apenas história, mas é também ciência, o que nos leva a incorporar no corpus da história saberes externos a ela. Entretanto, até mesmo para as outras disciplinas da história isso se dá. Antes de tudo, é impossível ao historiador não se aproximar de outras disciplinas científicas. (ou pelo menos é altamente recomendável que ele se aproxime) O que seria de um historiador sem um bom conhecimento de antropologia, sociologia, filosofia, etc.? Essas disciplinas são fundamentais na própria constituição do saber do historiador. É certo que elas são mais próximas da história e mais afins do métier do historiador do que disciplinas como fisiologia, genética, álgebra linear, engenharias, etc, uma vez que essas últimas parecem não ter uma influência tão grande na formação do saber histórico. Na maioria das vezes, elas entram nessa relação como objetos da história da ciência, visto que são objetos plenos de historicidade, ainda que certas correntes positivistas tentasse negar isso. Contribuindo para formatar a teoria e metodologia da história ou apenas sendo objeto do conhecimento histórico, o mecanismo de aprender um conhecimento científico fora da disciplina história é o mesmo. É preciso ter interesse e paciência para adquirir esse campo de saber estrangeiro. É preciso buscar a lógica do funcionamento teórico metodológico, bem como as inserções sociais da ciência que se estuda. É preciso enfrentar os desafios de discursos e práticas diferentes do nosso saber. Contudo, ao fim e ao cabo, não estaremos fazendo algo diferente de história. Uma história que, inclusive, por vezes, o cientista não se reconhecer nela.Como dito antes, o saber da história da ciência é transversal à produção do conhecimento científico e nesse sentido é um saber genuinamente histórico. Com efeito, ainda que a história da ciência não seja apenas história, quando analisa objetos muitas vezes inusitados à maioria dos historiadores, ela é história. Enfim, não é só história, mas é essencialmente história. * * * Por fim, agora direi algo sobre a relação entre história e filosofia da ciência.O ponto que ressalto é que, na realidade, essas são três disciplinas distintas, ainda que extremamente próximas. (1) História da ciência, (2) filosofia da ciência e a terceira que trabalha simultaneamente e de forma e integrada com aspectos das duas primeiras (3) é a história e filosofia da ciência. Sabemos por autores como LudwikFleck que, “Qualquer teoria do Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 478 conhecimento sem estudos históricos ou comparados permaneceria um jogo de palavras vazio, uma epistemologia imaginária (Epistemologia imaginabilis)”(Fleck, 2010)ou ainda com Imre Lakatos, inspirado em Kant,asseverou décadas mais tarde, “A Filosofia da ciência sem a história da ciência é vazia; a História da ciência sem a filosofia da ciência é cega”.(Lakatos, 1998) Essa relação entre filosofia e história, assim, nos parece imprescindível. Certamente, uma área tem muito a ganhar com a outra e vice-versa. É possível ser influenciado pela filosofia e fazer um trabalho nitidamente de história, assim como é possíveltambém o contrário, ser inspirado pela história e fazer um trabalho nitidamente de filosofia. Na relação entre história da ciência e filosofia da ciência, enquanto disciplinas distintas, embora o objeto ciência seja o mesmo, por ser abordado por metodologias distintas, geradas por intenções distintas, como mostrou Kuhn em seu texto sobre História da Ciência e Filosofia da ciência (Kuhn, 1977), o resultado final de ambos saberes é distinto. Contudo, existe um trabalho extremamente imbricado entre história e filosofia realizado por uma longa tradição de autores como Koyré, Zilsel, Kuhn, Fleck, Bloor, Rossi, etc. Essa é uma tradição de história e filosofia da ciência, em que não se pode fazer nitidamente uma distinção entre o que é a história e o que é a filosofia. O que esses historiadores-filósofos da ciência buscaram realizar não foi apenas compreender a história da ciência, mas terminaram por desenvolver modelos teóricos explicativos do desenvolvimento da história da ciência. Esses diferentes modelos elaborados por cada um dos historiadores- filósofos acabaram por ter um comprometimento com a imbricação entre história e filosofia em suas sustentações imbricação como fundante dessas sustentações teóricas (ou modelos explicativos do comportamento das ciências), isto é, se separarmos a filosofia da ciência desses autores de suas histórias, elas não fazem sentido. Talvez por isso Fleck chegue a falar de uma “ciência da ciência” (Fleck, 1986), incluindo ai a história, a filosofia, a sociologia interagindo para nos fornecer a compreensão de todo o complexo que produz um dado estilo de pensamento cientifico. Desvincular esses aspectos históricos, filosóficos e sociológicos é destruir qualquer possibilidade de compreensão da ciência e de sua história. Muito Obrigado! Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 479 ReferênciasBibliográficas KUHN, T., “The relations between the history and the philosophy of science”. In. The essential Tension. Chicago: The university of Chicago press, 1977. FLECK, L.,Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. __________., “Problems of the science of the science”. In. Cognition and facts. Boston: D. Reidel Publishing Conpany, 1986. MAIA, C., História das ciências: uma história de historiadores ausentes. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. RUSSELL, B.,Elogio do lazer. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. LAKATOS, I., História da ciência e suas reconstruções racionais e outros ensaios. Lisboa: Edições 70, 1998. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 480 O LEVIATÃ E BOMBA DE VÁCUO: ACORDO E SEPARAÇÃO, A DUPLA CRIAÇÃO DA NATUREZA E DO CONTEXTO SOCIAL Naiara Prato Cardoso Fundação Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde [email protected] Resumo: Esta comunicação tem como tema o estudo das controvérsias e o princípio da simetria no campo da nova historiografia das ciências. Tomamos como fio condutor da análise o diálogo que Bruno Latour, em Jamais Fomos Modernos, estabelece com o trabalho de Steven Shapin e Simon Schaffer, O Leviatã e a Bomba de Vácuo: Hobbes, Boyle e a vida experimental. A disputa entre Thomas Hobbes e Robert Boyle em torno do artefato construído por este último, por meio do qual os experimentadores provocavam o vácuo e investigavam o comportamento mecânico dos gases, é uma controvérsia considera exemplar no estudo de Shapin e Schaffer e escolhida por Latour para discutir a constituição da Modernidade e o que chama de separação entre o mundo natural e o mundo social, a dupla criação da natureza e do contexto social. Palavras-chave: nova historiografia das ciências, estudo das controvérsias, simetria. Abstract: This communication has as its theme the study of controversies and the principle of symmetry in the field of new historiography of science. The analysis thread is the dialogue that Bruno Latour, in We were never Modern, establishes with the work of Steven Shapin and Simon Schaffer, Leviathan and Air-Pump: Hobbes, Boyle and the experimental life. The dispute between Thomas Hobbes and Robert Boyle around the artifact built by the latter, whereby experimenters caused the vacuum and investigated the mechanical behavior of gases is a controversy considers exemplary in study of Shapin and Schaffer and chosen by Latour to discuss the constitution of modernity and what he calls separation between the natural world and the social world, the pair creation of nature and social context. Keywords: new historiography of science, the study of controversies, symmetry. O tema deste trabalho é o estudo das controvérsias no campo da nova historiografia das ciências. O cenário de fundo é a Restauração Inglesa (após o período de sete anos de guerra civil, 1642-1649, entre os partidários do rei Carlos I e os parlamentaristas) e a disputa entre Thomas Hobbes e Robert Boyle em torno do artefato construído por este último, através do qual os experimentadores provocavam o vácuo e investigavam o comportamento mecânico dos gases. A controvérsia entre Hobbes e Boyle é considerada exemplar no estudo de Steven Shapin e Simon Schaffer O Leviatã e a Bomba de Vácuo: Hobbes, Boyle e a vida Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 481 experimental (1985). Ao se debruçarem sobre o tema, os autores tratam das circunstâncias históricas nas quais o experimento surgiu como um meio sistemático de gerar conhecimento sobre a natureza e de como as práticas científicas se institucionalizaram tendo como base a produção experimental dos fatos. Bruno Latour, em Jamais Fomos Modernos (1991), se dedica a analisar a separação moderna entre o mundo natural e o mundo social. Para este autor, os fatos científicos são construídos, mas não podem ser reduzidos ao social, porque também o social está povoado de objetos para construí-lo. Defende então que tais fatos sejam estudados em suas redes 1 , pois são ao mesmo tempo reais como a natureza, narrados como o discurso e coletivos como a sociedade. A partir de um problema delimitado - por que as redes são incompreensíveis? -, Latour se propõe a investigar uma questão mais ampla: o que é um moderno? Ele considera que o moderno assinala uma ruptura entre um passado “arcaico” e também o estabelecimento de “ganhadores e perdedores”. É, portanto, duas vezes assimétrico. Sua hipótese é que o moderno designa conjuntos de práticas totalmente diferentes que permanecem eficazes apenas enquanto forem distintas. O primeiro conjunto cria, por tradução, misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo origina, por purificação, duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos e a dos não- humanos. O primeiro conjunto produziria as redes, e o segundo, a crítica (LATOUR, 1994, p.16). Para descrever esta constituição da modernidade, Latour se concentrará sobre a controvérsia entre Boyle e Hobbes, a partir do estudo de Shapin e Schaffer. Como descrever esta Constituição? Escolhi concentrar-me sobre a situação exemplar, no início de sua escrita, em pleno século XVII, quando Boyle, o cientista, e Hobbes, o cientista político, discutem entre si a respeito da repartição dos poderes científicos e políticos. Esta escolha poderia parecer arbitrária se um livro notável [O Leviatã e a Bomba de Vácuo] não tivesse acabado de se agregar a esta dupla criação de um contexto social e de uma natureza que lhe escaparia. Boyle e seus descendentes, Hobbes e seus seguidores irão servir-me de exemplo e resumo para uma história muito mais longa que sou incapaz de retraçar aqui, mas que outros, mais bem equipados que eu, irão sem dúvida narrar. (LATOUR, 1994, p. 21) 1 Conjunto de posições na qual um objeto adquire significado, em meio a dispositivos que mesclam humanos e não-humanos. A facticidade de um objeto é relativa apenas a associações e substituições que este estabelece em uma rede (LATOUR, 2001). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 482 Neste ensaio pretendemos evidenciar alguns aspectos desse diálogo que Latour empreende com os autores de O Leviatã e Bomba de Vácuo, como fio condutor para uma reflexão sobre o estudo das controvérsias e do princípio da simetria no campo da historiografia das ciências. A seguir, retomamos brevemente o desenvolvimento dos estudos sobre história das ciências ao longo do século XX e o surgimento, entre os anos 1970 e 1980, de grupos de revisionistas e de uma nova historiografia. No capítulo seguinte, nos ateremos à análise do trabalho de Shapin e Schaffer e, ao final, recuperamos o diálogo que Latour estabelece com estes autores em sua análise sobre a constituição da modernidade. A nova historiografia das ciências e o estudo das controvérsias O surgimento da historiografia das ciências prioriza a importância da Revolução Científica dos séculos XVI e XVII como um problema histórico delimitado - um movimento contra a filosofia escolástica e aristotélica - e consagra tal período como o início das ciências modernas. A designação Revolução Científica se aplica ao período de 150 anos que vai desde a publicação da obra de Copérnico A Revolução das Esferas Celestes (1543), até Newton, com os Princípios Matemáticos da Filosofia da Natureza (1687). Considera-se que, no decorrer do século XVI, mas, sobretudo, no século XVII, é criada uma nova comunidade de filósofos da natureza, da qual se desenvolverão posteriormente as diversas comunidades científicas. Conforme Kostas Gavroglu (2007), nestes primeiros estudos o modelo predominante era o de um desenvolvimento cumulativo da ciência, numa relação dialética entre teoria e experimentação, que afastava qualquer relação a fatores externos, culturais e ideológicos. Tinham por finalidade a apresentação de algo excepcional, uma história heróica, na qual se analisavam os grandes feitos, dos grandes homens, tendo como palco privilegiado a Europa Ocidental, enquanto receptora da herança grega. A década de 1930 representa um momento importante para os historiadores da ciência. Irá presenciar as primeiras tentativas de se ultrapassar esse modelo positivista. É quando começa a ganhar forma a dimensão sociológica nos estudos sobre história das ciências. Como exemplos, os trabalhos de Merton, Zilsest, Hessen e Bernal. Em sua tese Puritanismo e Ciência (1936), Robert Merton firma a ciência dos séculos XVI e XVII como algo útil, aplicado às necessidades do capitalismo e da navegação. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 483 Para Merton, o conhecimento é socialmente situado. A variedade de formas de conhecimento, resultado de diferentes estruturas mentais, em diferentes conformações históricas. Sua análise rompe com a tradição idealista de autonomia plena das ciências. As ideias não progridem em termos de leis imanentes, não são frutos de mentes privilegiadas e nem objetos suprassociais. É uma perspectiva histórica, que caminha para a compreensão, com forte influência das teorias sociológicas de Max Weber, ao esforçar-se em elaborar uma estrutura típica ideal das ciências 2 . Ricardo Roque (2002) assinala que foi nessa sociologia da ciência mertoniana que Steven Shapin - um dos autores de O Leviatã e Boba de Vácuo - foi treinado e onde primeiro se confrontou com o problema da relação entre a ciência e o contexto social. No período pós Segunda Guerra Mundial, o estudo sobre as ciências vê-se dividido em face a duas abordagens: o externalismo, figurando, grosso modo, como uma leitura sociológica das ciências; e o internalismo, cujo principal representante talvez tenha sido Alexandre Koyré, ocupando-se dos conteúdos cognitivos. Segundo o próprio Shapin 3 (1998 apud ROQUE, 2002), a sociologia de Merton supunha a existência de fronteiras claras entre ciência e sociedade. E é contra essa divisão ontológica, organizadora dos modelos explicativos sobre internalismo e externalismo que Shappin e autores que Roque classifica como ‘revisionistas’ das décadas de 1970 e 1980 se voltam, na tentativa de reunir numa mesma explicação elementos cognitivos e sociais. E será através do estudo das controvérsias científicas que essa nova historiografia das ciências se mostrará mais atuante. Mas, antes de nos determos sobre o tema das controvérsias, faz-se necessário voltarmos a 1962 e a publicação de A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn, na Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada. Ao se interessar em saber como um paradigma se institucionaliza e como é substituído por outro, o trabalho de Kuhn representou, ele mesmo, a emergência de novo paradigma 4 que reconfigura o campo da história das 2 Segundo o próprio Merton, seu trabalho é um esforço para ampliar a linha de pesquisa de Weber e sua hipótese sobre o papel do protestantismo ascético. Merton afirma que em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo Weber não faz uma investigação análoga sobre as relações entre os protestantes e o desenvolvimento das ciências, mas aponta essa como uma tarefa a ser realizada. (MERTON, 1979, p. 696) 3 SHAPIN, Steven. “Understanding the Merton thesis”. Isis, 1979, p. 594-605. 4 O conceito de paradigma de Kuhn é algo complexo e, desde o lançamento de A Estrutura das Revoluções Científicas, tem sido objeto de críticas e tema de diversos outros trabalhos. Não pretendemos aqui nos alongar sobre a definição Kuhniana do termo, isso demandaria um trabalho específico. De modo sintético, Kuhn considera paradigmas como estritamente relacionados à ciência normal, são as realizações científicas universalmente reconhecidas e que durante algum tempo fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes da ciência. No posfácio de 1969, o autor faz uma revisão do termo, explicando-o em dois sentidos. O primeiro sentido é um sentido sociológico, indicativo de crenças, valores e técnicas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 484 ciências tentando resolver as questões acima descritas. Assim como Merton, Kuhn confere grande importância à adesão a valores como um elemento central para a compreensão da atividade científica, considerando a ciência como uma prática que se define a partir de um conjunto de crenças, princípios e normas compartilhados por uma determinada coletividade (KROPF e LIMA, 1998). Ao enfrentar o problema da mudança descontínua, Kuhn aproxima e cria o campo de diálogo entre filosofia, história e psicologia (perspectiva sócio-cognitiva). Ele recorre e aprofunda o uso de ferramentas anteriormente já utilizadas por Ludwik Fleck (Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico, 1935) no campo da filosofia da linguagem (teorias dos jogos e formas de vida, de Ludwig Wittgenstein 5 ) e da psicologia da percepção (Gestalt 6 ), abrindo a chave onde a cognição e o social podem ser analisados sem necessariamente incorrer na divisão ontológica entre internalismo e externalismo. Futuramente essa será a dimensão das práticas, da ciência sendo feita, do laboratório, sobre a qual a nova historiografia das ciências irá se deter, principalmente através do estudo das controvérsias. Em 1976, David Bloor publica seu livro Conhecimento e Imaginário Social, no qual apresenta o que chamou de ‘Programa Forte da Sociologia do Conhecimento’. Seu objetivo era combater as concepções de que o conhecimento científico não poderia ser objeto de uma investigação sociológica (por exemplo, as posições de Imre Lakatos e Karl Popper), pois não necessitaria de explicações causais por ser uma crença “verdadeira, racional e objetiva”. Nessa acepção, as causas sociais eram identificadas como fatores extrateóricos, associadas apenas para a compreensão dos erros (BLOOR, 2009, p. 17-22). Bloor pretendeu resolver tais questões fugindo ao contexto internalismo X externalismo. O Programa Forte foi uma objeção teórica a tais abordagens do conhecimento científico e uma crítica à concepção de que a noção social de conhecimento só explicaria o erro na história das ciências. Ao definir o Programa Forte, o autor propõe quatro princípios que a sociologia do conhecimento deve seguir: compartilhadas pelos membros de uma determinada comunidade científica. O segundo sentido seria um sentido filosófico, envolvendo realizações passadas de natureza exemplar para soluções de quebra-cabeças (a ciência normal é entendida por Kuhn como uma atividade de resolução de quebra-cabeças), empregadas como modelos e ou exemplos, que podem substituir regras explícitas. (KUHN, 1987) 5 Em seu estudo sobre o uso da linguagem, Wittgenstein entende que as crianças aprendem a língua materna por meio de ‘jogos de linguagem’, o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada. Aprendem a usar determinadas palavras e expressões num contexto determinado. Esses jogos são formados por ‘semelhanças de família’. Um ‘jogo de linguagem’ é uma forma de atividade social, procede de uma ‘forma de vida’, das práticas e das instituições nas quais nossos atos se tornam significativos. (Ibidem) 6 Psicologia da forma. Traz a concepção de que não se pode conhecer o todo de um objeto através de suas partes e sim as partes por meio de um conjunto. Só assim o cérebro interpreta e incorpora o uso de uma imagem ou ideia. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 485 1. Ela deverá ser causal, ou seja, interessada nas condições que ocasionam as crenças ou os estados do conhecimento. Naturalmente, haverá outros tipos de causas além das sociais que contribuirão na produção da crença. 2. Ela deverá ser imparcial com respeito à verdade e à falsidade, racionalidade e irracionalidade, sucesso ou fracasso. Ambos os lados dessas dicotomias irão requerer explicação. 3. Ela deverá ser simétrica em seu estilo de explicação. Os mesmos tipos de causa deverão explicar, digamos, crenças verdadeira e falsas. 4. Ela deverá ser reflexiva. Seus padrões de explicação terão que ser aplicáveis, a princípio, à própria sociologia. Assim como a condição de simetria, essa é uma resposta à necessidade de busca por explicações gerais. É uma óbvia condição de princípio, pois, de outro modo, a Sociologia seria uma constante refutação de suas próprias teorias. (BLOOR, 2009, p. 21) Para Bloor, a ciência é toda forma de conhecimento capaz de firmar explicações teóricas causais, que podem ser demonstradas empiricamente, experimentalmente e historicamente. Com influências da obra de Kuhn, vê a ciência como uma cultura que se expressa através de valores e práticas compartilhadas pelos cientistas. Sua diferença em relação a outras formas de conhecimento seria apenas o rigor do método. Mas a influência de Kuhn aparece também em formulações teóricas mais elaboradas no interior do Programa Forte, como a referência ao pensamento de Wittgenstein e sua teoria dos jogos de linguagem, que influenciarão marcadamente os trabalhos no campo da nova historiografia das ciências. Segundo Bloor, nenhum estudo pode merecer o nome de sociologia ou de história das ciências caso não leve em conta tanto o contexto social quanto o conteúdo científico. Para obter esse efeito, exige que todas as explicações do desenvolvimento científico sejam simétricas. Em 1979, atuando dentro dos modelos propostos por Kuhn e Bloor, Bruno Latour publica A Vida de Laboratório: a produção dos fatos científicos. Neste trabalho Latour elabora uma etnografia das ciências, realizando um exame profundo das atividades cotidianas do laboratório. Seu objetivo é a dessacralização da atividade científica, ao tentar torná-la equivalente a outras formas de conhecimento. Ele abandona a ideia da ciência como conhecimento e a aborda enquanto práticas concretas localizadas no espaço do laboratório. De Bloor, Latour conserva o princípio da simetria como noção chave para as explicações do desenvolvimento científico, esforçando-se para reestabelecer uma simetria de tratamento entre os vencidos da história das ciências e os vencedores. “[...] ou as explicações sociais, psicológicas e econômicas são usadas para explicar porque um cientista enganou-se, e, então elas não têm valor, ou devem ser empregadas simetricamente, de modo a explicar Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 486 porque esse cientista errou e porque aquele acertou [...]”. Segundo Latour, o princípio da simetria constitui a “base moral” de seu trabalho, de tal modo que pretende um trabalho duplamente simétrico, empenhando-se por reelaborar a construção entre natureza e sociedade, já antecipando o esforço que empreenderá 12 anos depois em Jamais Fomos Modernos (LATOUR, 1997, p.22-23). Para Latour, o principal interesse das controvérsias reside em por em jogo a natureza dos objetos científicos aos quais chega, delineando o coletivo ao qual se liga o objeto e permitindo ao historiador distinguir as diversas maneiras de se conceber as relações entre os sujeitos e os objetos que fazem a ciência (LATOUR, 1996). Em A Vida de Laboratório, Latour pretende fazer uma etnografia das ciências e se coloca como um observador que utiliza os cientistas do Laboratório de Neuroendocrinologia do Instituto Salk, na Califórnia, como informantes. Interessa-se pelo discurso científico e a dimensão cognitiva do conhecimento como um etnógrafo que estuda uma tribo exótica. À maneira dos antropólogos, objetiva por ‘ordem e compreensão’ à ‘desordem e confusão’ de um laboratório de biologia, buscando dar significado às pesquisas empreendidas pelo grupo chefiado pelo cientista Roger Guillemin, sobre o hormônio TRF (Thyrotropin-Releasing Hormone ,um estimulador da glândula hipófise). Este livro de Latour terá influência sobre o estudo de Shapin e Schaffer em torno da controvérsia entre Hobbes e Boyle, o que é explicitado pelos autores quando apontam a contribuição da microssociologia para a compreensão do experimento científico. Shapin e Schaffer defendem em O Leviatã e a Bomba de Vácuo a adoção, do que chamam de “perspectiva do estrangeiro” na investigação da cultura experimental. Queremos aproximar a nossa “cultura” do experimento, tal como sugere Alfred Schutz que se aproxime um estrangeiro da cultura de outros, “não como um refúgio, mas como um campo de aventura, não como algo seu, mas como um tema questionável de investigação; não como um instrumento que permite sondar situações problemáticas, mas, em si mesma, como uma situação problemática e difícil de dominar”. Se pretendemos ser estrangeiros na cultura experimental, podemos buscar nos apropriarmos de uma grande vantagem que isso possui frente aos membros da cultura, explicando as crenças e práticas da cultura específica que trata: o estrangeiro está em uma posição adequada para saber se há alternativas a essas crenças e práticas. A consciência das alternativas e relevância do plano explicativo vão juntas. (SHAPPIN e SCHAFFER, 2005, p. 33. Tradução nossa) Mais adiante, Shapin e Schaffer destacam o que consideram como vantagens do estudo das controvérsias a partir de tal perspectiva: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 487 Como pode um historiador julgar ser um estrangeiro a respeito da cultura experimental, uma cultura com a qual compartilhamos um passado e da qual somos fundadores? Um dos modos que podemos utilizar é identificar e examinar episódios de controvérsias no passado. Deste nosso ponto de vista, as instâncias históricas de controvérsias sobre os fenômenos naturais ou práticas intelectuais têm duas vantagens. Uma é que muitas habitualmente envolvem desacordos acerca da realidade de entidades ou propriedades cuja existência ou valor são subsequentemente tomadas como não problemáticas [...]. Outra vantagem associada ao estudo de controvérsias é que os atores históricos frequentemente desempenham um papel análogo ao nosso pretendido estrangeiro: no transcurso da controvérsia tentam desconstruir as crenças e práticas preferidas de seus antagonistas que foram sedimentadas, e fazem isso tratando de exibir o caráter artificial e convencional dessas crenças e práticas. (SHAPPIN e SCHAFFER, 2005, p. 34. Tradução nossa) Boyle X Hobbes: o estudo de Shapin e Schaffer O tema deste trabalho de Shapin e Schaffer, de 1985, é o experimento. Os autores buscam compreender a natureza e o estatuto das práticas experimentais e seus produtos intelectuais. Às perguntas que elaboram, procuram respostas que sejam de caráter histórico e, para tanto, tratam das circunstâncias históricas nas quais o experimento surgiu como meio sistemático para gerar conhecimento sobre a natureza e de como as práticas científicas se institucionalizaram, tendo nos fatos produzidos experimentalmente o fundamento para o conhecimento científico “apropriado”. Escolhem estudar o que consideram como um “grande paradigma do procedimento experimental”, as investigações sobre o ar de Robert Boyle e o emprego da bomba de vácuo (SHAPIN e SCHAFFER, 2005, p.29-30). Tomando o desacordo entre Boyle e Hobbe (autores que hoje classificamos como fundadores, respectivamente, da ciência e da política modernas), Shapin e Schaffer colocam em prática uma “arqueologia da separação entre ciência e sociedade”, a mesma divisão que os filósofos experimentalistas do século XVII se esforçaram por estabelecer (ROQUE, 2002, p.699). No âmbito do estudo das controvérsias, estes autores consideram um erro o historiador apropriar-se e validar a posição de apenas uma das partes e apontam a importância de se destacar estratégias construtivas e desconstrutivas empregadas por ambos os lados. Entre as razões que dificultam a análise dos historiadores em relação a Hobbes e Boyle, destacam o fato da figura de Hobbes ter desaparecido da literatura como filósofo natural e o fato de se estabelecer que o conhecimento rejeitado não é conhecimento, e sim um erro. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 488 A criação da Royal Society (da qual Boyle foi um dos fundadores), em fins de 1660, consagrou o método experimental como fundamento sólido para o conhecimento da natureza. Hobbes se opôs não somente ao experimento em si, mas também ao programa experimental como meio para se alcançar tal conhecimento, devido a considerar que este não era filosófico e, justamente, por não ser filosófico, não poderia gerar um tipo de certeza apropriada. Boyle partilhava da posição de Descartes de que a indagação causal deveria ser segregada da tarefa principal da filosofia natural. Para ele, as hipóteses sobre causas eram suposições e deveriam ser vistas como periféricas na produção dos fatos. Em contraste, Hobbes não desprezava que nossos conhecimentos das causas naturais eram conjecturais e as indagações causais deveriam formar uma das bases e um dos pontos de partida para qualquer empresa filosófica. O ataque do velho Hobbes ao programa de Boyle provinha da consideração de que os procedimentos experimentais careciam de força compulsiva própria da verdadeira filosofia. Tanto o programa de Boyle como de Hobbes estavam igualmente interessados no problema da convicção do conhecimento, mas as soluções eram radicalmente distintas. Na visão de Boyle, o conhecimento deveria assegurar-se por meio da produção de resultados experimentais, transformados em fatos através de testemunhos coletivos. Um indivíduo acordaria com outro indivíduo aquilo que havia presenciado e acreditado. Hobbes não era contrário à via experimental, mas considerava o conhecimento produzido deste modo inferior à filosofia (só a filosofia, para Hobbes, é que levaria à certeza coletiva). Para ele a guerra civil poderia surgir a partir de qualquer programa que não assegurasse a compulsão absoluta 7 . O que para os membros da Royal Society era uma estratégia liberal, para Hobbes abriria a porta da guerra de todos contra todos. Para o autor de Leviatã: Qualquer solução eficaz ao problema do conhecimento era uma solução de ordem. Essa solução deveria ser absoluta [...]. Todos os homens fazem e sustentam a sociedade, devido ao que todos os homens que possuem razão natural podem ver que é de seu interesse que o Leviatã seja criado e mantido. (SHAPIN e SCHAFFER, 2005, p. 216-217. Tradução nossa). Para Hobbes, a filosofia era o quê o Leviatã deveria ser para a sociedade: a força da lógica é a mesma força do Leviatã delegada pela sociedade, trabalhando na capacidade de 7 Em Leviatã, Hobbes explana seu ponto de vista sobre a natureza humana e sobre a necessidade de governos e sociedades. No estado natural, cada homem tem direito a tudo e, uma vez que as coisas são escassas, existe uma constante guerra de todos contra todos. No entanto, é de interesse dos homens acabar com a guerra e por isso formam o contrato social, delegando parte de sua liberdade a uma autoridade que possa assegurar a paz interna. Hobbes entende que os homens só podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 489 racionalidade natural de todos os homens. Já o programa de Boyle defendia uma fronteira estrita entre filosofia natural (no que estava incluído Deus) e a discussão política. Na visão de Hobbes a filosofia civil e a filosofia natural se pertenciam, todavia, a teologia deveria ser posta a parte porque não podemos conhecer o incognoscível e devemos tomar como doutrina o que o Leviatã estabelece. Assim, conforme Shapin e Schaffer (2005, p.218), “o Leviatã e a bomba de vácuo eram produtos de formas diferentes de vida social”. Os autores consideram o método científico como uma parte integrante de certos padrões de atividades, do mesmo modo que para Wittgenstein a expressão ‘jogo de linguagem’ deve destacar que falar a linguagem forma parte de uma atividade ou de uma forma de vida. Em O Leviatã e Bomba de Vácuo: Hobbes, Boyle e a vida experimental, Shapin e Schaffer revisitam o tema da Revolução Científica a partir de uma nova perspectiva. Eles se voltam para o laboratório enquanto espaço de produção do conhecimento e do próprio cientista, interessando-se por quem são e por como se organizam os produtores de conhecimento no século XVII. Ao fazerem isso, não fazem apenas história das ciências, fazem também uma história política que tem como ponto central a Guerra Civil na Inglaterra e a Restauração. Hobbes se preocupa com a ciência política sem distinguir entre natureza e sociedade, seu árbitro é o Leviatã e não a comunidade científica. Já Boyle, coloca o laboratório como centro de cálculo. Shapin e Schaffer (2005) consideram que as soluções para o problema do conhecimento são soluções de ordem social. Dessa forma, a história se relaciona com a política de três maneiras: 1) Os praticantes da ciência são criados, selecionados e mantêm uma organização política dentro da qual operam e elaboram suas práticas intelectuais. 2) A produção intelectual realizada dentro dessa organização política torna-se um elemento de atividade política do Estado. 3) Existe uma relação condicional entre a natureza da organização política ocupada pelos intelectuais científicos e a natureza da organização política em sentido mais amplo. Os autores concluem que a atividade científica, o papel do cientista e a comunidade científica sempre foram dependentes. O nascente laboratório da Royal Society e outros Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 490 espaços experimentais estavam produzindo coisas, no âmbito da economia, política, religião e cultura, que eram amplamente necessárias na sociedade inglesa da Restauração, de tendências já liberalizantes, e assegurando suas ideias e espaços. Latour: acordo e separação na constituição da modernidade Conforme Latour, em Jamais Fomos Modernos (1991), a modernidade implicou na criação e separação conjuntas da humanidade, da não-humanidade (coisas, objetos) e também “na criação de um Deus suprimido, fora do jogo”, sendo que, ao mesmo tempo, “híbridos” de natureza e cultura continuaram a se multiplicar. Essa separação moderna entre o mundo natural e o mundo social teve um caráter constitucional. “Constituição” é nome que dá ao “texto comum que define esse acordo e essa separação” (LATOUR, 1994, p.19). Para o autor, a tarefa da antropologia do mundo moderno consiste em descrever da mesma maneira como se organizam nossos governos, incluindo natureza e ciência, e também explicar porque esses ramos se separam e os múltiplos arranjos que os reúnem: Da mesma forma que a constituição dos juristas define os direitos e deveres dos cidadãos e do Estado, o funcionamento da justiça e as transmissões de poder, da mesma forma esta Constituição que escrevo com maiúscula para distingui-la da outra – define humanos e não-humanos, suas propriedades e suas relações, suas competências e agrupamentos. (LATOUR, 1994, p. 21) Para descrever esta “Constituição”, escolhe então concentrar-se na controvérsia entre Thomas Hobbes e Robert Boyle, por ele também considerada exemplar. Toma como base o trabalho de Shapin e Schaffer, O Leviatã e a bomba de vácuo, o qual qualifica como “um verdadeiro trabalho de antropologia comparada que leva a ciência a sério”, ao lidarem com “o próprio fundamento da filosofia política”. “Ao invés de uma assimetria e de uma divisão – Boyle com a ciência, Hobbes com a teoria política – Shapin e Schaffer traçam um belo quadro: Boyle possui uma ciência e uma teoria política; Hobbes uma teoria política e uma ciência” (LATOUR, 1994, p.22). Hobbes e Boyle concordam em quase tudo, ambos desejam um rei, um parlamento, uma Igreja unificada e ambos são adeptos da filosofia mecanicista. Mas suas opiniões divergem quanto ao que deve ser esperado da experimentação, do raciocínio científico, das formas de argumentação política e da bomba de vácuo. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 491 Hobbes quer terminar a guerra civil e a interpretação livre da Bíblia através de uma unificação do corpo político. Mas Boyle e a Royal Society surgem para dividir tudo de novo: Alguns cavalheiros proclamam o direito de possuir uma opinião independente, em um espaço fechado, o laboratório, e sobre o qual o Estado não exerce nenhum controle. E quando estes agitadores alcançam um acordo entre eles, não é através de uma demonstração matemática que todos seriam forçados a aceitar, mas sim, através de experiências observadas pelos sentidos enganosos, experiências que permanecem sem explicação e pouco conclusivas [..]. O conhecimento e o poder estarão novamente divididos. As imagens estarão “duplicadas”, segundo a expressão de Hobbes. Estas são as advertências que ele dirige ao rei para denunciar a Royal Society. (LATOUR, 1994, p. 25-26) A admiração declarada de Latour pelo trabalho de Shapin e Schaffer deve-se, além do esforço em conferir um tratamento simétrico à controvérsia entre Hobbes e Boyle, também ao fato de estes autores adentrarem ao mundo das práticas e das redes, a partir de uma análise que gira em torno de um objeto, que é a bomba de vácuo. Latour nos mostra como Hobbes e Boyle inventam o mundo moderno, “um mundo no qual a representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social”. Em seu debate, os descendentes de Hobbes e Boyle nos fornecem recursos que usamos até hoje: de um lado, a força do social, o poder; de outro, o natural, o mecanismo. (LATOUR, 1994, p.33). Embriões congelados, o vírus da AIDS, buracos na camada de ozônio, robôs com sensores pertencem ao domínio da natureza ou ao domínio da cultura? Enquanto acreditamos que as práticas de tradução (misturas entre gêneros, híbridos de natureza e cultura) e purificação (separação em zonas ontológicas distintas, de humanos de um lado e não- humanos de outros) ocorriam de maneira independente, podíamos nos definir como modernos. Todavia, ao nos darmos conta de sua simultaneidade, deixamos de sê-lo, em última instância, tradução e purificação nunca deixaram de atuar juntas, é o que nos conclui Latour ao longo de seu trabalho: o mundo moderno jamais existiu! Considerações finais O livro de Shapin e Schaffer constitui uma importante reorientação na abordagem da dicotomia entre o social e o científico, o quê também na visão destes autores, foi um dos pilares da modernidade. Com o exercício da análise da controvérsia, interpelaram a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 492 “tradicional imunidade sociológica usufruída pelos conteúdos cognitivos e sociais” (ROQUE, 2002, p.699). Escrevem sobre um período no qual a natureza do conhecimento, da organização política e das relações entre ambos ainda era matéria de um debate amplo. Depois disso, uma nova ordem social emergiu e com ela uma nova ordem intelectual. Mas, assim como Latour, consideram que, no final do século XX, esta ordem (a constituição de nossa sociedade e as concepções tradicionais acerca das conexões entre conhecimento e sociedade) foi seriamente posta em questão. Na medida em que reconhecemos o caráter convencional e o estatuto artificial de nossas formas de conhecimento, nos colocamos em uma posição na qual podemos nos dar conta de que somos, nós mesmos, e não a realidade, os responsáveis do que sabemos. O conhecimento, como o Estado, são produtos de ações humanas. Hobbes tinha razão. (SHAPIN e SCHAFFER, 2005, p. 464) Porém, a despeito de considerar este trabalho de Shapin e Schaffer como um exemplo do princípio da simetria, explicando ao mesmo tempo natureza e sociedade através de duas grandes figuras do início da era moderna, para Latour, a simetria não é levada até o fim. Ele considera que os autores de O Leviatã e a Bomba de Vácuo permanecem assimétricos em sua análise porque atribuem maior penetração e capacidade explicativa a Hobbes do que a Boyle. À conclusão de Shapin e Schaffer, de que “o conhecimento, assim como o Estado, é produto das ações humanas. Hobbes tinha razão”, Latour contra-argumentará que não, Hobbes estava errado. “Como poderia ter razão, quando foi ele [Hobbes] que inventou a sociedade monista [que reduz a realidade a um único princípio] na qual conhecimento e poder são uma única coisa?” (LATOUR, 1994, p. 32). Latour considerará a invenção de Boyle como uma invenção política e por isso muito mais fina que a sociologia das ciências de Hobbes. Enquanto o Leviatã é feito apenas de relações sociais, Boyle inventa o laboratório, um espaço no qual máquinas artificiais criam fenômenos por inteiro e que os cientistas afirmam falarem por si. No laboratório, a não- humanidade começa a ganhar “vida”. Se formos até o fim da simetria entre as duas invenções de nossos dois autores, compreendemos que Boyle não criou simplesmente um discurso científico enquanto Hobbes fazia o mesmo para a política; Boyle criou um discurso político de onde a política deve estar excluída, enquanto que Hobbes imaginou uma política científica da qual a ciência experimental deve estar excluída. Em outras palavras, eles inventam nosso mundo moderno, um mundo no qual a representação das coisas através do laboratório encontra- Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 493 se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social. (LATOUR, 1994, p. 33. Grifos do autor) Referências Bibliográficas BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. Trad. De Marcelo do Amaral Penna Forte. São Paulo: Editora Unesp, 2009. FLECK, Ludwik. Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico. Introdução à doutrina do estilo de pensamento e do coletivo de pensamento. Belo Horizonte: Fabrefactum Editora, 2010. GAVROGLU, Kostas. Passado das Ciências como História. Coleção História e Filosofia da Ciência. Porto: Porto Editora, 2007. LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. LATOUR, Bruno e WOOLGAR, Steven. A Vida de Laboratório:a a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. LATOUR, Bruno. “Pasteur e Pouchet: heterogénese da história das ciências”. In: SERRES, Michel (dir.). 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El Leviathan y la bomba de vacio: Hobbes, Boyle y la via experimental. Tradução de Alfonso Buch. 1ª ed. Bernal: Universidade Nacional de Quilmes: 2005. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 494 NARRATIVAS DA INAUGURAÇÃO DA RODOVIA UNIÃO E INDÚSTRIA (1861): PERCEPÇÕES E DISTORÇÕES ESPAÇO-TEMPORAIS Patrícia Falco Genovez Universidade Vale do Rio Doce Doutora pela UFF [email protected] Resumo: A Estrada de Rodagem União e Indústria, a primeira construída na América Latina com a técnica do Macadame, foi inaugurada em 1861 conectando Petrópolis (RJ) à Estação do Juiz de Fora (JF-MG). Tanto o percurso quanto os eventos relacionados à sua inauguração foram retratados, na época, pelo Imperador D. Pedro II em uma caderneta de anotações e por um correspondente do Jornal do Commercio (Luís Honório Vieira Souto), cujas cartas foram publicadas pelo referido jornal. Tomaremos tais fontes como narrativas com o intuito de apreendermos as possíveis distorções nas noções de espaço e tempo produzidas a partir da experiência da viagem empreendida pela Estrada União e Indústria. Palavras-chaves: Espaço, Tempo, Narrativa Abstract: The old Brazilian road União-Indústria, is the very first one built in Latin America using the technique of acadam. It was inaugurated on 1861 and connected the city of Petrópolis (in the Brazilian State of Rio de Janeiro) to a station of this road in Juiz de Fora city (in the Brazilian State of Minas Gerais). The first travel all over the road and all the inauguration events were portrayed at the time by Brazilian Emperor d. Pedro II in a booklet of personal notes (day-book) and the newspaper Jornal do Commercio correspondent (Luís Honório Vieira Souto) whose letters were published later as information of that events. Such narratives are here the sources where one could fin d some potential distortions of the notions of space and time produced by the experience of the journey undertaken by both when travelling that road in its very fist travel over. Keywords: Space, Time, Narrative. Introdução A Estrada de Rodagem União e Indústria teve seus trabalhos de construção iniciados em 12 de abril de 1856, após a assinatura do contrato em 31 de janeiro de 1853, perante o presidente da província de Minas Gerais, dr. Luiz Antônio Barbosa e foi concluída e inaugurada em 23 de junho de 1861, conectando Petrópolis à Estação do Juiz de Fora, na então Cidade do Paraibuna. 1 Idealizada por Mariano Procópio Ferreira Lage, após estudos nos Estados Unidos, a Estrada exigiu a incorporação de uma companhia, também criada por ele, com vistas a garantir as condições necessárias para a construção (BASTOS, 1991, p. 23 e 1 Somente em 1865, a Cidade do Paraibuna passa a ser denominada Juiz de Fora. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 495 24). 2 A concessão/privilégio cedidos pelo governo imperial mantinha o direcionamento das leis, decretos e contratos executados desde a década de 1830, proibindo o uso de mão-de-obra escrava em construções de estradas, especialmente, as estradas de ferro. Este foi o teor do Decreto n. 670, aprovado na Câmara dos Deputados, em 11 de setembro de 1852, referente a duas concessões: “a construção da primeira estrada de ferro, a Recife-São Francisco Railway (RSFR), e da estrada de rodagem União e Indústria (...), com cláusulas idênticas relativas a privilégios e garantias, inclusive a proibição de emprego de escravos pelas empresas” (LAMOUNIER, 2010, p. 24; BASTOS, 1991, p. 69). Assim, encarregada de trazer mão-de- obra especializada, a Companhia União e Indústria, trouxe a princípio duzentos e cinquenta homens da Alemanha e, por conseguinte, iniciou a formação de uma colônia de imigrantes alemães (Colônia D. Pedro II), em 1858, na Cidade do Paraibuna, estabelecendo uma rede de serviços, envolvendo várias oficinas, estações e atividades agropastoris (BASTOS, 1991, p. 27, 68 e 69). Do ponto de vista historiográfico, a construção e a inauguração da Estrada poderiam ser vislumbradas como fato, conforme visto acima. Mas, também podem se revelar como acontecimento histórico. Em A memória, a história, o esquecimento, Ricoeur faz algumas objeções aos usos destes termos por alguns historiadores e enfatiza que o acontecimento deve figurar com o estatuto de referente. O fato, portanto, seria “a coisa dita” e o acontecimento, “coisa de que se fala” (RICOEUR, 2007, p. 190). Desta forma, será na perspectiva do acontecimento que pretendemos tratar a Estrada União e Indústria, a partir do seu sentido mais estrito: “aquilo sobre o que alguém dá testemunho” (RICOEUR, 2007, p. 191). Partindo, portanto, da inauguração da Estrada como acontecimento alguns elementos são pertinentes ao que diz respeito às fontes produzidas sobre a Estrada. Primeiro, ela fora descrita, em 1861, pelo próprio punho do Imperador D. Pedro II, figura emblemática do Império Brasileiro e personagem central em todo o acontecimento que envolveu a inauguração da Estrada (BEDIAGA, 1999). A mesma viagem de inauguração também fora minuciosamente descrita no Jornal do Commércio por meio de um enviado especial, o jornalista Luís Honório Vieira Souto. Posteriormente, foram produzidos inúmeras descrições por outros viajantes, dentre os quais destacamos Richard Burton (BURTON, 2001) e sua esposa (1897), o fotógrafo oficial do Imperador, Revert-Henry Klumb (KLUMB, 1872), uma 2 A Estrada fora idealizada por Mariano Procópio Ferreira Lage mas dois engenheiros franceses dirigiram as obras a partir de 1858: Garou e Flagellot. Também se registra outros importantes colaboradores: Antônio Maria Bulhões (Trecho Petrópolis-Três Barras) e José Koeller (Três Barras-Cidade do Paraibuna). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 496 re-edição da inauguração descrita pelo jornalista Luís Honório, publicada no Diário Mercantil de Juiz de Fora, em 1918 e no ano seguinte a edição, no formato de livreto, produzida pelos irmãos Henrique e João Surerus (VIAGEM, 1919). No centenário da inauguração da Estrada, em 1961, ocorreram comemorações relativas à presença imperial em Juiz de Fora e um marco foi erguido no local de partida na antiga Vila Tereza (BASTOS, 1991, p. 51). Há que se considerar, também, dentre as comemorações do centenário, a publicação Mariano Procópio Ferreira Lage. Sua via, Sua Obra, Descendência, Genealogia, produzida por Wilson de Lima Bastos (1991), posteriormente reeditada em 1991. Em 2011, uma série de eventos marcaram os 150 anos da Estrada e de sua inauguração. 3 Em maio de 2013, a Fundação Museu Mariano Procópio, em conjunto com o Ministério da Cultura, apresentou a exposição “União e Indústria: Uma estrada para o futuro”; e, concomitantemente, realizou um seminário com o mesmo título a partir do qual se abriu a discussão sobre uma possível musealização da Estrada. Após este apanhado de eventos e de fontes 4 , buscaremos apreender as possíveis distorções nas noções de espaço e tempo produzidas a partir da experiência da viagem empreendida pela Estrada União e Indústria. Apresentação e crítica dos testemunhos Iniciaremos pelo jornalista. Luís Honório Vieira Souto, correspondente do Jornal do Commércio, fez a cobertura da inauguração e teve a incumbência de transmitir aos seus leitores uma descrição minuciosa não somente da Estrada mas também da encenação suntuosa que envolveu toda a corte imperial. Em suas cartas, Luís Honório elaborou uma descrição detalhada do início dos trabalhos e das inaugurações parciais ocorridas em 1858 e 1860. Ele também descreveu com riqueza de detalhes a viagem imperial e de toda a corte que esteve presente no evento. Sua narrativa apresentou-se com marcos temporal, dividido em seis partes. O início, dia 23 de junho, contém a preparação do cortejo e a saída de Petrópolis até o horário do almoço na Estação das Três Barras. O segundo marco temporal corresponde ao período posterior ao almoço em Três Barras e segue até o momento da recepção na Estação do Juiz de Fora. Outro marco, ainda no mesmo dia da viagem, é demarcado para a recepção grandiosa destinada ao Imperador e sua corte. O dia 24, é destinado à festa na Cidade do 3 Ver http://estradauniaoindustria.com.br/ (site visitado em 5 de maio de 2013) 4 Procuramos indicar aqueles que dizem respeito especificamente à Estrada. Entretanto, inúmeras outras publicações citam a Estrada, sem contar os vários sites disponibilizados na Internet. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 497 Paraibuna. O dia 25 corresponde à visita à colônia de D. Pedro II. O dia 26 à visita às oficinas da Estação, passeio à Colônia e inspeção em uma escola. Por último, no dia 27, o retorno do Imperador à Petrópolis com a sua saída marcada às 5 horas da manhã. A descrição completa, publicada no livreto, foi feita em conquenta e nove páginas, sendo nove delas destinadas a promoção da firma Henrique Surerus e Irmão (VIAGEM..., 1919). A narrativa do Imperador se dá em uma caderneta pessoal e ocupa vinte e sete páginas. Há partes riscadas, provavelmente pelo próprio Imperador e inúmeras folhas vazias ao final. Na coleção que compreende o Diário do Imperador, esta caderneta corresponde ao volume oito e inicia-se exatamente no dia 22 de junho de 1861, as vésperas da viagem (BEDIAGA, 1999). Na narrativa da viagem, pela União e Indústria, a divisão do tempo feita pelo Imperador, se dá, a princípio, pela cronologia dos dias em que permanece na Quinta de Mariano Procópio Ferreira Lage e as visitas à Cidade do Paraibuna e à Colônia D. Pedro II. Suas narrativas incluem encontros, visitas e conversas pessoais com nobres e alguns notáveis locais mas também inclui conversas com alunos da escola e presos da cadeia local. Há impressões, comentários e avaliações do que é visto, falado e compreendido. Os dias subseqüentes à viagem, iniciam-se sempre com o horário em que D. Pedro acorda, às 5 horas e 15 minutos da manhã, e mantém uma sequencia de atividades que incluem tanto aquelas mais extraordinárias quanto as mais cotidianas, como o almoço e o descanso, rigorosamente marcados. Ressaltamos que o Imperador sempre manteve anotações em diário, mas, por motivos ignorados – talvez autocensura pois, como homem ilustrado, ele devia compreender que suas anotações poderiam se tornar fonte histórica -, decidiu queimar os volumes relativos aos anos de 1842 a 1858, permanecendo os volumes de 1840 a 1841 e de 1859 a 25 de novembro de 1891. Em todos os volumes D. Pedro II narrava com riqueza de detalhes suas memórias sobre viagens, encontros e conversas com pessoas e, registrava suas vivências e experiências pessoais, não sendo, portanto, algo específico das anotações feitas em relação à viagem realizada para a inauguração da Estrada União e Indústria. As anotações podem ser entendidas como uma prática imperial e assumem, sob esse ponto de vista, uma importância considerável para D. Pedro, mesmo que o diário não fosse um espaço para relatar intimidades. Portanto, no que diz respeito à atestação das fontes, pode-se inferir que os testemunhos refletem uma experiência comum aos testemunhos centrais. Tanto o jornalista quanto o Imperador vivenciaram a viagem e a inauguração concomitantemente e seus relatos podem Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 498 nos servir de instrumentos de aproximação a um acontecimento singular, descrito a partir de perspectivas distintas. A princípio é interessante ponderarmos que nas duas fontes selecionadas para o enfoque deste trabalho a Estrada União e Indústria emana um dado legado não só às cidades por onde perpassa mas também ao próprio Império e à América do Sul (FASOLATO, 2013, p. 1). 5 Nelas, as proporções e magnitude que a empreitada representava ficam subliminares nos textos. A utilização da técnica do Macadame coloca todo o projeto como um investimento ousado, sofisticado e avançado. De fato, o futuro Comendador Mariano Procópio transformou partes do traçado do Caminho Novo, antes condizentes apenas ao trânsito de pedestres e muares, dados a sinuosidade e aspectos íngremes, em uma rodovia de aproximadamente 6 metros de largura, permitindo a passagem de duas carruagens a uma velocidade média de dezesseis a vinte quilômetros por hora. Em alguns trechos as carruagens poderiam chegar a vinte e quatro quilômetros por hora. A esta velocidade o percurso de cento e quarenta e quatro quilômetros, entre a Cidade do Paraibuna e Petrópolis, ganhou outra dimensão. Antes a viagem era feita em dez a doze dias; com a Estrada, o percurso passou a ser feito em doze horas (BASTOS, 1991, p. 26). É, portanto, a partir desta perspectiva grandiosa e ousada que a Estrada ganha, desde a sua autorização, uma espécie de estigma para sua compreensão subsequente, tanto na narrativa do jornalista Luís Honório quanto naquela feita pelo Imperador em sua caderneta de anotações. Ressaltamos que é, justamente, esta dimensão grandiosa que favorece a tarefa da hermenêutica, qual seja, “reconstruir todo o arco das operações mediante as quais a experiência prática dá a si mesma obras, autores e leitores” (RICOEUR, 2010, p. 95). Há, neste sentido, uma sintonia com o Historicismo, no qual a contribuição do filólogo alemão Chladenius foi de significativa importância para uma elaboração historiográfica ancorada em depoimentos orais oculares que expressavam pontos de vista, tal como podemos observar no caso do Imperador e do jornalista. Cientes das várias representações da história, os historicistas pautam suas técnicas de interpretação especialmente na hermenêutica com a intenção de postular um paradigma particularizante. A virada relativista marcada por Droysen, Dilthey e Simmel com a contribuição de Gadamer, Ricoeur e Koselleck recolocam a percepção da subjetividade na produção das fontes, no contexto em que foram produzidas. Neste sentido, cabe ponderar sobre a subjetividade encontrada nas duas fontes em questão. Há traços subliminares que imprimem uma dada expressividade que perpassa toda a obra de 5 A Estrada fora a primeira macadamizada do Brasil e da América latina. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 499 construção da Estrada e um ponto comum que podemos considerar em relação às duas narrativas que aparece indiciariamente na narrativa do Imperador: ele relata no dia anterior à viagem, a leitura de um relatório sobre a construção da Estrada. Este relatório, segundo o Imperador, fora produzido e entregue pelo Diretor da Companhia e idealizador da Estrada, Mariano Procópio Ferreira Lage. Avaliaremos, em melhor estilo o texto que subjaz às narrativas, no próximo item. Por enquanto, é importante termos em mente que este relatório detalhado fornece informações precisas que, com certeza, aparecem nas explicações dadas pelo jornalista sobre a Estrada e na compreensão que o Imperador expressa em seu diário sobre a viagem. Explicação jornalística e a compreensão imperial, como articulá-las? Para Dilthey haveria uma oposição entre as “ciências do espírito” e as “ciências da natureza”, contrastando posturas metodológicas distintas: as primeiras compreendem; as segundas, explicam (BARROS, 2011, p. 107-151). Assim, as ciências do espírito são sustentadas pelos feitos espirituais dados pela vivência e ancorados na realidade, dando ao cientista do espírito a função de apreciar o individual, descrever o singular, comparar as semelhanças e considerar as relações causais dirigidas à singularidade e que estão correlatas à História; e, no caso, específico da narrativa do Imperador, sem dúvida há um esforço em descrever a viagem, a Estrada e todo o evento a partir da sua apreciação pessoal. Daí, a importância da Hermenêutica que nos permite interpretar as manifestações sensíveis da vida, na tentativa de compreender a vivência por meio da classificação das expressões manifestas em conceitos, juízos e racionalizações do espírito objetivo que, aliás, ficam mais expressivos na narrativa do jornalista (DILTHEY, 1944, 1954). De fato, o exercício hermenêutico proposto por Paul Ricoeur é justamente a construção de uma “dialética entre explicação e compreensão como constitutivas do trabalho de interpretação (...), elaborada a partir do foco na noção de texto como discurso escrito” (RICOEUR, 2010, p. XV). Daí, a proposta de uma interface entre as duas narrativas. Neste sentido, a princípio podemos partir de um conceito de narrativa que a concebe somente como o contar (através de qualquer que seja o meio, ainda que especialmente através da linguagem) uma série de eventos temporais de tal modo que se possa esquematizar uma seqüência significativa – a história ou a trama da narrativa. Em outras palavras, a narrativa dá uma tonalidade de ordem e de sentido à vida humana no e através do tempo. Através de uma seqüência ordenada e com o desenvolvimento dos eventos, a extensão temporal torna-se significativa (RAPPORT; OVERING, 2000, p. 283-290). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 500 Esta trama narrada e desvelada pela hermenêutica de Ricoeur pode inferir sentido à encenação da inauguração da Estrada, assim como pode indicar as múltiplas compreensões a partir de significados variados que perpassaram a União e Indústria para os dois testemunhos oculares que temos como fontes privilegiadas neste artigo. Nesta trama há ações e estas são dramáticas porque elas incluem conflito, objetivos, reflexão e escolha. Por isso, conforme Kenneth Burke, os objetos e os eventos devem ser interpretados, deve-se-lhes dar um sentido. Os símbolos usados são modos de nomear e de descrever. Neste processo são feitas seleções e são criados sentidos (BURKE, 1989, p. 10 a 14). Em A Grammar of Motives, Burke desenvolve a idéia de que a cultura funcionaria como uma espécie de roteiro de uma peça teatral que pode valorizar ou desconsiderar determinadas situações que o autor busca através da Pentade, termo criado por ele, que considera cinco questões básicas para o processo de definição de uma situação: 1) O que aconteceu? (Ato); 2) Qual é o contexto em que aconteceu? (Cena); 3) Quem realizou o ato? (Agente); 4) Como foi feito? (Agência); 5) Por que, afinal, foi feito? (Propósito) (BURKE, 1966, p. XV). Nesse sentido, podemos designar dois tipos de narrativas: a do jornalista de cunho mais objetivo e a do Imperador de cunho mais pessoal, tratando de experiências. O primeiro, informa; o segundo, vivencia. O jornalista escreve para uma platéia incalculável, leitores de diversas partes da Corte, do Rio de Janeiro e, talvez de todo o Império visto que era comum os jornais de outras localidades replicarem matérias dos jornais que circulavam na Corte. O Imperador escrevia para si mesmo. O jornalista escrevia para o tempo presente e sobre o presente. O Imperador escrevia sobre uma experiência que se ancorava em outros tempos que a memória assim determinasse e lançava ao futuro suas palavras. O jornalista conta aos outros (leitores) o que vira sobre a Estrada e ao fazê-lo define o horizonte de compreensão de seu público, demarcando claramente o que é importante enquanto informação. O Imperador, ao usar como recurso o diário, estabelece um diálogo consigo mesmo. Ele tenta contar para si mesmo a experiência que tivera. O jornalista se preocupa com a precisão das informações, o Imperador em passar para o papel suas impressões. 2) A União e Indústria e as distorções do espaço e do tempo Visto que já consideramos as duas narrativas e que ambos os testemunhos almejam criar uma visão a partir do que narram, entendemos que temos dois textos que desvelam contextos Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 501 culturais diferentes e que fazem surgir estradas diferentes; implicam, portanto, em representações construídas para falar a alguém. Neste ponto, é importante retomar não só o que lhes é particular como o que lhes serve de substrato. Já pontuamos anteriormente que os dados precisos utilizados em ambos os textos tiveram um informante comum: o relatório produzido por Mariano Procópio Ferreira Lage. Este relatório fora lido pelo Imperador, conforme suas anotações na caderneta pessoal, precisamente no dia 22 de junho, à noite, horas antes da viagem. Muito provavelmente este mesmo relatório tenha chegado às mãos do jornalista. Em sua narrativa, Luís Honório faz referências extremamente precisas sobre a metragem dos vãos de cada ponte, do número de animais em cada paragem, da distância entre as localidades e da metragem de cortes feitos nas encostas da Estrada. Em vários momentos as metragens e distâncias são idênticas nas duas narrativas. Mas, não há como negar que subjaz à narrativa do jornalista – muito mais do que na do Imperador -, uma intenção subliminar de marcar com minúcias a construção de cada ponte, de realçar o uso de materiais e estilos diferentes para cada uma delas, o esmero na construção de cada paragem, o serviço de alta qualidade praticado pelos funcionários da Companhia, onde aparece até mesmo o tempo gasto nas trocas de parelhas. Enfim, podemos considerar que há uma contaminação da visão da Estrada, produzida pelo seu próprio idealizador, que interfere na perspectiva dos testemunhos oculares que geraram as narrativas em foco. Isto posto, há que se ponderar sobre o que é particular em cada testemunho e como cada um dos viajantes traduziu o que leu, o que viu e o que vivenciou da Estrada no momento de sua inauguração. Para este exercício vamos nos valer da Pentade de Burke, exposta no item anterior, definindo basicamente, para cada viajante não somente a síntese de sua narrativa mas para quem ele escreve? A partir de qual perspectiva? Qual a sua intenção? Com base nestes pressupostos, toda narrativa se estrutura de modo a reconstruir um evento. Em sua primeira ação complexa o narrador produz uma espécie de síntese (abstract). De um modo geral, o narrador inicia com uma infinidade de fatos que antecedem o evento a ser narrado, estabelecendo as causas eficientes. Este começo é fundamental visto que se relaciona com a credibilidade do que está sendo contado. O ouvinte/leitor deve crer que o evento reportado aconteceu mesmo na realidade; no tempo real. Estabelece-se, portanto, um paradoxo fundamental quando há uma inversão da relação credibilidade e reportabilidade. “Na medida em que o evento é o mais reportável, isto é, é incomum e inesperado, ele é menos crível que os eventos mais comuns e esperados. Existe, portanto, uma grande motivação em Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 502 preceder o E -0 com outro que o justifique: isto é, que se relacione com ele na forma de causa e efeito” (LABOV, 2001, p. 6, tradução livre). Assim, vamos às possíveis distorções. a) A Estrada traduzida pelo jornalista Em sua síntese o jornalista enfatiza a finalidade da Estrada: ligar a capital do Império à província de Minas Gerais e a conecta à linha de navegação à vapor que sai do Porto de Mauá e à Estrada que liga a Serra à Vila Tereza. O público do jornalista compreende a União e Indústria como uma conexão entre duas importantes províncias: Rio de Janeiro e Minas Gerais, reconhecidas referências políticas e econômicas para todo o Império. Este público deve receber uma narrativa informativa e precisa. A inauguração deve ser apresentada de forma que o público a acompanhe desde o seu momento inicial até o final. Ela deve conter uma seleção de personagens (centrais e periféricos) e atos relativos aos preparativos da viagem. A narrativa minuciosa da viagem aparece franqueada por informações grandiosas, como por exemplo, a passagem por Retiro, “uma ponte de madeira de quinze metros de vão, formada por cinco arcos de pranchões collocados ao alto. Esta ponte feita de pedaços de Tapinhoan, que podem ser substituídos sem nunca interromper o transito, é uma obra prima de carpintaria, tanto em solidez quando em elegância” (VIAGEM..., 1919, p. 9). A descrição da viagem segue no sentido de dar ao leitor a sensação da aventura: “Contornando assim os despenhadeiros das abas desta serras por onde ha bem pouco tempo os mais ousados emprehendedores reputavam loucura qualquer tentativa de levar uma estrada normal, era impossível que corações brasileiros se não enthusiasmassem (...)” (VIAGEM.., 1919, p. 10- 11). Dessa forma, vão aparecendo as estações. Fiel à síntese que inaugura sua narrativa, o jornalista-narrador se utiliza de passagens que demonstrem a idéia de união e dos ‘milagres’ da tecnologia que enaltece um Brasil que busca ser moderno e marca a diferença do tempo vivido da viagem. Em meio ao caminho, a comitiva de viajantes, ao cruzar a estrada velha (Caminho Novo), próximo a fazenda de d. Lina, encontrou com uma tropa de bestas conduzindo café. Ali se offereceu viva à nossa contemplação a imagem do passado e do presente, o contraste entre a rotina e o progresso, a anthitese completa entre as ingremes ladeiras que – a custo e passo a passo – subiam os burros carregados, vergando sob o peso da carga e da cangalha, typo fiel das de que primitivamente se serviram os contemporâneos de Pedro Alvares Cabral, e a suave rampa, de uma declividade quase insensível, percorrida velozmente Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 503 pela diligencia moderna, de dia em dia aperfeiçoada de conformidade com a experiencia do mundo civilizado (VIAGEM..., 1919, p. 12). O jornalista percebe e contempla o encontro das duas temporalidades que numa espécie de flash desafia a tecnologia experimentada naquele momento. Sua narrativa prossegue mas, antes de descrever as minúcias da recepção aos convidados imperiais em Juiz de Fora, Luís Honório descreve as despesas da Estrada e explica a diferença no valor de custo de cada légua (VIAGEM..., 1919, p. 24). 6 A vasta descrição dedicada ao cerimonial da recepção nos leva a conjecturar sobre os vários sentidos da conexão que se estabelecia, aproximando a Corte não de Minas Gerais como um todo mas de uma região específica, um importante pólo produtor de café e alimentos de subsistência mas, também, de uma economia permeada por títulos de nobreza e influências que excedia as fronteiras da província mineira (GENOVEZ, 1998, p. 161-180). De qualquer maneira, a narrativa produzida por Luís Honório busca dar uma dimensão da grandiosidade da própria Estrada. Se por um lado, a Estrada representava uma conexão inquestionável entre a Corte do Império e a província de Minas Gerais, representada por sua corte interiorana, reforçando as figurações de uma sociedade monárquica; por outro, a Estrada também inaugurava, sorrateiramente, um novo tempo, o da modernidade. Sem dúvida, a União e Indústria trazia em sua essência a necessidade de modernização do Império e se tornava, naquele momento, seu grande ícone. A decisão de narrar cada passo do cerimonial, da suntuosidade do evento, de citar cada nome e cada detalhe da elegância dos jardins e do paço imperial preparado por Mariano Procópio Ferreira Lage enaltece a todos os envolvidos, como uma espécie de torvelinho que os lançam a um outro Brasil, num outro tempo, moderno e civilizado. Este era o país que nascia junto com a União e Indústria e que se chocava com a escravidão que o rodeava. Escrevendo para um jornal amparado pelo Partido Conservador e pelos antigos saquaremas fluminenses, a narrativa ganha contornos dramáticos uma vez que em meio a esse desencontro de temporalidades o jornalista precisa reafirmar um dado discurso fundador do Império, defensor da monarquia, pautado na ordem/unidade e na disseminação da civilização. b) A Estrada traduzida pelo Imperador 6 A diferença do valor de custo de cada légua foi pontuada da seguinte forma: em 1853 estimou-se o custo em 317:760$000 que acrescido de juros chegaria a 336:000$000. Com os aumentos nos salários dos trabalhadores o valor chegou a 380:000$000. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 504 No esforço narrativo do Imperador identificamos em sua primeira frase uma síntese da viagem: “Estação de Juiz de Fora 6 ¾ da noite.” Em sua caderneta o dia anterior termina com a leitura do relatório da companhia e com reflexões sobre discussões ocorridas no Senado. Em seguida, na abertura do dia 23 de junho de 1861, aparece uma síntese resumida em sua primeira frase que mais nos parece uma provocação do Imperador. Ora, se todo narrador precisa de uma sequencia de fatos que legitime e torne o evento reportado verídico e real, porque o D. Pedro II começa sua narrativa com a chegada à Estação de Juiz de Fora? Não há cenário e nem sentido/finalidade prévios. Nenhuma referência é feita aos preparativos e ao desenrolar da viagem como era comum acontecer em outras narrativas produzidas pelo Imperador. Sem qualquer preocupação com linearidade temporal, o Imperador primeiro descreve uma parte da quinta de Mariano Procópio que lhe serviria de Paço. Ele a relaciona a lugares de banhos na Alemanha e ressalta a beleza do jardim em estilo inglês e a elegância dos edifícios. D. Pedro parece estabelecer primeiro um cenário em seu ponto de chegada. Neste momento inicial da narrativa nenhum evento pregresso consegue conectar-se à viagem. Apenas se lembra de relatar sobre a banda de música de colonos tiroleses. Após sair do local onde o jantar ocorreu, ele se movimenta um pouco pela quinta e segue em direção a uma outra casa, em meio ao jardim. Na casa onde habitou por cinco dias, ele consegue um breve instante para iniciar seu registro na caderneta. É somente neste momento que o Imperador retoma o seu perfil metódico e põe o tempo em uma linha cronológica. Agora, sim. Ele conta seu dia desde o momento em que acordou, às quatro horas da manhã e que assistiu à missa e entrou na diligência às cinco horas, com o relatório, o mapa e os jornais que não tinha lido. Demonstrou quase uma inveja ao passar pelo arcebispo que podia contemplar as belezas naturais montado em seu burrico. D. Pedro ressaltou que devia correr para chegar de dia na Estação de Juiz de Fora. Num breve percurso, chegando à Estação dos Correas, lembrou-se da ponte onde pescou em sua meninice e elogiou a excelente estrada; citou as Estações de Pedro do Rio e da Posse. As marcações das horas vão passando rapidamente na narrativa. Em algumas linhas o relógio registra as horas parecendo dar voltas mais rápidas, na verdade, D. Pedro narra saltos no tempo para registrar os locais por onde passava: “Parou o carro para todos os outros se porem em ordem e seguiu a caravana às 5 e 12. Parou às 6 no lugar dos Correas (...). Às 6 e 35 estavam já percorridos 24 km, graças à excelente estrada. Com mais uma légua chegou a Pedro do Rio (...)”. Logo em seguida, “(...) às 7 e 10, tendo-se atravessado sobre o Piabanha as pontes do Retiro e da Olaria, com 15m e Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 505 40 de vão, e sobre o Bonsucesso confluente daquele e desse nome de 15m de vão. (...) Às 7 e 20 era preciso andar com o sol. Às 8 parou na estação da Posse (...)”. Nesta última localidade, lamentou não ter aproveitado mais suas aulas de geografia para compreender a formação das enormes montanhas, cortadas pela estrada. Neste ponto sua narrativa é interrompida: um convite para um passeio noturno e a apreciação da lua. O Imperador retorna do passeio às nove horas e faz seu relato na caderneta. Durante o passeio, “demasiado acompanhado”, o Imperador viu balões e fogos de bengala, o lago e as inumeráveis luzes que se espalhavam pelo jardim. Mais à frente no largo, ouviu novamente a banda que havia citado em sua chegada e se apressa “(...) em dizer, com mais consciência do que a generalidade dos viajantes, que não é de tiroleses, mas de colonos, todos moços, aqui ensinados por um brasileiro, e que trazem chapéu de tirolês”. Novamente, refaz o cenário de chegada e, em suas palavras, reata o fio de sua história. O tempo volta a dar saltos e o espaço parece desaparecer entre as estações: “Saiu a caravana da Posse às 8 e 12 (...). Parou na estação da Julioca, que é elegantemente construída (...). Às 9 menos 18, tendo chegado depois à ponte de Sta. Ana de 45 m de vão às 9 e 5 e à estação de Luís Gomes às 9 e 12 (62km)”. Após uma breve parada em Luís Gomes, sem qualquer comentário segue a narrativa: “Partiu daí às 9 e ½, chegando à ponte de Carlos Gomes de 72 ms de vão às 10 menos 12, e à ponte de Entrerios, que atravessou-se a pé, para melhor vê-la, às 10 e 7. É uma bela obra, ligando as duas margens do Paraíba, com 70 braças de extensão”. A chegada a estação de Entre Rios, às 10 horas e 37 minutos, o faz recordar-se rapidamente da Câmara da Paraíba e de outros que o aguardavam para o almoço. A viagem seguiu as 11 horas e 20 minutos. “(...) ao meio dia encontrou-se o Paraibuna na fazenda da Cachoeira. Parou no lugar da Serraria, de onde seguiu pouco depois e a 1 e 6 levantou-se a imensa mole de granito chamada de pedra do Paraibuna, chegando daí a pouco à estação deste nome (...)”. Neste ponto, o Imperador comenta que a estrada a partir de Posse não tem o mesmo padrão de qualidade na construção e rapidamente comenta sobre as cachoeiras e pedras encontradas neste trecho, realçando as plantações de café. Ele então continua viagem, agora em solo mineiro, às 13 hora e 36 minutos e retrata a pedra onde fora entalhado o discurso em resposta a Mariano Procópio quando do início dos trabalhos. “Chegou à povoação de Simão Pereira colocada em lugar muito bonito às 2 e 6 e havendo aí arco com meninas e bastantes pessoas, parou, seguindo caminho às 2 ½. Viu-se de novo o Paraibuna, às 3 menos 11, perdendo-se outra vez de vista em Matias Barbosa (...)”. Foram apenas nove minutos na estação do Paraibuna e a viagem seguiu, sendo este rio avistado pela segunda vez Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 506 às “(...) 4 menos 13” e logo em seguida, às 4 e 27 atravessou-se a ponte do Zampa. “Passou-se a ponte de pau chamada Americana, por ser construída, segundo o sistema americano, às 4 e 35, tendo aí havido antes parada. Às 5 e 2 passou por defronte da cidade de Juiz de Fora, perto do qual há um brejo não pequeno às 5 e 2 e chegando a esta estação às 5 e 12”. Seu único comentário da chegada: “O povo tem acudido todo à estrada, e parece que há alegria em todos”. É no mínimo curiosa a necessidade de cronometrar precisamente as passagens da viagem. Nas demais narrativas de viagens D. Pedro demonstra a mesma disposição embora discorra com maior detalhamento cada passagem. Apesar da preocupação com a cronometragem verifica-se uma diferença entre a chegada que inicia sua narrativa, marcada em “6 e ¾” e o horário de chegada que escreve ao findar as anotações do primeiro dia de viagem, “5 e 12”. Temos, de fato, alguns pontos a ressaltar para além da diferença temporal. Há que se ponderar sobre os saltos do tempo e o desaparecimento do espaço; o fluxo contínuo e impiedoso dos minutos que vão escapando do cronometro imperial. Considerações Para o exercício de tradução proposto não é possível conclusões ou considerações finais. As possibilidades para a finalização deste artigo giram em torno de uma aproximação das representações que a estrada ganhou para os nossos narradores em foco. Se retomarmos a Pentade burkeana veremos que os atores envolvidos nas narrativas foram poucos. Na narrativa do jornalista eles ganham nome e fama com a publicação nos jornais da época; na narrativa do Imperador eles são difusos, poucos são nomeados e percebe-se uma seleção criteriosa: só os mais cultos. Entretanto, em ambos, aqueles que realmente fizeram a Estrada estão ausentes; no máximo o nome de um ou outro engenheiro responsável. Um segundo elemento da Pentade burkeana, os instrumentos utilizados também diferem: o jornalista estabelece uma narrativa mais técnica, informativa num formato de reportagem. Ele de fato tenta reportar a viagem. O Imperador escreve em um diário. Quanto ao cenário: o jornalista o descreve detalhadamente desde a saída até a chegada, pinçando personagens e situações bem definidas. No diário imperial não há um cenário de partida e pouco se sabe dos vários cenários da viagem. O único a ser tecido com mais afinco remete o leitor à Alemanha ou aos jardins ingleses. No quarto elemento da Pentade, a ação. Eles escrevem. O jornalista para um jornal vinculado ao Partido Conservador e sua síntese Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 507 narrativa não deixa dúvidas que em 1861 os interesses mais prementes do governo e do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas não só é modernizar o país mas também criar meios de articular e interligar suas várias províncias, melhorando e facilitando o escoamento da produção. Mas, fica a pergunta: o que realmente a Estrada estava ligando? Apesar de justificar os altos custos da construção, enfatizando a conexão entre as províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, na verdade, a despesa da viagem nos permite refletir sobre quem de fato teria condições de realizar tal conexão e pagar pelo transporte de carga efetuado pela Estrada. Não foi por acaso que a Companhia União e Indústria já apresentava uma situação deficitária em 1863 e logo sofreria a concorrência dos trilhos da Estrada de Ferro D. Pedro II (BASTOS, 1991, p. 131-133). Quanto ao objetivo de cada um, cabe o mesmo questionamento: porque é necessário reportar a inauguração a uma platéia? Se o Imperador tivesse escrevendo não para si mesmo mas para uma outra platéia, teria registrado sua experiência da mesma forma? É neste sentido que temos que recuperar a subjetividade de nossas fontes. Retomando Dilthey, o jornalista tenta explicar para sua platéia o que era a União e Industria; o Imperador procura compreender, elaborando sua experiência a partir de uma escrita para si mesmo. Ambos se complementam no exercício hermenêutico proposto por Ricoeur, permitindo a dialética entre a explicação e a compreensão. A partir deste ponto, a performance da inauguração ganha sentido uma vez que o ritual demarca um tempo e cria uma identidade. Ambos tentam narrar e frisar um novo tempo e relacionam os atores à Estrada, cenário privilegiado do ritual encenado, forjando inclusões e exclusões. Assim, a performance compreende todo o conjunto de fatos desde os contratos firmados até o momento da inauguração com todo o aparato simbólico da monarquia. Ela se conecta ao acontecimento da construção da Estrada que permanecerá através dos tempos, por meio de seu traçado. Dado que tudo foi encenado a realidade e o cotidiano da Estrada em nada podia refletir o Brasil o que a levou a uma situação deficitária rapidamente, acabando suplantada pela estrada de ferro. Em síntese, podemos apontar dois tipos de narrativa: uma de caráter mais performático no diário do Imperador; a outra mais próxima de um relato técnico. De qualquer maneira, elas se apresentam com o objetivo de tocar as pessoas. Isto porque “as histórias têm a capacidade de despertar a imaginação das pessoas; elas fazem não só que o invisível seja visível, mas até chamativo. Por isso, as historias despertam emoções” (FRANK, 2011, P. 40-41). No caso do Imperador, podemos imaginar que o diário é muito mais um momento de elaboração de suas experiências que um momento de escrever informações, como ocorreu no caso do jornalista. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 508 Mas, como estas histórias/narrativas, afinal traduzem a Estrada? Indiciariamente podemos aventar que a Estrada narrada por nossos informantes não tinha de fato conexão com o Brasil; era, na verdade, uma Estrada para o futuro. 7 Os dois relatos narram e mostram um Brasil inexistente. Esse Brasil moderno, rápido e veloz exige a marcação de uma temporalidade que só poderia ser vivenciada no percurso da Estrada, pelos viajantes. Talvez por esse motivo essa viagem tenha sido tão descrita e propagada como vimos no início deste artigo. A viagem permitia a um indivíduo experimentar outra temporalidade: a modernidade. Cabe ressaltar que o preço da viagem completa reservava esta experiência para um grupo seleto e permitia vivências parciais para aqueles que podiam pagar para circular em pequenos trechos. Na linguagem objetiva do jornalista a descrição detalhada tenta impedir qualquer rachadura na realidade que se quer propagar. Só em algumas brechas percebemos que a Estrada do futuro existe mas está fora do Brasil. Num breve instante, as bestas aparecem, a tropa, as lembranças dos contemporâneos de Pedro Álvares Cabral etc. O Imperador, tenta lidar com este tempo futuro contando para si mesmo a experiência vivenciada. Ele o faz, provavelmente, como um recurso para se localizar no próprio tempo. Os detalhes quantitativos, marcando freneticamente o tempo, na verdade, são empregados para qualificar a Estrada. Em suma, a Estrada não conecta somente duas províncias, ela estabelece uma ponte temporal entre o futuro e o passado. Ela é um pretexto incontestável que mostra o que o Brasil monárquico não conseguia ser. As narrativas desvelam um sonho, mas velam a realidade. Referências Bibliográficas BARROS, J. A. Teoria da História. V. II. Petrópolis: Vozes, 2011. BASTOS, W. de L. Mariano Procópio Ferreira Lage – Sua Vida, Sua Obra, Descencência, Genealogia. 2ª Ed., Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1991. BAUMAN, R. 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ISBN 978-85-62707-52-0 511 OS CONCEITOS DE INFINITESIMAL E DIFERENCIAL NAS REGRAS DE DERIVAÇÃO DE LEIBNIZ Raquel Anna Sapunaru Institudo de Ciência e Tecnologia Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Campus JK – Diamantina - Minas Gerais [email protected] Bárbara Emanuella Souza Institudo de Ciência e Tecnologia Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Campus JK – Diamantina - Minas Gerais [email protected] Débora Pelli Departamento de Matemática Ensino a Distância Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Campus JK – Diamantina - Minas Gerais [email protected] Douglas Frederico Guimarães Santiago Institudo de Ciência e Tecnologia Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Campus JK – Diamantina - Minas Gerais [email protected] Agência Financiadora: CNPQ Resumo: Atualmente, a maioria das pesquisas realizadas em/sobre as Ciências Exatas e Tecnológicas tem como base os conceitos dos Cálculos Diferencial e Integral, cujas ideias, notações e formas de operação tiveram origem, em grande parte, na Filosofia de Leibniz. Por razões desconhecidas, Leibniz não deixou claro muitas informações sobre como ele estabeleceu algumas formas de operar esses Cálculos: faltam informações elementares sobre o método por ele utilizado na criação das regras de operações fundamentais da derivada. Por essa razão, especula- se que estas regras tenham sido simplesmente postuladas por Leibniz. Nessa perspectiva, o presente artigo tem por objetivo explicar como Leibniz lidava com o conceito do infinitamente pequeno e propor uma hipótese sobre como ele obteve as regras de diferenciação. A metodologia Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 512 para atingir este objetivo se baseou nos métodos dedutivo e hipotético-dedutivo e envolveu uma pesquisa bibliográfica acurada. Palavras-chave: Matemática, História, Infinitesimal. Abstract: At present, most research in/on Exact Sciences and Technology is based on the concepts of calculations Differential and Integral, whose ideas, notations and forms of operation originated mostly in Leibniz's Philosophy. For unknown reasons, Leibniz did not make clear how much information he established certain forms of operating these calculations: they lack basic information about the method used by Leibniz in the creation of rules derived from the fundamental operations. Therefore, it is speculated that Leibniz has simply postulated these rules. From this perspective, the purpose of this article is to explain how Leibniz dealt with the concept of the infinitely small and propose a hypothesis of how he obtained the rules of differentiation. The methodology to reach the objective was based on deductive and hypothetical-deductive methods and involved accurate research at the available literature. Keywords: Mathematics, History, Infinitesimal. Introdução É no texto intitulado “Novo método para máximos e mínimos, e também para tangentes, válido para quantidades irracionais”, de 1684, que G. W. Leibniz estabeleceu as bases de um novo Cálculo. Com esta nova ferramenta, Leibniz finalmente encerraria o trabalho de inúmeros matemáticos, iniciado na Grécia antiga e, ajudaria a entender melhor a recém-criada geometria analítica de René Descartes. Assim, foi no intuito de apreender as novidades dessa nova Geometria cartesiana que esse filósofo e matemático alemão criou o conceito de diferencial, até então impensado. Vale lembrar que atualmente a maioria das pesquisas realizadas em/sobre ciências exatas e tecnológicas utiliza-se do conceito de Cálculo Diferencial.Contudo, no referido texto, a noção de diferencial é definida de maneira sumária, dando-nos inicialmente a falsa impressão de que Leibniz só pretendia apresentar uma nova notação e não um novo método: “Chamemos de um segmento de reta arbitrariamente escolhido; e; de (ou , ou , ou ) a diferença de um segmento (ou , ou , ou ) que esteja para , como está para (ou mesmo , ou , ou ).” (LEIBNIZ, GM V, 1971, p.220). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 513 Negando de certo modo, suas próprias palavras, Leibniz de fato estava introduzindo uma nova operação, a “diferenciação” e sua inversa, a “integração”. A diferenciação, foco deste trabalho, se apresenta nesse emblemático texto através de uma nova notação matemática. No entanto, consideramos as regras de operação da diferenciação tão importantes quanto a própria diferenciação e sua notação, e é sobre elas que versa o presente artigo. Leibniz apresenta, sem maiores explicações, as regras de operação da diferenciação para todas as operações aritméticas conhecidas. Por razões desconhecidas, Leibniz não deixou claro muitas informações sobre como ele estabeleceu algumas formas de operar esses Cálculos. Assim, faltam informações elementares sobre o método por ele utilizado na criação das regras de operações fundamentais da derivada. De certo modo, contrariando sua própria Filosofia calcada numa razão suficiente para uma coisa ser deste modo e não de outro, ele lança, de súbito, as regras de operação do novo Cálculo, ao mesmo tempo em que inaugura um novo método. Na letra de Leibniz: Seja uma constante dada, será igual a 0, e será igual a . Se é igual a (isto é, toda ordenada da curva é igual à ordenada correspondente a curva ), será igual a . Adição e Subtração: se , ·, dito de outro modo, será igual a . Multiplicação: é igual a , isto é, sendo , nós teremos igual a . (LEIBNIZ, GM V, 1971, p.220) Por que Leibniz não explicou como arrazoou a essas regras? O que o teria motivado a agir desse modo, antagônico às suas próprias crenças? Não pretendemos, de modo algum, responder a essas questões, pois não há literatura suficiente para isto. Todavia, a exemplo de grandes pensadores da obra de Leibniz, tais como Michel Fichant, Michel Serres, André Robinet, entre outros, isso não nos impede de apresentar nossas hipóteses e tentar prová-las da melhor maneira possível, sempre dentro de nosso escopo de atuação. De fato, nossos objetivos neste artigo são: a) entender de forma mais aprofundada como Leibniz lidava com o conceito de infinitesimal e b) entender como este conceito se apresenta em sua definição de diferencial, isto é, como, a partir destes conhecimentos, Leibniz poderia ter deduzido as regras de derivação conforme as conhecemos e propor hipóteses que tentem explicar os motivos de Leibniz ter apresentado as regras sem dedução de como chegar a elas, que pensamos ser uma tentativa de provar que Leibniz inaugurou uma nova forma de pensar a Matemática, sem a Geometria, mas com Álgebra, no rastro da geometria analítica de Descartes. A metodologia usada se baseou nos métodos Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 514 dedutivo e hipotético-dedutivo e, no que diz respeita a pesquisa em si, empregaremos os modelos tradicionais de pesquisa bibliográfica ou documental, combinado com a pesquisa acadêmica que visa a melhoria do ensino/aprendizado. A Filosofia por trás do Cálculo Infinitesimal Um novo modo de compreensão do mundo matemático e, porque não dizer, da natureza, foi proposto por G. W. Leibniz através do Cálculo Infinitesimal, adotado mais frequentemente em função de sua maior adequação notacional se comparado àquele desenvolvido por Isaac Newton. Diferentemente da forma como o Cálculo Diferencial e Integral moderno se apresenta, firmado sob a teoria de limites formalizada por Augustin-Louis Cauchy, no final do século XIX, Leibniz buscou fundamentar aquele por ele desenvolvido baseado no conceito de “infinitesimal”, cuja concepção está fortemente associada à lógica e à metafísica. De maneira breve e desprezando certas sutilezas que distinguem suas diferentes concepções, o infinitesimal pode ser considerado, conforme John L. Bell em seu livro A primer of infinitesimal analysis, como “[...] a menor parte na qual se poderia fracionar um continuum – como, por exemplo, a linha reta”. (BELL apud CARVALHO; D’OTTAVIANO, 2006). Dessa forma, as magnitudes infinitesimais referem-se ao que poderíamos entender como números infinitamente pequenos, menores do que qualquer número real. Embora seu uso não interferisse na correção dos resultados finais e, por muitas vezes agir como um simplificador de cálculos e teoremas, os infinitesimais de Leibniz pareciam apresentar uma falta excessiva de rigor matemático. Essa deficiência se destacava no processo de diferenciação onde o infinitesimal é inicialmente tratado como “não zero” ao ser utilizado como denominador e mais tarde descartado. Tal negligência não poupou o Cálculo leibniziano de críticas. Além disso, as inconsistências que surgiam quando se pensava em elementos infinitamente pequenos com uma existência real acentuaram o número de pensadores contrários à nova teoria. Concomitantemente ao surgimento dos opositores, simpatizantes do novo instrumento matemático também se revelavam. Dentre estes, é importante destacar Pierre Varignon que, perante as críticas feitas por Michel Rollé às novas ideias, pediu a Leibniz que deixasse claro o que ele queria precisamente dizer com o infinitamente pequeno. A resposta veio em forma de uma carta, redigida em fevereiro de 1702, sob a qual se baseia esta parte do presente trabalho. Inicialmente, Leibniz buscou esclarecer que não é necessário fazer uso de análises matemáticas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 515 para certificar-se que na natureza existem coisas que são infinitamente pequenas quando comparadas com as outras com as quais convivemos. Na ideia leibniziana, o infinito pode ser definido de forma simples como sendo algo incomparável, não importando pensarmos em realidades muito maiores ou muito menores que a nossa. Nos texto “História crítica da República das Letras tanto antigas quanto modernas”, de 1705, Leibniz aponta o infinito como um dos supostos labirintos da Filosofia, devido aos inúmeros paradoxos que tornam sua compreensão tão complicada. Em primeiro lugar, Leibniz negava o número infinito, apesar de admitir que sempre seja possível alcançar um número ainda maior a partir de um preexistente. Leibniz expõe sua ideia dizendo que “Apesar do meu Cálculo Infinitesimal, não admito nenhum número verdadeiramente infinito, ainda que eu confesse que a multiplicidade de coisas ultrapassa qualquer número finito, ou antes, todo número.” (LEIBNIZ, GP VI, 1978, p.629). Em outras palavras, de acordo com Leibniz, não havia o maior dos números, pois não há no mundo um número infinito de coisas, por mais que a quantidade das mesmas seja muito grande. Leibniz admitia ainda que o “verdadeiro infinito” existe na divisão infinita das coisas, ou seja, é representado pelo infinito atual. Resumidamente, o infinito pode ser compreendido como uma tendência, mas nunca como um número. De certa forma, infinitos e infinitesimais são parecidos quando os consideramos como grandezas infinitamente imensuráveis. A diferença resulta então no fato do primeiro evoluir em direção a algo imensuravelmente grande e o segundo ao imensuravelmente pequeno, ambos impossíveis de serem alcançados. Em suma: um é o inverso do outro. Ainda no campo do infinito, Leibniz afirma que o que é incomparavelmente menor não tem valor em relação a magnitudes que são incomparavelmente maiores. Em outras palavras, o infinitesimal leibniziano, tratando-se de uma magnitude de valor tão pequeno, quando é subtraído ou adicionado a qualquer outra magnitude, não traz mudanças significativas, ao ponto de serem consideradas. Nesse sentido, podemos compreender porque muitas vezes no processo de diferenciação Leibniz despreza o chamado infinitesimal, negligenciando-o ou desconsiderando-o nos cálculos, como se representassem um valor nulo. Isso porque, como já dito, o infinitesimal é incomparavelmente menor a qualquer outra magnitude, podendo ser desprezado. Além disso, Leibniz se ampara no fato de que qualquer erro proveniente de tal procedimento poderia ser deixado de lado, visto que tal magnitude é capaz de assumir valores infinitamente pequenos, fazendo de tal erro tão pequeno quanto a própria magnitude. Assim, Leibniz, em carta a Varignon Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 516 datada de 2 de fevereiro de 1702, argumenta que “[...] nesse sentido que uma porção da matéria magnética que passa através do vidro não é comparável a um grão de areia, ou este grão de areia para o globo terrestre, ou o globo para o firmamento.” (LEIBNIZ, GM IV, 1971, p. 91-92). Portanto, uma vez que a Matemática é caracterizada como uma ciência de padrões abstratos, torna-se fácil compreender no que Leibniz se baseou ao afirmar que as magnitudes infinitesimais não são fixas, nem tão pouco determinadas. O filósofo deixa claro que estas magnitudes podem ser tão pequenas quanto desejarmos, a fim de realizar algum tipo de raciocínio geométrico, levando ao infinitamente pequeno no sentido rigoroso. Por exemplo: se tomarmos a Via Láctea como um espaço utilizado para comparação, um m 3 poderia gerar uma representação razoável para a noção de infinitesimal, na medida em que é incomparavelmente menor ao espaço representado pela Via Láctea. No entanto, se o espaço tratado for uma caixa de fósforos, um mm 3 também poderia expressar essa mesma noção. O fato é que o infinitesimal se apresenta como um conceito ideal, puramente matemático que se molda de acordo com as nossas necessidades. Vale ressaltar que o conceito do infinitesimal na Matemática leibniziana apresentava-se fortemente relacionado ao “Princípio de Continuidade” que é exposto claramente na introdução dos Novos Ensaios, no qual Leibniz afirma: Nada se faz de repente, e uma das minhas grandes máximas, e das mais comprovadas, é que a natureza nunca faz saltos: o que eu denominei Lei da Continuidade [...] ela significa que se passa sempre do pequeno ao grande, e vice-versa, através do médio, tanto nos graus como nas partes, e que jamais um movimento nasce imediatamente do repouso nem se reduz, a não ser por um motivo menor. (LEIBNIZ, 1988, p.10). Esse princípio permitia tratar a tangente a uma curva como um tipo especial de secante. De acordo com Leibniz, este tipo peculiar de secante se diferenciava das demais pelo fato da distância entre os pontos em que a mesma cortava a curva ser infinitamente pequena. Assim, como no caso da tangente, Leibniz no texto “Sobre a descoberta das formas dimensionais”, de 1684, arrojadamente assevera que podemos considerar a curva como equivalente a um polígono de infinitos lados. (LEIBNIZ, GM V, 1971, p.126). Tais afirmações são legitimadas pelo “Princípio de Continuidade” que autoriza admitir algo como “[...] um equivalente a uma instância particular do seu próprio contraditório [...].” (LEIBNIZ, GM IV, 1971, p.93) Isto significa que podermos tomar o repouso como um Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 517 movimento infinitamente pequeno, o paralelismo como um caso de convergência, a coincidência como uma distância infinitamente pequena, a igualdade como a última das desigualdades e, porque não, a curva como um polígono de infinitos lados. A questão é que, de fato, não há o absoluto no pensamento de Leibniz, nos moldes de Newton. Tudo o que existe são graus do “ser”, relativizados por relações de todo o tipo. No que concerne a esta questão, de acordo com Leibniz, pode-se dizer que repouso, igualdade e círculo, entre outros, são, respectivamente, terminações do movimento, das desigualdades e dos polígonos regulares, que se transformam uns nos outros por uma mudança contínua, livre de saltos. Sendo assim, no pensamento leibniziano é possível, de acordo com a ciência dos infinitos e infinitesimais, transformar, através de movimentos contínuos, os polígonos em círculo sem realizar saltos. Por conseguinte, podemos estabelecer uma curva como um polígono infinitangular e, o tratamento da tangente dado por Leibniz no “Novo método para máximos e mínimos, e também para tangentes, válido para quantidades irracionais”, pode ser entendido como: “[…] encontrar a tangente é traçar uma reta unindo dois pontos de uma curva tendo [entre si] uma distância infinitamente pequena, ou seja, produzindo o lado de um polígono infinitangular que, para nós, equivale à curva.” (LEIBNIZ, GM V, 1971, p. 223). De certa forma, a distância existente entre os pontos da curva cortados pela tangente, bem como o comprimento de um dos lados do polígono infinitangular que aqui é equivalente a esta curva, representam magnitudes de ordem infinitesimal. No entanto, a continuidade que fornece suporte a essa concepção do infinitesimal é algo idealizado, uma vez que não há na natureza nada composto de partes perfeitamente uniformes. Desse modo, na concepção leibniziana, o infinitesimal, bem como o espaço, o tempo, a Geometria, o contínuo, etc., são entes mentais e por isso, só acessíveis pela inteligência humana. Embora estes entes mentais sejam ideais, não significa que não se apliquem ao real, da mesma forma como a Matemática, constituída de entes ideais, pode modelar a natureza. Não só para o infinitesimal, como em outros campos da Matemática isso já se mostra claro. Exemplificando: por mais difícil que seja sua materialização, ou até mesmo impossível, os números imaginários não deixam de se apresentar como uma “ferramenta” de grande utilidade para resoluções de problemas de ordem do mundo real, ou seja, da natureza. Apesar da idealidade do infinitesimal, Leibniz não desiste da concepção real do infinitamente divisível que demonstra a sua crença no infinito atual. Nesse sentido, Leibniz, em carta a Simon Foucher, possivelmente datada de 1692, confessa: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 518 Eu sou tão a favor do infinito atual que, ao invés de admitir que a natureza o abjura, como se diz frequentemente, sustento que a natureza o produz onde quer que seja, a fim de melhor assinalar as perfeições do seu Autor. Assim, acredito que não haja parte alguma da matéria que não seja, não direi divisível, mas realmente dividida; e consequentemente a última partícula deve ser concebida como um mundo pleno de uma infinidade de criaturas diferentes. (LEIBNIZ, GP I, 1978, p. 416). Resumidamente, Leibniz admitia que a matéria, discreta e extensa, era composta por uma infinidade de unidades descontínuas, proporcionando uma divisão ad infinitum. A título de esclarecimento, imaginemos uma folha de papel que possui determinadas dimensões que a tornam um corpo finito. Segundo Leibniz, esta mesma folha finita poderia ser dividida em infinitas partes que caracterizariam o “verdadeiro infinito”. Essas ideias se contrapõem às teorias atomísticas que remontam da época de Leucipo de Mileto e de seu discípulo Demócrito de Abdera até à Física das Partículas atualmente estudada. No entanto, a cada dia se descobrem mais e mais subpartículas de dimensões cada vez menores que nos fazem pensar se a matéria não seria realmente infinitamente divisível. Contudo, não estamos aqui para julgar a correção das teorias leibnizianas e sim, para tentar compreendê-las. Justificação do Cálculo Infinitesimal por meio da Álgebra Comum Sob a luz da discussão que estabelecemos na seção anterior faremos agora uma defesa da argumentação leibniziana em pró do Cálculo Infinitesimal. Propondo-se a realizar uma justificativa formal para o Cálculo Infinitesimal e levando a termo da Geometria e da Álgebra, Leibniz formulou um diagrama geométrico que se encontra representado na Figura 1. Para formulação deste diagrama, inicialmente, foram traçados os segmentos de reta e que se interceptam no ponto . Partindo dos pontos e , foram traçados e , perpendiculares a Os segmentos , , e foram nomeados, respectivamente, como , , e . Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 519 Figura 1: Infinitesimal de Leibniz Sabemos que pela Proposição 15 do livro 1 de Os Elementos de Euclides, os ângulos internos dos dois triângulos retângulos formados no diagrama, e , em apresentam igual valor por serem opostos pelo vértice. Já a Proposição 27, também do livro 1, nos dá suporte para afirmar ainda que os ângulos em e em , ou seja, os ângulos alternos determinados pela transversal , juntamente com e , também apresentam o mesmo valor, uma vez que os dois últimos segmentos mencionados são paralelos. Como todos os ângulos correspondentes são iguais nos dois triângulos, podemos dizer que os mesmo são semelhantes, conforme reafirmou Leibniz. Vale notar ainda que a proporção entre os lados correspondentes em e se manterá à medida que um triângulo tiver sua área aumentada e o outro tiver a sua diminuída pelo deslocamento do segmento , ocorrendo concomitantemente com a não alteração dos ângulos. Utilizando a tangente dos ângulos alternos anteriormente mencionados, Leibniz descreve a proporcionalidade entre os lados pela relação . Ele afirma que à medida que o segmento EY seja deslocado, aproximando-se mais e mais do ponto A, sempre preservando os mesmo ângulos, os segmentos e irão diminuir de forma constante, sendo que a razão de para permanecerá constante. Conforme afirma Leibniz, tal razão é diferente de e o ângulo ao qual a tangente se refere é, então, diferente de . Isso se faz claro, uma vez que lidamos com triângulos retângulos onde os três lados apresentam diferentes valores, conforme é possível verificar através da Figura 1. Sendo assim, e e representam segmentos de comprimentos Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 520 diferentes, sendo impossível que a razão entre ambos resulte em . Se prosseguirmos deslocando o segmento até o momento em que o mesmo encontre-se muito próximo do ponto , levando conjuntamente os pontos e a também se aproximarem de , os segmentos e se tornarão infinitamente pequenos e a razão poderá ser expressa como , se considerarmos . Leibniz afirma ainda que, caso pontos , e coincidissem, os segmentos e não possuiriam mais um comprimento mensurável, tornando-se zero e a proporção passaria a ser escrita como . Consequentemente, pensaríamos que e, segundo Leibniz isto seria um absurdo, pois tal resultado só é possível caso o ângulo a partir do qual determinamos a tangente fosse , condição que presumimos inicialmente não ser verdade. A título de ilustração, a questão do é polêmica no que concerne a Filosofia leibniziana. Assim, ao estudarmos os escritos sobre o Cálculo consideramos que Leibniz parecia aceitar que , apesar disto ser falso para a matemática atual. A título de esclarecimento, não buscamos outra forma de justificar os infinitesimais que excluíssem a necessidade de considerar porque o objetivo deste artigo, nesta questão particular, é avaliar a visão de Leibniz sobre os infinitesimais, tal qual ele a concebeu. Afinal, o que Leibniz apresentou foi nada mais que uma “redução ao absurdo”, tal qual as fazia Arquimedes; e, o reconhecimento deste absurdo leva a concluir que e não podem ser tomados como zero nos cálculos realizados, exceto quando comparados com e y que apresentam magnitudes muito superiores a estes. No entanto, a relação existente entre ambos não pode ser desconsiderada. Dessa forma, Leibniz os concebe como infinitesimais, exatamente como os elementos presentes no Cálculo Diferencial. Leibniz acredita que até mesmo em Cálculos Algébricos, encontramos traços do infinitesimal. A Álgebra, então, não pode evitá-los se pretende manter sua universalidade. Esta universalidade implica em abarcar todos os casos nos quais ela é utilizada. Ainda segundo Leibniz, seria absurdo não aceitar a indiscutível universalidade da Álgebra e, assim, privar-nos de um dos seus maiores usos. Por tudo isso, em 1703, após sua correspondência com Varignon, Leibniz escreve uma nota initulada “Justificativa da Álgebra comum pelo Cálculo infinitesimal”, encerrando sua digressão sobre o infinitesimal, a diferencial e as regras de derivação. Nesta, o filósofo afirma que não existiriam razões para lamentar as dores que fossem necessárias para justificar toda a análise referente ao seu Cálculo Infinitesimal, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 521 para todos os tipos de mentes capazes de compreendê-la. (LEIBNIZ, GM IV, 1971, p.106). Mesmo que os céticos tenham lutado contra os princípios de Geometria e outros tenham tentado colocar por terra os melhores fundamentos da Álgebra, tais campos do conhecimento sobreviveram e era o que Leibniz esperava que ocorresse também com o infinitesimal, pois, afinal, para a ciência, o mundo é muito mais do que os olhos podem ver. A Diferencial de Leibniz Assim, com o raciocínio anteriormente apresentado, Leibniz apresenta sua diferencial, . A introdução deste conceito se dá através do entendimento intuitivo do que seria uma reta tangente à uma curva passando por um ponto. Vale lembrar que atualmente usamos o conceito de limite para explicar a operação de derivação. Existe uma diferença entre o Cálculo definido por Leibniz e o Cálculo estudado nas universidades, que se baseia principalmente no estudo do limite (THOMAS, 2009, p.85-95), que usa a ideia do infinitesimal para dar introdução à derivada, no ensino atual. O limite de uma função definido em um intervalo ao redor de é dado por , conforme se aproxima de e escreve-se se para cada número existir um número correspondente , tal que, para todos os valores de , . Por exemplo: tomemos a função . Quando aproxima de , a função aproxima de três. Logo o limite dessa função, quando tende a , será Dessa definição de limite determinamos a derivada a partir da inclinação da reta tangente em um ponto. Para tanto, observamos primeiro uma reta secante a uma curva. A inclinação da reta secante a uma curva é dada a partir do coeficiente angular da reta, determinada pela tangente do ângulo de inclinação, nesse caso: . A derivada da função é dada pela inclinação da reta tangente. Logo a reta teria que tocar em um único ponto da curva, o que podemos obter pensando em um cada vez mais próximo de zero. Logo: Porém, o conceito de limite consolidou- se posteriormente à ideia de Leibniz, no século XIX. Nesse sentido, este trabalho vem ao encontro do resgate do pensamento matemático original de Leibniz. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 522 Figura 2: Diferencial de Leibniz Leibniz define sua diferencial da seguinte forma: consideremos, como na Figura 2, o eixo e a curva passando pelo ponto . Consideremos ainda uma reta tangente à curva passando por , interceptando o eixo no ponto . De acordo com a Figura 2, a distância do ponto ao ponto é denominada . Dado um segmento arbitrário de comprimento , a diferencial é definida usando a relação de semelhança entre triângulos retângulos. O menor de lados dv e e o maior de lados e , através da fórmula. É possível observar que definindo dessa forma, enxergamos como uma fração cujo valor é uma constante para qualquer diferente de . Essa fração não faz sentido quando , pois teríamos uma divisão . Com essa definição em mente, podemos fazer algumas observações, em vista da forma atual que a derivada é considerada: 1) A razão é o coeficiente angular da reta tangente no ponto , isto é, . 2) O valor representa um segmento variável e é uma função linear de . 3) Quanto menor , mais próximo estará o segmento do segmento ; e, mais próximo o valor estará de . Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 523 Na verdade, essas observações só fazem sentido em termos atuais, caso exigirmos que a curva seja passível de ser diferenciada ou de sofrer diferenciação em . Regras de Derivação de Leibniz Tendo em vista o que já foi discutido, é possível que Leibniz tenha elocubrado, durante a elaboração da sua ideia, dada uma curva arbitrária, como calcular o valor de , Observamos que esse problema é facilmente resolvido se soubermos onde a reta tangente corta o eixo , isto é, se soubermos qual é o valor de . Contudo, só conheceremos o valor de se conhecermos a disposição da reta tangente. Afinal, é esta disposição que queremos descobrir. Assim sendo, para descobrir e consequentemente somente , é preciso aproximar a diferencial , dependente de dx, de , um valor que também depende de . Outrossim, conhecendo-se qual a curva , conforme Figura 2, é possível calcular . Formalmente, pode ser definido como a variação vertical que a curva sofre ao se variar horizontalmente no valor , a partir do ponto . A ideia básica para encontrarmos as diferenciais é então, como na verdade é feito hoje em dia, utilizar aproximações de retas secantes à curva. A questão que se coloca é como através dessa ideia, Leibniz formulou as diferenciais e, como ele chegou às regras de diferenciação, entre elas, as regras das operações aritméticas gerais, a regra da cadeia e as fórmulas de diferenciação de algumas funções específicas, como as funções polinomiais. Essas regras são descritas não demonstradas no “Novo método para máximos e mínimos, e também para tangentes, válido para quantidades irracionais”. Entretanto, baseando-se no texto “Justificativa do Cálculo Infinitesimal através da Álgebra Comum”, no qual Leibniz defende a ideia de infinitesimal com muita propriedade, usando argumentos bem refinados, pensamos que ele de fato demonstrou todas essas expressões. Leibniz, de forma consistente com o modo que a diferencial foi formulada, poderia ter feito isso de modo semelhante ao que será exposto usando os argumentos que seguem. Tendo em mente a Figura 2 e, chamando o erro na aproximação de em relação a de e, isto é, temos: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 524 Escrevendo de outra forma: Estabelecer que se aproxime do número quando se aproxima de , equivale a exigir que se aproxime de . Isso corresponde a nossa noção atual de diferenciabilidade. Com esta idéia, podemos inferir que Leibniz poderia ter chegado à diferencial de uma curva e as regras da soma e do produto do seguinte modo: a) Caso seja uma constante, então para qualquer e, consequentemente, o mesmo ocorrerá para , e . Logo, e, portanto: b) Para a regra da diferencial da soma, considere as curvas diferenciáveis e , a variação vertical em função de , as respectivas diferenciais, , e os respectivos erros e . Ao se variar horizontalmente , a variação vertical é dada pela fórmula Assim, para todo temos: A expressão é uma constante e a expressão se aproxima de quando se aproxima de , portanto: c) Para a regra da diferencial do produto, ao se variar horizontalmente , variação vertical é dada pela fórmula . Assim, para todo temos: A expressão é uma constante. Todavia, analisando a expressão , cada termo se aproxima de quando se aproxima de , logo: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 525 Algumas regras são definidas usando as três anteriormente demonstradas. Consideremos, por exemplo, a curva e a constante . Combinando a primeira e terceira regras, obtemos: a) Para achar , em função de podemos agora usar as regras anteriormente numeradas. Tomemos , isto é, . Como , temos , logo e, portanto: b) Da mesma forma, a regra do quociente que escreve em função de e pode ser deduzida considerando . Usando a regra do produto, obteremos: c) Para a regra da cadeia, considere a curva passível de ser diferenciada ou de sofrer diferenciação no ponto , assim como descrito na Figura 2 e, uma curva passível de ser diferenciada ou de sofrer diferenciação no ponto . Do modo que foi formulado a diferencial, podemos facilmente demonstrar que a regra da cadeia funciona só como uma simplificação de frações e, para qualquer , podemos encontrar: d) Usando a mesma ideia de aproximações, podemos imaginar como Leibniz chegou às diferenciais de funções específicas como os polinômios. . Neste caso, assume a expressão . O argumento no qual construímos nossa hipótese remonta ao fato que Leibniz tinha conhecimentos de análise combinatória suficientes para conseguir expandir a expressão acima. Então: Onde é o número de combinações possíveis de termos em grupos de p. De acordo com o que foi pesquisado no texto intitulado “Dissertação sobre a arte da combinação”, de 1666, estas combinações seriam as ““complecções”” de “expoente” p. Como já comentamos anteriormente, Leibniz conhecia uma forma geral de se calcular e, uma fórmula recursiva para se calcular uma “complecção” geral . Sendo assim, faz-se então: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 526 O primeiro termo é uma constante e os outros se aproximam de 0 quando dx se aproxima de 0. Se consideramos que Cn,1 = n, temos: Considerações Finais Retomando nossos objetivos iniciais, isto é, entender melhor como Leibniz lidava com o conceito de infinitesimal e como este conceito se apresenta em sua definição de diferencial, argumentamos que podemos ter chegado a algumas conclusões interessantes. Sobre o infinitesimal, ao contrário do que os livros de Cálculo modernos definem (PISKUNOV, 1969, p.42-43), observamos que Leibniz fez questão de dar a ele um valor quantitativo indefinido. Essa definição que oscila entre o qualitativo e o quantitativo, apesar de se aproximar de zero, não era zero. Daí, para conhecer melhor o papel do infenitesimal na operação de diferenciação foi somente uma questão metodológica, na qual os passos foram demonstrados principalmente ao longo do tópico anterior. De fato, ao analisarmos alguns trabalhos de Leibniz, como aquele no qual ele argumenta sobre as “complecções” e, também analisando suas ideias apuradas e acuradas sobre o infinitesimal, que podem ser contempladas na carta resposta à Varignon quando questionado sobre o referido assunto, pensamos que Leibniz, de forma coerente com sua definição de diferencial, possa ter usado de argumentos mais rigorosos para demonstrar as regras de derivação, seguindo uma linha similar ao que foi apresentado neste artigo. Como, em linhas gerais, a razão pela qual o filósofo não divulgou o raciocínio que o levou ao estabelecimento das regras de derivação permanece como objeto de especulação entre historiadores e filósofos da matemática. Pensamos ser apropriado inferir as seguintes hipóteses, a saber: a) Leibniz não divulgou seus resultados com medo de roubos intelectuais. b) Leibniz achou as deduções muito óbvias. c) Leibniz quis promover a nova geometria analítica, proposta por Descartes. Em suma, historicamente falando, foi somente no início do século XVII, com Descartes, que conseguimos transformar problemas geométricos em problemas algébricos. Nessa nova perspectiva da álgebra, o estudo analítico de funções que existiam desde o tempo dos babilônicos e pitagóricos tornou-se rotineiro. (KATZ, 2010, p.59-61). A seu turno, Leibniz, ao mesmo tempo Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 527 que algebrizou o infinitamente pequeno, introduziu os conceitos de variável, constante e parâmetro, bem como a notação , possibilitando ainda mais o entendimento e desenvolvimento de inúmeras funções. Referências Bibliográficas CARVALHO, Tadeu Fernandes de e D’OTTAVIANO, Itala Loffredo. Sobre Leibniz, Newton e infinitésimos, das origens do cálculo infinitesimal aos fundamentos do cálculo diferencial paraconsistente. Educação. Matemática. Pesquisa. São Paulo, v. 8, n. 1, p.13-43, 2006. KATZ, V. J. História da Matemática. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. 1666. Dissertatio de Arte Combinatoria. Em: G. W. Leibniz Die Philosophischen Schriften (GP IV). Hildesheim: Georg Olms Verlag, 1978. ______. 1684. Nova methodus pro maximis et minimis, itemque tangentibus, qua nec irrationales quantitates moratur. Em: GERHARDT, C. I. (org.) G. W. Leibniz Die Mathematische Schriften (GM V). Hildesheim: Georg Olms Verlag, 1971. ______. 1684. De dimensionibus figurarum inveniendis. Em: GERHARDT, C. I. (org.) G. W. Leibniz Die Mathematische Schriften (GM V). Hildesheim: Georg Olms Verlag, 1971. ______. 1692. Leibniz an Foucher. Em: G. W. Leibniz Die Philosophischen Schriften (GP I). Hildesheim: Georg Olms Verlag, 1978. ______ .1702. Leibniz an Varignon. Em: GERHARDT, C. I. (org.) G. W. Leibniz Die Mathematische Schriften (GM IV). Hildesheim: Georg Olms Verlag, 1971. ______. 1703. Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano. Volumes I e II. Em: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988. ______. 1703. Justification du Calcul des infinitesimales para celuy de l’Algebre ordinaire. Em: GERHARDT, C. I. (org.) G. W. Leibniz Die Mathematische Schriften (GM IV). Hildesheim: Georg Olms Verlag, 1971. ______. 1705 Histoire Critique de la Republique des Lettres tant Ancienne que Moderne. Em: GERHARDT, C. I. (org.) G. W. Leibniz Die Philosophischen Schriften (GP VI). Hildesheim: Georg Olms Verlag, 1978. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 528 PISKUNOV, N. Differential and Integral Calculus. Moscou: Mir Publishers, 1969. THOMAS, G.B. Cálculo: Volume 1. São Paulo: Pearson, 2009. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 529 O ESTABELECIMENTO DOS FUSOS HORÁRIOS BRASILEIROS: “MATERIALIZANDO LINHAS ABSTRATAS NO TERRENO” NACIONAL Sabina Ferreira Alexandre Luz Universidade Federal Fluminense Mestrado [email protected] Resumo: Em 18 de junho de 1913, durante a Primeira República, foi estabelecida a hora legal brasileira, ou seja, a hora oficial do Brasil. Esta lei dividia o território em quatro fusos horários. Tendo por base o meridiano de Greenwich, estes fusos horários obedeciam, por um lado, às convenções internacionais do sistema horário proposto pelos Estados-Unidos e coordenado pela França. Por outro lado, estes fusos traziam a tona questões importantes sobre o território nacional. Buscando aplicar “linhas abstratas” que eram as divisões horárias internacionais ao território brasileiro, os cientistas foram confrontados à extensão territorial brasileira, assim como às dificuldades enfrentadas nessa época quanto ao conhecimento deste vasto território. Neste sentido, as decisões sobre os limites e a extensão de cada zona horária permite-nos a análise de como este território nacional era apreendido pelos cientistas responsáveis pelo estabelecimento dos fusos horários nacionais. Portanto, pretendemos analisar neste estudo, em primeiro lugar, a trajetória de estabelecimento de um sistema horário mundial, para, em seguida, compreender de que forma este sistema foi adaptado ao território nacional com o estabelecimento de quatro fusos horários para o país. Palavras-chave: Fusos horários, meridiano de Greenwich, Primeira República Résumé : Le 18 juin 1913, pendant la Première République brésilienne, l’heure légale brésilienne a été établie. La loi établissait quatre fuseaux horaires pour le territoire brésilien. Ayant comme référence le méridien de Greenwich, ces fuseaux horaires respectaient, d’un côté, les conventions internationales du système horaire proposé par les Etats-Unis et organisé par la France. Et de l’autre côté, ces fuseaux horaires déclenchaient des questions importantes sur le territoire national. En essayant d’appliquer les « lignes abstraites », correspondant aux divisions horaires internationales, au territoire brésilien, les scientistes ont été confrontés à l’extension territoriale brésilienne ainsi qu’aux difficultés existantes à cette époque sur la connaissance même de ce vaste territoire. Dans ce sens, les décisions prises sur les limites et l’extension de chaque zone horaire nous permet d’analyser comment le territoire a été perçu par les scientistes responsables de l’établissement des fuseaux horaires nationaux. C’est pourquoi nous allons étudier, tout d’abord, l’histoire de l’établissement d’un système international de l’heure, pour, ensuite, comprendre la façon dont ce système a été adapté au territoire national aboutissant à l’établissement de quatre fuseaux horaires pour le pays. Mots-Clés : Fuseaux horaires ; méridien de Greenwich ; Première République Parafraseando Alexandre Koyré, poderíamos imaginar que a história da evolução da hora e do sistema horário passou do universo do mais ou menos ao universo da precisão ao Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 530 longo dos três últimos séculos 1 . Quando imaginamos que cada país estabelecia e regulava seus relógios de forma independente, não é difícil pensar no quanto estas horas deveriam diferir umas das outras, seja de país para país ou mesmo de região para região. No entanto, a criação de um sistema unificado de horas, nos remete mais a um fator de uniformização do tempo do que propriamente de precisão. Ao estabelecer fusos horários ao redor do globo com faixas horárias distintas a cada 15° de longitude, o que se pretendia era criar um sistema de tempo padronizado onde a troca de informações (fossem elas meteorológicas, astronômicas, comerciais ou de comunicação) fosse mais fácil e mais prática, dando menos margem a erros e a cálculos complexos da diferença dessas horas locais. A forma como este sistema foi implementado a nível internacional e nacional é o que pretendemos analisar brevemente ao longo deste artigo. A criação das “linhas abstratas”: o desenvolvimento ferroviário americano, o Congresso de Washington e a resistência francesa As primeiras iniciativas para a adoção de um sistema horário unificado foram feitas nos Estados-Unidos no final do século XIX. Em 1875, o astrônomo americano Cleveland Abbe percebeu que as observações astronômicas norte-americanas estavam sendo feitas utilizando padrões de hora diferentes - alguns usavam as horas das estradas de ferro, enquanto outros baseavam seus cálculos na hora local (BARTKY, 2007). Abbe acionou então a Sociedade Americana de Metrologia (AMS) que criou uma Comissão de Tempo Padrão (Committee on Standard Time) para resolver a questão. Esta comissão levou quatro anos elaborando um parecer sobre este assunto que foi publicado em maio de 1879. Nele, os cientistas da AMS sugeriam que as companhias férreas e as companhias de telégrafo americanas adotassem a hora definida por uma das cinco faixas horárias meridionais, cuja diferença era de uma hora de uma faixa pra outra, e que haviam sido calculadas com a referência do meridiano de Greenwich (BARTKY, 2007). Este parecer foi enviado à muitas sociedades científicas, porém nenhum resultado foi obtido antes de 1883. No entanto, uma figura importante neste processo de estabelecimento de um sistema horário que apoiou o parecer desta sociedade foi Sandford Fleming 2 . Engenheiro canadense, foi este último que propôs inicialmente a organização de horas fixas ou fusos 1 Considerando que a precisão dos relógios deu passos decisivos para o padrão de tempo atual a partir do século XVIII durante o qual o cronômetro foi inventado e desenvolvido. (SOBEL, 2008; KOYRÉ, s. d.) 2 Que também era membro da AMS. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 531 horários ao redor do mundo. Dividindo-o em 24 zonas horárias, elas partiriam de um primeiro meridiano (meridiano zero) e avançariam a cada 15° de longitude, totalizando 24. Além disso, ele também propôs que fosse estabelecida uma hora universal, adotada por todo o mundo (GALISON, 2005). Suas ideias foram propagadas através de panfletos escritos e enviados ao redor do mundo, no entanto, muitas sociedades científicas não conseguiam entrar num acordo sobre qual meridiano deveria ser utilizado como o meridiano inicial deste sistema. Seja como for, as ideias de Fleming foram essenciais na elaboração do que seria mais tarde adotado como o sistema universal de fusos horários. O fato que muito contribuiu ao estabelecimento de um sistema horário norte- americano foi a adesão do engenheiro ferroviário William Allen à AMS. De fato Abbe havia convidado alguns membros das companhias férreas e telegráficas americanas para que fizessem parte desta Sociedade. Desta forma, eles poderiam participar das reuniões e auxiliar na busca de uma solução para o problema do sistema horário americano que beneficiaria o serviço destas respectivas companhias. Allen só soube disso em 1881, mas a partir de então se interessou pelas propostas que estavam sendo feitas para a uniformização do tempo. Allen serviu de elo entre a sociedade científica americana e as principais companhias férreas, de forma que estas últimas adotaram o Padrão de Tempo Ferroviário (Standard Railway Time) em 1883 que estabelecia quatro horas locais separadas por horas exatas. Uma vez que este sistema obtivera sucesso, os Estados-Unidos decidiram propor a ampliação do sistema a nível internacional e propuseram a reunião de um congresso para debater esta questão. Assim surgia o Congresso de Washington de 1884. O objetivo deste congresso era eleger em comum acordo o primeiro meridiano que marcaria a divisão da longitude e dos fusos horários ao redor do mundo. É evidente que a questão não era fácil de ser resolvida já que enquanto o marco zero da latitude era algo fácil de ser encontrado uma vez que a divisão da superfície terrestre era natural, a longitude poderia teoricamente começar a partir de qualquer ponto do globo. As discussões sobre o meridiano zero durante o congresso opuseram dois grupos. O primeiro deles defendia a adoção do meridiano de Greenwich como referência já que ele era usado por mais de 70% das cartas náuticas e além disso este meridiano passava pelo Observatório de Greenwich que já possuía toda a estrutura não só para estabelecer a hora, como também para transmiti-la via cabos telegráficos ao redor do mundo. Este grupo recebera o apoio, principalmente, dos Estados-Unidos e da Inglaterra. O segundo grupo defendia a adoção de um meridiano que fosse neutro, ou seja, um meridiano que não passasse essencialmente por nenhum país de forma que o meridiano Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 532 zero pudesse ser afastado de qualquer vinculação a uma nação em particular. Este grupo argumentava ainda que a ciência deveria ser neutra e que, portanto, um meridiano neutro era necessário para refletir este comprometimento da ciência com o saber e o conhecimento e não com interesses econômicos e/ou políticos. Estas ideias foram defendidas tanto pela França, quanto pelo Brasil, além de receberem o apoio de São Domingos. O primeiro grupo contava, no entanto, com o apoio da sociedade científica na medida em que a Conferência Geodésica Internacional de Roma, reunida em 1883, e composta essencialmente por cientistas, também havia proposto o meridiano de Greenwich como o marco zero do sistema longitudinal e do sistema internacional de hora. Este apoio teve seu peso na hora da votação. A maioria dos delegados dos vinte e quatro países ali representados votaram a favor da adoção do meridiano de Greenwich como marco zero do sistema de longitude. Se abstiveram do voto final tanto a França, quanto o Brasil. Representava o Brasil no Congresso de Washington o então diretor do Imperial Observatório do Rio de Janeiro, Luiz Cruls. Este último entendia que o marco zero de longitude deveria ser unanimemente aceito “by all the most important maritime nations” 3 , e se declarava “absolutely convinced that the measure adopted will be partly inefficacious, its adoption not being general, and everything will have to be done over again in the not distant future” 4 (International Conference, 1884), caso houvesse discordância entre estas nações. E justamente para que esta discordância fosse evitada, acreditava Cruls na necessidade de escolher um meridiano neutro para representar o marco zero de longitude. Treze anos mais tarde, podemos ver que o entendimento de Cruls sobre esta questão não sofrera grande alteração. Participando como colaborador da Revista Brazileira, ele escreveu de 1896 a 1898 para uma sessão especial desta revista intitulada Revista Científica. Abordando os mais variados “assuntos de ciência”, Luiz Cruls “era o homem adequado para a missão de promover a ciência para laicos nesta nova sessão até por já ter experiência nesta área.” (VERGARA, 2008). No tomo X da Revista Brazileira, dentre outros temas abordados na sessão da Revista Científica, surgiu a questão da adoção do meridiano de Greenwich pela França. Comentando que a Inglaterra havia recentemente adotado o sistema métrico, Cruls acreditava que ali estaria a oportunidade da França adotar, em contra-partida, o meridiano de Greenwich. E comentava, sobre este assunto, a sua participação no Congresso Internacional de Washington: 3 por todas as nações marítimas mais importantes. (Tradução da Autora) 4 absolutamente convencido que a medida adotada será parcialmente ineficaz, não sendo geral a sua adoção, e tudo deverá ser feito novamente num futuro não muito distante. (Tradução da Autora) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 533 De fato, a adoção de um meridiano universal está se tornando uma necessidade, e simultaneamente a de uma hora internacional, ao menos para certos interesses da vida publica. Quando se realizou em 1884, a conferencia internacional (...) ficamos do lado da França para votar contra a adoção do meridiano de Greenwich. A razão principal em que assentamos esse nosso procedimento foi por considerar ineficaz em seus efeitos semelhante medida, enquanto não fosse ela adotada pelo conjunto das grandes potencias marítimas, e, era este o caso, logo que uma só delas, como a França, se abstivesse, pois que, pela sua essência mesma, a adoção da medida devia ser universal. Devido, pois ao voto dos delegados da França, do Brasil e de S. Domingos, gorou o fim principal da conferencia de Washington. (CRULS, L., Revista Scientifica, In: Revista Brazileira, 1897) Podemos destacar dois aspectos interessantes sobre o entendimento de Cruls quanto à questão da hora. Em primeiro lugar, fica claro que Cruls reconhecia a necessidade da adoção de um meridiano universal para o sistema horário. Em segundo lugar, vale destacar como Cruls avalia a ausência de um meridiano zero como uma consequência direta da rivalidade franco-inglesa. Relacionando a adoção do sistema métrico, elaborado e proposto pela França, com a adoção do meridiano de Greenwich fica bastante evidente o quanto Cruls acredita que estas rivalidades e estes orgulhos nacionais eram, de fato, o que impedia o estabelecimento de um meridiano comum para a longitude. Por isso ele coloca: “Agora, porém, que a Inglaterra resolveu-se a adotar o sistema métrico, é de presumir que a França não se recuse mais em aceitar a adoção do meridiano de Greenwich em favor do qual já existe uma grande maioria.” (CRULS, 1897). Vale lembrar que esta colocação de Cruls não era sem propósito. De fato, durante o Congresso Internacional de Washington, a adoção do sistema métrico pela Inglaterra já havia sido debatida. Enquanto os ingleses argumentavam que o sistema métrico havia sido universalmente aceito e adotado e que por isso os franceses não deviam criticar a escolha de um meridiano inglês (já que o sistema de medida do espaço era francês). Os franceses contra- argumentavam afirmando que: em primeiro lugar, a Inglaterra não havia de fato adotado o sistema métrico; e em segundo lugar, o sistema métrico não era francês porque foi concebido para ser universal e, neste sentido, a medida de referência do sistema métrico não era o “pé do rei” e sim uma fração da dimensão da Terra, desprovida, portanto, de qualquer referência nacional (International Conference at Washington, 1884, p. 49-57). No entanto, a esperança que tinha o diretor do Imperial Observatório do Rio de Janeiro de ver solucionada a adoção de um meridiano zero de longitude não se realizou antes de 1911. A França manteve, portanto, sua resistência à adoção do meridiano de Greenwich até esta data, ainda que algumas iniciativas para a regulamentação da hora francesa com a hora Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 534 inglesa tivessem acontecido desde 1896 (BAILLAUD, 2006, p. 36). No ano de 1911, no entanto, a mudança de posição da França pode ser relacionada ao desenvolvimento da telegrafia sem fio que ganhara grande investimento do Estado francês. Assim, em 1910, a torre Eiffel transformara-se numa radio emissora de sinais horários. Este método de transmissão superara definitivamente a transmissão por fio. De fato, as ondas hertzianas podiam ser captadas do “Canadá ao Senegal” (GALISON, 2005, p. 353). Diante desses fatos podemos concluir que a França só considerou mudar a sua hora legal uma vez que os franceses possuíam a melhor tecnologia de transmissão da hora. Ou seja, cediam na adoção da referência inglesa da hora (hora de Greenwich), mas passavam a liderar o projeto de estabelecimento de uma hora universal, ou de um sistema universal de hora. A notícia da adoção do meridiano de Greenwich pela França teve grande repercussão no Brasil. Este novo dado trazia outra perspectiva à questão horária mundial. Agora que a França adotara Greenwich era provável que este sistema se transformasse num sistema global. Como colocava o diretor do Observatório Nacional, na época, Henrique Morize: com a recente adesão da França [às resoluções do Congresso de Washington] a questão [dos fusos horários] deu grande passo, e é provável que o acordo total se faça agora, com grandes vantagens para as questões geográficas, telegráficas e ferroviárias. (Revista do Clube de Engenharia, 1926) Sendo assim, o Brasil passava a ter interesse em participar também deste novo sistema já que a sua internacionalização parecia ser apenas uma questão de tempo. E de fato foi a partir deste momento que surgiu um debate sobre a questão horária brasileira tanto nos jornais quanto em algumas instituições científicas. Estes debates resultaram na adoção da hora legal brasileira dois anos mais tarde. E é este processo que vamos acompanhar agora. “Materializando linhas abstratas no terreno” nacional: a elaboração da lei n° 2.784 Até o início do século XX, muitos países utilizavam um meridiano principal, em geral o de sua capital 5 , para fornecer a hora local. E a partir desta hora principal, outras cidades calculavam suas respectivas horas locais. Evidentemente este sistema tornava o cálculo da hora um dado aproximado já que erros não eram raros (nesses cálculos constantes de subtração ou acréscimo de segundos, minutos ou até mesmo de horas). Justamente esta 5 Não era raro que nesta cidade estivesse também o principal observatório do país. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 535 falta de precisão e coordenação horária no Brasil perturbava Henrique Morize que comentava sobre o assunto na sessão do Clube de Engenharia de 03 de abril de 1911: Chegou, portanto, o momento para o Brasil de acabar de vez com a anarquia existente na questão da hora, em que, além da hora do Rio de Janeiro, encontram-se por toda a parte as horas locais as mais divergentes. (Revista do Clube de Engenharia, 1926) Neste mesmo sentido era colocada a questão pelo parecer do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio apresentado à Câmara no mesmo ano: Realmente, ao lado da hora do Rio, usada nas estações telegráficas da União, encontram-se horas locais as mais variadas e arbitrárias, o que, evidentemente, prejudica as relações comerciais, já dificultando o estabelecimento seguro do tráfego mutuo nas estradas de ferro, já impedindo a comparação das datas e horas dos despachos telegráficos e a solução das transações mercantis, dependentes de contratos que envolvem questões de tempo. (Congresso Nacional, 1913). De fato, como comentamos anteriormente, levando em consideração que cada cidade ajustava sua hora de acordo com a hora local, havia sempre uma diferença horária (maior ou menor dependendo da cidade) entre a cidade de onde o trem partia e sua cidade de destino. No caso do Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, essa diferença era de 14 minutos a menos para esta última cidade em relação à primeira. Isto provocava uma certa dificuldade em estabelecer um tráfego seguro nas vias férreas, como colocava o relatório do Ministério da Agricultura acima citado, já que estes cálculos de subtração (ou acréscimo) de horas não eram isentos de erros. Um horário integrado das estradas de ferro facilitaria, portanto, o tráfego como colocava o engenheiro Paulo de Frontin na mesma sessão do Clube de Engenharia da qual participava Henrique Morize: Nas estradas de ferro evitar-se-ia, como em S. Paulo, haver duas horas diferentes: uma no relógio da estação do Norte, da Estrada de Ferro Central do Brasil, que dá a hora do Rio, e a outra do relógio da estação da Luz, da Ingleza, que dá a hora de S. Paulo. Essa hora tem a diferença de 14 minutos. (Revista do Clube de Engenharia, 1926) Tratava-se, portanto, não só de aderir ao movimento internacional dos fusos horários baseados no meridiano de Greenwich, como também de propor uma solução ao problema da hora no Brasil. Mas surgia, nesse sentido, uma outra questão: de que forma Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 536 deveríamos adaptar os fusos horários internacionais pré-estabelecidos para o território nacional? Era o que explicava Morize durante a sessão do Clube de Engenharia: A dificuldade encontrada está em transportar para o terreno os meridianos que servem de limites aos fusos. Como todos sabem, os meridianos são linhas abstratas, que será preciso materializar no terreno para que a reforma possa reproduzir bons frutos. Esta demarcação será muito penosa, e é a sua substituição por alguma aproximativa que deveremos estudar em outra sessão. (Ibid., p. 154) A próxima discussão sobre a questão dos fusos horários no Brasil aconteceu apenas 15 dias mais tarde. Desta vez quem tomou a iniciativa foi Paulo de Frontin, engenheiro e presidente do Clube. Ele mostrara-se impaciente em resolver esta questão vendo “a necessidade que há em se tomar uma decisão definitiva sobre a hora oficial pela moderna convenção que dividiu o mundo em fusos horários” (Ibid., p. 163). Ao mesmo tempo reconhecia a necessidade do apoio de Morize nesta tarefa já que seus “conhecimentos” no assunto eram de vital importância. Indicando as soluções adotadas pela França e pelos Estados-Unidos sobre os fusos horários, Frontin acreditava que no Brasil “o problema deve ser simplificado” já que “de leste a oeste o Brasil é menor do que os Estados-Unidos”. E propunha então: “O Brasil deve dividir o seu território em dois fusos: um para [l]este e outro para oeste, não computando a ilha de Fernando de Noronha, que está a oeste do meridiano de dez graus.”(Ibid.). E justificava assim sua proposta: Não chegamos a ter 45 graus, que é o total necessário a três fusos horários e, portanto, o Amazonas, o Acre e Mato Grosso ficariam com a diferença de uma hora para o meridiano do Rio de Janeiro, sem grande diferença para as suas populações, que são, relativamente, pouco densas. Mais tarde, se o Amazonas, o Acre e mato Grosso aumentassem de população, criando novas necessidades práticas de uma hora, criar-se-ia um terceiro fuso horário. Por enquanto, porém, não há essa necessidade. (Ibid.) Tendo exposto seu projeto, Frontin concluía, enfim que: o Conselho deve apresentar uma moção ao Governo, propondo que o Brasil crie 2 fusos horários: um, o do Brasil oriental, com o meridiano de 45 graus; outro, o do Brasil ocidental, com o meridiano de 60 graus. (Ibid.) Ao ouvir tal projeto de fusos para o Brasil, Morize logo se pronunciou declarando que não era possível adotar somente dois fusos horários para o país já que “teoricamente, são precisos 4, e reduzindo-se esse número a metade falseia-se o princípio adotado na Convenção Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 537 de Washington.” (Ibid., p. 164). E ainda que a possibilidade de haver somente dois fusos pudesse trazer facilidades práticas, a sua adoção implicaria: aumento da diferença entre a hora legal e a hora real. [...] essa diferença alcançaria cerca de uma hora nos pontos do extremo oeste. Tamanha diferença seria intolerável e perturbaria as relações sociais que espontaneamente tomam como base a hora solar real. (Ibid.) Neste momento, cabe tecer alguns breves comentários sobre a proposta de Paulo de Frontin para a adoção dos fusos no Brasil. Devemos lembrar que o desenvolvimento da rede ferroviária e telegráfica brasileiras tinha-se iniciado em meados do século XIX e que essas redes expandiram durante todo o período do Império. Quanto ao desenvolvimento da rede ferroviária brasileira, cabe lembrar que a primeira estrada de ferro construída foi o Estrada de Ferro do Brasil, em 1858. Depois dessa primeira via, as vias férreas ganharam grande investimento e sua extensão passou de 475 km em 1864 para 9.583 km em 1889. (LYRA, 2001, apud MARINHO, 2002, p. 145). Quanto à expansão telegráfica, é significativo considerar que, ainda que o telégrafo elétrico existisse no país desde 1852 (MACIEL, 2001), foi no período compreendido entre 1866 e 1886 que a rede telegráfica brasileira conheceu uma grande expansão com a construção de 10.969 km de linhas telegráficas (SÁ, 2008). Período este que coincide, portanto, com a grande expansão da rede ferroviária, ambas expansões datando do período imperial. Na República a expansão da rede telegráfica seguiu novos rumos. Ainda que grandes avanços tivessem sido feitos durante o Império, foi no início do período republicano que a rede telegráfica penetrou os três estados que ainda se encontravam isolados da rede de telecomunicações: Mato Grosso, Goiás e Amazonas. Dessa forma, “a expressão ‘integração nacional’ passou a ser o grande lema do governo federal” (SÁ, 2008). Mais do que o lema, esta integração também passou a ser o desafio deste governo. De fato, o território a ser integrado e penetrado por comissões militares e estratégicas era bastante extenso e ainda, em parte, inexplorado. Além disso, as populações que povoavam estes territórios nem sempre eram favoráveis a esta integração nacional. Neste sentido, vale lembrar que a Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA), comandada pelo major Antonio Ernesto Gomes Carneiro (o marechal Rondon), exerceu suas atividades de 1907 a 1915. Demonstrando as dificuldades e o desafio que representou esse projeto de integração do território brasileiro. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 538 Tendo essas considerações em mente, podemos compreender melhor a posição que Paulo de Frontin defendera na sessão do Clube de Engenharia. Sua proposta de apenas dois fusos horários para o território do Brasil continental (dividindo-o entre o litoral e o interior do país onde a população era “pouco densa”) parece demonstrar o quanto o território do país ainda estava de fato dividido entre duas realidades. O litoral, de norte a sul, com suas cidades, suas ferrovias e um sistema telegráfico integrado parecia contrastar bastante com este outro Brasil ainda dominado por florestas e índios, cujo acesso era difícil e onde o telégrafo recém chegava, não sem enfrentar enormes dificuldades. O marechal Rondon era visto como um herói desbravador do “sertão” e o telégrafo interpretado como um fio de civilização que possibilitaria a entrada do progresso nessas regiões. A proposta de Paulo de Frontin não foi adotada. Já que o diretor do Observatório Nacional, Henrique Morize, fizera uma contra-proposta da divisão dos fusos horários. Sugerindo a adoção de quatro fusos horários no território e nas ilhas brasileiras, Henrique Morize pretendia respeitar tanto quanto fosse possível a divisão do sistema internacional de hora no intuito de não causar grande diferença entre a hora local e a hora legal de cada região. Ainda assim, o que pode ser observado é que a nova proposta mantivera uma divisão entre o litoral e o interior do país já que o fuso horário de menos três horas de Greenwich compreendia os estados: Rio Grande do Sul; Santa Catarina; Paraná; São Paulo; Rio de Janeiro; Espírito Santo; Minas Gerais; Bahia; Sergipe; Alagoas; Pernambuco; Paraíba; Rio Grande do Norte; Ceará; Piauí; Maranhão; Goiás e uma parte do Pará. Deixando, dessa forma, o interior do país, dividido em dois fusos horários (de menos quatro horas e menos cinco horas) para os estados do Mato Grosso; Amazonas; Acre e parte do Pará. Justificava Morize a sua proposta de fusos horários afirmando: Conforme se evidencia pelo traçado efetuado no mapa exposto, a divisão que tenho a honra de propor corresponde, na medida do possível, às exigências teóricas dos fusos adotados no Convênio de Washington, e também aos interesses sociais e conveniências dos diversos Estados. (Revista do Clube de Engenharia, 1926, p. 184) E ficava o texto final proposto e aprovado pelo Clube de Engenharia nos seguintes termos: 1° Para todos os efeitos, o meridiano de Greenwich será considerado fundamental em todo o território da República dos Estados Unidos do Brasil. 2° O território da República fica dividido, no que diz respeito à hora legal, em 4 fusos distintos, a saber: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 539 O primeiro fuso: caracterizado pela hora de Greenwich, ‘menos 2 horas’, compreende o arquipélago Fernando de Noronha e ilha de Trindade. O segundo fuso: caracterizado pela hora de Greenwich, ‘menos 3 horas’, compreende todo o litoral do Brasil e os Estados interiores (menos Mato Grosso e Amazonas), bem como parte do Estado do Pará, limitada por uma linha que, partindo do Monte Crevaux, na fronteira com a Goyana Franceza [sic], vá seguindo pelo álveo do rio Pecuary até o Javy, pelo álveo deste até o Amazonas, e o Sul pelo leito do Xingu até entrar no Estado de Mato Grosso. O terceiro fuso: caracterizado pela hora média de Greenwich, ‘menos 4 horas’, compreenderá o Estado do Pará a W. da linha precedente, o Estado de Mato Grosso e a parte do Amazonas que fica a E. de uma linha (círculo máximo) que, partindo de Tabatinga, vá a Porto Acre. O quarto fuso: caracterizado pela hora de Greenwich, ‘menos 5 horas’, compreenderá os territórios do Acre e os cedidos recentemente pela Bolívia, assim como a área a W. da linha precedentemente descrita. (Ibid.) Dessa forma, parece que fica claro o quanto a divisão horária brasileira também refletia visões e percepções de um Brasil republicano que buscava construir sua identidade. Assim como demonstra algumas quebras e paradigmas que permaneciam nesse vasto território nacional cujos limites e fronteiras tornavam-se aos poucos mais nítidos. A hora oficial brasileira, assim como seus fusos horários, podem ser interpretados, também, como uma visão de Brasil e como a construção e/ou afirmação de um discurso. No entanto, não devemos esquecer o peso que o contexto internacional tinha neste assunto já que o sistema que adotamos era fruto de um debate mundial. Portanto, não devemos esquecer também que o reconhecimento do meridiano de Greenwich como referência pode ser interpretado como um elemento da busca por progresso e civilização muito recorrente no período da República Velha. Neste sentido, a preocupação que pode ser observada nos discursos feitos durante as reuniões do Clube de Engenharia sobre a adoção de Greenwich pelas Repúblicas latino-americanas vizinhas, parece reforçar esta interpretação de uma busca pelo progresso e quase uma corrida pela civilização. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 540 Referências Bibliográficas Fontes BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Anais da Câmara dos Deputados, 1889-1930. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/diarios.asp> Acesso em: 03/06/2013. BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Anais do Senado Federal, 1890-1998. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Pesquisar.asp> Acesso em: 18/08/2012. BUREAU DES LONGITUDES, Conférence internationale de l’Heure, In: Annales du Bureau des longitudes, Paris: Gauthier-Villars, 1912. 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Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 542 SAÚDE MENTAL, INSTITUIÇÕES PSIQUIÁTRICAS E OS DESAFIOS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA Fátima Saionara Leandro Brito Doutoranda em História – UFMG Agência Financiadora – CAPES [email protected] Resumo: Um novo paradigma instaurado no Brasil através da Lei da Reforma Psiquiátrica, nº 10.216, promulgada em abril de 2001, busca romper com a forma de tratamento pautado no modelo asilar. Esta lei estabelece que a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.A partir de então, o tratamento em regime de internação passava a ser estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, entre outros. Por fim, ficava, a partir de então, vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares. Desse modo, a proposta é a de levantar e por em evidência questões que se direcionem em torno dos desafios postos frente a esse novo paradigma, bem como buscar compreender em que medida os limites clássicos da Psiquiatria foram efetivamente reformulados. Palavras-chave: Reforma, Asilo, Psiquiatria. Résumé: Un nouveau paradigme introduit au Brésil par le biais de la Loi de la Réforme Psychiatrique, alinéa 10 216, entrée en vigueur en avril 2001, cherche à rompre avec la forme de traitement basé sur le modèle de l'asile. Cette loi établit que l'hospitalisation, dans aucune de ses modalités, sera indiquée seulement lorsque les ressources extra-hôpital s'avèrent insuffisantes. Depuis lors, le traitement en milieu hospitalier va être structuré pour offrir une assistance à la personne souffrant de troubles mentaux, y compris les services médicaux, assistance sociale, psychologique, professionnelle, de loisirs, entre autres. Enfin, il a été, depuis lors, le scellé l'hospitalisation des patients atteints de troubles mentaux dans des établissements avec des caractéristiques d'asilares. Ainsi, la proposition de cette communication est d'élever et de mettre en lumière les questions qui si cible autour des défis placé devant ce nouveau paradigme, mais aussi chercher à comprendre dans quelle mesure les limites classiques de la psychiatrie ont été reformulées efficacement. Mots clés : Retraite, Maison de Retraite, Psychiatrie. As políticas de saúde mental pautadas em modelos de assistência extra-hospitalar, tornavam-se efetivadas a partir da aprovação da lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Trata-se da lei da reforma psiquiátrica que tramitou no congresso nacional por doze anos até sua aprovação. Conhecida como lei Paulo Delgado 1 , ela passou a significar os direitos não apenas dos pacientes de sair do enclausuramento em que viviam submetidos, mas significava, 1 Nome do deputado federal que elaborou o projeto de lei nº 3.657 em 1989. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 543 também, a legitimação das ações dos movimentos de reforma psiquiátrica que desde a década de 1970 hasteavam a bandeira de luta por uma melhor assistência aos pacientes que necessitam de tratamento psiquiátrico no Brasil. Outras áreas do saber, como a psicologia e a psicanálise, vêm por meio da reforma psiquiátrica apossar-se da loucura, estabelecendo um novo caminho para se tratar a doença mental, já que até então era apenas a psiquiatria que detinha essa função. Estes saberes passam a articular outros movimentos, não mais o da exclusão e segregação, mas no lugar destes, a liberdade e as relações sociais existentes para além daqueles muros. A lei da reforma psiquiátrica está fortemente influenciada pela perspectiva do médico italiano Franco Basaglia, autor da lei nº 180 da reforma psiquiátrica na Itália. A lei italiana em seu artigo 7º, parágrafo 6º, afirma que: “É absolutamente proibido 2 construir novos hospitais psiquiátricos, utilizar os já existentes como divisões psiquiátricas especializadas de hospitais gerais, instituir nos hospitais gerais seções psiquiátricas e utilizar como tais, seções neurológicas ou neuropsiquiátricas.” 3 Trata-se de uma aversão ao modelo hospitalar até então existente, e uma adesão às formas de tratamento fora dos muros da instituição asilar, significando uma anulação/proibição das instituições psiquiátricas vigente no país. Este modelo italiano de reforma da assistência em saúde mental tornou-se o ponto de partida para as discussões reformistas postas no Brasil. O interesse por Basaglia era decorrente de muitos aspectos, dentre os quais, a repercussão internacional quanto à desativação do hospital de Gorizia 4 e sua participação nos movimentos de reforma psiquiátrica ocorridos naquele país (AMARANTE, 1996, p. 20.). Também conhecida como “psiquiatria democrática” a reforma psiquiátrica italiana, fundamenta-se na “lei Basaglia” 5 , que é, sobretudo, uma lei sanitarista na qual se opera uma profilaxia, no sentido de erradicar doenças infecciosas e difusivas, sendo a doença mental um dos casos abordados e não o caso específico (PASSOS, 2009, p. 132.) Já no que diz respeito ao caso brasileiro de reformulação da assistência aos portadores de transtornos mentais, a lei 10.216 fortalece a distinção existente entre o “normal 2 Grifo meu. 3 Lei italiana nº 180 de 13 de maio de 1978. 4 Hospital Provincial Psiquiátrico de Gorizia, cidade do Norte da Itália, onde Franco Basaglia em 1961 assumiu a direção e instaurou um processo de desinstitucionalização. Sobre a experiência de reforma em Gorizia. Cf. PASSOS, 2009. 5 Nome pelo qual ficou conhecida a lei nº 180 na Itália. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 544 e o patológico” 6 na medida em que formula uma legislação específica para os que necessitam de atendimento psiquiátrico. A “lei Paulo Delgado” juntamente com as inúmeras portarias que regulamentam a rede de assistência psiquiátrica no Brasil estabelece a diferença, pois trata a doença mental como caso excepcional, necessitando, portanto, de tratamento, regimento e linguagem específicos. Assim, se fortalece ainda mais a separação entre os que são nomeados de normais e, portanto, fazem parte da legislação geral do Ministério da Saúde, e os que rasuram a normalidade, fazendo parte de decretos específicos para a área da saúde mental. A reforma lança mão de um dicionário próprio negativizando o já existente. A palavra manicômio é resignificada no intuito de desautorizar aqueles espaços de tratamento que se caracterizam pela segregação e descaso para com os internos. Segundo Izabel Passos (2009, p. 128), o uso desta palavra significa não fazer inferência a qualquer termo como “clínica” ou “hospital psiquiátrico” que, para os militantes da reforma, camuflam uma realidade de exclusão e de “manicomialização”. 7 Sendo assim, a reportagem veicula algo além de uma simples informação em torno do hospital, ela transmite a visão dos reformadores da saúde mental no país. O uso da palavra manicômio como estratégia das políticas reformistas, pode ser encontrado no parecer nº 8 de 1991, que reajusta o texto do projeto de lei nº 3.657 de 1989, o qual culminou na lei da reforma psiquiátrica. A palavra manicômio é usada de forma expressiva. O trecho que abre o parecer, afirma que esta lei “[...] dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais” 8 . Desse modo, esta palavra é usada com o intuito de desconstruir a rede de assistência às doenças mentais, até então vigente, e implantar um novo modelo de tratamento que não utilize como meio a segregação e exclusão daqueles que necessitam de assistência psiquiátrica. 6 Os conceitos de normal e patológico são desconstruídos por Georges Canguilhem (2009, p. 77). Segundo este autor, é interessante observar que os psiquiatras contemporâneos operaram na sua própria disciplina uma retificação e uma atualização destes dois conceitos, da qual os fisiologistas não parecem ter tirado nenhum proveito. Desse modo, tais conceitos trazem uma especificidade para a psiquiatria, na medida em que esquadrinha os comportamentos, estabelecendo o normal e o a-normal/patológico. 7 O poeta Ferreira Gullar, pai de dois filhos diagnosticados como esquizofrênicos, afirma em uma crônica intitulada Uma lei errada, que a reforma “[...] lança mão da palavra ‘manicômio’, já então fora de uso e que por si só carrega conotações negativas, numa época em que aquele tipo de hospital não existe mais.” Ainda segundo ele, os manicômios se caracterizaram no Brasil como instituições de assistência psiquiátrica que além de doentes mentais abrigavam refugiados políticos, o que já não funciona mais desde a década de 1970. Cf. GULLAR, 2009. 8 Parecer nº 8 de 1991. Este parecer reformula o projeto de lei nº 3.657 de 1989 do deputado Paulo Delgado que culmina na lei da reforma psiquiátrica em 2001. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 545 Um folheto de cordel produzido no ano de 2002, em Campina Grande – Paraíba, intitulado Novos tempos para o doente mental: cuidar sim excluir não de autoria de Manoel Monteiro, faz uso destes termos em algumas de suas estrofes: A palavra manicômio Causa arrepios na gente Por ser um lugar sombrio Gradeado e repelente Com um saldo negativo Em recuperar doente. Hospital Psiquiátrico Ou sanatório e hospício Aonde o doente é Submetido ao suplicio De ficar preso, não trazem, Um pingo de beneficio. (MONTEIRO, 2004, p. 1) Observa-se que as palavras usadas por meio da reforma psiquiátrica estão revestidas de poder e significados. Termos como manicômio, hospício, sanatório, são usados de forma estratégica, pois emitem signos negativos em torno destes espaços. É com base em estratégias como estas, que os conceitos em torno da loucura passaram a ser des-construídos. Desse modo, a questão da reformulação dos conceitos exerce um papel importante frente a esse processo. Sobre este aspecto, o modelo de reformulação italiano mais uma vez exerce influência sobre a perspectiva brasileira. É nele que os reformadores da saúde mental no Brasil buscam a inspiração necessária para elaborar a sua própria legislação. A reforma psiquiátrica na Itália aciona um novo discurso na tentativa de retirar a negatividade que envolve a loucura. Assim, os basaglianos 9 usam no lugar da palavra loucura a expressão experiência sofrimento(PASSOS, 2009, p. 142), executando, desse modo, um movimento da linguagem na tentativa de devolver os pacientes nomeados de loucos para o convívio social existente fora dos muros do hospital psiquiátrico. O conceito de doença 10 , por sua vez, legitimava “o poder psiquiátrico” 11 e justificava a necessidade de internação. Uma vez atribuído pela autoridade médica aos 9 Nome pelo qual são chamados aqueles que aderem à luta da reforma psiquiátrica na Itália apoiados na perspectiva de Franco Basaglia. 10 A crítica ao conceito de doença fundamenta o processo de desinstitucionalização, tornando-se o objeto prático- teórico proposto pela reforma psiquiátrica. Segundo esta perspectiva, a psiquiatria, ao ocupar-se da doença, não encontra o sujeito doente, mas um amontoado de sinais e sintomas; não encontra uma biografia, mas uma história pregressa, não encontra um projeto de vida, mas um prognóstico. Cf. AMARANTE, 1996, p. 104. 11 Termo usado em alusão ao livro póstumo de Michel Foucault, intitulado: “O poder psiquiátrico”, o qual reúne as aulas proferidas no Collège de France entre os anos 1973-1974. Para Foucault o poder não se restringe apenas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 546 pacientes que necessitavam de tratamento psiquiátrico, tal conceito estigmatizava-os, instituindo-os enquanto sujeitos patológico-anormais. Desse modo, na experiência italiana este termo passou a ser substituído por existência sofrimento(PASSOS, 2009, p. 152). Esta articulação é feita com o propósito de desmontar os significados negativos até então atribuídos por meio dos diagnósticos. A proposta é a de desconstruir a doença mental 12 inscrita no âmbito positivista da medicina, utilizando além do termo existência sofrimento, noções como mal-estar, privação psicológica e distúrbios mentais. Essas últimas, segundo Passos, “[...] inscrevendo-se no âmbito desmedicalizado das relações e vivências do indivíduo” (PASSOS, 2009, p. 225). A redefinição teórica em torno do conceito de doença tornou-se importante na luta da reforma psiquiátrica, na medida em que instaura agenciamentosde práticas que visam, sobretudo, retirar os pacientes de dentro dos hospitais psiquiátricos. Uma outra remontagem conceitual proposta pelos italianos é a substituição do conceito de cura por emancipação terapêutica(PASSOS, 2009, p. 154). Apesar da lei italiana nº 180 ainda fazer uso do conceito de “doença mental” 13 , vê-se por meio dos movimentos da “psiquiatria democrática” uma maquinaria discursiva que passa a tecer novos significados em torno da loucura, acionando outros conceitos em seus discursos, na tentativa de suavizar o peso negativo que lhe foi historicamente atribuído. Desse modo, os reformistas da saúde mental no Brasil, têm substituído o termo doença, que servia para nomear a diferença e a anormalidade, por outros termos, como pode ser visto no texto de abertura da lei nº 10.216, que “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais 14 , 15 e redireciona o modelo assistencial em saúde mental 16 ” 17 . Assim, termos como “saúde mental” e “transtornos mentais” ocupam o lugar antes destinado ao conceito de doença, exercendo um combate contra a patologização da à figura do médico, porque, “[...] no asilo como em toda parte, o poder nunca é aquilo que alguém detém, tampouco é o que emana de alguém. O poder não pertence nem a alguém nem, aliás, a um grupo; só há poder porque há dispersão, intermediações, redes, apoios recíprocos, diferenças de potencial, defasagens, etc.” Cf. FOUCAULT, 2006b, p. 7. 12 A proposta de Franco Basaglia é a de colocar a doença entre parênteses, o que não significa, segundo ele, a negação da doença mental, mas uma recusa à positividade do saber psiquiátrico em explicar e compreender a loucura. Cf. AMARANTE, 1996, p. 80. 13 Os termos doença mental aparece nos artigos 2º, 3º e 6º da lei italiana nº 180º de13 de maio de 1978. 14 Grifo meu. 15 É importante frisar que “transtornos mentais” é a expressão de ordem da Classificação Internacional de Doenças – psiquiatria e neurologia, conhecida como CID-10. Cf. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – Psiquiatria e Neurologia (CID-10). Vol. 1. São Paulo: Edusp, 2008. 16 Grifo meu. 17 Lei federal nº 10.216 de 06 de abril de 2001. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 547 loucura, que em outro momento motivava e justificava o enclausuramento dos pacientes em instituições psiquiátricas. O termo “sofrimento mental” é usado em substituição a conceitos psicopatológicos que poderiam legitimar a internação e segregação de homens e mulheres tidos e nomeados como doentes mentais. Uma nova imagem da loucura passa a ser produzida e começa a tomar corpo por meio dos discursos reformistas. O poder da linguagem passa a exercer uma importante função nesta reconstrução, na medida em que aciona outros sentidos de verdades para os homens e mulheres que vivenciam a experiência da loucura, sentidos estes que não estão mais pautados na segregação, mas no convívio social fora da instituição psiquiátrica. Os transtornos mentais – muitos deles apesar de não serem permanentes – marcam o corpo mais do que a própria invalidez física. Um exemplo disso pode ser observado na lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que, ao dispor sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social, não inclui os portadores de transtornos mentais 18 . Com a aprovação desta lei, entrava em vigor a inserção dos homens e mulheres nomeados de deficientes para o mercado de trabalho, mas, por outro lado, reafirmava a exclusão dos que tinham suas limitações diagnosticadas pelo saber psiquiátrico. Nos artigos desta lei, não consegui verificar nenhuma política de inclusão dos portadores de transtornos mentais. Apenas afirmava que “Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, [...]” 19 . 20 Quanto à “deficiência mental”, como são nomeados os transtornos mentais, esta passa a ser inserida no hall das demais deficiências por meio do decreto nº 3.298 de 20, de dezembro de 1999, o qual regulamenta a lei anteriormente citada. É apenas a partir de então que os portadores de “deficiência mental” 21 podem exercer as atividades laborativas, dentro das limitações que o grau da doença lhes coloca. 22 São, portanto, considerados portadores de deficiência os que se enquadram nas seguintes categorias: deficiência física, auditiva, visual, mental e múltipla 23 . 24 18 Lei 7.853 de 24 de outubro de 1989. 19 Grifo meu. 20 Lei 7.853 de 24 de outubro de 1989. 21 A deficiência neste decreto é descrita como “Toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano. Cf. Art. 3º parágrafo 1º do decreto nº 3.298 de 20 de dezembro de 1999. 22 Decreto nº 3.298 de 20 de dezembro de 1999. 23 Grifo meu. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 548 A “deficiência mental” é definida neste decreto como: “funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas.” 25 A deficiência aí descrita, aproxima-se dos problemas neurológicos e não dos transtornos psiquiátricos 26 , já que os problemas neurológicos podem limitar o processo de aprendizado de seus portadores, afetando, assim, o funcionamento intelectual, o que não se constata com boa parte dos problemas psiquiátricos. Segundo Paulo Amarante, para transformar esta realidade de negação é necessário sair do território exclusivamente psiquiátrico e construir na sociedade fora do hospital as condições para que ela, como espaço real da vida humana, reintegre estas vidas, compreendendo que a doença não é a condição única do doente, mas o aspecto negativo que é produzido em torno dele, por meio da sociedade que o rejeita e pela psiquiatria que o gere (AMARANTE, 1996, p. 75). Algumas críticas são lançadas a esta proposta da reforma, pois a grande questão é: como irão sobreviver esses pacientes sem assistência hospitalar? De acordo com Amarante, a desinstitucionalização não representa desospitalização, ou desassistência. Neste sentido, não se trata apenas de retirar os doentes de dentro de uma instituição psiquiátrica e jogá-los abandonados à sorte. Ao contrário, esse movimento segundo ele, visa, sobretudo, o tratamento desses pacientes na comunidade, na vivência com a família e com a vizinhança, por meio de uma assistência extra-hospitalar, (AMARANTE, 1996). Desse modo, a proposta da reforma psiquiátrica tem como um de seus objetivos a remodelação dos conceitos em torno da assistência, na tentativa de retirar a negatividade que historicamente foi construída em torno da loucura. Assim, pode-se observar agora como se deu essa reformulação conceitual em torno de algumas leis de assistência psiquiátrica antes da aprovação da lei 10.216. O antigo aparato conceitual usado para explicar e justificar a segregação pode ser visto na legalização da assistência psiquiátrica brasileira no início do século passado. Os 24 Cf. Art. 4º do Decreto nº 3.298 de 20 de dezembro de 1999. 25 Cf. Art 4º parágrafo IV do Decreto nº 3.298 de 20 de dezembro de 1999. 26 Como pôde ser visto no capítulo anterior, os problemas psiquiátricos são aqueles que se apresentam na mente humana tal como a esquizofrenia, a depressão, os transtornos bipolares, entre outros. Quanto aos neurológicos, são aqueles que fazem parte do cérebro, da medula ou dos nervos, a exemplo de dores de cabeça, distúrbios do sono, doença de Parkinson, entre outros. Cabe ressaltar que tanto nos problemas neurológicos, como nos psiquiátricos, não existe um período específico da vida – no caso deste, descoberto antes dos dezoitos anos – para que tais transtornos possam se fazer presentes. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 549 conceitos utilizados estavam ligados ao diagnóstico médico-psiquiátrico que patologizava os atores da loucura e territorializava o lugar da psiquiatria alienista no cenário científico. O decreto nº 1.132, de 22 de dezembro de 1903 27 , colocava em seu artigo 1º que “O indivíduo que, por moléstia mental, congênita ou adquirida, comprometer a ordem pública ou a segurança das pessoas será recolhido em estabelecimentos de alienados.” 28 Nota-se que esta primeira lei de assistência psiquiátrica no Brasil, já encontrava-se centrada no discurso patológico da loucura. Nesse decreto, as autoridades fazem uso do termo “moléstia mental” para elaborar a exclusão daqueles que representavam o avesso da norma social, enquadrando- os como portadores de uma patologia incurável e construindo para esses “desviantes” lugares próprios, quais sejam, os “estabelecimentos para alienados”. Segundo Robert Castel: O alienado aparece assim, como a figura-limite, o último dos excluídos por um processo de rejeição que esmaga os homens. A necessidade dessas exclusões não é colocada em questão, pois elas são a contrapartida do movimento da civilização [...] A finalidade da assistência [...] é sempre a de preservar a ordem social ou ideológica, fornecendo aos mais deserdados, a assistência que devem manter ou restaurar sua dependência em relação à ordem. (CASTEL, 1978, p. 137). Assim, os discursos alienistas e higienistas, em nome da ordem e brio das cidades, expeliam as contingências sociais para os asilos. Fossem os de mendicância ou os de alienados mentais, estas instituições apoiadas nesses discursos instauravam e reafirmavam a diferença ao buscar solucionar o problema social da anti-norma. 29 Apesar de constar de forma ainda bastante tímida a nomenclatura patologizante da loucura, esta lei de 1903 representa o marco fundamental no processo de consolidação da psiquiatria brasileira, como um campo de produção e difusão de saberes e práticas especializadas, que passaram a ser legitimamente aceitas e respeitadas, (ENGEL, 2001, p. 255). 27 De acordo com Engel (2001, p. 260), a lei de 1903 consolidaria a vitória do argumento que legitimava a intervenção direta ou indireta dos poderes públicos na organização e regulamentação da assistência aos alienados. Assim, todos os estabelecimentos de tratamento aos alienados, públicos ou particulares, existentes no país passariam a ficar submetidos à inspeção do órgão da justiça responsável – o Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Esta lei estabelecia, ainda, de forma detalhada, as condições para a criação e o funcionamento de hospícios, asilos ou casas de saúde destinadas a acolher “enfermos de moléstia mental”. Ainda sobre este decreto e a participação do psiquiatra Juliano Moreira. Cf. AMARANTE, 1994, p. 77. 28 Lei federal nº 1.132 de 22 de dezembro de 1903. 29 O conto de Machado de Assis intitulada O alienista, é expressivo nesta discussão. Nele, o personagem Dr. Simão Bacamarte que, utilizando-se de uma passagem de São Paulo aos Coríntios, afirmava: “Se eu reconhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade não sou nada.” E seguia afirmando que o principal em sua obra da Casa Verde “[...] é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.” Esta constituía a principal função de um alienista, aprisionar a loucura para em seguida dissecá-la em nome da caridade à humanidade. Cf. ASSIS, 2008, p. 19. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 550 Entretanto, no decreto nº 24.559, de 3 de julho de 1934, termos estritamente patológicos procuravam estabelecer o reinado científico da psiquiatria sobre a loucura. Termos como higiene mental, psicopatas, doenças mentais, profilaxia, afecção mental, toxicômanos, contágio mental, crônicos, anormais e distúrbios mentais, perpassam todos os artigos dessa lei que “Dispõe sobre a profilaxia mental, a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas, a fiscalização dos serviços psiquiátricos e dá outras providências.” 30 Este decreto marca a legitimação do saber psiquiátrico pautado na cientificidade médica e a sua autoridade sobre a loucura, na medida em que faz uso de todo um aparato de conceitos patológicos que atribuem por meio do diagnóstico a necessidade de enclausuramento daqueles que são estigmatizados pelo poder psiquiátrico. A profilaxia 31 , juntamente com os discursos eugênicos 32 , representava naquele momento um dos marcos dos discursos psiquiátricos, pois justificava a investida médica em todos os recantos da sociedade, sob o propósito de evitar as doenças. Tratava-se da necessidade de “salvar” a população das doenças infecciosas, sendo a loucura uma das mais combatidas, a qual poderia se alastrar por meio da degenerescência 33 , provocando um grande mal para toda a sociedade. Outra mudança considerável nas práticas discursivas e não-discursivas que delimitam o lugar social da loucura estava presente na aliança do saber psiquiátrico com a 30 Lei federal nº 24.559 de 3 de julho de 1934. 31 A profilaxia tinha como propósito a erradicação das doenças infecciosas, com maiores iniciativas de combate no âmbito da doença mental. As estratégias profiláticas de controle da doença mental difundidas principalmente, a partir dos anos 20 do século passado, sob a égide dos princípios eugênicos (de pureza da raça), propalados pelos defensores de uma política de higiene mental, serviram para, de um lado, ampliar os mecanismos de identificação dos que deveriam ser imediatamente internados e, de outro, estender os tentáculos do poder do psiquiatra para muito além dos limites do mundo asilar. Tratava-se, sobretudo, do controle da vida social dentro e fora do hospício. Sobre essa discussão Cf. ENGEL, 2001, p. 309. 32 A eugenia é um termo criado pelo fisiologista inglês Francis Galton (1822-1911) para designar o estudo dos fatores socialmente controláveis. Assim como a profilaxia, a eugenia está situada nos discursos psiquiátricos brasileiro nos anos 20 do século passado. Seu fundamento estava pautado na necessidade de branqueamento da raça, sob o propósito de construção de uma nação “civilizada” e “moderna”. Sob esta proposta a psiquiatria brasileira mobilizou estratégias de combate e controle da doença mental, com intuito de que não houvesse a junção daqueles que eram nomeados de civilizados e, portanto, “normais”, com os ditos degenerados e, portanto, “anormais”, evitando, desse modo, a hereditariedade mórbida. Cf. ENGEL, 2001, pp. 173-175. Ainda sobre a discussão de eugenia conferir também: COSTA, 2007. 33 A teoria da degenerescência foi formulada por Auguste Morel (1809-1873) em meados do século XIX. De acordo com Engel, Morel afirmava que a as degenerescências constituíam “[...] desvios doentios em relação ao tipo normal da humanidade, transmitidas hereditariamente.” Desse modo, passando a ser concebidas como as principais causas da loucura. Esta perspectiva rompe com a concepção de Philippe Pinel (1745-1826) que definia a loucura como um “desvio da razão”, por meio de uma análise “médico-filosófica”. Morel coloca a loucura numa investigação organicista, ampliando o método anátomo-clínico de investigação física da doença mental. Para ele, a ausência de estigma físico não implicaria necessariamente ausência de degeneração. Sua investigação, que influenciou a corrente do alienismo no início do século passado no Brasil, incluía, segundo Engel “[...] deformidades cranianas, estrabismos, dentes e orelhas defeituosos, deformações ósseas, feminismo, membro viril excessivamente grande ou pequeno, cegueira, gaguez, surdo-mudez e a própria fealdade poderia ser considerada como estigma físico de degeneração.” Cf. ENGEL, 2001, p. 121-138-139 e 163. Sobre degenerescência ver ainda: AMARANTE, 1996, p. 56; COSTA, 2007. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 551 justiça. A promulgação do Código Civil brasileiro em 1916 exerceu grande influência no campo da saúde mental, quando estabelecia por meio da lei nº 3.071, de janeiro daquele ano, que: Art. 5º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: II - Os loucos de todo gênero; Art. 12º Serão inscritos em registro público: III - A interdição dos loucos, dos surdos-mudos e dos pródigos 34 . (NEGRÃO, 1994, pp. 33-35) Dito de outra forma, de acordo com esta lei, os sujeitos nomeados de loucos não possuem capacidade de realizar seus desejos e, menos ainda, os direitos que são postos a todo e qualquer cidadão que não tenham passado pelo estigma do diagnóstico psiquiátrico. Desse modo, aliada à justiça, a psiquiatria ganha legitimidade de exclusão e segregação. Segundo Marsiglia, o Código Civil limitava ainda mais as ações e direitos destes cidadãos ao afirmar nos artigos seguintes, que: Art. 142º Os loucos não podem ser testemunhas; Art. 145º Qualquer ato jurídico que seja praticado por loucos, será nulo; Art. 177º Os loucos que tiverem comportamentos inconvenientes poderão ser recolhidos a estabelecimentos especiais 35 . (MARSIGLIA, 2004, p. 62). Os homens e mulheres nomeados de loucos não possuem o direito de fala, seus argumentos são desautorizados, não podendo exercer os direitos de testemunhar e de mover ações jurídicas. Com base nesta lei, lhes são negados os direitos que a um cidadão instituído como normal, são conferidos. A questão não era apenas anular qualquer ato jurídico praticado por estes atores da loucura, mas, tratava-se de anular suas próprias vidas, seus desejos e atuação nas decisões sociais, apagando seu “estar no mundo” e seus direitos perante a justiça. O único direito que lhes restam nesta legislação é o de “ser recolhido a estabelecimentos especiais”. A palavra “louco” é usada no Código Civil de maneira incisiva, caracterizando a diferença. Segundo Engel, o emprego da expressão “loucos de todo gênero” 36 , parece indicar que o legislador pretendia conferir a maior abrangência possível, abarcando toda e qualquer manifestação de loucura. Entretanto, segundo a autora, a palavra louco acabaria por tornar 34 Grifo meu. 35 Grifo meu. 36 Esta expressão estava presente nas leis civis e criminais vigentes durante o Império. Ela foi retirada do Código Penal de 1890, mas mantida no Código Civil de 1916. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 552 esta expressão restritiva, já que esta definição encontrava-se estreitamente vinculada à noção de visibilidade, o que requeria, portanto, uma manifestação visível da loucura, (ENGEL, 2001, p. 85). Ainda de acordo com Engel, várias críticas foram formuladas por legistas, alienistas e juristas contra o significado restrito em torno de categorias como loucura ou demência. Estas categorias deixavam de lado os múltiplos e variados tipos de alienação mental, conferindo, portanto, um caráter extremamente rígido à legislação. Os debates suscitados em torno dessa conceituação presente no Código Civil de 1916 fizeram com que os deputados Antonio Austregésilo e Gumercindo Ribas apresentassem um projeto de lei ao Congresso Nacional, pedindo a reformulação dos artigos 5º e 446º, substituindo a expressão “loucos de todo gênero”, neles contidos, por “afetados de graves anomalias psíquicas”. Porém, segundo Engel, este projeto esbarrou em posicionamentos contrários e não logrou êxito, (ENGEL, 2001, p. 144). Havia uma preferência, segundo ela, pela palavra alienado, bem mais abrangente do ponto de vista psiquiátrico do que a palavra “louco”. O psiquiatra Franco da Rocha sugeria que no lugar da expressão “loucos de todo gênero” o texto legal especificasse: “alienados de todo gênero e todos os casos de rebaixamento do nível mental, seja adquirido por doença, seja por decadência senil, seja congênito”, (CAMARGO, 2001, p. 142). Ainda de acordo com Engel, para o psiquiatra Murilo Campos a expressão “alienados mentais de todo gênero”, cuja extensão englobaria até mesmo “os silvícolas e os grandes ignorantes de regiões longínquas”, seria também a mais adequada. Já o médico Humberto Gotuzzo, sugeriu a expressão “portadores de graves anomalias psíquicas, (ENGEL, 2001, pp. 142-143). Observa-se que toda uma construção conceitual entrava em debate naquele momento. A proposta era, por meio da linguagem, pôr do outro lado da norma social e do âmbito da justiça, os homens e mulheres nomeados de loucos. Entretanto, somente em 2002 uma nova lei reformula a expressão utilizada para denominar os incapazes, substituindo no Código Civil brasileiro o termo “loucos de todo gênero”. Trata-se da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 a qual coloca nos seguintes artigos, que: Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: II - Os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: II - Os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 553 III - Os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo 37 . (TOLEDO, 2005, p. 165). É possível que a influência dos movimentos de reforma psiquiátrica e a própria lei 10.216, sancionada no ano anterior, tenham impulsionado a presente reformulação. Como pode ser observado, no Código Civil atual, no lugar de “loucos de todo gênero” a expressão que toma corpo é “enfermidade ou deficiência mental”, que, por sua vez, são igualmente delimitadoras na medida em que enquadram na categoria de incapazes a contingência da loucura. De acordo com Passos, a noção de deficiência é mais perversa que o estigma da doença, pois esta última só em casos muito extremos torna-se um acontecimento crônico. A doença como estado patológico pode ser tratada e até curada, ao passo que a deficiência é uma categoria fixa, na medida em que define um estado permanente e definitivo. Desse modo, segundo a autora, o termo deficiência “é uma categoria que, de fato, esconde desigualdades sociais”, (PASSOS, 2009, p. 120). Neste sentido, mudam-se os termos e expressões, mas continuam latentes a exclusão e a anulação dos direitos daqueles que passaram a representar o avesso da norma social. Sendo assim, estes atores da loucura continuam a ser estigmatizados e rejeitados na sociedade. Sem direito de fala, estes sujeitos têm a sua rostidade apagada em nome da lei. Outra mudança conceitual que deve ser assinalada aqui se refere ao deslocamento do conceito de “doença mental” para o de “saúde mental”. Este deslocamento implica um reajuste nas ações terapêuticas da psiquiatria na medida em que esta amplia o seu campo de atuação, saindo do interior da instituição com o objetivo centrado no tratamento do indivíduo doente, para o restante da sociedade, objetivando a prevenção da saúde coletiva. Este deslocamento pode ser observado nos diversos nomes do órgão destinado a assistência psiquiátrica pública federal, o qual inicialmente era chamado de Assistência Médico-Legal a Alienados 38 , passando a ser nomeado de Assistência a Psychophatas 39 , depois, Serviço Nacional de Doenças Mentais 40 e posteriormente recebendo o nome de Divisão Nacional de Saúde Mental. 41 Atualmente o órgão responsável é a Coordenação Nacional de Saúde Mental. 37 Grifo meu. 38 Criado pelo Decreto nº 508 de 21 de junho de 1890. 39 Criado pelo Decreto nº 17.805 de 23 de maio de 1927. 40 Criado pelo Decreto nº 3.171 de 02 de abril de 1941. 41 Criado pelo Decreto nº 66.623 de 22 de maio de 1970. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 554 Por meio destas re-nomeações tem-se acesso a uma mudança prático-conceitual no que diz respeito à atuação do saber psiquiátrico na sociedade. De acordo com Birman& Costa, instaura-se uma mutação radical no campo epistemológico da medicina mental, passando de instrumento de cientificidade sobre a doença mental para pretender-se definidor da saúde mental, (BIRMAN, 1994, p. 43). Observa-se que, por meio do termo Assistência Médico-Legal a Alienados, há uma íntima relação da psiquiatria com a jurisprudência. Já o termo Assistência a Psychophatas, nota-se que há uma desvinculação, ao menos nominal, desse órgão do âmbito jurídico, predominando a instância médica por meio do termo psicopata. Em seguida, a terminologia Serviço Nacional de Doenças Mentais demonstra a força na atuação do poder psiquiátrico por meio da nosografia 42 . No que diz respeito à Divisão Nacional de Saúde Mental e à Coordenação Nacional de Saúde Mental, tais denominações produzem dois deslocamentos. O primeiro diz respeito à necessidade de o saber psiquiátrico atuar em todos os recantos da vida social sob a justificativa da prevenção – ação esta que, como foi dito anteriormente, já estava presente desde os fundamentos eugênicos nos anos 20 do século passado. O segundo deslocamento se dá em relação à necessidade de se retirar o rótulo doentio da loucura, mudando o foco da doença para a saúde, na tentativa de deslegitimar a segregação em hospitais psiquiátricos e a negatividade existente em torno de termos psicopatológicos. Feito este breve percurso histórico por meio dos conceitos presentes nas leis que regulamentam a assistência psiquiátrica, pode-se compreender como os reformistas da saúde mental atuam por meio da re-conceituação das práticas do saber médico psiquiátrico. A proposta é a de instaurar uma nova ordem em torno da loucura, ordem esta que não é mais legitimada por meio de exclusão e segregação sociais. Neste sentido, a reforma psiquiátrica é, antes de tudo, uma reforma prático- conceitual que atua por meio da linguagem com o intuito de desconstruir a negatividade existente em torno da loucura, propondo, por meio deste movimento, a reintegração social dos homens e mulheres que vivem enclausurados por detrás dos muros que dividem a norma social do seu avesso. Assim, observa-se como a re-conceituação está presente nas leis da reforma psiquiátrica. Digo leis, pois entendo que não é apenas a lei federal que opera a regulamentação da assistência psiquiátrica, mas a proposta reformista é operacionalizada de 42 Nosografia é o termo usado para designar a descrição metódica das doenças. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 555 diversas formas de acordo com cada estado ou município, como vimos na lei campinense e na lei estadual de assistência à saúde mental. Foi dada a oportunidade, de observar como esta re-conceituação proposta pelos reformadores da saúde mental está presente na fala dos militantes reformistas que expuseram suas propostas por meio dos discursos presentes na Câmara dos Vereadores de Campina Grande. Também pôde ser observado neste capítulo que as discussões acionadas pela legislação em torno da loucura apontam para a normatização dos sujeitos de direito, sendo o louco ausentado das ações políticas da vida perante a justiça. De acordo com Lévinas, a justiça é uma invenção da racionalidade ocidental moderna, a qual ele repudia, pois por meio dela tenta-se neutralizar a diferença. Para ele, a palavra “nós” acionada pelo discurso jurista não é um veículo de justiça, mas sim, o resultado da injustiça, pois coloca os sujeitos lado a lado e não face a face, (HUTCHENS, 2004, pp. 139-154). Assim, todas as leis aqui discutidas exercem uma função em torno da loucura, qual seja, a de construir os espaços na sociedade para alocar esses atores sociais. Trata-se de questões democráticas de igualdade e justiça. Tais questões apontam, para o horizonte da ética. Desse modo, nos próximos capítulos poderá ser visto como estes discursos da reforma psiquiátrica se instalam na linguagem da imprensa e dos relatos orais de homens e mulheres atuantes na área da psiquiatria, a exemplo dos reformadores, dos profissionais, bem como, dos familiares e pacientes que vivenciaram esta experiência de ruptura da assistência médico-psiquiatra. Referências Bibliográficas AMARANTE, Paulo. Asilos, alienados e alienistas. In: ______. (Org.) Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994. ______. O homem e a serpente:outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996. ASSIS, Machado. O alienista. São Paulo: Martin Claret, 2008. 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ISBN 978-85-62707-52-0 558 PRELÚDIO A UMA ARQUEOLOGIA DO CORPO * Sara Teixeira Munaretto Mestranda em História – Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) Bacharela em Arqueologia – Universidade Federal do Rio Grande (FURG) Apoio: FAPERGS [email protected] Resumo: Ao longo do tempo e do espaço, o corpo foi alvo de uma infinidade de representações. Esse corpo que se faz diferente em cada contexto, este universo do sensível, dos sentidos e dos meios, sem dúvida ocupa papel central na comunicação. É o “lugar” de estar no mundo, é densidade e experiência material, biológico e cultural. Mais do que isso, ele assume face nuclear da dinâmica cultural, pois é ponto de encontro entre o que é do indivíduo e o que é vivência social, coletiva. Na Arqueologia, o corpo começa a despontar como tema de interesse à luz das ideias pós-processualistas, sob influência de teorias como a fenomenologia. Admitindo este corpo como objeto, pois é materialização primeira, e ao mesmo tempo meio pelo qual se tecem as relações com os outros objetos e com o mundo, este trabalho busca definir um conceito de corpo na arqueologia, centrando-o como uma importante ferramenta analítica da disciplina. Através da identificação de aspectos mais gerais acerca das visões sobre o corpo, e da análise do próprio objeto cientifico da arqueologia, o desenvolvimento de um conceito que abarque a condição subjetiva da(s) corporalidade(s) e suas dinâmicas, contribuiria para uma humanização da produção arqueológica. Palavras-chave: corpo, arqueologia, epistemologia. Abstract: Over time and space, the body was subjected to a plethora of representations. This body is made differently in every context, this sensible universe, of senses and medias, undoubtedly occupies a central role in communication. It is the "place" of being in the world, is density and material experience, biological and cultural. More than that, he takes nuclear face of cultural dynamics; it is the meeting point between what is individual and what is social experiencing, collective. In archaeology, the body begins to emerge as a subject of interest in light of postprocessualists ideas, influenced by theories such as phenomenology. Admitting this body as an object, as it is the first materialization, while means whereby weave relationships with other objects and the world, this study seeks to define a concept of the body in archeology, centering it as an important analytical tool of the discipline. By identifying broader issues about the visions on the body, and the analysis of the actual object of scientific archeology, the development of a concept that encompasses the subjective condition (s) of corporeality (s) and their dynamics, will contribute to a humanization of archaeological production. Keywords: body, archaeology, epistemology. * Este artigo trata-se de um resumo do trabalho homônimo original, ainda não publicado. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 559 1. Considerações Iniciais É possível que a Arqueologia seja um dos campos do conhecimento que mais se aproxima das “coisas do corpo”. Ao servir-se das materialidades como objeto de análise, presentes nos contextos de sítios, coleções e mesmo indiretas em outras fontes, ela indubitavelmente entra em contato com os corpos das pessoas que as produziram. Entretanto, ao longo do tempo esses corpos não foram percebidos, ou talvez tenham sido ignorados. Nós escavamos os objetos das pessoas, seus corpos muitas vezes, trabalhamos com o produto da técnica, e tecemos interpretações sobre seu passado vivido (e nosso passado ancestral), sem de fato acessar suas experiências corporificadas. Considerando que o estudo do corpo deve admitir sua natureza biológica e cultural, é imprescindível situar de que corpo estamos tratando. Marcel Mauss já salientava em suas Técnicas do corpo, que este termo compreendia as distintas maneiras com que as pessoas fazem uso de seus corpos, que são diferentes em cada sociedade (MAUSS, 2003, p. 407). O corpo é, segundo Corbin, “uma ficção, um conjunto de representações mentais, uma imagem inconsciente que se elabora, se dissolve, se reconstrói através da história do sujeito, com a mediação dos discursos sociais e dos sistemas simbólicos” (CORBIN apud CORBIN et al 2008, p. 7), uma vez que é inventado e reinventado, como uma projeção, de acordo com as coordenadas de tempo e espaço. Este autor defende que houve um aumento da porosidade entre as fronteiras do que ele chama de corpo objeto e corpo sujeito, do que é exterior e do que é interior, do corpo coletivo e corpo individual, ao longo do século XX, e que vão incidir profundamente nas abordagens que propomos atualmente para as questões da corporalidade 1 . Somente existimos através de nossos corpos. Este universo do sensível possui dimensões atuantes em seu próprio contexto, como organismo que comunica, agencia, incorpora, apreende informações, sente. Ele é um suporte fundamental por onde se tecem as complexas culturas humanas. Mais do que isso, desenvolvemos a capacidade de usar o corpo de diferentes maneiras, além de trabalhar habilmente com outros objetos. O corpo é sensitivo, cultural e biológico. E é precisamente este corpo que me interessa: amplo, atuante. Para tanto, me propus, na composição que se segue, a dar conta de três aspectos fundamentais. Um, consiste em descrever e localizar algumas informações necessárias a fim de situar a temática. Trato, então, do que chamei de “lugares do corpo”, onde explicito 1 Adotarei neste trabalho o conceito de corporalidade conforme definição de Gavazzo e Cenevaro (GAVAZZO ; CENEVARO 2009). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 560 algumas informações sobre concepções de corpo. Quanto ao segundo e terceiro aspectos, estes os trato juntos. São eles: uma análise epistemológica da arqueologia enquanto ciência e uma proposta de que lugar deve o corpo tomar na arqueologia. Com isto, justifico a definição do corpo como objeto de estudo da arqueologia e como ferramenta heurística, tratando-o como um meio de humanização da disciplina. 2. Dos lugares do corpo Ao longo do tempo e do espaço, o corpo foi alvo de uma infinidade de representações. De acordo com o Dictionnaire de l’ethnologie et de l’anthropologie (BONTE; IZARD, 2002, p. 175), desta multiplicidade emergem dois paradigmas fundamentais: um que abarca os sistemas do mundo que consideram o homem o “microcosmo”, como a réplica ou a quintessência do universo, o “macrocosmo” 2 , e outro onde alocam-se as sociedades como o Ocidente desde a Antiguidade, que separam a “alma” do corpo. No segundo paradigma, que é o caso do mundo Ocidental, foi ainda na Antiguidade que se anunciou uma separação da alma/mente e do corpo, e é a esse período que uma visão negativa do corpo carne pode ser traçada. Contudo, é a Idade Moderna que formata a concepção dualista do mundo, característica do pensamento ocidental. O corpo é tão somente um envoltório que guarda algo mais importante, a alma. A exemplo deste pensamento moderno, tomemos Descartes, que compila a essência da mentalidade de sua época, e fundamenta o pensamento racionalista e mecanicista que até hoje nos influencia. Ao assumir a máxima cogito, ergo sum como primeiro princípio de sua filosofia, foi possível dizer que nós, humanos, somos uma “substância cuja essência ou natureza consistem apenas em pensar, e que, para ser, não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de coisa material alguma” (DESCARTES, 2010, p. 70). A partir do século XVIII, uma nova concepção de corporalidade se esboça. As transformações históricas e mentais profundas a partir deste período são germe de uma lenta supressão (não definitiva) desta subjugação do corpo à alma, presente até então. Se a alma já não necessita de salvação, o entendimento dos corpos e sua postura no mundo passam a ser outros, pois já não são tão fortemente marcados pela chancela da fé cristã. Por outro lado, o 2 A exemplo deste paradigma tomemos os postulados da filosofia indiana. Ver: ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athena, 2005. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 561 Iluminismo não contribui muito para melhorar as visões negativas do corpo. O peso da fé cede lugar ao peso da razão (SHILLING 2004, p.13). As expressividades do corpo se modificam com o avanço do capitalismo e da mentalidade burguesa, mas ainda assim o corpo não consegue se afirmar. Segundo Corbin (2008), é no século XIX que esta distinção clássica da alma em posição superior ao corpo se desloca um pouco, cedendo lugar a consciência de uma gestão social do corpo (CORBIN, COURTINE, VIGARELLO, 2008, p. 9). Dito isto, é possível perceber que este universo sensível que é o corpo, foi ao longo do tempo no mundo ocidental, desprezado, secundarizado e até ocultado. É só no século XX, que, como uma superação ao racionalismo dualista, Maurice Merleau-Ponty coloca o corpo em lugar central dentro de sua obra. Para ele, toda a compreensão e percepção do mundo se dão a partir do corpo. Segundo Merleau-Ponty, Eu organizo com meu corpo uma compreensão do mundo, e a relação com meu corpo não é a de um Eu puro, que teria sucessivamente dois objetos, o meu corpo e a coisa, mas habito o meu corpo e por ele habito as coisas. A coisa me aparece assim como um momento da unidade carnal de meu corpo, como encravada em seu funcionamento. O corpo aparece não só como o acompanhante exterior das coisas, mas como o campo onde se localizam minhas sensações (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 122). Dessa forma, um corpo se faz humano porque vê a si mesmo, toca-se, sente-se, e ao mesmo tempo capta o mundo exterior a ele da mesma maneira. Para Marcel Mauss toda técnica 3 tem sua forma, e a especificidade constitui o caráter de todas as técnicas. Para ele, os modos de agir constituem técnicas. Colocar o corpo neste grau de importância permitiu a Mauss formular seu conceito de “homem total”. Essa proposta pressupõe estudar o homem sob três dimensões – fisiológica, sociológica e psicológica – buscando compreender como elas se articulam entre si (JULIEN; WARNIER 1999, p. 15). Quanto à defesa de Merleau-Ponty de que o sentir do corpo não se encontra na alma, mas sim no corpo (MERLEAU-PONTY 2000, p. 123), a proposta do autor não pode ser vista como uma nova oposição dualista em que a mente/alma ocupa lugar secundário. Longe disso. Primeiramente ele defende que o homem não é a soma de sua animalidade (no sentido de mecanismo) com a razão. (MERLEAU-PONTY 2000, p. 336). 3 Técnica é para Marcel Mauss “um ato tradicional e eficaz” (MAUSS 2004, p. 407). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 562 A problemática da filosofia demonstra a reconciliação entre mente e corpo solidamente proposta por Merleau-Ponty. Ele defende que não há, de forma alguma, diferença substancial entre natureza física, vida e espírito. A natureza, o espírito, e o homem estão um no outro. Merleau-Ponty faz a defesa de uma arquitetônica humana, que seria “uma arquitetônica entre seu “corpo” e sua “razão”, e não imposição de um Para Si a um Em Si” (MERLEAU-PONTY 2000, p. 346). Algumas perspectivas que contribuíram para o interesse pelo corpo são apontadas por Chris Shilling (2004). São elas: o corpo comercializado como aspecto central para o sentimento de identidade própria das pessoas no mundo contemporâneo (foco no consumo hedonista); a segunda onda feminista (e cujos estudos decorrentes destacaram como o corpo tem sido usado como meio de discriminação contra as mulheres); a tomada de consciência das mudanças nos modos de governabilidade, que destacaram o aspecto físico humano como um objeto de distintas formas de controle (ligados a Foucault); os avanços tecnológicos (engenharia genética, fertilização in vitro, transplantes); e por fim, o corpo como um recurso conceitual que pode ajudar os pesquisadores a avançar em suas disciplinas (conceitos como embodiment 4 ) (SHILLING 2004, p. 8 - 11). Outro importante autor que analisa as questões do corpo é Bryan Turner, que aponta as mesmas perspectivas de interesse sobre o corpo que Shilling, além de incluir a análise da relação entre a cultura e a experiência, ou melhor, entre o plano horizontal da sociologia e o plano vertical da ontologia (TURNER 2000, p. 482). O corpo nas ciências sociais e humanas Apesar das divergências e obscuridades em torno do tema, é consenso entre muitos autores que a partir dos anos 80 e 90 do século XX o corpo tem assumido posição de destaque nas ciências sociais (TURNER 2000; HAMILAKIS, PLUCIENNICK, TARLOW 2002; ALMEIDA 2004; SHILLING 2004, DURET, ROUSSEL 2005; JOYCE 2005; BORIC, ROBB 2008; MARTÍNEZ 2008; HOUSTON 2010; LIMA 2011). Isto não significa que a temática não tenha sido abordada anteriormente, a exemplo de Durkheim, Mauss, Bloch entre outros, mas demonstra que os interesses de pesquisa e os focos de análise passam a ser outros a partir deste momento. Até então, as pesquisas dos cientistas sociais tinham como foco 4 Ver as definições de embodiment de Julian Thomas (THOMAS apud RENFREW e SCARRE 1998, p. 152) e de Bryan Turner (TURNER 2000, p. 494). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 563 analítico as relações sociais em si, deixando um pouco de lado os sentidos, sentimentos e imagens corporais. As abordagens de Simmel, Marx e Durkheim foram desenvolvidas em torno da sociedade moderna industrial, e foram de suma importância. Por outro lado, Chris Shilling nos apresenta três abordagens mais recentes e de grande importância (talvez as mais influentes) para o campo dos estudos do corpo. São elas: concepções de corpo na teoria da estruturação (structuration theory), análises construcionistas da sociedade do corpo ordenado (ordered body), e abordagens do ponto de vista da ação e da fenomenologia, em direção a um corpo ligado à experimentação (lived body). O corpo passa por qualquer temática de interesse sobre o homem em qualquer área do conhecimento. Este é um dos argumentos que baseia minha defesa de que o corpo pode ser tanto objeto quanto ferramenta heurística para a arqueologia. Mais do que isso, ele pode ser um meio efetivo de cruzar as diferentes áreas das humanidades, indo muito além do popular e raso conceito de interdisciplinaridade. Ele pode representar uma verdadeira circulação de pensamentos, a formulação de novas perguntas, seja através de novas ou velhas teorias. Ele pode ser uma forma eficaz de construir novos discursos científicos. 3. O Corpo na Arqueologia A despeito do que foi dito acima, na arqueologia, o tema despontou um pouco mais tarde do que em outras áreas das humanas (HAMILAKIS, PLUCIENNICK, TARLOW 2002; JOYCE 2005). Lucia Martínez (2008) diz que, embora o corpo de alguma maneira sempre tenha feito parte da arqueologia, foi com o advento da revalorização da prática etnográfica pela Arqueologia Processual é que ele começou a ser visto como ferramenta útil para o estudo das culturas; mas somente com a Arqueologia Pós-Processual é que ele passou a ser considerado importante para a reconstrução de aspectos mais profundos das sociedades, como gênero e identidade. Lima (2011) também defende que é a partir da década de 1990 que temas como a paisagem ou o corpo começam a despontar na arqueologia, sob influência direta da fenomenologia e da teoria social. Contudo, a autora destaca que este despontar foi tardio em relação à utilização bem anterior da fenomenologia em outras áreas. Para Joyce (2005), discussões na arqueologia especificamente sobre o corpo são relativamente recentes, apesar de os arqueólogos há muito oferecerem interpretações sobre as Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 564 materialidades que implicam em práticas, ideias e experiências corporais. Boric e Robb (2008) sustentam que o corpo na arqueologia sempre foi, ao mesmo tempo, onipresente e invisível. Onipresente porque questões corporais são tangíveis no registro arqueológico, na medida em que os corpos aparecem para nós nas representações, nos remanescentes esqueletários, nas ferramentas, na arquitetura, etc. Todavia, invisíveis, fato indicado pelo lapso de publicações sobre o tema. Ora, e foi precisamente esta lacuna que instigou minhas perguntas. Onde está o corpo na arqueologia? De que forma estamos olhando para ele? Como ele integra a produção desta ciência? 3.1 Das abordagens sobre o corpo na arqueologia e das teorias que baseiam arqueologia(s) do corpo Pude notar, durante o processo de composição deste trabalho, que algumas concepções acerca da produção arqueológica concernentes ao corpo, bem como aspectos teóricos sobre o tema, sejam eles internos (da arqueologia) ou oriundos das teorias sociais, da filosofia, da antropologia, etc., se entrecruzam de alguma maneira. Mesmo que abordadas sob diferentes pontos de vista, aceitas ou criticadas, algumas linhas são comuns aos autores que teorizaram ou compuseram uma “historiografia do corpo” na arqueologia. Lucia Martínez define duas linhas fundamentais no trato desta temática na arqueologia. Por um lado, uma concepção de corpo semiótica e textual (de fora), que o concebe como objeto que reproduz princípios que estruturam os âmbitos social, cultural e político através da prática. Em outra via, uma visão baseada na fenomenologia e na hermenêutica, que entende o corpo como uma entidade em si mesma (de dentro), como se fosse um terceiro termo entre sujeito e objeto, consciente de sua própria corporalidade (MARTÍNEZ, 2008, p. 474). Outra oposição bem conhecida é a concepção naturalista x social. Esta antinomia se projeta com força no decorrer do século XIX, período que assiste à ousadia de Darwin e a uma projeção das questões sociais impulsionada por inúmeros pensadores socialistas. Teríamos então de um lado um corpo biológico, médico, “natural”, um lugar do fisiológico e dos processos bioquímicos, e do outro um corpo cultural, social, subjetivo, o lugar do sujeito. Boric e Robb (2008) identificam três grandes tradições de estudo do tema na arqueologia: uma ligada à história da arte, particularmente à arte Clássica, que trata sobre Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 565 como o corpo tem sido representado nas artes; uma segunda vinculada à discussão crítica do corpo na arqueologia feminista e de gênero, e por fim, mais recentemente, uma tradição ligada à fenomenologia, resultando em uma arqueologia do sensing body. Aprofundando a questão, os autores elencam o que eles definem como as principais tendências de inspiração intelectual dos arqueólogos, que tem diante de si o grande desafio de aliar estas sofisticadas teorias com a realidade material do empírico arqueológico. Boric e Robb apontam a influência de Pierre Bourdieu e seu conceito de habitus, de Michel Foucault, que delinearia uma espécie de posição construcionista social na arqueologia (BORIC,ROBB 2008, p. 4), e a perspectiva do embodiment, ou a maneira com que as pessoas viviam suas vidas no passado, que tem suas raízes na obra de Merleau-Ponty (BORIC,ROBB 2008, p. 4). Em uma publicação intitulada Thinking through the body, os organizadores Yannis Hamilakis, Mark Pliciennik e Sarah Tarlow (2002) apresentam o que eles consideram alguns desenvolvimentos filosóficos significantes nas ciências sociais e humanas. Primeiramente apontam a moderna ideia de corpo como um projeto, como proposto por Shilling, que tem relação com a percepção do corpo na modernidade ocidental, onde os corpos podem ser encarados como projetos ou entidades com limites flexíveis e status fluido, variáveis de acordo com identidades especificas (HAMILAKIS et al 2002, p. 2), a influência da crítica feminista (HAMILAKIS et al 2002, p. 3), e a significância dos aspectos experienciais do passado humano (HAMILAKIS et al 2002, p. 3). Além destas influências e de maneira mais específica, estes três autores apresentam três linhas bem delineadas de abordagens do corpo humano em trabalhos de arqueologia. A primeira delas encontra-se no âmbito da antropologia física, e pode ser rastreada até o interesse, no século XIX, pela evolução humana e categorização dos humanos em tipos raciais. Com o declínio do paradigma racial, os antropólogos físicos voltaram os olhos para questões como demografia, saúde, modificações corporais e estudos paleopatológicos, abrindo campo para assuntos relacionados à experiência física como dor, má nutrição, violência, etc. (HAMILAKIS et al 2002, p. 4). Em segundo lugar temos uma linha centrada na questão das representações, relacionada a aspectos mais estéticos e a tradições oriundas da história da arte (HAMILAKIS et al 2002, p. 4 e 5). A terceira grande linha de estudos sobre o corpo na arqueologia aborda a dimensão da experimentação e do embodiment, e aparecem normalmente através de pressupostos da fenomenologia. Dentro desta linha, alguns trabalhos sugerem uma arqueologia dos sentidos, enquanto outros destacam questões como emoção, memória e identidade, etc. (HAMILAKIS et al 2002, p. 5). Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 566 Rosemary Joyce (2005), em artigo denominado Archaeology of the Body, apresenta dois sentidos bem estabelecidos de uma arqueologia do corpo. Por uma via, estão os remanescentes físicos ou esqueletários dos humanos, capazes de fornecer informações relacionadas à saúde, regimes alimentares antigos, atividades físicas, entre outros. Em segundo lugar, um sentido que abarca representações através das quais ideias culturais são mostradas, como por exemplo, noções de masculino e feminino. De acordo com a autora, nenhum destes sentidos é particularmente novo, embora com a Arqueologia Contextual, influências da teoria feminista, da fenomenologia e do trabalho de Foucault tenham ampliado um pouco a abordagens na arqueologia do corpo (JOYCE 2005, p. 140 e 141). 4. Pensar uma arqueologia do corpo? Arqueologia e corpo parecem sofrer do mesmo mal (ou bem), a dizer, certa confusão epistemológica. Situado o corpo, adentrarei então nos domínios arqueológicos, cuja reflexão de sua definição científica se faz necessária. É antiga sua indefinição como disciplina, oriunda de seus primórdios. Tradicionalmente, julga-se que compete à Arqueologia o estudo da cultura material, das coisas, dos objetos forjados pelo trabalho dos homens (artefatos). Todavia, confundem-se seu objeto e suas metas enquanto ciência. Como bem colocado por Bruce Trigger, Nos últimos anos, houve muitos debates a respeito da finalidade última da pesquisa arqueológica. Arqueólogos fortemente positivistas como Dunnell (1971:120-1) sublinham que essa finalidade deve ser explicar o registro arqueológico. Clarke (1968) considerava a arqueologia de um modo mais amplo, como o núcleo potencial de uma ciência geral da cultura material, passada e presente, que complementaria a antropologia social e cognitiva. Com inspiração semelhante, Schiffer (1976: 4) afirmou que “o objeto da arqueologia é a relação entre comportamento humano e a cultura material em todos os tempos e lugares”. Outros arqueólogos, porém, restringiriam este papel à arqueologia histórica (Deagan, 1982: 167); Binford (1981:28) objeta que este não pode ser o foco central da arqueologia, “já que o registro arqueológico não contém informação direta de qualquer tipo sobre este assunto”. Daniel (1975: 360-6) afirmou que restringir a disciplina ao estudo de vestígios materiais equivaleria a cultivar um novo antiquarianismo centrado no artefato. A maioria dos arqueólogos continua a considerar a arqueologia um meio de estudar o comportamento humano e a mudança cultural no passado, embora estejam longe de concordar sobre o que isso implica (TRIGGER 2004, p. 360-361). As diferentes faces que a Arqueologia assumiu em sua trajetória enquanto disciplina e seu caráter essencialmente heterogêneo demonstram a dificuldade que os arqueólogos tiveram Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 567 (e aparentemente ainda tem) de definir um corpus teórico claro e desenhar seu lugar do ponto de vista epistemológico. A firme defesa do estudo das coisas, da concepção da cultura material como fonte da arqueologia por excelência, foi delineada muito ligada à atividade da escavação. Nos últimos anos, a crítica (por parte de um setor menos ortodoxo dentro da arqueologia) da soberania dos objetos tornou-se palco para o florescimento de uma infinidade de pressupostos teóricos e definições para a disciplina. Num primeiro momento, a tentativa de reforçar a relevância cientifica deste campo, por meio de uma aproximação com as ciências ditas naturais empurrou a arqueologia para um empiricismo forçado que acabou vinculando-a fortemente à prática de campo. Tal fato impediu por muito tempo que a arqueologia tomasse seu devido lugar junto às demais ciências humanas e sociais, assumindo muitas vezes caráter de técnica ou auxiliar das outras áreas. Há, portanto, duas grandes forças opostas hoje neste campo: de um lado há ainda a produção de um conhecimento de caráter fortemente positivista, ligado intimamente às práticas de campo e ao registro arqueológico; de outro, a proliferação e incorporação de inúmeras influências teóricas que contribuíram para um florescimento extremado de muitas arqueologias, ou subcampos. De acordo com Phillippe Bruneau e Pierre-Yves Balut (1997), a arqueologia vive uma crise de identidade, que pode ser notada pelo constante desenvolvimento de novos aspectos. Tal multiplicação é baseada em concepções diferentes de arqueologia, motivo pelo qual os autores defendem a necessidade de delinear uma definição clara de arqueologia. Eles sustentam que nem tudo que faz parte da atividade profissional da arqueologia compõe sua definição, e que não devemos, portanto, aceitar em sua designação a adição empírica de suas atividades eruditas. (BRUNEAU, BALUT 1997, p. 35 e 36). São dois os principais critérios de arqueologicidade apontados por Bruneau e Balut, e que tem vínculo íntimo com o problema que neste momento abordo. São eles o enterramento e a obsolescência. A profunda ligação da arqueologia com a escavação é relacionada ao forte interesse, no decorrer de sua formação, pela Antiguidade Greco-romana. Como usualmente estes vestígios encontravam-se enterrados, o fazer arqueológico foi naturalmente organizado em torno da prática da escavação. Com os consideráveis avanços neste âmbito, formou-se a ideia de que a arqueologia não se reduzia a escavar, mas que sem isso não havia arqueologia. O segundo critério não é menos importante, mas talvez seja um pouco menos visível. Ele consiste da necessidade da iminência de destruição ou desuso. Nesse sentido, só competiria à arqueologia dar conta do que para nós não possui mais valor de uso, ou que esteja em perigo de destruição. Ou seja, são pontos de vista ligados mais à posição do observador do que à Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 568 constituição da arqueologia; de sua dificuldade diante do que está enterrado ou ameaçado. A estes dois critérios soma-se um fator herdado de nossos colegas historiadores, que ao insistir na ideia de história feita através de documentos escritos, deixaram para os arqueólogos a incumbência de lidar com um passado não escrito e geralmente mais remoto (BRUNEAU, BALUT 1997, p. 37, 38). Esta visão de campo auxiliar da história já perdeu muito espaço hoje, mas apenas para dar lugar a novos problemas. Exemplo disto é o florescimento dos inúmeros subcampos, ou arqueologias particulares que presenciamos a cada dia mais. De maneira simplificada, Pedro Paulo Funari (2006, p. 17 e 18) nos apresenta a Arqueologia, na qualidade de ciência humana, com o objetivo de estudar as sociedades humanas em seu funcionamento e transformação. Ela é, portanto, histórica, sociológica e antropológica, pois deve considerar as transformações das sociedades no tempo e também seu funcionamento. Para tanto, seu objeto consistiria da porção da totalidade material socialmente apropriada. Ele concebe também que através da arqueologia é possível acessar tanto as sociedades do passado quanto sociedades mais contemporâneas. Para o autor, a especificidade de cada ciência humana seria essencialmente também o seu objeto. Assim, no caso da arqueologia, sua particularidade seria o estudo da cultura material, de tudo que se relaciona a vida humana (no passado e no presente) em termos materiais. Funari reforça ainda o caráter interdisciplinar da arqueologia, e defende que o estudo da materialidade pela arqueologia ultrapassa os artefatos, e deve abranger também os ecofatos e biofatos, por serem ligados a apropriação da natureza pelo homem. Esta poderia configurar uma visão mais tradicional da arqueologia, por assim dizer. Já Bruneau e Balut propõem, em decorrência dos argumentos por eles propostos e listados mais acima, uma visão diferente. Para eles é de primeira importância que se desenhe um objeto específico para a arqueologia, que não deve ser baseado nos fazeres enquanto oficio e muito menos na variedade dos meios de observação. Uma disciplina só pode ter caráter cientifico se possui um objeto próprio e bem delimitado. Dessa forma, para estes autores, o objeto da arqueologia deve ser tão somente a arte 5 , ou a técnica. Em outras palavras, o fato que é produto da técnica, ou obra, materializada ou não, segundo terminologia deles (BRUNEAU, BALUT 1997, p. 43). Dessa maneira findam as divisões, e as fronteiras passam a ser menos volúveis. Esta perspectiva aplica-se a todas as temáticas, maneiras de observação e recortes espaço-temporais, e aloca toda esta diversidade sob um campo 5 Termo utilizado pelos autores no sentido de artesanato, manufatura. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 569 científico bem definido chamado Arqueologia. Esta concepção não admite variações no objeto científico. Quer dizer que não há mudanças independentemente da forma de observação ou do tipo de dado arqueológico utilizado. Com isso, pode-se entender por objetivo da arqueologia tudo o que diz respeito às tecnicidades, desde sua produção até seus desdobramentos através de sua relação com o restante da cultura, pensamento, sociedade, etc. (BRUNEAU, BALUT 1997, p. 44). Através desta clara definição, a arqueologia poderá tomar seu devido lugar junto às outras áreas das ciências sociais e humanas. É importante colocar que este ponto de vista não corresponde a uma definição de arqueologia voltada para o artefato, para uma fetichização das coisas (como não raro vemos por aí). Os autores advertem para o equívoco comum de assimilar o artificial com o material, a técnica com o físico, excluindo assim o que é propriamente humano. Para eles, são constitutivos da técnica o gesto, a prática, a intenção, tanto quanto o caráter físico do que é produzido (BRUNEAU, BALUT 1997, p. 215). E, aos que poderiam argumentar contra esta concepção com base nas dificuldades de analisar estes aspectos em sociedades já extintas, os autores utilizam seu argumento primordial: não podem os problemas da observação interferirem na natureza do que é observado. Gosto da abordagem proposta por estes autores, porque resolve de certa forma este problema epistemológico da disciplina. É importante delimitar (sem engessar, é claro) o que compete a cada campo cientifico. Obviamente dentro de uma lógica fragmentada dos campos do saber, que poderia ser questionada, mas deixarei este aspecto para outra ocasião. Saliento, entretanto, que não é a pluralidade de ideias que critico, mas sim a admissão de qualquer coisa sob o braço da Arqueologia. A utilização de influências teóricas e metodológicas variadas não pode ser nociva desde que colocadas em seu devido lugar e trabalhadas sob uma perspectiva unificada de Arqueologia. O inverso disso nunca permitirá à arqueologia ser vista efetivamente como campo, deixando sempre a sombra de disciplina auxiliar ou técnica. A maior divisão que temos que superar, talvez seja o rompimento da diferença entre Arqueologia Pré-Histórica e Arqueologia Histórica, e a partir desta, de outras tantas arqueologias as quais fazemos uso frequente... O lugar do corpo na arqueologia É chegado o momento, após a contextualização, de determinar o conceito de corpo que julgo mais adequado e que relação ou lugar ele ocupa na arqueologia. Creio que se faz Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 570 necessário ao pesquisador que pretende tratar do corpo (em qualquer área) definir precisamente o seu entendimento do termo, que pode variar segundo as problemáticas e condições de observação. Defendo que qualquer temática que se pretenda estudar na arqueologia (nas ciências humanas e sociais de maneira geral) deveria passar pelo estudo do corpo, uma vez que estudamos a humanidade. Sua onipresença não pode mais ser negada, e apesar de todas as dificuldades é mais sábio fazer dele ferramenta epistemológica e metodológica do que mera temática de estudo ou nicho de interesse acadêmico. Por fim, a heterogeneidade do corpo mostrou-se tamanha que penso não ser possível reduzi-lo a um subcampo, dada a enormidade de abordagens possíveis através dele. Trata-se de determinar que corpo tratamos segundo o contexto ao qual nos deparamos. Mas então, que lugar cabe a este universo corpo? Me parece que por suas amplas características, ele não compõe especificamente nenhum objeto de nenhuma área, e ao mesmo tempo pode fazer parte de todas. Na arqueologia, ele pode ser encarado como objeto por sua característica material e por ser produto de uma técnica ao ser manipulado e modificado. Mas ele é também o meio técnico. Eu posso, através dele, fabricar um instrumento musical, mas também sou um instrumento ao cantar. Assim, por sua natureza peculiar, penso que ele tanto compõe o objeto da arqueologia, na medida em que pode ser considerado produto da técnica, como deve ser encarado como ferramenta epistemológica e metodológica por sua qualidade de meio técnico. Desse modo, por meio destas referências, por considerar o corpo sujeito e objeto, e por pensar que ele pode (e deve) ser avaliado sob as dimensões psicológica, fisiológica e sociocultural, justifico sua posição na arqueologia tanto como objeto cientifico (produto da técnica) quanto como ferramenta epistemológica e metodológica de análise. O corpo é, portanto, um organismo metacultural que se constitui no inteiro 6 de todo conhecimento, pois sendo lugar da experiência é rota de passagem do objetivo e do subjetivo, da percepção e da racionalização. Chamá-lo de inteiro não pressupõe sua sobreposição em relação à mente, mas o considera como organismo que reconcilia estes aspectos, como uma unidade do que é humano. Mais do que isso, trazê-lo para a arqueologia com uma nova força poderia ser uma maneira de humanizar a disciplina, deixando de lado as coisas mortas e dando vida à construção do conhecimento arqueológico. Isso dar-se-ia de forma quase automática, pois um 6 Uso o termo inteiro num sentido de algo íntegro, completo, e num sentido de algo sem restrições, absoluto. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 571 olhar minucioso sobre o corpo inevitavelmente traria à tona aspectos ligados às emoções, aos sentimentos e às lógicas mais subjetivas do sujeito, fazendo com que estas particularidades passem a integrar a produção do conhecimento arqueológico. Tal resultado desviaria a atenção do tradicional foco na cultura material e daria aos seres humanos seu legítimo lugar de protagonista. Tentarei fechar esta proposta com alguns apontamentos de ordem mais “prática”, sobre algumas possibilidades da busca pelo corpo na arqueologia. Os remanescentes físicos não são assunto novo na área. Porém, novas maneiras de olhar para os complexos rituais de morte poderiam fornecer novas perspectivas. Quem sabe desviar o foco da questão ritualística e dos acompanhamentos funerários, e considerar esses vestígios pela sua importância do corpo como “lugar” de estar no mundo, que ainda guarda muita humanidade. A análise do mobiliário e da arquitetura pode ser outro caminho. Mesas, camas, berços, cadeiras, etc., além da estrutura das habitações possuem implicações nas posturas corporais, e o contrário também. Os cômodos das casas, a distribuição dos móveis, o tipo de mobília, tudo isso influencia as formas de ocupação destes espaços, que possui desdobramentos corporais. O vestuário, a necessidade de adornar corpos e coisas é outro meio. As roupas possuem uma implicação de duas mãos no comportamento corporal. Suas modificações geram sempre transformações. É só pensarmos no espartilho, no maiô, na minissaia Outra via é através do que é considerado belo, em cada tempo e espaço. O que possui apelo estético e seu oposto desviante, a feiura. Há também a questão dos atrativos eróticos, tão ligados às pulsões, à volúpia, aos impulsos libidinais, mas que também tem um encadeamento no social, na fábrica de representações corporais. Pode-se levar em conta os confortos corporais, as adaptações, modificações e implicâncias coletivas desse anseio. O que se transforma socialmente para atingir esse fim (incluindo as interpretações do corpo). O corpo ágil de um bailarino é certamente diferente do corpo solene de um padre. Os diferentes trabalhos e ofícios também implicam corpos variados. Analisar tais práticas pode demonstrar as alterações, deformações e implicâncias corporais e sociais oriundas delas. Um aspecto interessantíssimo relaciona-se aos cuidados com o corpo. Limpeza, nudez, atos excretórios, sentimentos de intimidade, hábitos de higiene, preocupação com a saúde. Prestar atenção na diversidade dos costumes e sua dimensão psicológica. A questão da alimentação também é interessante. De que maneira as pessoas se relacionam com os alimentos, as representações da comida, os tabus alimentares, etc. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 572 Se a arqueologia deve dar conta da arte, não há a limitação da escavação ou de condições específicas de observação. As fontes tornam-se irrestritas. Considerações Finais Esta pesquisa surgiu da necessidade que senti de “tocar” as pessoas que nós, arqueólogos, estudamos em nosso ofício. O discurso da ciência per se me é insuficiente. Sinto uma necessidade de incorporar ao nosso trabalho aspectos vivos dessa gente. Tenho consciência de que esta pesquisa é apenas um prelúdio a esse problema. Espero, ao dar seguimento ao tema, aplicá-la em uma situação concreta, pois não nego as dificuldades que a questão apresenta. Dessa forma, através da identificação de alguns aspectos mais gerais sobre os lugares do corpo em sociedade, através do tempo e do espaço, tentei inicialmente fornecer uma dimensão da diversidade e heterogeneidade naturalmente inerentes a ele. No decorrer do trabalho tentei fazer também, de forma mais específica, um traçado dos lugares do corpo dentro das ciências humanas e sociais, abordando exemplos dos principais nichos de interesse relacionados com o corpo onde se desenvolveram trabalhos nesses campos. Na sequencia, realizei uma abordagem acerca das bases científicas da arqueologia enquanto disciplina. Tal análise (dos lugares do corpo e da configuração da ciência arqueológica) foi o que viabilizou a alocação do corpo da maneira aqui defendida. A dizer, como objeto, meio técnico e ferramenta heurística. Talvez seja cedo para inferir acerca das consequências epistemológicas e práticas de assumir as possibilidades do corpo no conhecimento. Mas vou arriscar alguns comentários mesmo assim. Creio que a nível acadêmico alguns desdobramentos já ficaram bem claros no decorrer do trabalho. Trago agora questões que perpassam esse universo. Se de fato for possível uma humanização no sentido de tornar o conhecimento mais palpável, mais produtivo, tal humanização não teria também a função de diminuir o abismo entre o que se produz nos centros universitários e as pessoas de maneira geral? Um conhecimento gerado em cima de questões mais sensíveis não teria o poder de aproximar as pessoas, fazendo com que elas se identifiquem com e se reconheçam nele? Não poderia ele ser responsável por minimizar diferenças entre grupos e tornar mais maleável as rígidas fronteiras da dita ciência e de outras formas de saber? Mais ainda, o corpo, lugar do sentir, não teria a capacidade de sensibilizar para uma arqueologia mais engajada, ampla e vinculada à outras questões sociais? Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 573 Não tenho respostas para essas questões nesta pesquisa, mas tenho a firme crença de que ele pode sim ter influências positivas na geração do conhecimento e nos usos sociais do mesmo. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Miguel Vale de. O corpo na teoria antropológica. Revista de Comunicação e Linguagens, 33 p 49-66, 2004. Disponível em http://site.miguelvaledealmeida.net/?page_id=201 Acessado em 07 de março de 2012. BORIC, Dusan; ROBB, John. Body theory in archaeology. In: BORIC, Dusan; ROBB, John (eds.). Journal Past bodies: Body-Centered Research in Archaeology. Oxford: Oxbow, 2008. p. 1-7. BONTE, Pierre; IZARD, Michel. Dictionnaire de l’ethnologie et de l’anthropologie. Paris: Quadrige, 2002. BRUNEAU, Phillipe; BALUT, Pierre-Yves. Artistique et Archéologie. Paris, Presses Universitaires de Paris-Sorbonne, 1997. CENEVARO, S.; GAVAZZO, N. 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ISBN 978-85-62707-52-0 575 A CIENTIFICIDADE NO PATRIMÔNIO CULTURAL DA VILA DE PARANAPIACABA Soraia Oliveira Costa Universidade Federal do ABC Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino, História e Filosofia das Ciências e da Matemática Bolsista/ CAPES [email protected] Ana Maria Dietrich Docente da Universidade Federal do ABC Doutora em História Social - FFLCH-USP Pós-doutora em Sociologia / UNICAMP [email protected] Resumo: Nessa comunicação procura-se refletir sobre a história da ciência com enfoque na técnica, nas relações de trabalho e no patrimônio cultural existentes na Vila da Paranapiacaba, uma vila ferroviária tombada pelo IPHAN como patrimônio industrial e construída no século XIX. Tais questões serão analisadas tendo como fontes primárias as entrevistas de ferroviários destacando aspectos de suas relações de trabalho bem como as técnicas para construção e manutenção da ferrovia. As narrativas orais têm grande potencial para promover uma rememoração que traz a tona aspectos não convencionais da história da ciência relacionada a história da ferrovia e do transporte no Brasil, como por exemplo, o sentimento de solidariedade que até hoje se estabelece entre os ferroviários e os causos relacionados ao seu cotidiano. A oralidade e a memória encontram expressões na História da ciência, da técnica e do trabalho criando espaços para expressar vivências esquecidas pela história oficial e pelo chamado “progresso”. Palavras-chaves: História da ciência, ferrovia, Vila de Paranapiacaba (SP) Abstract: In this communication we attempt to reflect on the history of science with a focus on technique , labor relations and cultural heritage existing in the Town of Paranapiacaba , a village railway listed by IPHAN as industrial heritage and built in the nineteenth century . These issues will be examined with primary sources as interviews ferroviarios highlighting aspects of their working relationship as well as the techniques for construction and maintenance of the railway. Oral narratives has great potential to promote remembrance that brings out unconventional aspects of the history of science related to history of the railroad and transportation in Brazil , for example , the feeling of solidarity that until today is established between ferroviarios and stories related to their daily lives . The orality and memory are expressions in the history of science , and the technique of creating work spaces to express vivencias forgotten by official history and the so-called "progress ". Keywords: History of science, railroad, Vila Paranapiacaba (SP) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 576 Para vos introduzir a pesquisa desenvolvida em nível de Mestrado, versarei a respeito da implantação do primeiro sistema ferroviário no Estado de São Paulo e a formação da Vila Ferroviária, atualmente denominada Vila de Paranapiacaba localizada no caminho para o Porto de Santos, no Alto da Serra do Sudeste. Com anseio de transmitir aos leitores o potencial da historicidade deste Patrimônio Cultural, marcado pelas transições espaciais e econômicas desde antes da chegada dos colonizadores europeus. Portanto, a Vila não é um fenômeno natural, ela é fruto da ação dos homens na natureza, possui uma historicidade. O gênero humano tem a capacidade em função de sua atividade prática transformar a sociedade em que vive. Neste movimento dinâmico, as relações sociais devido à ação humana em conjunto determina as transformações ocorridas no mundo. Etimologicamente falando, Paranapiacaba é um nome originariamente do povo tupi- guarani. De paranã ou parana significa mar, epîak ou epiaca (ver), -aba ou caba (lugar), com isso, a denominação Paranapiacaba significaria lugar de ver o mar, donde se avista o mar ou lugar de onde se vê o mar. De acordo com os relatos do Professor de arquitetura na USP Mestre Julio Abe Wakahara, ativista e integrante movimento Pró-Paranapiacaba e do Eduardo Pin historiador e presidente da Associação dos Monitores Ambientais de Paranapiacaba (AMA) a Vila de Paranapiacaba se tornou a materialização da implantação do sistema ferroviário pela sua maior facilidade de implantação dos trilhos e embora a engenhosidade elaborada pelos Europeus, seja de certo modo inovador para época, o trajeto no Alto da Serra já era realizado pelos índios a mais de dez mil anos atrás. Além destes vestígios históricos na Mata Atlântica, com trilhas que tão acesso a vista do mar quando a neblina não impede a visibilidade, nota-se uma riqueza cultural principalmente posterior à implantação do sistema ferroviário engendrada pelo capital inglês em fins do século XIX. Os trabalhadores europeus acamparam para construir a ferrovia, porém, ao inaugurar o sistema funicular para transposição da Serra do Mar, foi notada a necessidade da manutenção ininterrupta para seu funcionamento, com isso foi realizado o planejamento para edificar a infraestrutura e abrigar os trabalhadores permanentemente, constituindo assim a vila dos ferroviários: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 577 Residência dos Trabalhadores (Acervo CM/F: Rafael Martinelli ) Esta vila foi um marco da pujança e da tecnologia em solo paulista e do Brasil, com a implantação do sistema funicular para o escoamento de mercadorias na subida e descida realizada na Serra do Mar, principalmente, impulsionada pela monocultura cafeeira. A ferrovia SPR tinha a extensão de 246 km em 1940 (MATOS, 1981, p.163) Fim do monopólio inglês Em 1946, com o fim da concessão inglesa a ferrovia SPR foi incorporada ao patrimônio da União. Em 1947 estavam empregados 12.102 ferroviários e o movimento de suas operações de passageiros eram de 25.047.436 e de cargas foram 441.740.000 (GAIARSA, 1991, p.32) Impulsionada, principalmente, pelas transformações urbanas, econômicas ocorridas no cenário nacional, a ferrovia cessa o ritmo de aumento de transportação e melhorias técnicas até a expansão em larga escala da indústria automobilística e das construções do modal rodoviário. (GAIARSA, 1991, p.32) Os investimentos em melhorias só se dão em meados da década de 1970, década que a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), que era na época responsável pelo trecho, investiu na mudança de sistema de operação ferroviário, com maquinários elétricos operados pelo sistema denominado cremalheira-aderência, elaborados pela empresa japonesa Hitachi. (GAIARSA, 1991, p.34) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 578 Esta inovação demandava pouco trabalhadores, o que determinou de vez com a mudança da função da Vila em questão, que era voltada para a vossa moradia. Passo a passo se acentua a deteriorização das casas, do material rodante, vagões, trilhos, etc. Até que os movimentos sociais assumem um papel crucial para alertar e denunciar essa condição. Notamos que os ferroviários tiveram que reelaborar seu passado - marcado pelos sentimentos de solidariedade e corporativismo - a partir do presente traumático: falta de políticas públicas para a preservação, descaso com o patrimônio ferroviário, industrial, etc. estes fatores ocorrem mesmo numa Vila ferroviária considerada um patrimônio histórico, singular e pouco se é difundido os ensinamentos sobre a sua história. Após esta breve introdução a respeito do potencial histórico da Vila de Paranapiacaba, compartilho neste artigo parte do trabalho realizado pelo projeto de extensão Neblina Sobre Trilhos, projeto realizado em parceria entre a Universidade Federal do ABC e o Centro Universitário FSA. Que incialmente foi aprovado pelo MEC/SESU em 2009, para a elaboração de um documentário e depois do lançamento deu continuidade com a divulgação, debates e agora estamos na fase de produção do livro. A metodologia utilizada para a sua realização foi a história oral, com base na pesquisa empírica das pessoas e grupos que tivesse ligação com a Vila de Paranapiacaba e a ferrovia utilizamos este recurso para produção dos documentos. Utilizamos os registros audiovisuais, o que facilitou a analise do material, com anseio de facilitar a compreensão do passado e, principalmente, do presente. Neste processo, planejamos a condução das entrevistas com desenvolvimento de perguntas abertas ou semi-estruturadas, transformamos os materiais orais em textos escritos e fazemos o uso com autorização dos colaboradores solícitos ao projeto em questão. Com a ideia de que o processo histórico está em construção, delimitamos o período a ser abordado nas entrevistas, se os relatos indicam as relações de poder e trabalho, pensamos no espaço urbano, na memória, família, sentimentos, identidade... Pedíamos aos colaboradores objetos, fotografias, documentos e optamos na maior parte das entrevistas ir nos locais que contribuíram para o aprofundamento das lembranças, do saber popular com o adensamento das experiências individuais (MEIHY, 2005, p.24-25). Divido parte do material que estamos em processo de analise: O pesquisador Thomaz Fábio Correia traz opiniões e dados históricos acerca de diversos temas como história da ferrovia, dificuldades geográficas enfrentadas pelos trabalhadores, crescimento populacional ao longo dos anos, transição de vila ferroviária para Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 579 turística, a questão patrimonial, entre outros. “Tombamento não garante preservação, não adianta você tombar se você não conserva...” O militante político Raphael Martinelli trabalhou na ferrovia e de forma muito complexa nos proporcionou um amplo conhecimento sobre sua vida, a rotina de trabalho na época da SPR (inglesa) e, sobretudo a mudança que houve com a gestão federal da ferrovia EFSJ, além do embasamento de todo o cenário político nacional. “São Paulo vivia mesmo em função das ferrovias, hoje não, hoje já afolou tudo isso” O ex-ferroviário José Carlos, Morou na Serra num dos patamares que continha máquina fixa e algumas famílias de ferroviários. Ainda mora em Paranapiacaba, agora tem como profissão o artesanato, pinta azulejos aos finais de semana na vila e os comercializa. Expôs seus pensamentos de forma emotiva, com olhar distante e com lágrimas, o cotidiano de seu trabalho dentro da ferrovia e soube falar aproximadamente as datas dos fatos relatados, como exemplo: A mudança do sistema de operação ferroviário, a privatização, terceirização de serviços e o incêndio na antiga Estação de passageiros. “... quando foi em 1981, foi provocado o incêndio, queimaram a estação. Não foi por acaso... não foi acidente” Fernando Barros Pereira, colaborador ex-ferroviário, mais conhecido como Coco. Com certo tom de desabafo, na entrevista mostrou suas dificuldades de trabalho após as privatizações. Esta insatisfação o fez sair da ferrovia e hoje sobrevive como pode. “Você trabalhando como lixeiro ganha mais do que quem manobra aqui” Manoel Antônio Diniz conta os anos trabalhados na ferrovia, tempo que fez amigos, enfrentou dificuldades e perigos inerentes à profissão. Hoje se lembra com saudade desta época e entristece-se com o rumo que a ferrovia e a vila de Paranapiacaba tomaram. “A ferrovia me deu essa chance de poder mostrar o que eu sei, de poder fazer o que eu sei, o que eu gosto e viver livre.” Com essas entrevistas e o material de campo, pretendemos analisar e extrair documentos que permeie a subjetividade dos atores de forma que contribua com a humanidade, difundindo materiais de suma importância para a preservação do Patrimônio Cultural na Vila ferroviária de Paranapiacaba. Para isso, discutimos o formato do livro em oficinas de técnicas de transcrição, disponibilizaremos também artigos dos colaboradores e fotografias documentais que componham e dialoguem com o projeto e com as narrativas. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 580 Referências Bibliográficas AB’SABER, Aziz Nacib. 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ISBN 978-85-62707-52-0 582 A CONSTRUÇÃO DE UMA PROPOSTA INTERDISCIPLINAR PARA O TRABALHO COM AS GRANDES NAVEGAÇÕES Suseli de Paula Vissicaro Universidade Federal do ABC - UFABC Mestranda em História da Ciência [email protected] Resumo: Pesquisadores e documentos oficiais brasileiros que norteiam o ensino têm discutido sobre a inserção de componentes históricos no ensino das Ciências, destacando a contribuição da História das Ciências para a formação do cidadão, desde o Ensino Fundamental I. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências Naturais, a História das Ciências deve ter espaço já nas séries iniciais, pois visa a contextualizacão das relações do ser humano com a natureza. Durante os primeiros anos do Ensino Fundamental a aproximação com o conhecimento científico se faz progressivamente, na medida em que o aluno ressignifica imagens, fatos e noções, construindo explicações orientadas pelo conhecimento científico. Desta maneira é possível, através dos conteúdos da História das Ciências (HC), trazer às aulas de ciências a dimensão sociocultural do conhecimento científico. Buscando contribuir no debate acerca das possibilidades de utilização da HC no Ensino Fundamental, o presente trabalho apresenta uma proposta didática com o tema das Grandes Navegações Portuguesas, numa perspectiva interdisciplinar, favorecendo uma discussão contextualizada das relações existentes, contemplando as ciências enquanto uma construção humana, localizada em um determinado tempo e sociedade, contribuindo assim para a formação crítica do cidadão. Palavras-chave: História das Ciências, Ensino Fundamental I, Grandes Navegações Portuguesas Introdução Na busca por uma eficiência no ensino, muitos professores procuram inovar suas práticas introduzindo ou modificando elementos presentes, com vista a torná-lo atrativo para o aluno, possibilitando uma aprendizagem significativa para este. Porém, na maioria das vezes não é suficiente apenas modificar ou introduzir novos materiais ou atividades, é preciso rever a concepção teórica por trás dela. O mesmo acontece no ensino das ciências, dada as diferentes tendências que ainda hoje influenciam a prática pedagógica dos professores (modelo tradicional, tecnicista e investigativo, expressas no breve histórico que os Parâmetros Curriculares Nacionais apresentam) e as concepções acerca do que é ciência. Dentro do contexto em que o ensino de ciências passa a ser cada vez mais valorizado na formação do cidadão, e discute-se como torna-lo significativo e mais próximo do Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 583 indivíduo, emerge um termo ainda desconhecido por boa parte dos professores. Atualmente, ao abordar-se o ensino de ciências utiliza-se o termo Alfabetização científica, ou Educação científica. Mas, o que entendemos por Educação Científica? O que significa estar alfabetizado cientificamente? Como alfabetizar cientificamente os alunos utilizando o livro didático? Antes de responder a estas questões é importante refletir acerca do por que do termo alfabetização cientifica e o que se entende por Educação Científica. Segundo a proposta de Sasseron 1 há uma pluralidade de concepções acerca do termo alfabetização cientifica. Diferentes autores buscaram conceituar este termo, atribuindo-lhe diferentes significados e papéis (LORENZETTI; DELIZOICOV, 2001; CARVALHO, 2007, 2010; ROSA; MARTINS, 2007; SASSERON;CARVALHO, 2008). Em documentos da Unesco, o termo scientific and tecnological literacy é traduzido como cultura científica e tecnológica. No Brasil, utilizam-se os termos letramento, enculturação científica ou alfabetização científica. Alguns autores brasileiros utilizam o termo Letramento científico baseado no significado definido por pesquisadores da Linguística, entre elas Magda Soares (2000) e Angela Kleiman (1995). Magda Soares (2000) define o termo letramento (tradução do termo literacy), como “o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita” (SOARES, 2000, p.18). Kleiman (1995:19, apud SASSERON; CARVALHO, 2008:334) adota sua definição como sendo o “conjunto de práticas sociais que usam a escrita enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos para objetivos específicos”. Em outras palavras, o termo letramento científico pode ser assim definido, Envolve o uso de conceitos científicos necessários para compreender e ajudar a tomar decisões sobre o mundo natural. Também envolve a capacidade de reconhecer questões científicas, fazer uso de evidências, tirar conclusões com bases científicas e comunicar essas conclusões. São utilizados conceitos científicos que serão relevantes para serem usados pelos alunos tanto no presente quanto no futuro próximo (INEP, 2006 apud ROSA;MARTINS, 2007, p.04). Estar alfabetizado cientificamente é “ser capaz de combinar o conhecimento cientifico com a habilidade de tirar conclusões baseadas em evidências de modo a 1 Anotações de aula. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 584 compreender e ajudar a tomar decisões sobre o mundo e as mudanças nele provocadas pela atividade humana” (OCDE, apud CARVALHO, 2007:30; 2010, p.283). Cachapuz (2005:20) destaca a importância da AC, ao citar um trecho presente nos National Science Education Standars 2 , Num mundo repleto pelos produtos da indagação científica, a alfabetização científica converteu-se numa necessidade para todos: todos necessitamos utilizar a informação cientifica para realizar opções que se nos deparam a cada dia; todos necessitamos ser capazes de participar em discussões públicas sobre assuntos importantes que se relacionam com a ciência e com a tecnologia; e todos merecemos compartilhar a emoção e a realização pessoal que pode produzir a compreensão do mundo natural. Mas e a Educação Científica? Como podemos definí-la? Segundo Santos (2007, p.487) os significados da Educação Cientifica podem ser entendidos como processos diferenciados de alfabetização e letramento científico. Numa abordagem contextualizada a educação científica se configuraria em “um processo de domínio cultural dentro da sociedade tecnológica, em que a linguagem científica seja vista como ferramenta cultural na compreensão de nossa cultura moderna”. Almejando promover uma educação científica para nossos alunos, consideramos ser importante repensar o ensino da área de ciências de modo a favorecer a formação do cidadão que se pretende formar, para uma sociedade que valoriza cada vez mais o conhecimento científico e tecnológico e um possível caminho para se trabalhar é dentro de uma proposta de Educação Científica, através da História das Ciências, que apresenta a ciência como um processo e dentro de uma proposta reflexiva. Assim, o presente estudo buscou favorecer uma aprendizagem significativa para os alunos, ao desenvolver uma proposta didática, tendo como tema central o período das Grandes Navegações Portuguesas (cuja temática traz em seu bojo um conteúdo interdisciplinar, que inclui elementos da astronomia, tecnologia, história, geografia, entre 2 O National Science Education Standards (NSES) são diretrizes para K-12 educação científica nas escolas dos Estados Unidos. Elas foram estabelecidas pelo Conselho Nacional de Pesquisa, em 1996, para proporcionar um conjunto de metas para os professores estabelecerem aos seus alunos e para proporcionar desenvolvimento profissional aos administradores. Os NSES tem influenciado significativamente vários estados com o nosso aprendizado padrão de ciência e testando a padronização em todos os estados. The National Science Education Standards (NSES) are guidelines for K-12 science education in United States schools. They were established by the National Research Council in 1996 to provide a set of goals for teachers to set for their students and for administrators to provide professional development. The NSES have significnatly influenced various states' own science learning standards and state-wide standardized testing. Fonte: http://www.csun.edu/science/ref/curriculum/reforms/nses/index.html Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 585 outros), na qual buscamos analisar a contribuição da História das Ciências para o ensino de ciências, como elemento contextualizador, e através de uma abordagem interdisciplinar. História das Ciências no Ensino As discussões acerca da importância da utilização da História das Ciências no ensino não são novas, tendo sido abordadas e discutidas por diferentes pesquisadores ao longo do tempo (MATTHEWS,1995; EL-HANI,2006; ALVIM,no prelo:3; FORATO,2009, entre outros) e também nos documentos oficiais. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) apontam algumas possibilidades de trabalho na área, considerando a ciência enquanto construção humana e destacam a importância do trabalho com a História da ciência, destacando que A História das Ciências também é fonte importante de conhecimentos na área. A história das ideias científicas e a história das relações do ser humano com seu corpo, com os ambientes e com os recursos naturais devem ter lugar no ensino, para que se possa construir com os alunos uma concepção interativa de Ciência e Tecnologia não –neutras, contextualizada nas relações entre as sociedades humanas e a natureza. A dimensão histórica pode ser introduzida nas séries iniciais na forma de história dos ambientes e das invenções. Também é possível o professor versar sobre a história das ideias científicas, conteúdo que passa a ser abordado com mais profundidade nas series finais do Ensino Fundamental (BRASIL, 1997, p. 32). Mas, de que história da ciência estamos falando? Qual visão de ciências que apresentamos? Certamente não é aquela centrada em personalidades ou nos feitos de poucos, os precursores e gênios. Estamos falando da ciência enquanto cultura, enquanto “construção humana sobre os fenômenos do mundo natural a partir de elementos de seu universo cultural, possuindo uma relação dialógica com a sociedade em que é produzida, pois a ciência sofre e exerce impactos sócio-político-econômicos e culturais na mesma” (ALVIM, p.3). Ciência feita por homens de uma determinada sociedade, de um determinado tempo e localidade, influenciada por fatores econômicos, políticos, sociais e culturais. Ciência enquanto processo. Nesta perspectiva, a história das ciências, definida assim como História Cultural das Ciências, transformar-se-ia num instrumento de reflexão sobre a prática científica e da produção da ciência enquanto objeto sócio-cultural, assumindo um papel primordial na Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 586 educação, incentivando uma postura mais crítica, reflexiva e cidadã, através de um trabalho interdisciplinar. Segundo SANTOS (2009, p. 534) Construir ambientes educativos que sejam eles próprios ambientes de cidadania, e permear o ensino substantivo da disciplina de princípios e valores que penetrem em questões relacionadas com alguns conteúdos da ciência, com a sua natureza e estatuto e com o lugar da história da ciência no ensino da ciência, não é subestimar a dimensão conceptual da disciplina, mas complementá-la com a dimensão formativa. Partindo deste pressuposto, Carvalho e Sasseron (2010:110-111) destacam como importante, ou mesmo indispensável, que sejam focados quatro pontos no planejamento das atividades que abordem a utilização da HC, tendo por objetivo introduzir os alunos no universo das Ciências, • A Ciência é uma construção histórica, humana, viva, e, portanto, caracteriza-se como proposições feitas pelo homem ao interpretar o mundo a partir do seu olhar imerso em seu contexto sócio-histórico- cultural; • A Ciência produz conhecimentos abertos, sujeitos a mudanças e reformulações; • A construção destes conhecimentos é guiada por paradigmas que influenciam a observação e a interpretação de certo fenômeno; • O conhecimento científico não é construído pontualmente, sendo um dos objetivos da Ciência criar interações e relações entre teorias. A partir destes quatro pontos, a questão que se coloca então, é o planejamento de atividades que os contemplem e favoreçam a discussão destes em sala de aula, levando-se em conta a abordagem histórica e a visão de ciências adotada. As Grandes Navegações Portuguesas: uma proposta de trabalho O desafio de introduzir a Histórias das Ciências no planejamento de atividades para o Ensino Fundamental I, objeto de estudo deste trabalho, por caracterizar-se como um campo fértil de investigação, deve-se ao fato de encontrarmos poucas referências acerca de sua utilização nesta modalidade de ensino. Assim, lançamo-nos ao desafio, considerando os referenciais teóricos que embasam este estudo. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 587 Frequentemente, os conteúdos de História, Geografia e Ciências acabam, por vezes, se repetindo nos livros didáticos (LD) das disciplinas, nos indicando que a divisão em campos do conhecimento, tem uma função puramente didática. Assim, é comum ao professor ao abordar um determinado assunto em sala de aula, fazer referências a conhecimentos de outras áreas, visando garantir um maior entendimento dos conceitos e fatos trabalhados. Um destes exemplos é o tema das Grandes Navegações Portuguesas. As Navegações Portuguesas e o “Descobrimento” são abordados nos LD de História, dentro do eixo temático História das Organizações Populacionais – História do Brasil e formação do povo brasileiro, sendo introduzidos em um ano e retomados no seguinte. Da maneira como o assunto é exposto superficialmente no LD, apresenta-se uma visão “romantizada” do período, excluindo-se as dificuldades, os interesses, e todo o processo de construção do conhecimento técnico/científico da época. Os instrumentos de navegação utilizados naquele momento nem sempre são mencionados ou quando são, indica- se apenas sua finalidade, sem evidenciar todo o processo envolvido em sua criação e utilização. Abordado desta forma, o assunto torna-se enfadonho, cansativo, restrito a memorização dos fatos e a apenas uma visão, a do português colonizador (europeu). A decisão de abordar o tema por meio da História das Ciências implicou em um olhar para a história dos instrumentos de navegação utilizados no período e, para a possibilidade de uma abordagem interdisciplinar, uma vez que a expansão marítima e a aventura dos descobrimentos se caracterizam pela necessidade de conhecimentos de diferentes ciências, pois segundo Ramos (2008: 99-100) “era difícil para um piloto estabelecer com exatidão a posição do navio no mapa. [...] A navegação se fazia por rumo e estima, uma espécie de adivinhação, com base na direção que o navio havia tomado e na orientação fornecida pela bússola e pelos astros”. A proposta de tornar o assunto mais significativo, através do uso da HC, implicou em pesquisas, leituras, busca por materiais e estratégias diversas para não apenas contextualizar melhor a “aventura do descobrimento”, mas também apresentar, ainda que dentro de um recorte em cinco aulas, os conhecimentos das diferentes áreas que se fizeram necessários para, bem como a natureza do conhecimento da época. A Sequência Didática planejada e aplicada em alunos do 3º ano Ensino Fundamental 1, foi realizada a partir da parceria da pesquisadora com a professora da turma e foi organizada, contemplando a construção do quadrante e uma atividade prática de medição de altura utilizando o instrumento. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 588 Organizamos a sequencia de atividades da seguinte maneira: 1. Leitura do livro “Pedro menino navegador”, de Lúcia Fidalgo, Editora Manati. 2. Conversa sobre a leitura e apresentação da problemática: Como os portugueses chegaram ao Brasil? Que conhecimentos eles precisaram desenvolver/construir? 3. Pesquisa sobre os instrumentos de navegação marítima. 4. Conversa sobre os instrumentos pesquisados: para que serviam, quem inventou... Destaque para o quadrante que será construído pelos alunos. 5. Construção do quadrante em grupos e proposta de atividade prática de medição de alturas. 6. Socialização das descobertas dos alunos 7. Sistematização através de uma conversa com os alunos e desenhos. No primeiro momento da SD apresentamos a capa do livro, antecipando com os alunos qual o assunto do texto e levantando o que eles já sabem sobre o assunto. Em seguida realizamos a leitura e ao final conversamos sobre as informações apresentadas, lançando a questão: Como os portugueses chegaram ao Brasil? Que conhecimentos eles precisaram desenvolver/construir? Após ouvir as respostas e explicações dos alunos, propusemos uma pesquisa sobre os instrumentos de navegação, que pode ser realizada tanto na escola, com uso dos netbooks, como em casa. De posse das pesquisas feitas pelos alunos, conversamos sobre os instrumentos, sua história, sua utilização e origem, e apresentamos alguns aspectos da história de Portugal, algumas características da sociedade da época e o conhecimento técnico desenvolvido na prática. O momento seguinte foi marcado pela construção do quadrante e pela proposta de atividade prática de medir em grupos, a altura de algum objeto da sala de aula, registrando as descobertas. Alguns grupos, durante a realização da atividade observaram medidas diferentes entre os componentes, e atribuíram essa diferença ao tamanho das passadas de cada um (usamos 5 passos como medida de referencia para calcular a altura). O momento final foi marcado pela discussão dos resultados e observações da atividade prática e pela sistematização dos conhecimentos construídos, cujos resultados ainda encontram-se em análise. Considerações finais e implicações para o ensino Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 589 A inserção de conteúdos da História das Ciências em sala de aula é apontada por diferentes pesquisadores e também nos documentos oficiais (PCN’s, por exemplo), a partir do Ensino Fundamental, sugerindo-se que neste nível seja abordada através da história dos ambientes e das invenções. Porém são poucos os trabalhos encontrados que apontem para sua utilização (HC) no Ensino Fundamental I. Assim, neste trabalho apresentamos uma proposta didática para o Ensino Fundamental com o tema das Grandes Navegações portuguesas, numa perspectiva interdisciplinar e contextualizada, através da abordagem histórica, que favorece a compreensão da natureza da ciência e de como o conhecimento científico é construído, contribuindo para a formação crítica do cidadão. Em virtude dos resultados estarem em processo de análise, optamos por não realizar discussões mais aprofundadas no presente artigo. Pretendemos ressaltar as contribuições que a História das Ciências trouxe para o ensino e para a compreensão da ciência enquanto cultura, enquanto processo. As discussões realizadas com os alunos buscaram apresentar o processo de construção do conhecimento da época, destacando os interesses que influenciaram a expansão marítima, bem como destacar as contribuições dos conhecimentos das diferentes áreas, haja vista que o quadrante agrega conhecimentos de diferentes naturezas em sua utilização. Em uma análise superficial, foi possível perceber um maior interesse dos alunos durante a realização das atividades, perguntando e expondo suas ideias, principalmente com a construção do quadrante e observar em algumas falas o quanto os instrumentos de navegação tiveram um papel importante na expansão marítima portuguesa. Referências Bibliográficas ALVIM, Marcia H. Contribuições da História das Ciências para uma Educação Científica reflexiva e cidadã. No prelo. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Naturais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. ________. Secretaria de Educação Básica. Acervos complementares : alfabetização e letramento nas diferentes áreas do conhecimento. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. -- Brasília : A Secretaria, 2012. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 590 CARVALHO, A.M.P.; SASSERON, L.H. Abordagens histórico-filosóficas em sala de aula: questões e propostas. In Ensino de Física. CARVALHO, A.M.P. et al. São Paulo: Cengage Learning, 2010. MATTHEWS, M. R. História, filosofia e ensino de ciências: a tendência atual de reaproximação. Science & Education, 1(1), p. 11 – 47, 1992 RAMOS, Fábio Pestana. Por mares nunca dantes navegados: a aventura dos descobrimentos. São Paulo: Contexto, 2008. SANTOS, Maria E. V. M. Ciência como cultura – paradigmas e implicações epistemológicas na educação cientifica escolar. Química Nova na Escola, v.32, n. 2, p. 530 – 537, 2009. TRINDADE, Diamantino Fernandes. A interface ciência e educação e o papel da história da ciência para a compreensão do significado dos saberes escolares. Revista Iberoamericana de Educación. n.º 47/1 – 25 de septiembre de 2008. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 591 “O GRANDE CONCEITO” DA AGUARDENTE E DA CACHAÇA NA ARTE DE CURAR DO ERÁRIO MINERAL DE LUIS GOMES FERREIRA E DO GOVERNO DE MINEIROS DE JOSÉ MENDES Valquiria Ferreira da Silva Mestranda em História Social da Cultura – UFMG Bolsista CNPQ [email protected] Resumo: A história da aguardente e/ou cachaça na capitania mineira se caracterizou pela oscilação entre a tendência à proibição da sua produção e o estímulo a sua comercialização. Os estatutos econômico, político, cultural e científico atribuídos a ela sempre estiveram diretamente relacionados a nexos de interesses que buscaram regulamentar socialmente o seu consumo, fazendo, com isso, com que a aguardente e/ou cachaça assumisse importantes papéis, como: veículo de dominação e de resistência; forjadora de identidades étnicas de grupos sociais; além de ter sido associada tanto à cura quanto a causa de várias doenças. É neste último aspecto que o presente texto se concentrará. O objetivo central é dar visibilidade às práticas curativas em que a prescrição da bebida produzida, ao longo do século XVIII, a partir da cana-de-açúcar em Minas Gerais, se fez presente. Para isso, é proposta uma discussão sobre as representações atribuídas à aguardente em dois tratados médicos que, em momentos distintos, tiveram grande circulação na capitania: o Erário mineral de 1735 e o Governo de mineiros de 1770. Palavras-chave: aguardente, Erário mineral e Governo de mineiros. Abstract: The history of brandy and/or cachaça in mining captaincy was characterized by oscillation between the tendency to ban their production and their marketing stimulus. The statutes economic, political, cultural and scientific attributed to her were always directly related to the nexus of interests sought to socially regulate their consumption, making it, with the brandy and/or cachaça assume important roles as vehicle of domination and resistance; forger of ethnic identities of social groups, as well as being associated with both healing as the cause of various diseases. It is this latter aspect that this text will focus. The central object is to give visibility healing practices in the prescription of beverage produced throughout the eighteenth century, from cane sugar in Minas Gerais was present. For this, we propose a discussion on the representations attributed to brandy in two medical treatises that, at different times , had wide circulation in the captaincy: the Erário mineral 1735 and the Governo de mineiros 1770. Keywords: brandy, Erário mineral and Governo de mineiros. Agoardente. He vinho destilado até ficar a sexta parte. Cachaça. A parte do pescoço, posterior à garganta do touro. Raphael Bluteau em Vocabulário portuguez & latino, 1712-1728. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 592 Introdução Em seu famoso livro Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, o padre Antonil aconselhava aos senhores a ministrarem a seus escravos somente a garapa doce. Esta sem lhes fazer nenhum dano, podia ser trocada por, “farinha, feijões, aipins e batatas”; enquanto a outra, a garapa azeda ou aguardente, deveria ser evitada, pois deixava os escravos emborrachados. Um pouco mais adiante o jesuíta ainda nos fornece uma clara definição para cachaça. Segundo o jesuíta, cachaça é aquele caldo que se bota fora da primeira espuma durante o processo de fabricação do açúcar que, por ser imundíssima, “vai pelas bordas das caldeiras (...) por um cano enterrado, que a recebe por uma bica de pau, metida dentro do ladrilho que está ao redor da caldeira, e vai caindo pelo dito cano em um grande cocho de pau e serve para bestas, cabras, ovelhas e porcos”. (ANTONIL, 1974). Depois de transitar por dois anos pelas mesas dos inquisidores do Santo Ofício em Lisboa, no final de 1735, o cirurgião-barbeiro Luís Gomes Ferreira recebeu de dom João V a mercê de dez anos para poder imprimir, vender e distribuir, inclusive para fora do Reino a sua obra, o Erário mineral. “Nenhum livreiro, impressor, nem outra qualquer pessoa possa imprimir, vender (...) o livro referido sem licença do suplicante” (FERREIRA, 2002). Com o intuito de que todos pudessem aproveitá-la nas suas necessidades, Gomes Ferreira, mesmo ciente de toda a burocracia, decidiu escrever a sua experiência de vinte anos nas Minas em que assistiu principalmente os negros e brancos pobres. E é graças a isso que hoje temos conhecimento das várias receitas infalíveis utilizadas pelo cirurgião. O “lambedor excelente para catarrões” é um bom exemplo. Ele deveria ser dado ao doente de duas a quatro vezes por dia e consistia em lançar “em um prato de estanho ou um tachinho pequeno duas ou três onças”, conforme o doente de aguardente do Reino, sem “nenhuma mistura da da terra, ou cachaça, que é o seu nome verdadeiro”, depois disso, deveria se acrescentado “uma boa colher de açúcar e fogo” e ir mexendo até que ficasse “bem queimada” (FERREIRA, 2002). A leitura dos três autores citados até o momento sugere uma distinção entre aguardente e cachaça. Todavia, será que é possível generalizar essa distinção? Outros agentes, inclusive outros cirurgiões, a utilizaram? Ela se mantém ao longo do tempo? Este artigo é parte de um estudo em andamento não pretende discutir o estatuto científico da aguardente. A proposta é refletir sobre os significados atribuídos à bebida produzida oriunda da cana-de-açúcar nas Minas Gerais do século XVIII, de forma a percorrer Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 593 algumas transformações históricas pelas quais o seu uso sofreu. Para a realização dessa tarefa ele seguiu dois caminhos distintos e complementares. Primeiro, procurou-se perceber qual o lugar ocupado por essas bebidas nas práticas curativas de dois importantes tratados médicos que tiveram uma grande circulação nas Minas Setecentistas: O Erário mineral de 1735 de Luís Gomes Ferreira e no Governo de mineiros de 1770 escrito por José Antônio Mendes. Já o outro caminho aventado procurou perceber como os discursos dos dois cirurgiões refletiram naquela sociedade onde estas obras circularam. Gomes Ferreira, José Mendes e seus conceitos As duas décadas de experiências vividas entre milhares de almas de “toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos”, que “se ocupavam, umas de catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro” (ANTONIL, 1974) forneceram a base para que Luís Gomes Ferreira escrevesse o Erário mineral. Sabará, Vila Rica, Nossa Senhora do Carmo e a Comarca do Rio das Mortes são algumas das localidades por onde transitou o cirurgião- barbeiro, sempre conjugando a mineração com a arte de curar. Esta última um pouco diferente daquela que ele havia aprendido nos anos de sua formação no Hospital Real de Todos os Santos em Lisboa, onde se tornou licenciado. Pois, segundo ele mesmo observou, o clima diferente das Minas produziam enfermidades diferentes daquelas existentes na Europa e em Portugal (FERREIRA, 2002). Não obstante José Antônio Mendes tenha ocupado um dos cargos mais importantes da medicina na colônia, o de cirurgião-mor, e, além disso, também tenha dedicado a maior parte dos trinta anos de estadia nas Minas a exercer a medicina no Hospital do Contrato dos Diamantes, no arraial do Tejuco e no Hospital da Guarnição dos Dragões, da capitania, faz-se importante sublinhar que, embora ele e Gomes Ferreira tenham percorrido caminhos distintos, a obra Governo de mineiros pode ser localizada na esteira trilhada pelo Erário mineral. Como ressalta Furtado, o cirurgião, ao escrever um livro de medicina, também tomou os mesmos cuidados de seu antecessor, pois “sabia que, escrever tal tratado de Medicina, invadia a seara dos médicos eruditos e, por isso, na introdução desculpou-se junto aos mesmos por se atrever a publicar o livro sendo apenas cirurgião”. A historiadora também destaca que uma das grandes contribuições de José Mendes foi o fato dele ter observado que grande parte das Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 594 causas das doenças estavam relacionadas às más condições de vida e de alimentação dos enfermos (FURTADO, 2011). Mesmo longe da metrópole, vivenciando, percebendo e questionando verdades até então inquestionáveis, não podemos esquecer que ambos os cirurgiões eram fruto de um conhecimento que se estruturou ao longo dos séculos XV, XVI, XVII, XVIII. Portanto, eram sujeitos devedores de uma medicina oriunda de uma visão profundamente marcada pela tradição hipocrático-galênica, que possuía como paradigma a teoria dos humores. Dito de outro modo, mesmo que a experiência de praticar a medicina em contato com uma nova e diferente natureza tenha aberto uma janela nova para o conhecimento das enfermidades – medicina tropical – a ideia do corpo humano ser composto pelos “quatro elementos: terra, ar, fogo e água que se refletiam em quatro humores: fleuma, sangue, bílis negra e bílis amarela ou vermelha” que, quando se encontravam em desequilíbrio, eram os responsáveis pelo surgimento das doenças, estava arraigada no campo de experiências destes cirurgiões- escritores. Uma boa maneira para averiguar tal afirmativa é refletirmos um pouco sobre o lugar ocupado pelos produtos produzidos na metrópole e pelos produtos da terra (ou seja, produtos produzidos na colônia) nas obras destes dois autores, no nosso caso específico, da aguardente do Reino e da aguardente de cana. No Erário Mineral Gomes Ferreira é enfático em exaltar as virtudes da aguardente do Reino para a saúde. Para todas as pessoas que sofressem “achacadas de flatos”, que andassem em jejum, que possuíssem “zunidos no ouvido e na cabeça” ou que quisessem simplesmente melhorar a saúde o cirurgião aconselhava um copinho dela pela manhã. Quando usada sozinha era útil tanto para a assepsia e cura de ferimentos e chagas como “um prodigioso remédio para preservar de corrupção, gangrena e herpes”. Quando aquecida poderia substituir até o azeite para matar pulgas, moscas e percevejos que entrassem no ouvido de uma pessoa. Além disso, o uso de panos molhados em aguardente era singular para colar “nervos totalmente cortados e osso ao mesmo tempo”. E se fosse conjugada com outros elementos seus resultados eram potencializados. Batida com clara de ovos, curava qualquer tipo de inflamação nos olhos; quando associada a mostarda, unto de porco sem sal, óleo de arruda e espírito de cocléaria era infalível para as pernas e braços com poucos movimentos; a papa feita de farinha de trigo e aguardente usada como emplasto era tiro e queda para inflamação nas tripas e hérnia intestinal; porém, o melhor de todos, o mais fácil e admirável, era o emplasto de embaúba. Era um composto formado por olhos de embaúba, almofariz e Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 595 aguardente, e servia para deslocações de toda natureza, tratamento de quebraduras, fraturas dilaceradas, entre outros males (FERREIRA, 2002). No tocante a feitura dos remédios Gomes Ferreira advertia que, para a falta de aguardente do Reino poderia ser usado o vinho, de preferência o branco, e até mesmo água morna, mas nunca, em hipótese alguma, como no exemplo já citado do “lambedor excelente para catarrões”, poderia ser usada a aguardente da terra. Esta, conhecida como cachaça, era “fria e constipatória, e desanimada com as sangrias”, sem falar no erro gravíssimo que constituía o seu uso “em mordeduras venenosas e em venenos”. (FERREIRA, 2002). Ao contrário da aguardente do Reino o autor do Erário mineral não se cansa de relatar as mazelas que a aguardente da terra provocava. Ao condenar o uso dela pelos curiosos, que segundo ele “tem enterrado muitos”, o cirurgião, como forma de enfatizar o seu argumento, relata o fantástico caso do “preto ladino e brioso” de João Gonçalves. O negro que fora mordido por uma jararaca, “bicho venenosíssimo”, quase teve seu braço amputado, e tudo isso, porque para curá-lo o dito senhor havia usado sangrias e “panos molhados em aguardente de cana”. Segundo suas observações adquiridas da experiência nestas Minas, não há coisa alguma nelas que seja mais prejudicial à saúde, assim de pretos como de brancos, como é a dita aguardente ou, por outro nome, e bem próprio, cachaça, pois, ordinariamente, quando queremos afirmar que uma coisa não presta pra nada dizemos que é uma ‘cachaça’(FERREIRA, 2002). Neste aspecto, dos males oriundos da cachaça, a opinião de José Mendes relatada em 1770 pouco divergiu da de Gomes Ferreira. Para ele, como já assinalado, as doenças dos negros eram o resultado de uma má alimentação conjugada com as péssimas condições de trabalho a que estes eram constantemente expostos. Neste sentido, o cirurgião demonstra como a principal fonte nutritiva dos negros, ingerida muitas vezes fria por ser preparada de um dia para o outro 1 , associada à ingestão de água cheia de terra ou então da “depravada bebida, a que chamam Cachaça, que é destilada do melaço e da borra do açúcar, que se faz nos engenhos”, resultava na enfermidade muito conhecida em Minas como cursos de sangue. Enfermidade esta que, de acordo com o próprio autor, o senhor deveria “ter cuidado grande em mandar sacramentar os vossos enfermos a tempo em que estejam capazes” uma vez que 1 “Massa a que chamam angu, que é feita de fubá, isto é farinha de milho, muito mal feita, muito mal feita no moinho” e sem sal e nem tempero “e às vezes bem malcozida”. Mendes, José Antônio. Governo de Mineiros, p.100-101. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 596 esta poderia “algumas vezes passar a fluxo hepático, e virar matéria tão corrosiva que chegam a gangrenar os mesmos intestinos”, ou seja, era grande a probabilidade que o negro morresse sem o sacramento caso fosse acometido por esta enfermidade (MENDES, 2012). Como podemos perceber ambos possuem uma visão negativa da bebida produzida na colônia, a principal diferença entre os dois cirurgiões está na intensidade desta negatividade. O primeiro é taxativo: a cachaça era a pior coisa para a saúde tanto de negros como de brancos. José Mendes, por seu turno, parece ser mais contra o uso abusivo dela pelos negros, uma vez que, diferentemente de Gomes Ferreira, ele chega até mesmo a fazer uso dela em algumas receitas, quais sejam: para tratamento de fleimão, 2 se este estiver no princípio, o cirurgião aconselha primeiramente que se cozinhe em meia canada de água, malva, violas e alfavacas e que depois vá “ajuntando-lhe a terça parte de aguardente; e se porão panos molhados no mesmo sobre o fleimão”. Entretanto, se a enfermidade “em lugar de madurar, tornar a derrezolver (sic), se deve ajudar a natureza”, e sendo assim, José Mendes sugere um remédio ainda mais forte composto de: violas, alfavaca de cobra, rosmaninho e alecrim cozidos em duas canadas de água e meia canada de cachaça de cabeça. Em outra receita, na qual o cirurgião utiliza o produto da terra, este deveria ser ministrado aos enfermos que se apresentassem com “muito e demasiado moimento do corpo”, ou seja, resfriado. Neste caso deve o senhor recolher o doente a um “aposento quente e logo lhe mandais fazer fogo, e o defumareis muito bem com alecrim, e erva doce, e logo mandar cozer gengibre em aguardente de cabeça, e lhe mandais dar uma áspera esfregação pelo corpo com aquela aguardente” (MENDES, 2012). Mesmo que este aspecto negativo tenha permanecido durante o século XVIII, é possível observar que o denominativo “cachaça” para a bebida produzida nas Minas foi, ao longo do século XVIII, deixando de estar relacionada a animais, seja como a parte posterior do pescoço do touro, como o linguista Raphael Bluteau a definiu; seja como aquela escuma imunda que servia para alimentar os porcos, as bestas e as cabras, que o jesuíta italiano grafou; e foi, paulatinamente, sendo associada ao gênero da terra. Sem perder de vista a tradição hipocrático-galênica em que nossos cirurgiões- barbeiros e escritores de livro de medicina estavam imbuídos, outro ponto importante que não podemos nos furtar diz respeito ao contexto específico em que suas obras foram concebidas. 2 Fleimão: apostema que às vezes ocorre com inchação, vermelhidão e dor. Mendes, José Antônio. Governo de Mineiros, p.68-71. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 597 Gomes Ferreira escreveu o Erário mineral no momento em que a produção aurífera estava a todo o vapor e não dava nenhum sinal da decadência que viria a acontecer anos mais tarde. Num momento em que todas as atenções estavam voltadas para a produção do metal. Tanto é assim que em 18 de novembro de 1715, dom João V, informado que nas Minas se tem fabricado muitos engenhos em que se estilam aguardentes seguindo-se da multiplicação dela um dano a meu serviço Real da fazenda e ao sossego dos moradores delas pela inquietação que ocasiona nos negros esta bebida privando também do seu serviço as mesmas Minas (AHU, MG. Caixa 22, doc.15) emitiu uma ordem ao Ouvidor geral da comarca do Rio das Velhas para que este “não [convenhais] que se levantem mais engenhos na dita terra da vossa comarca” e que dificilmente deve ter passado desapercebido pelo astuto cirurgião que neste momento se encontrava em Sabará. Ordem esta que foi repetida várias vezes inclusive no momento em que Gomes Ferreira escrevia a sua obra em Lisboa (AHU, MG. Caixa 28, doc.35). Em contraposição, José Mendes escreveu e publicou Governo de mineiros no momento em que a Coroa procurava novos caminhos para superar a diminuição da arrecadação do quinto – momento em que vários agentes da Coroa portuguesa emitiam sugestões para que dom João pudesse reverter este quadro. E é neste sentido que as Instruções para o governo da capitania de Minas Gerais, obra escrita pelo intendente do ouro e membro da junta da junta da Real Fazenda, José João Teixeira Coelho, nos parece singular para entender um pouco mais do contexto em que o cirurgião-mor estava inserido. De acordo com o intendente, um opositor da circulação e produção da bebida nas Minas, estes foram anos nos quais, apesar de todas as ordens proibindo a ereção de engenhos de aguardente, estes se multiplicaram tanto que “são raras as fazendas, ainda que pequenas onde não os há”. Segundo Teixeira Coelho, 1768 foi um momento de intenso diálogo e tensão entre as câmaras e o governador general, o Conde de Valadares. Todavia, este conseguiu persuadir com que as câmaras “conveniessem na continuação do Subsídio Voluntário 3 por mais dez anos” (COELHO, 1994). A partir destes dois pontos é possível aventar que José Mendes, também um funcionário régio, tenha percebido o quanto a produção de aguardente de cana estava se 3 Subsídio Voluntário foi uma contribuição com duração estipulada de dez anos oferecida pelos vassalos a partir de 1756 e sua renda era destina a reedificação de Lisboa, que havia sido destruída por um terremoto em 1756. A arrecadação incidia sobre várias mercadorias, entre elas, o barril de vinho ou aguardente do Reino e da aguardente da terra. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 598 tornando importante para a arrecadação da Real fazenda e, talvez por este motivo, não tenha sido tão taxativo como Gomes Ferreira. Aguardente do Reino X aguardente da terra na cura das doenças Avançando um pouco mais na proposta e para que não ficar somente no discurso científico, a partir de uma pesquisa realizada no Arquivo Ultramarino foi possível localizar, para todo o Setecentos mineiro, 13 requerimentos de moradores de diversas regiões das Minas solicitando ao Rei mercês relacionadas à fábrica de aguardente de cana e açúcar, seja simplesmente para trocar de lugar um engenho já existente, seja para erguer um engenho novo. Entre estes requerimentos, em 16 de dezembro de 1756, Domingos Galvão, que há mais de quinze anos morava e cultivava “umas terras com grande risco, e trabalho” no Sertão dos Matos Gerais da Freguesia dos Carijós, solicitava ao Rei a licença para levantar na dita paragem “um engenho de açúcar e aguardente”, com prioridade para o primeiro produto. Em sua justificativa Galvão dizia que a destilação da aguardente seria somente das canas que não servissem para a fabricação do açúcar e que com isso ele aproveitaria para suprir as necessidades “dos escravos, e ainda para remédio dos mesmos brancos” (AHU, MG. Caixa 70, doc.61). Já o inventário de 1770, localizado na Casa Borba Gato em Sabará, fornece outros indícios de como parte da sociedade mineira fazia uso da aguardente. Maria Mansa da Conceição, 4 moradora da Rua Direita da Vila de Sabará, faleceu em 13 de maio deste mesmo ano, deixando cinco filhos, sendo quatro deles ainda menores. Entre as suas dívidas constavam dez receitas médicas realizadas pelo boticário aprovado Antônio José Álvares, entre 28 de janeiro e a véspera de sua morte. Segundo este, como consta das receitas juntas ao inventário, “falecendo da vida [presente] Maria Mansa lhe ficou devendo (...) a quantia de vinte e quatro mil e cinquenta e quatro réis”. Já o aprovado Manuel de Souza Barbosa disse que “a defunta lhe ficou devendo de sangrias e ventosas o que consta no rol junto”, sendo que destas vinte e quatro ventosas e dez sangrias foram todas na defunta. Por seu turno, Antônio Ribeiro Pinto reclamava que “a ele suplicante lhe ficou devendo a defunta Maria Mansa a quantia de seis oitavas e três quartos e três vinténs de ouro, como consta dos bilhetes juntos”. 4 Esta fonte foi utilizada inicialmente por Betânia Gonçalves Figueiredo no seu artigo As farmácias no século XIX em Minas Gerais. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 599 Nestes bilhetes percebemos a presença, entre outros produtos de, pelo menos, dois meios frascos de vinho, e cinco medidas de aguardente do Reino (CBG, MO. CPO-I (06) 63). Conclusão Olhar para o passado e tentar apreendê-lo tal como ele teria ocorrido, há muito tempo deixou de ser a razão dos estudos históricos. É nesta direção que seguem as conclusões deste artigo. A partir do confronto direto entre os discursos científicos dos dois cirurgiões e este número reduzido de fontes pouco se pode afirmar sobre o alcance dos tratados médicos na sociedade mineira dos setecentos. Entretanto, a situação se altera um pouco quando este confronto é visto de uma perspectiva histórica mais ampla. O inventário de uma senhora de posses, no qual se percebe claramente o uso de produtos advindos da metrópole e o requerimento de um colono dizendo ser necessário fabricar aguardente de cana para fazer remédios para brancos, ao invés de limitar o nosso olhar, pode, na verdade, ampliar as possibilidades de compreensão daquela sociedade mineira. Dada a natureza desta documentação, ela induzirá, a alguns, a somente uma distinção nos usos das aguardentes, no que diz respeito ao tratamento das doenças: o homem branco com posses utilizaria a aguardente do Reino, enquanto, o negro e o branco pobre usariam a aguardente de cana. Em larga medida é isso, também. Entretanto, não se pode deixar de entender a lógica que informava e conformava os movimentos, as oscilações, as flutuações e os ritmos diversos daquela sociedade. A única coisa plausível que realmente podemos concluir da leitura do inventário é que a defunta provavelmente sofreu muito nos seus últimos meses de vida e que neste momento recorreu ao que havia de mais moderno no que diz respeito ao discurso científico – a aguardente do reino. Mas nada podemos inferir de sua vida pregressa, antes da sua enfermidade chegar neste estágio. Ou seja, será que não seria possível ela ter procurado um boticário e este não tenha lhe receitado um tratamento mais simples e imediato com aguardente de cana? Ou procurado até mesmo um curandeiro com suas mezinhas da terra? Prática bastante comum, pois, como sugeriu Soares, “para enfrentar as adversidades causadas pelas doenças no transcurso do cotidiano, os habitantes das cidades, vilas e sertões recorriam a quem estivesse ao seu alcance: cirurgiões, barbeiros, boticários, parteiras e seus respectivos aprendizes”, e estes nem sempre tinham acesso aos medicamentos do reino (SOARES, 2001). Em contrapartida, apesar de toda a retórica existente nos requerimentos, como seria possível a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 600 um suplicante pedir para levantar um engenho onde se fabricaria aguardente que seria utilizada para remédios de brancos, se já não fosse uma prática reconhecida pelo destinatário? Por fim, para perceber o tom das palavras de um discurso é necessário que ele seja matizado. Sendo assim, não podemos esquecer que as práticas do Antigo Regime se constituíram como mecanismos de condicionamentos sociais que pesavam sobre os dois cirurgiões escritores. Gomes Ferreira e José Mendes eram homens que trabalhavam dentro de uma visão de mundo na qual as pessoas, os espaços e as coisas tinham o seu lugar natural no universo e estes dificilmente transitam de um lugar para o outro. A metrópole ocupou durante a maior parte do período colonial um lugar privilegiado com relação à colônia. O homem branco com relação ao negro. O médico com relação ao cirurgião, e assim por diante. O recebimento de uma Mercê Régia neste contexto significava o primeiro passo numa tentativa de transitar de uma condição natural inferior para uma mais elevada. Para receber o privilégio de dez anos para poder imprimir, vender e distribuir uma obra, ou mesmo para exercer o cargo de cirurgião-mor, era necessário que a pessoa que recebesse a graça estivesse em sintonia com quem iria fornecê-la. E foi de acordo com esta sintonia que cirurgiões escritores selecionaram e manipularam os valores atribuídos às aguardentes, de modo a condicioná-las em seus respectivos contextos em um papel social de maior ou menor significado. Referências Bibliográficas Fontes manuscritas: Lisboa, Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Minas Gerais (MG). Caixa 22, doc.15. CARTA DE ANTÔNIO FREIRE AFONSO, juiz de fora da Vila do Ribeirão do Carmo informando o Rei dom João V sobre o que tem obrado no Morro de Matacavalos no diz respeito aos prejuízos causados pela venda de aguardente aos negros dos mineiros. 09 de setembro de 1732. Lisboa, AHU, MG. Caixa 28, doc.35. CONSULTA DO CONSELHO ULTRAMARINO sobre a Ordem Régia respeitante aos prejuízos causados pela existência de engenhos e engenhocas de aguardente de cana e venda de pólvora a negros mulatos na capitania de Minas Gerais. 04 de dezembro de 1734. Lisboa, AHU, MG. Caixa 70, doc.61. REQUERIMENTO DE DOMINGOS GALVÃO, morador nos sertão dos Matos Gerais, da freguesia dos Carijós, da Comarca do Rio da Mortes, pedindo licença para elaborar o engenho de açúcar e aguardente na dita paragem. 16 de dezembro de 1756. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 601 Sabará, Casa Borba Gato (CBG), Museu do Ouro (MO). CPO-I (06) 63. INVENTÁRIO DE MARIA MANSA DA CONCEIÇÃO, 1770. Bibliografia: ALMEIDA, Carla Berenice Starling de. Medicina mestiça: saberes e práticas curativas nas Minas Setecentistas. São Paulo: Annablume, 2010. ANDREONI, João Antônio; (ANTONIL, André João). Cultura e opulência no Brasil. São Paulo: Companhia Nacional, 1976. (Texto da Edição de 1711) BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico...Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, v.1. COELHO, José João Teixeira. Instruções para o governo da capitania de Minas Gerais. Introdução de Francisco Iglesias; Leitura paleográfica e atualização ortográfica de Cláudia Alves Melo. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. EUGÊNIO, Allison. Ilustração, escravidão e as condições de saúde dos escravos no Novo Mundo. Varia História, v.24, n.41, p.227-244, Belo Horizonte, jan/jun de 2009. FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. As farmácias no século XIX em Minas Gerais. In STARLING, Heloisa Maria Murgel, GERMANO, Lígia Beatriz de Paula e SCHMTIDT, Paulo. (org) Farmácia: ofício e história. Belo Horizonte: Conselho Regional de Farmácia do Estado de Minas Gerais, 2005, p.63-104. FERREIRA, Luís Gomes. Erário mineral. Organização de Júnia Ferreira Furtado. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Fundação João Pinheiro/ Fundação Owaldo Cruz, 2002, 2v. (Coleção Mineiriana) FURTADO, Júnia Ferreira. Boticários e boticas nas Minas do ouro. In STARLING, Heloisa Maria Murgel, GERMANO, Lígia Beatriz de Paula e SCHMTIDT, Paulo. (org.) Farmácia: ofício e história. Belo Horizonte: Conselho Regional de Farmácia do Estado de Minas Gerais, 2005, p.15-62. FURTADO, Júnia Ferreira. Medicina na época moderna. In STARLING, Heloisa Maria Murgel, GERMANO, Lígia Beatriz de Paula e MARQUES, Rita de Cássia. (org.) Medicina: história em exame. Belo Horizonte: EdUFMG, 2011, p.21-82. MENDES, José Antônio. Governo de mineiros mui necessário para os que vivem distantes de professores seis, oito, dez e mais léguas, padecendo por esta causa os seus domésticos e Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 602 escravos queixas, que pela dilação dos remédios se fazem incuráveis, e as mais das vezes mortais. Oferecido ao senhor coronel Antônio Soares Brandão cirurgião da câmara de sua majestade fidelíssima, e fidalgo de sua casa, cirurgião-mor dos reinos, seus domínios e exércitos, 1770. Organização e estudo crítico de FIGUEIRAS, Carlos A. L. Belo Horizonte: Secretária de Cultura/ Arquivo Público Mineiro, 2012. (Coleção Tesouros do arquivo). SOARES, Márcio de Sousa. Médicos e mezinheiros na Corte Imperial: uma herança colonial. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. V.VIII(2), p.407-438, Rio de Janeiro, jul/ago de 2001. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 603 FAMÍLIA CLEMENTE PINTO: CIÊNCIA E TÉCNICA NA PROVÍNCIA FLUMINENSE (1840-1880) Vanessa Cristina Melnixenco Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social Bolsista Capes [email protected] Resumo: Por volta de meados do século XIX observa-se a introdução de processos mecânicos de beneficiamento de café nas fazendas da província do Rio de Janeiro. A disseminação dessas máquinas na cafeicultura tem como efeitos principais poupar trabalho escravo e melhorar a qualidade do produto. A região de Cantagalo, também é palco dessas inovações científicas graças ao pioneirismo da família Clemente Pinto que instala máquinas em suas propriedades. O presente trabalho tem por objetivo tratar sobre a introdução de “machinismos” nas fazendas de café da região oriental do Vale do Paraíba e suas conjunturas durante a segunda metade do século XIX, tomando as propriedades da família Clemente Pinto situadas no município de Cantagalo-RJ, como estudo de caso. Ao estudar o lugar da família Clemente Pinto na memória e história da Região Serrana Fluminense, analisaremos o processo de industrialização, através da configuração e dos “machinismos” inerentes às propriedades, tendo em vista a formação econômica da região. Buscaremos compreender as relações entre o uso da tecnologia e a construção da nação moderna articulada ao desenvolvimento regional, e compreender o lugar do trabalho nas memórias construídas nas fazendas eo potencial transformador da ciência aplicada ao trabalho das máquinas. Palavras-chave: Clemente Pinto, tecnologia, cafeicultura Abstract: By the mid-nineteenth century we observe the introduction of mechanical processing of the coffee farms in the province of Rio de Janeiro. The spread of these machines has as main purpose to save slave labor and improve the product quality. The region ofCantagalo also hosts these scientific innovations thanks to pioneering family Clemente Pinto installing machines in their properties. This paper aims to explain the introduction of "machinismos" in the coffee farms of the eastern region of Vale do Paraíba and their junctures during the second half of the nineteenth century, taking the properties Clemente Pinto’s family located in the municipality of Cantagalo-RJ, as a case study. By studying the place of the family Clemente Pinto in memory and history of the Mountain Region of Rio de Janeiro, we are able to analyze the process of industrialization, through the configuration and "machinismos” inherent properties, in view of the economic formation of the region. Seeking to understand the relationships between the use of technology and the construction of the modern nation articulated regional development, and understand the place of work in the memories of the built farms and transformative potential of science applied to the work of machines. Keywords: Clemente Pinto, technology, coffee Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 604 Em meados do século XIX o Brasil é o maior produtor mundial de café, hegemonia alcançada desde a década de 1830. A rubiácea representava 41,5% de todos os produtos exportados pelo Império tornando-se, assim, a base econômica do Estado nacional em construção, sustentáculo da Monarquia. Esse sucesso foi possível graças à grande extensão de terras virgens disponíveis, mão de obra escrava farta que possibilitava o barateamento do custo da matéria-prima, conjuntura internacional propícia e mercado externo em alta (MARTINS, 2009: 258-259). Não há nesse período nenhum outro país com os potenciais espacial e de trabalho para a execução da produção do café como o Brasil. O principal polo de produção cafeeira no país era a região do Vale do Paraíba fluminense, do qual fazia parte a Freguesia de São Pedro de Cantagalo, localizada nos “Sertões de Macacu”. Segundo o AlmanakLaemmert, em 1850, Cantagalo já contava com 111 fazendas de café. Foi neste período que a freguesia alcançou o auge da sua prosperidade econômica e comercial, sendo reconhecida como o farto celeiro da terra fluminense e um dos principais fornecedores do ouro verde do Império. “O seu nome fastigioso projetava-se através das fronteiras nacionais, sendo conhecido na Europa como um centro formidável de atividade, de esfôrço humano e de produção” (LAMEGO, 2007: 224-225). A prosperidade alcançada por Cantagalo no princípio da década de 1850 foi possível graças à introdução de processos mecânicos para beneficiamento do café nas fazendas da freguesia perpetradas, especialmente, pelos membros da família Clemente Pinto, considerados os principais fazendeiros de Cantagalo.Como afirmou Lamego, “São João Marcos tivera os BREVES, cuja potência financeira repercutiria pelos municípios de Barra Mansa e de Piraí. Os ‘Sertões de Leste’ possuiriam os CLEMENTE PINTO, cuja atuação grandemente utilitária, viria mais tarde beneficiar um grupo bem maior de municípios” (LAMEGO, 2008: 227). A família Clemente Pinto é originária de Portugal, da freguesia de Nossa Senhora de Abobadela no Vilarejo de Ovelha do Marão. Teve início com o patriarca João Clemente Pinto (1723-1796), o qual deixou numerosa descendência. De seus sete filhos, um deles, seu homônimo, João Clemente Pinto (1752-1819), emigrou para o Brasil juntamente com seus filhos e sobrinhos, dentre eles Antonio Clemente Pinto, futuro Barão de Nova Friburgo. Chegaram ao Rio de Janeiro em 1807 fugindo da pobreza em que viviam em seu país de origem. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 605 De acordo com dados de uma carta de sentença de medição e demarcação de sesmaria, deduzimos que a família tenha se estabelecido na região de Cantagalo, pelo menos, desde 1819, podendo ser considerada uma família pioneira na região. Provavelmente, para ali se dirigiram atraídos pela fama das terras e da abundância de ouro, requerendo uma sesmaria – prática autorizada pelo Vice-Rei D. Luís de Vasconcelos desde 1785, logo depois da descoberta das Minas de Cantagalo. Segundo Erthal (1992), Antonio Clemente Pinto teria chegado aos Sertões de Macacu na década de 1820 “como simples sesmeiro”, após ter desempenhado as funções de auxiliar de escritório e se dedicado ao comércio (FOLLY, 2010, p. 27). De acordo com um documento datado de 1829, Antonio juntamente com seu sócio, o engenheiro Jacob van Erven, dedicaram seus primeiros esforços na localidade à mineração nas lavras de Santa Rita do Rio Negro. Todavia, a empresa não obteve sucesso. Diante do malogro,Jacob van Erven aconselha Antonioa dedicar-se a uma atividade recente na região e que viria a dar lucros num futuro próximo: o cultivo de café.A relação empresarial entre Antonio Clemente Pinto e Jacob van Erven deu-se, provavelmente, entre 1825 e 1830, quando o futuro Barão o teria contratado para administrar suas empresas. A associação mostrou-se sólida desde o princípio fortalecendo-se ainda mais quando Jacob passa a dedicar-se ao conhecimento da cultura da rubiácea e seu desenvolvimento, enquanto Antonio segue seus conselhos aplicando seu lucro em melhorias em suas propriedades. Lidando com o dia a dia da fazenda, van Erven se deparava com o pouco desenvolvimento do método de beneficiamento do café, realizado manualmente pelos escravos, e com a utilização de instrumentos precários, com os quais o grão de café não alcançava uma qualidade satisfatória. Diante disso, passa a aplicar seu conhecimento em engenharia na criação e confecção de máquinas, a fim de remediar os problemas do beneficiamento. Para tanto, em 1845, recebe o título de sócio efetivo na Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, onde poderia adquirir mais conhecimento, trocar experiências e divulgar para outros lavradores suas invenções 1 . Van Erven foi responsável por muitos inventos significativos como o engenho de lustrar café, estufas para secagem do grão, ventiladores e maquinismos que regulavam o grau de introdução do vapor ao cilindro de máquinas de qualquer sistema. Afonso de E. Taunay em sua obra História do café no Brasil cita as máquinas van Erven como provenientes de grande 1 O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 13 (1845), p. 288. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 606 fábrica ao lado de empresas conceituadas como Lidgerwood, Hargreaves e Mac Hardy (TAUNAY, 1939, p. 239). Alguns relatos de viajantes que estiveram em Cantagalo e região durante o século XIX dão testemunho da relevância do trabalho de van Erven. Em 1850 esteve em Cantagalo o naturalista prussiano Hermann Burmeister, que se encontrou pessoalmente com Jacob van Erven, em visita a uma das propriedades de Antonio Clemente Pinto. Burmeister revela que van Erven era “um homem de caráter extraordinário, que já passara por muitas provações na vida, mas que conseguira, também, excelentes compensações, vendo florescer e progredir seus empreendimentos” (BURMEISTER, 1980, p. 154). Segundo o viajante, van Erven era sócio de Antonio Clemente Pinto havia vários anos e administrava-lhe todos os negócios. Visitando as instalações da fazenda, Burmeister acompanhou minuciosamente todo o beneficiamento de café, detalhando o funcionamento das máquinas que eram movimentadas por uma roda d’água. Cantagalo também recebeu a visita do médico e naturalista suíço Johann Jakob vonTschudi em 1860. De acordo com ele, a agricultura do distrito era exercida pelos modos mais racionais devido à existência de fazendas em moldes modernos e práticos, as quais davam resultados satisfatórios graças às técnicas empregadas. Tschudi afirma que van Erven foi “o primeiro a trilhar pela agricultura racional, tendo introduzido várias inovações na tecnologia agrícola” (TSCHUDI, 1980, p. 83). Van Erven era responsável pela administração de onze fazendas do Barão de Nova Friburgo, sendo coproprietário de algumas delas. Juntos haviam conquistado êxitos que lhes proporcionaram grandes recursos monetários devido ao empreendimento modernizador de van Erven. “Tais resultados não deixavam naturalmente de ter sua influência benéfica sobre os demais fazendeiros da região e agricultores do distrito todo” (TSCHUDI, 1980, p. 83). O escritor de uma das seções sobre agricultura da revista O Auxiliador da Indústria Nacional de julho de 1852, também esteve em Cantagalo e disse ter ficado espantado com o desenvolvimento do local que ia muito além das suas expectativas. Segundo o colunista, a plantação e o tratamento do café em Cantagalo já não eram feitos pelo emprego de braços ou maquinismos grosseiros. Pelo contrário, as máquinas empregadas eram as melhores que se podiam conhecer, os terreiros feitos com arte e cuidado e as estufas bem preparadas. Tudo revelando um elevado grau de adiantamento. Entre as poucas fazendas citadas como exemplos estão as do Barão de Nova Friburgo, que eram constituídas por despolpadores, ventiladores, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 607 separadores e brunidores, sendo este último encontrado em poucas fazendas onde ainda se empregava os pilões. Já os melhoramentos nas estufas eram atribuídos ao engenheiro van Erven que, diferente de outras propriedades, havia as empregado com grande sucesso, por ter aplicado nas estufas ventilação forçada pelo fogo que renovava o ar por chapas metálicas aquecidas 2 . No entanto, em 1855, o mesmo periódico publicava as impressões de José de Araujo Ribeiro, ex-ministro do Brasil na França, sobre a agricultura brasileira. Para ele, a cultura e o beneficiamento do café tiveram poucos progressos no país, onde se ensaiaram a construção de máquinas sem bons resultados. Van Erven, como um engenheiro inventor de maquinismos, envia uma carta ao Secretário da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, dando parecer da verdadeira situação dessa ciência no país, tomando sua região, Cantagalo, como exemplo. Segundo van Erven, somente no município de Cantagalo haviam construídas 22 estufas inventadas por ele. Estas estufas “funcionão ha sete annos com o melhor resultado possivel, gastando pouca lenha, e seccando o café sem ser preciso mexel-o com muita igualdade” 3 . Destas estufas, quatro estavam em suas próprias fazendas, outras 13 em propriedades que van Erven dirigia para o Barão de Nova Friburgo, uma na do Sr. Rafael Ignacio da Fonseca Lontra, duas na de Troubat e Clemente, e duas na de Clemente e Bellieni. Além deste consideravel melhoramento, as mencionadas fazendas, e muitas outras do Municipio que ás imitárão, possuem terreiros de pedra cobertos com argamassa, que coadjuvados com as estufas secção todo o café das colheitas que em algumas passa de 30 a 40 mil arrobas por anno. Nas mesmas fazendas além de muitas maquinas para o preparo dos misteres do uso domestico, trabalho movidos por agua com força de acçãodirecta, e reacção, engenhos de pilões, ribas, despolpadores aperfeiçoados, que despolpão 1200 alqueires de caé por dia, ventiladores, separadores para limpar e igualar o grão, burnidorescontinuos da minha invenção, que lustrão o café sem quebrar, com a ultima perfeição 4 . Van Erven prossegue sua carta informando que a cultura do café vinha melhorando consideravelmente graças a muitos fatores, como o roteamento das fazendas; o emprego de carros de eixo fixo puxados por burros; o uso de escorregadores de madeira para descer o café das montanhas altas e íngremes; o emprego de “braço livre e intelligente”, dos quais trabalhavam mais de 600 indivíduos nas mencionadas fazendas. Estes e outros muitos aperfeiçoamentos vinham facilitando o trabalho e aumento da produtividade. Van Erven 2 O Auxiliador da Industria Nacional, n. 1 (Julho/1852), p. 175-180. 3 O Auxiliador da Industria Nacional, n. 4 (1855), p. 207-208. 4 Ibdem. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 608 termina sua correspondência informando que o café das mencionadas fazendas era sempre vendido pelos mais altos preços no mercado nacional, e quando exportados para Europa, lá “forão achados iguaes as melhores qualidades de Jamaica, Java e Ceylão”. E diante de tudo o havia exposto, julgava “que a cultura do café no Brazil não merece o epitheto de estacionaria” 5 . Uma das estratégias empregadas pela família Clemente Pinto para aumentar seus lucros foi a disseminação de seus investimentos. Em 1850, com a proibição definitiva ao tráfico negreiro (Lei Eusébio de Queirós), Antonio Clemente Pinto, que também empregava parte de seu capital no tráfico e comércio de escravos até então, aplicou seus capitais em uma sociedade comercial na corte, a casa comissária que denominou Friburgo & Filhos.Todavia, acreditamos também que, o fim do tráfico, apesar de principal motivador à diversificação em novas empresas, não foi o único motivo para tal atitude. Antonio Clemente Pinto, em parceria com seu sócio Jacob van Erven, há anos, vinha aplicando parte de seus capitais na melhoria do processo de beneficiamento do café de suas fazendas. Apostou na adoção e invenção de máquinas, além do emprego de colonos imigrantes. Portanto, já vinham construindo um meio de otimizar cada vez mais a produção de suas propriedades. A criação da firma Friburgo & Filhos seria a consolidação de tais ideias e também o ponto de partida para empreendimentos maiores. A casa comissária era o entrelaçamento entre o “tradicionalismo” da fazenda e a “modernidade” da economia capitalista. Por meio da firma Friburgo & Filhos, localizada na Rua da Candelária, nº 36, segundo o Registro Geral dos Negociantes do AlmanakLaemmert de 1850, todo o processo compreendido desde a plantação até a comercialização do café estaria concentrado pela mesma família. Através da casa comissária, além do lucro embutido nos negócios, a famíliaaumentaria seu círculo de poder por meio de sociedade com novos clientes e ainda, teria uma relação praticamente direta com o exterior, de onde poderia adquirir mais equipamentos e máquinas para suas lavouras, e mais, influenciar seus clientes fazendeiros a adotarem tais tecnologias. Para que todos esses propósitos tivessem ainda mais êxito, só restaria um bom e seguro processo de escoamento até os portos, que não fosse mais realizado pelas tropas de muares sujeitas às intempéries naturais, um processo que pudesse ser veloz e de custo reduzido. O melhor caminho se mostraria ser a construção de uma estrada de ferro. AntonioClemente Pinto juntamente com outros capitalistas, organizou a Sociedade Anônima Estrada de Ferro 5 Ibdem. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 609 de Cantagallo, aprovada pelo Decreto 1997, de 21 de outubro de 1857. Para facilitar a execução, o projeto foi dividido em três seções, cujos contratos seriam feitos separadamente: a primeira, de Porto das Caixas a Cachoeiras de Macacu; a segunda, de Cachoeiras a Nova Friburgo; e a terceira; de Nova Friburgo a Laranjais. A inauguração da estrada teve lugar na estação de Porto das Caixas em 22 de abril de 1860. A Estrada de Ferro de Cantagallo era a terceira ferrovia a ser construída na província fluminense e quarta de todo o Império. Diante do feito, Antonio Clemente Pinto foi condecorado com o título nobiliárquico de Barão com Honras de Grandeza de Nova Friburgo 6 . A construção das seguintes seções da estrada só pode ser iniciada em 1870, já gerenciada por um dos filhos do Barão de Nova Friburgo, Bernardo Clemente Pinto Sobrinho, graças ao desenvolvimento de tecnologia adequada que permitisse a subida da íngreme serra da Boa Vista. O sistema utilizado foi o mesmo empregado na estrada de ferro do Monte Cenis, conhecido como sistema Fell. Em 1876, os “wagons do progresso” alcançaram o município de Cantagalo. A partir deste momento, as principais propriedades da família Clemente Pinto, que já eram interligadas por trilhos de ferro, passaram a ligar-se à ferrovia, acelerando o processo de escoamento da produção de maneira que, segundo o relatório do Luiz Monteiro Caminhoá, “as remessas de café podem ser feitas para o mercado do Rio de Janeiro, no mesmo dia, se assim exigirem as circumstancias” 7 . O Barão de Nova Friburgo, Antonio Clemente Pinto, em meados do século XIX, era um dos homens mais ricos do Império. Fortuna construída através de apostas em negócios bem sucedidos, “antecipava-se aos acontecimentos e lucrava com eles” (FOLLY, 2010, p. 30). Tornou-se um fazendeiro-capitalista, proprietário de 16 fazendas na região de Cantagalo e Nova Friburgo, denominadas: Santa Rita, Areas, Boa Vista, Boa Sorte, Jacotinga, Itaóca, Laranjeiras, Água Quente, Gavião, Aldeia, Cafés, Macapá, São Lourenço, Cônego, Imperial Córrego D’Antas, Chácara do Chalet. As dependências de suas fazendas eram montadas com técnicas modernas para a produção e beneficiamento de café. Com sua morte em 1869, suas propriedades foram divididas entre seus dois filhos, Antonio Clemente Pinto, futuro Conde de São Clemente, e Bernardo Clemente Pinto Sobrinho, futuro Conde de Nova Friburgo, os quais 6 Por seu trabalho como um dos diretores da Estrada de Ferro Mauá, denominada “Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis”, que foi a primeira ferrovia construída no Brasil, Antonio Clemente Pinto foi agraciado, em 1854, pelo Imperador com o título nobiliárquico de Barão de Nova Friburgo. 7 CAMINHOÁ, Luiz Monteiro. Cana de assucar e café: Relatório apresentado ao Governo Imperial. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1880. p. 60. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 610 seguiram seu exemplo e deram continuidade ao seu trabalho, multiplicando suas posses e poder na região, ficando conhecidos como “príncipes do café”. Bernardo Clemente Pinto, em especial, por ter herdado a maioria das propriedades rurais, foi pioneiro no desenvolvimento do cultivo do café Java. Aliás, o café produzido em suas fazendas era reconhecido como um dos melhores do mercado interno e externo, tanto que nos Estados Unidos era chamado de Casa Friburgo 8 . Tamanha era a qualidade do produto que Bernardo e seu irmão foram premiados em diversas exposições nacionais e estrangeiras. Bernardo também se dedicava à criação de ovelhas de raças seletas, incluindo a espécie de carneiros da raça South-Down provenientes da Inglaterra 9 . Também apostava na colonização, empregando em suas fazendas, imigrantes portugueses e até mesmo “coollies” chineses, dedicando seus esforços na tentativa de substituição do braço escravo pelo serviço de colonos livres. Diante das informações pesquisadas até o momento e expostas sucintamente neste trabalho, concluímos, por hora, que as propriedades da família Clemente Pinto, com o desenvolvimento gradual de suas benfeitorias, foram propositalmente construídas ou passaram a ser edificadas com o fim de tornaram-se uma rede de ajuda mútua com o objetivo de beneficiar o processo de produção de café com o qual se alcançaria uma redução dos custos do produto e, consequentemente, aumento dos lucros. Ou seja, as fazendas funcionavam como uma unidade de produção. Além disso, com a diversificação dos investimentos, a mesma família mantinha sob sua administração todo o processo que envolvia a produção do café, desde o cultivo, beneficiamento, escoamento, até a comercialização. O monopólio dos meios de produção permitiu à família acúmulo de poder e, consequentemente, influência na região. O sucesso do emprego de maquinismos no processo de beneficiamento de café, permitiu aos Clemente Pinto e aos van Erven difundir seus inventos e melhorias pela localidade. Quanto mais desenvolvida fosse a freguesia de Cantagalo, mais vantagens recairiam sobre seus habitantes, principalmente sobre aqueles que predominavam sobre os demais, como os Clemente Pinto, uma família tradicional e pioneira na região. Como demonstramos ao longo do texto, as tecnologias utilizadas pela família Clemente Pinto foram de grande influência sobre os demais proprietários de Cantagalo, 8 A Vida Fluminense, opus citatum. 9 Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, n. 14 (Dezembro/1882), p. 81. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 611 influência que permitiu a idealização e construção de uma estrada de ferro que veio a beneficiar todo o território. O presente trabalho, lamentavelmente, não pode ser estendido, todavia constitui parte de pesquisa em desenvolvimento para dissertação de mestrado na qual tratamos sobre a introdução de maquinários no beneficiamento de café tomando as fazendas pertencentes aos Clemente Pinto como estudo de caso. Portanto, esse mesmo tema ainda sofrerá modificações e aprimoramentos e poderá ser melhor interpretado com as devidas minúcias de uma apresentação dissertativa. Referências bibliográficas: ANDRADE, P. R. O trabalhador nacional livre no beneficiamento de café e na construção das ferrovias na região de Campinas nas décadas de 1870-1880. Anais doXX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca, Franca, set. 2010. Cd-Rom. BURMEISTER, Hermann. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: visando especialmente a história natural dos distritos auri-diamantíferos. [1852] Tradução: Manoel Salvaterra e Hubert Schoenfeldt. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1980. (Coleção Reconquista do Brasil Nova Série, v. 23) CAMINHOÁ, Luiz Monteiro. Cana de açúcar e café: Relatório apresentado ao Governo Imperial. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1880. ERTHAL, Clélio. Cantagalo: da miragem do ouro ao esplendor do café. 2. ed. Niterói: Netpress, 2008. FLETCHER, James C.; KIDDER, Daniel P. Brazil and the Brazilians, portrated in historical and descriptive sketches. Philadelphia: Childs & Peterson; Boston: Phillips, Sampson & Co., 1857. Disponívelem: http://archive.org/details/ brazilbrazilians00kidd FOLLY, Luiz Fernando Dutra; Oliveira, Luanda Jucyelle Nascimento; Faria, Aura Maria Ribeiro. Barão de Nova Friburgo: impressões, feitos e encontros. Rio de Janeiro: UFRJ/EBA, 2010. LAËRNE, C. F. van Delden. Le Brésilet Java. Rapportsurlaclturedu café enAmérique, Asie et Afrique. La Haye: Martinus Nijhoff, 1885. LAMEGO, Alberto Ribeiro. O Homem e a Serra. [1950] 2 ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. Edição fac-similar. MARTINS. Ana Luiza. História do Café. Contexto. São Paulo, 2009. O AUXILIADOR DA INDÚSTRIA NACIONAL, 1845, 1852, 1855. TAUNAY, Afonso de E. História do café no Brasil, 11 vol. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1939, vol. VI. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 612 TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. [1866] Tradução de Eduardo de Lima Castro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1980. (Coleção Reconquista do Brasil Nova Série, v. 14) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 613 O USO DE NOVAS TECNOLOGIAS PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: RESIGNIFICANDO CONTEÚDOS Verônica Gomes dos Santos Universidade Federal do ABC Licenciada em Educação para as séries iniciais - USP Mestranda em EHFCM – UFABC [email protected] Resumo:O ensino de ciências no Ensino Fundamental, para alunos com idades entre 6 a 10 anos, tem sido realizado basicamente a partir da leitura de textos nos manuais didáticos, imagens e esporádicas experiências meramente ilustrativas. Isto contribui para um distanciamento entre os conteúdos científicos abordados na sala de aula e suas relações com o dia a dia das crianças, dificultando a contextualização e significância dos mesmos. O presente trabalho propõe, a partir do uso de Novas Tecnologias, uma estratégia viável para o ensino das ciências, que tem recebido cada vez mais destaque na Educação Brasileira nos últimos 50 anos. Partindo de um gênero conhecido pelos alunos e através de uma abordagem histórica, conceitual e contextualizada, objetiva-se a produção autoral dos estudantes com a construção de conhecimentos significativos e a atribuição de sentidos aos conteúdos, numa perspectiva que coloca o aluno como protagonista no processo de aprendizagem. Palavras Chave: Tecnologia, ciências, aprendizagem Abstract:Teaching Science in Elementary Education, for students aged 6-10 years has been basically realized from reading texts in textbooks, images and experiences sporadic merely illustrative. This contributes to a gap between the science content covered in the classroom and their relationships with the children every day, making the context and significance of them. This paper proposes, through the use of New Technologies, a viable strategy for the teaching of science, which has received increasing prominence in Brazilian Education for 50 years. Starting from a genre known by students and through a historical, conceptual and contextual, the objective is to produce students with the authorial construction of meaningful knowledge and the attribution of meaning to the content, a perspective that sees the student as the protagonist in the process of learning. Keywords: Technology, science, learning Introdução A educação Básica, principalmente a etapa queabrange os primeiros anos de escolaridade, possui uma organização curricular que prioriza o ensino da Língua e da Matemática perante as demais áreas curriculares. De fato, tal período possui como objetivo central a aquisição do código Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 614 para obtenção e compreensão da leitura e escrita e o desenvolvimento lógico-matemático até então presente em situações concretas. Esta organização não descaracteriza a importância e a relevância das demais áreas do currículo, apenas orienta o oferecimento de forma proporcional aos objetivos imprescindíveis para tal etapa. Porém, o despreparo, a falta de compreensão da importância e a formação generalista recebida pelo docente desta primeira fase de escolarização contribui significantemente para o oferecimento negligenciado e descontextualizado que é dispensado aos conteúdos das demais áreas, entre elas o ensino das Ciências. Diante deste cenário desestimulante e repetitivo é visívelque a metodologia que acompanha este despreparo auxilia na manutenção negativa de transmissão de conteúdos de forma tradicional e burocrática, como aponta Malacarne: A insegurança no tratamento do conteúdo científico (...)resulta em um trabalho pouco ou nada inovador, limitado em muitos casos a leitura ou realização de exercícios propostos pelo livro didático que, por melhor que seja produzido, pouco contribui para um primeiro contato atraente da criança com o mundo dinâmico da Ciência. Malacarne, V. e Strieder, D. (2009, p. 76) Esta realidade nos faz refletir sobre a real importância que os conteúdos científicos representam na formação crítica do cidadão e, mais especificamente, o quanto os docentes compreendem e valorizam estes saberes quando os colocam em um plano obscuro e irreversível no planejamento de curso anual da sua turma. Seria compreensível a todos o quanto o desenvolvimento crítico investigativo pode contribuir para, entre outras coisas, a aquisição do código linguístico e matemático? Seria então, mais precisamente, compreensível aos docentes o valor e a importância que é desprendida às ciências na formação de uma postura ativa, curiosa, argumentativa e reflexiva, fundamental para formação integral do individuo? Se não há uma resposta que atenda a tantas indagações, estariam os professores a mercê do despreparo e falta de orientação que não os conduzem a uma valorização dos conteúdos científicos? De fato, a carência de formação específica dos professores polivalentes que atuam nos primeiros anos da Educação básica não abrange e contempla a necessidade em desenvolver no aluno, através do trabalho contextualizado e significativo com os conteúdos científicos desde cedo, um perfil investigativo. Tampouco orientam este trabalho fazendo valer-se de todo o Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 615 potencial material, metodológico, estratégico e tecnológico, de modo que tais conteúdos sejam incorporados ao cotidiano dos alunos, fazendo com quê os mesmos atribuíam sentido à sua realidade de vida. Seria entãojustificável e aceitável o “negligenciamento” dado a tais conteúdos pela falta de formação? Na contra mão desta carência existe uma vasta seleção de referências, parâmetros e pareceres que visam alicerçar e orientar este percurso, aproximando os docentes de um trabalho para além dos livros didáticos. Os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN de Ciências (BRASIL, 2001) apresentam uma série de objetivos que se espera alcançar com o ensino de ciências de forma contextualizada, tais como: desenvolver habilidades de descrever, comparar, selecionar, buscar, transformar e argumentar sobre os conteúdos abordados. Tais objetivos nos remetem a uma abordagem histórica, que localiza a ciência no tempo e no espaço, eque a compreende inserida em sociedades em constantes transformações. Nesta abordagem, a ciência é entendida como uma construção humana, visando à compreensão do mundo e passível de influências das mais distintas linhas e instituições que compõem o cenário social. Alcançar tais objetivos a partir de um ensino pautado na inércia e passividade proporcionadas com a apresentação de conteúdos tidos como “verdades absolutas construídas a margem da realidade social”, pode ser uma tarefa difícil de ser executada. É preciso buscar formas de romper tais barreiras metodológicas. Seriam as Novas Tecnologias Digitais da Comunicação e Informação (NTDICs) e demais recursos disponíveis, ferramentas capazes de contribuir para esta transformação? Promover um ensino de ciências na Educação Fundamental I para além dos textos instrutivos e de experimentos isolados, que estimule a reflexão, a compreensão do todo, o estabelecimento de relações com o cotidiano e que permita entender a transformação da sociedade nos seus diferentes níveis e segmentos de forma real e significante, condizente com a faixa etária dos estudantes, podem ser objetivos também alcançados com o uso das NTDICs. Weissmann (1998, p.52) destaca a necessidade de que o aluno seja capaz de colocar a prova sua capacidade criativa, trabalhar de forma cooperativa e colaborativa, desenvolver o espírito crítico, comunicar e publicar os resultados de seus experimentos e trabalhos e buscar caminhos criativos para testar e colocar a prova suas ideias e questionamentos. E, somando-se às ideias de Weissmann, destacamos a constatação de Almeida (2012) que os alunos já nascem Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 616 inseridos em um contexto tecnológico midiático social, onde podem aprender desde a infância a buscar, confrontar, investigar e produzir seus interesses e dúvidas, através de equipamentos que promovem a convergência digital que está cada vez mais acessível às pessoas. O uso das novas tecnologias aplicadas à Educação tem sido objeto de pesquisas acerca de suas potencialidades pedagógicas e relevância no processo de ensino e aprendizagem dos alunos, independentemente da idade ou modalidade educativa em que se encontrem. Diversos pesquisadores defendem que a tecnologia pode contribuir significantemente para a construção do conhecimento de forma íntegra e contextualizada, desde que a mesma não sirva para reproduzir os velhos métodos e instruções de ensino, ou seja, apenas animando a velha Educação (PRETTO, 1996). Com a tecnologia, temos a possibilidade de fazer conexões entre o conhecimento historicamente construído pela sociedade com exemplos, modelos, representações, imagens e tantas outras mídias e formatos disponíveis atualmente. Afinal, “aprendemos melhor quando relacionamos, estabelecemos vínculos, laços entre o que estava solto, caótico, disperso, integrando-o em um novo contexto, dando-lhe significado, encontrando um novo sentido” (MORAN 2009, p. 22). Neste prisma é compreendido o uso das novas tecnologias na educação, uma vez que as mesmas trabalham com recursos visuais, sonoros, verbais e híbridos, podendo auxiliar na promoção da argumentação, seleção, comprovação, coleta de dados e tratamento de informações para a transformação de conteúdos em gêneros e meios diversos, efetivando a construção do conhecimento. Para Almeida (2002), nesta nova perspectiva pedagógica e tecnológica, o aluno aprende fazendo, coloca a prova tudo o que sabe e busca novas compreensões significativas para o que produz. Mas, mesmo diante desta gama de possibilidades, é fundamental delimitar o papel imprescindível do professor ao propor o uso da tecnologia de forma consciente e contextualizada, uma vez que a mesma, por si só, não é capaz de promover o aprendizado significativo, devendo ser articulada ao currículo através da intencionalidade pedagógica. Um exemplo que pode caracterizar esta ação mediadora entre professor-aluno-tecnologia é a utilização de recursos variados que podem tornar a aula, muita vezes predominantemente expositiva, em uma aula capaz de atender a vários estilos de aprendizagens e atuar em habilidades e competências diversas ao propor a sistematização do conteúdo, transformando-o em veículos, gêneros ou portadores diferentes atendendo a função social do conhecimento. Afinal, “aprendizagens significativas Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 617 ocorrem apenas quando os alunos transformam informações disponíveis em conhecimento adequado à solução de um problema ou criação de um novo produto” (BARATO 2004, pg 4). Buscando compreender de forma real e comprovável o papel diferenciador que os recursos tecnológicos podem obter no processo de ensino e aprendizagem, e principalmente, no tocante aos conteúdos científicos abordados até então de forma distante e descontextualizada, foi planejado e aplicada a sequência didática a seguir. Sequência Didática:Os Contos de Fadas e as Invenções Tecnológicas Com o objetivo de compreender a história e o processo evolutivo da tecnologia como uma construção humana e sua aplicação na sociedade, assim como reconhecer os recursos tecnológicos educacionais como possibilidades para aprofundar e sistematizar o conhecimento, vimos na turma do 2º ano A do ciclo I, composta por crianças com 7 anos de idade, um campo fértil para investigarmos o valor dos conteúdos curriculares de ciências atrelados à Física e à História das Ciências, bem como a potencialidade dos recursos tecnológicos diversos usados em favor da contextualização e significância dos mesmos ao cotidiano destes alunos. A partir da parceria estabelecida entre a professora da turma (Suseli de Paula Vissicaro) e a professora mediadora dos recursos informacionais e tecnológicos da escola (Verônica Gomes dos Santos), foi elaborado o projeto “Os contos de Fadas e as investigações científicas”, com intuito de abordar conceitos considerados distantes para a faixa etária, passeando pela história das invenções 2 de uma forma dinâmica, concreta e significativa. Desta forma, através do trabalho com um gênero textual conhecido pelos alunos (os contos de fadas tradicionais), utilizados a fim de manter a fantasia e criar o enredo necessário para o estabelecimento de relações entre o fantástico e o real,sebuscou promover a interdisciplinaridade ao abordar conteúdos relacionados às ciências, línguas, matemáticas e história. O planejamento central prevê o desenvolvimento a partir de 7 eixos temáticos contendo, cada um: · 1 conto de fadas; · 1 invenção tecnológica condizente com a problemática do conto; . 1 mecanismo responsável pelo funcionamento da invenção tecnológica abordada; · 1 conceito físico constante na invenção tecnológica abordada; Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 618 · 1 montagem com material estruturado; · 1 momento de pesquisa; · 1 momento de tratamento da informação; Tabela 1.Descrição da organização dos Eixos temáticos trabalhados no projeto. Eixo Conto de Fadas Invenção Tecnológica Mecanismo 1 João e o pé de feijão Elevador Manivela 2 A princesa e o grão de Ervilha Guindaste Polias e Roldanas 3 Branca de neve e os 7 anões Batedeira Engrenagens 4 Cinderela Carruagens Rodas e Eixos 5 A pequena Sereia Barco Estrutura 6 Rapunzel Escorregador Plano Inclinado 7 A Bela Adormecida Catapulta Alavanca A escolha da invenção tecnológica e do mecanismo em destaque determina qual conceito físico será abordado no eixo temático. Os conceitos físicos planejados para serem trabalhado com os alunos são: movimento e repouso, direção e sentido, movimentos retilíneos e circulares, forças e equilíbrio. A partir desta organização os alunos passam por uma sequência de atividades que abordam estratégias e vivências diversas, dentre as quais podemos destacar: a apreciação dos contos escolhidos em formato de vídeo, reflexão oral e coletiva sobre a situação problema destacada no vídeo, levantamento de hipóteses, montagem com material estruturado, pesquisas em diversas fontes (Internet, livros, revistas, jornais) e com recursos e locais diferenciados (Laboratório de Informática, netbooks, biblioteca interativa, sala de aula, casa), apreciação de curtas e animações, experiências físico-reais, jogos e simuladores, apreciação de histórias para- didáticas, elaboração de texto descritivo e conceitual, digitação, seleção de imagens, edição e impressão do produto final. Como material estruturado para trabalhar com a montagem e análise dos recursos tecnológicos, escolhemos a caixa 9674 do Lego Dacta da Edacom, pois possibilita o brincar, privilegiando o lúdico, imprescindível nesta faixa etária, sem desconsiderar o potencial cientifico e pedagógico planejado para o projeto. O trabalho com outras mídias, portadores e gêneros textuais, alem de linguagens e formatos diversos garante uma aprendizagem integral, além da inclusão dos alunos com dificuldades de aprendizagens e de alunos com necessidades Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 619 educacionais especiais, no caso, duas alunas deficientes auditivas que utilizam a Libras – Língua Brasileira de Sinais – para comunicarem-se com o mundo. Ao final do projeto, os alunos confrontarão o conhecimento construído e as aprendizagens abordadas elaborando coletivamente um álbum de figurinhas contendo conceitos, definições e características dos personagens dos contos trabalhados, dos recursos tecnológicos e dos conceitos e mecanismos físicos. Desta forma, o produto final elaborado será pertinente e interessante à sua faixa etária, dando sentido à função social e real da escrita, além de colocar a prova todo o conteúdo abordado durante o projeto, revisitando-o de forma significativa e contextualizada. A importância de cada etapa Mesmo com todos os eixos tendo sido trabalhados de forma satisfatória e estando em processo de conclusão da confecção do álbum de figurinhas, ainda não foi realizada toda a análise dos dados colhidos durante o processo. Mas, ao observar a postura e participação dos alunos durante a sequência tivemos o prazer de constatar o quanto o projeto promoveu o envolvimento, a curiosidade e o desempenho dos alunos, que estabeleceram relações reais com conceitos e mecanismos até então considerados distantes da idade da turma, além de promover a ampliação do repertório linguístico, acrescentando termos e vocabulário até então considerados comuns aos anos finais do Ensino Fundamental II. De modo geral, todos os momentos e etapas vivenciados têm um valor ímpar e um significado especial, tanto para a pesquisa quanto para o desenvolvimento dos alunos. Portanto, priorizar e planejar cada etapa são cuidados que certamente farão diferença no processo formativo de cada aluno. Desta forma, destacamos alguns diferenciais e peculiaridades de cada etapa para o processo: ● Levantamento da problemática central: para introduzirmos ainvenção tecnológica anacrônica ao período do conto assistido pela turma, é preciso dar ênfase a uma situação problema apresentada no clássico e, desta forma, fomentar o levantamento de ideias e sugestões por parte do grupo. Soluções para ajudar o João a subir com a família para o castelo depois da morte do gigante, como ajudar a princesa a subir na torre tão alta feita de colchões ou o quê poderia auxiliar Branca de Neve a fazer tantas panquecas para o café da manhã dos anões, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 620 assim como outras problemáticas planejadas para os eixos futuros, são formas que utilizamos para a reflexão coletiva. ● Levantamento de Hipóteses: falar, ouvir, respeitar sua vez, considerar a ideia do colega, refletir sobre as hipóteses, refutar, analisar, reconsiderar, escolher. Tantos verbos trabalhados de uma só vez em um único momento de conversa coletiva. De posse da situação problema, os alunos fazem uma “tempestade de ideias” das possíveis soluções, que são todas anotadas e, em segundo momento, questionadas sobre a pertinência ou funcionalidade das mesmas para resolver a situação.Desta forma, cada ideia é refletida e classificada entre as possíveis ou não. Em outro momento, somente as possíveis são conduzidas a uma reflexão para chegar à invenção tecnológica planejada. Esta é apresentada em imagens em suas diversas formas e funcionalidades, juntamente com a explicação da professora para encerrar esta etapa. ● Montagem com material estruturado: Uma forma de concretização da invenção selecionada e de promoção do lúdico e do raciocínio a partir de situações de confronto com o conhecimento estabilizado é a utilização do material estruturado. No caso, utilizamos a caixa 9674 da Lego Dacta (Edacom), disponível nesta rede municipal de Educação. A proposta inicial é a montagem, em grupos, da invenção trabalhada e depois problematizá-la. No conto do “João e o pé de feijão” (como nos demais), todos montaram a mesma proposta do elevador utilizando uma ficha de montagem, trabalhando a leitura do texto instrucional por imagem. Ao final desta etapa a professora acrescentou problemáticas, tais como: adaptar o suporte do elevador para o João levar toda a família de uma vez, fazer com quê as pás da batedeira da Branca de Neve gire mais rápido ou dar mobilidade ao guindaste do quarto da Princesa. Este momento da adaptação da montagem é dos mais ricos. Nesta parte, os alunos colocam em jogo o conhecimento adquirido, o poder da argumentação, do teste, da comprovação e da escolha. É preciso trabalhar em grupo, ceder e negociar em uma idade onde o “meu” tem o maior valor. Por fima socialização do elaborado privilegia a comunicação, a expressão oral e a apresentação. • Pesquisar, aprofundar, conhecer: a etapa da pesquisa tem a intenção primordial de fazer com que os alunos percebam que toda invenção tecnológica é uma produção humana, que as mesmas passam por transformações evolutivas ao longo da história e, principalmente, que existe uma forma de funcionamento (mecanismo) que será destacado posteriormente. Porém, é inegável que estes momentos propiciam também o espírito investigativo, a seleção do conteúdo Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 621 estudado, o foco, a sistematização e tratamento das informações. Desta forma, é apresentado aos alunos uma das muitas formas de se consumir informações transformando-as em conhecimento. As formas de pesquisas variam entre os diversos espaços e formas midiáticas disponíveis, mostrando que existem diversos meios de buscar informações necessárias. Os roteiros elaboradospara orientação procuram fazer com que os alunos busquem as informações necessárias a partir de uma leitura global e não por escolhas de frases determinadas. ● Retomada da pesquisa, descoberta do mecanismo: a retomada coletiva da pesquisa é realizada para promover o tratamento das informações encontradas, confrontando fontes variadas e informações divergentes observadas pela turma. Este momento também é utilizado para a delimitação da pesquisa até chegar ao mecanismo que é ou foiresponsável pelo funcionamento da invenção tecnológica estudada. O relacionamento do mecanismo com o cotidiano e a atribuição de funcionalidade ao mesmo é um momento de descoberta e euforia pelos alunos. ● Compreensão do conceito: o trabalho com o conceito da Física surge de modo natural ao se abordar o mecanismo. O “como funciona” é o disparador do tema e através de questões que induzem a participação por hipóteses os alunos acabam construindo o conceito planejado para o trabalho. Perguntas como “Se eu virar a manivela para a direita o que acontece? E se for para a esquerda?” fazem os alunos perceberem que o foco do trabalho é reconhecer que a ação determina a direção - cima/baixo, subir/descer, direita/esquerda - ou “Se puxarmos esta corda sem nenhum mecanismo o que acontece? E agora que colocamos a polia lá em cima, o que mudou?” ● Ilustração tecnológica ou real: Observamos que quanto maior o estímulo que propiciamos aos alunos através de atividades concretas ou ilustradas com objetos de aprendizagens, maior é a resposta positiva, coerente e significativa que recebemos dos alunos. Desta forma, procuramos agregar ao trabalho momentos onde a turma assiste uma animação, brinca em jogos virtuais ou simplesmente passam por situações reais que promovem a reflexão sobre o conceito. Utilizar a batedeira montada com o material estruturado para fazer espuma em um recipiente com água e detergente é uma tarefa fácil e mais fácil ainda é testar a troca de tamanho das engrenagens, das pás, da manivela. “O que acontece?” “Quem faz mais espuma? O que tem de diferente na montagem deste grupo?” ou até mesmo fazer uma roda dentro da outra com os alunos e contar em um mesmo tempo determinado quem deu mais voltas, a grande ou a Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 622 pequena? “Então, quando usamos umas engrenagens pequenas na montagem para fazer a mesma espuma da outra, ela terá que dar mais ou menos voltas?” “O esforço de quem move é maior ou menor?” E assim vamos trazendo para a conceituação teórica os momentos vivenciados na prática, no lúdico, no virtual. Conclusões preliminares Muitos outros momentos compuseram este trabalho que já trouxe contribuições significativas para o aprendizado dos alunos, como a apropriação de vocabulário próprio dos temas em conversas do cotidiano, a relação dos mesmos em vivências da rotina, como os relados por alguns pais e professores em diferentes momentos. A postura crítico-investigativa de poder ir atrás da informação em meio às tecnologias acessíveis e, principalmente, de questionar se a informação é real, se consta em outros locais e se pode ser utilizada, são iniciativas que modificaram a relação da turma com a mesma e consequentemente com o uso das NTDIC. Porém, gostaríamos de destacar que respostas conclusivas às questões colocadas na problemática, só poderão ser delineadas ao final do projeto, com a sistematização dos conteúdos com a produção final do álbum e a análise minuciosa de todo o material colhido. É interessante esclarecermos ainda que o papel representado pelo nome “professor” descrito nos momentos relatados, não se atribui a figura definida de uma pessoa em específico. O trabalho é desenvolvido em parceria estreita entre a professora da sala e a professora mediadora dos recursos tecnológicos da escola. Porém, a delimitação de funções e responsabilidadespossui uma nuance muito fina, quase imperceptível, sendo ambas agentes ativas de acordo com o objetivo, além de terem a liberdade de atuarem em peso de igualdade na mediação da relação do aluno com as tecnologias, as informações, as experiências práticas e outros. Referências Bibliográficas ALMEIDA, M. E. B. de. Educação, projetos, tecnologia e conhecimento. São Paulo: PROEM, 2002. ALMEIDA, M.E.B. de. Maria Elizabeth de Almeida fala sobre tecnologia na sala de aula. Entrevista à revista Nova Escola. 2012. Disponível Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 623 emhttp://revistaescola.abril.com.br/planejamento-e-avaliacao/avaliacao/entrevista-pesquisadora- puc-sp-tecnologia-sala-aula-568012.shtml BARATO, Jarbas N. El Alma de las Webquest. Revista eletrônica Quaderns Digitals.net, nº 32, Março de 2004 Disponível http://www.quadernsdigitals.net/index.php?accionMenu=hemeroteca.VisualizaArticuloIU.visuali za&articulo_id=7360 BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Naturais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: ciências naturais. Brasília: A Secretaria, 2001. MALACARNE, V. e STRIEDER, D, O desvelar da ciência nos anos iniciais do ensino fundamental: um Olhar pelo viés da experimentação, Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI, Vol.5, N.7: p.75-85, Maio/2009. 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ISBN 978-85-62707-52-0 624 A INTERPRETAÇÃO FILOSÓFICA DA MECÂNICA QUÃNTICA DE WERNER HEISENBERG: ONTOLOGIA MATEMÁTICA E CRISE NOS FUNDAMENTOS DA LÓGICA CLÁSSICA Vinícius Carvalho da Silva Universidade do Estado do Rio de Janeiro Doutorando em Filosofia da Ciência e Teoria do ConhecimentoPPGFIL-UERJ Resumo: Qual a Filosofia da Natureza que podemos inferir da Física Contemporânea? Para Werner Karl Heisenberg, prêmio Nobel de Física de 1932, a ontologia da Ciência Moderna, estruturada no materialismo, no mecanicismo e no determinismo já não pode servir de fundamento para a nova Física. Esta requer uma nova base ontológica, onde o antirrealismo, seguido de um formalismo puro, aparece como o princípio basilar de uma nova Filosofia Natural. Este trabalho visa investigar o pensamento filosófico, a ontologia antirrealista, formalista, a abordagem da tradição filosófica e da história da ciência de Werner Heisenberg e sua contribuição para a interpretação da mecânica quântica. Palavras-chave: Ciência Moderna; Física Contemporânea; Filosofia Natural. Werner Heisenberg sustentou que a natureza da ciência é inevitavelmente filosófica. As relações intrínsecas entre filosofia e ciência são epistêmicas e históricas. No que diz respeito à história da ciência, Heisenberg parece acenar com a possibilidade de uma interpretação ousada: A ciência não é um produto da modernidade, mas da antiguidade grega. O nascimento da ciência não é distinto do nascimento da filosofia. Para Heisenberg, a ciência representa uma continuação da filosofia. As conquistas dos tempos modernos, de Newton e de seus sucessores, apareceram-me como continuação imediata da obra em que tinham trabalhado matemáticos e filósofos gregos; o desenvolvimento completo da ciência parecia-me um todo único, e não me passou pela cabeça a ideia de considerar a ciência e a técnica como um mundo radicalmente diferente do da filosofia de Pitágoras ou de Euclides. (HEISENBERG, 1962, p. 57). Quais são, todavia, as teses filosóficas que inevitavelmente marcaram o empreendimento científico? Um dospressupostos transcendentais que perpassam a história da ciência moderna é o atomismo de Leucipo e Demócrito: A Física Nuclear é um dos mais novos desenvolvimentos da ciência natural. Mas a concepção de estrutura atômica da matéria – de que existem partículas elementares, unidades indivisíveis, que são os blocos de construção de toda matéria – foi sugerida há 2.500 anos pelos antigos filósofos gregos. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 625 Qualquer um que desejar compreender a teoria atômica moderna deverá estudar a história do conceito de átomo. (HEISENBERG, 1953, p. 5) 1 Por conta de citações como esta, devemos reconhecer em Heisenberg também a defesa de outra tese: O estudo da “História da Ciência” é fundamental não somente para o leigo, para o outsider que busca compreender a ciência, mas, sobretudo para o insider, para o físico, para aquele que deseja fazer ciência. De acordo com Heisenberg, o estudo do desenvolvimento histórico do conceito filosófico de átomo na Grécia antiga não é trivial. A compreensão de tal ideia filosófica e de sua evolução histórica se revela de grande importância para o entendimento dos fundamentos da física, mesmo de seus avanços mais recentes: Para se adquirir uma compreensão dos fundamentos da física atômica nós devemos seguir, passo a passo, as ideias que, dois mil e meio anos atrás, conduziram a filosofia natural à teoria atômica, e devemos então encontrar uma conexão com essas ideias fundamentais, mesmo nos avanços mais modernos da física atômica. (HEISENBERG. 1952, p. 96) A concepção filosófica atomista, portanto, permanecia sendo em sua época, na visão de Heisenberg, um dos fundamentos da física. Outro pressuposto transcendentalda ciência seria oracionalismo matemático de Pitágoras e de Platão, de acordo com o qual a estrutura do mundo físico é matemática, de modo que as investigações matemáticas são instrumentos fecundos na dissecação das estruturas elementares da natureza: Existem, especificamente, duas ideias da antiga filosofia grega que na atualidade ainda determinam o curso da ciência e que são, por essa razão, de especial interesse para nós: a convicção de que a matéria consiste de pequenas unidades indivisíveis, os átomos, e a crença na força das estruturas matemáticas. (HEISENBERG, 1952, p.53). Heisenberg, portanto, desloca o nascimento da ciência para a antiguidade grega. O físico filósofo alemão enfatiza duas teses filosóficas como sendo as origens da ciência natural. Foi na Grécia Antiga, entre os filósofos da natureza, que tais teses foram desenvolvidas: 1 Heisenberg, portanto, propõe uma interpretação da história da ciência, de acordo com a qual o nascimento da filosofia natural na Grécia antiga é, concomitantemente, o nascimento da investigação científica. Também para Erwin Schrödinger, a origem da ciência moderna encontra-se não na Europa dos modernos, mas na Grécia dos antigos: “(...) a teoria quântica remonta há 24 séculos, a Leucipo e Demócrito. Eles inventaram a primeira descontinuidade – átomos isolados implantados no espaço vazio. A nossa noção de partícula elementar descende historicamente da noção que eles tinham do átomo, e conceitualmente deriva também da sua noção do átomo. Nós limitamo-nos simplesmente a segui-la. Os atomistas e suas idéias não surgiram subitamente do nada (...) o atomismo dos filósofos gregoscertamente não é uma conjectura sem fundamento, mas sim o resultado de uma observação cuidadosa. (SCHRÖDINGER, 1996, p. 134)”. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 626 O grande rio da ciência, que atravessa a nossa época, brota de duas fontes situadas no terreno da antiga filosofia, e, embora mais tarde muitos outros afluentes tenham desaguado neste rio, contribuindo para engrossar o seu fecundo caudal, a sua origem é, não obstante, sempre claramente reconhecível. (HEISENBERG, 1962, p. 62) A ciência brotou de duas fontes: o atomismo de Leucipo e Demócrito e o racionalismo matemático de Pitágoras e do Platão doTimeu. Tal compreensão histórica é fundamental. Todavia, a história da ciência, sozinha, não é capaz de nos fornecer os elementos necessários para compreender os fundamentos da ciência e, deste modo, fazer ciência de alto nível. É necessária, também, a filosofia da ciência. Heisenberg considerou a relação entre filosofia e ciência como sendo de fundamental importância para o aprofundamento de nossa compreensão, tanto da natureza, quanto da própria atividade científica. Para Heisenberg há pelo menos três fundamentos filosóficos da ciência – dois dos quais são legados pelos gregos, como vimos. O terceiro fundamento seria kantiano. Na obra Schrödinger e Heisenberg: A Física além do senso comum, Antônio F. R. de Toledo Piza nos narra um episódio em que Heisenberg participa de uma intensa discussão acerca da física alemã. Tendo sido “atacado” em artigo publicado, Heisenberg se vê na necessidade de respondê-lo, e na sua resposta, presenteia-nos de modo enfático com a sua concepção acerca da importância da filosofia kantiana para o desenvolvimento das ciências naturais. Nas palavras de Piza: “Heisenberg escreve uma resposta a esse artigo em que se refere à Física Teórica como continuação da grande tradição filosófica que Kant havia iniciado com pesquisas de exploração teórica das bases das Ciências Naturais”(PIZA. 2007, p. 140-141). Heisenberg considera de suma importância “a exploração teórica das bases das Ciências Naturais”. Não se trata da exploração do funcionamento da natureza, mas do funcionamento da ciência. Tal investigação, portanto, não é uma ciência particular, mas uma filosofia da ciência. Se a ciência se torna, na cultura ocidental moderna, o principal instrumento para a compreensão do mundo, deve haver, antes de tudo, uma ciência da ciência, para que possamos compreender, em primeiro lugar, este instrumento. Quais os limites da prática científica? Como o conhecimento científico é produzido? Qual a natureza dos conhecimentos científicos? Sem entendermos o funcionamento interno da ciência, sua estrutura, seu alcance, seus limites, não poderemos utilizá-la efetivamente na tentativa de compreendermos o mundo. Heisenberg identifica em Kant o germe moderno de tais reflexões. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 627 Heisenberg concebe as investigações kantianas como fundamentais para a instauração da ciência moderna principalmente por conta do conceito kantiano de “coisa em si”. Há pelo menos dois modos de entendermos a atividade científica. Primeiro, concebendo que a ciência descreve o mundo, expondo as estruturas da “coisa em si”. Neste sentido, a ciência é um discurso explicativo acerca da natureza. Segundo, concebendo que a ciência descreve o modo como o homem compreende o mundo. Sendo assim, a ciência é um discurso acerca da relação entre o entendimento e a natureza, logo, uma representação, ou imagem. Para Heisenberg, a passagem do primeiro para o segundo modo de compreensão caracteriza a física teórica moderna. O conceito kantiano de “coisa em si” é fundamental neste processo: O físico atômico teve por isso que resignar-se a considerar a sua ciência apenas como um elo da cadeia infinita dos contatos do homem com a natureza e que aceitar que esta sua ciência não pode falar simplesmente da natureza “em si”. (HEISENBERG. 1981, p. 14) Chegamos então ao seguinte cenário: - Heisenberg considera que história e filosofia são indispensáveis, não somente para se estudar a ciência de fora, pelo outsider, mas para insider na tarefa de produzi-la. - Três são as teses filosóficas fundamentais para a ciência: o materialismo atomista, o racionalismo matemático, a atitude kantiana. Quero focar nas duas primeiras. Tratar exclusivamente de como Heisenberg compreendeu a presença do materialismo atomista e do racionalismo matemático na física contemporânea. Em A Parte e o Todo e Física e Filosofia, Heisenberg narra a transição de seu pensamento, de uma filosofia lógico-positivista e materialista, para uma nova visão, na qual a matéria perde em importância ontológica, deixando de ser vista como o fundamento de toda realidade, e o experimentalismo radical perde em importância metodológica, deixando de ser encarado como via obrigatória para o conhecimento científico. Um episódio fundamental nesse processo foi uma conversa travada com Einstein. Também Einstein havia sido bastante influenciado pela filosofia de Ernst Mach em seu trabalho científico, como na elaboração da relatividade. Segundo Ernst Mach, poderíamos considerar “real” somente o que pudéssemos de fato observar. Deste modo, para Mach, os átomos eram apenas modelos representacionais de descrição da natureza, mas não existiam de verdade, pois nunca ninguém vê um átomo. O que vemos, no máximo, são seus rastros em detectores, como câmeras de gás, ou percebemos que os fenômenos físicos e químicos com os quais nos deparamos encontram explicação no Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 628 modelo atômico. Heisenberg admite que, em um primeiro momento foi influenciado pela filosofia positivista de Mach, pois defendia que somente grandezas observáveis poderiam ser levadas em conta por teorias científicas. Einstein teria dito a Heisenberg que “é um grande erro tentar fundamentar uma teoria apenas em grandezas observáveis. Na realidade dá-se justamente o inverso. É a teoria que decide o que podemos observar” (HEISENBERG. 1996, p. 77-85). Em A Parte e o Todo Heisenberg revela que a filosofia formalista de Einstein, distante do positivismo de Mach, foi influência fundamental em seus trabalhos em física, inclusive na formulação de seu princípio de incerteza. Buscamos enfatizar de modo claro e incisivo que este compromisso filosófico com o racionalismo matemático presente no pensamento de Einstein, é algo marcante também em Heisenberg, que é racionalista (aqui, usarei o termo formalismo puro para designar o racionalismo peculiar de Heisenberg) em dois níveis: epistemológico e ontológico. No nível epistemológico Heisenberg é formalista porque defende a teoria pura como último recurso para a compreensão do real em casos especiais como a mecânica quântica. Quanto ao nível ontológico, Heisenberg é formalista na medida em que recusa o materialismo como concepção científica ultrapassada e ingênua. Os tecidos elementares do mundo não são compostos de matéria, mas de estruturas abstratas que, embora não possam ser observadas, podem ser descritas pela matemática: Se a energia se converte em matéria, isso acontece porque a energia adota a forma equivalente de partículas elementares. Esta forma aparece como a representação de um grupo de transformação, tal como a rotação no espaço ou a transformação de Lorentz. (...) elas são as entidades menores, autênticos blocos construtores da matéria, ou são elas meramente representações matemáticas dos grupos de simetria pela qual a matéria é construída? (HEISENBERG. 1990, p. 47). Não restam dúvidas de que Heisenberg considera as estruturas materiais como os eventos produzidos pelas relações matemáticas fundamentais: Sinto-me fascinado pela ideia de que a simetria seja algo muito mais fundamental do que a partícula em si. Isso se enquadra no espírito da teoria quântica, tal como Bohr sempre a concebeu. Também se enquadra na filosofia de Platão... (HEISENBERG. 1996, p. 193). Einstein e Heisenberg não somente consideram que certos inobserváveis possam ser entidades físicas reais, como defendem claramente que os eventos e estruturas físicas elementares talvez sejam fundamentalmente inobserváveis. Enquanto para o empirista, por Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 629 exemplo, van Fraassen o que pode ser observado determina o que pode ser teorizado, para Einstein e Heisenberg, é a teoria que determina o que pode ser observado. Somente estabelecendo, antes de tudo, alguns conceitos e estruturas formais, é que temos um “modelo de mundo”. As observações em laboratório não são mensurações do mundo, mas mensurações de certas propriedades destes “modelos de mundo” previstos pelas teorias. Outro aspecto ainda mais forte do formalismo de Heisenberg é o seu anti-materialismo. A matéria é apenas o produto de relações matemáticas ontologicamente fundamentais. A matéria é observável, mas tais relações matemáticas fundamentais são inobserváveis. Podemos “contemplá-las” por meio do formalismo das teorias, mas não “mensurá-las” por meio de métodos experimentais empíricos. Em A Parte e o Todo Heisenberg escreveu um capitulo chamado “Física atômica e filosofia platônica”. Nele, o autor narra que, desde a mocidade, muito o impressionara o Timeu de Platão, com a idéia de que o cerne da realidade, sua camada mais profunda, onde toda a natureza é fecundada, é um “mundo” abstrato de conceitos matemáticos. Para Heisenberg, nesta obra, Platão não está defendendo que realmente a natureza é constituída por aquelas determinadas formas geométricas, tetraedros, octaedros, enfim. Mas, segundo Heisenberg, o essencial da obra é que Platão está propondo uma geometrização da física; está, já naquela época, intuindo seu âmago abstrato, indo por outro viés que não o atomismo de Leucipo e Demócrito. Até então acreditávamos na antiga representação de Demócrito, que pode ser resumida por “no princípio era a partícula”. Havíamos presumido que a matéria visível compunha-se de unidades menores; se continuássemos a dividir estas por tempo suficiente, chegaríamos às unidades mais diminutas, que Demócrito havia chamado de “átomos” e que os físicos modernos chamavam de “partículas elementares”, por exemplo, prótons e nêutrons. Mas, talvez toda essa filosofia fosse falsa. (…) Talvez a matéria pudesse ser ainda mais dividida, até finalmente já não ser uma verdadeira divisão de uma partícula, e sim uma transformação de energia em matéria, até as partes já não serem menores do que o todo de que foram separadas. Mas o que haveria no início? Uma lei física, a matemática, a simetria? No início era a simetria! Isso soava como o Timeu de Platão (...). As partículas elementares incorporam simetrias; são suas representações mais simples e, no entanto, são apenas conseqüências delas. (HEISENBERG. 1996, p. 157-158) Nessa linha de raciocínio, os átomos são de fato entidades da natureza, mas não enquanto partículas elementares, e sim, como fenômenos que emergem de um plano profundo de forças e campos, os quais, por sua vez, emergem de leis, que no final das contas, Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 630 são relações, regulações, bases matemáticas abstratas sem as quais a matéria não poderia existir e se organizar e desenvolver. A questão que se põe, então, de modo irresistível, é: para Heisenberg, a física contemporânea resgata o idealismo platônico como a filosofia da natureza mais viável para a ciência? Antes de tudo, devemos esclarecer o que Heisenberg entendia por “idealismo platônico”: (...) em Platão, no limite mais baixo das séries das estruturas materiais, não existe efetivamente algo material, mas uma forma matemática, se preferirdes, uma construção intelectual. A raiz última a partir da qual o mundo pode ser uniformemente inteligível é, segundo Platão, a simetria matemática, a imagem, a ideia; esse conceito é, portanto, denominado idealismo. (HEISENBERG. 2000, p. 12) Parece-nos que, apesar do fato de defender que as estruturas matemáticas são as “ideias de matéria”, o idealismo platônico a que Heisenberg se refere não é do tipo que pode ser inferido de A República, estando, deste modo, mais próximo da visão apresentada por Platão no Timeu. Todavia, mesmo o “idealismo” do Timeu não é considerado de forma literal por Heisenberg, mas apenas como uma metáfora que nos indica a precedência, no escopo da nova física, das “estruturas matemáticas” em detrimento das “estruturas materiais”. Neste sentido, poderíamos responder de modo afirmativo à questão posta acima, e afirmar que a física contemporânea, para Heisenberg, “está próxima” do idealismo platônico: Independente da decisão última podemos afirmar agora que a resposta final estará mais próxima dos conceitos filosóficos expressos, por exemplo, no “Timeu” de Platão do que dos antigos materialistas(HEISENBERG. 2000, p. 26). Como vimos anteriormente, Heisenberg destaca que o materialismo atomista e o racionalismo matemático são teses filosóficas centrais na história da ciência. Não somente representam o autêntico início do pensamento científico, como estiveram presente ao longo de toda a trajetória da ciência. O quão especial Heisenberg considerava que era o momento no qual a física se encontrou desde o desenvolvimento da mecânica quântica, podemos notar pelo fato que, pela primeira vez na história da ciência natural o materialismo atomista revelar-se-ia ingênuo, incompleto, devendo ser substituído por uma nova física, mais próxima do idealismo platônico. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 631 Enfim, parece que podemos sintetizar a filosofia da física de Heisenberg por meio dos seguintes tópicos: - A presença da metafísica na ciência é inevitável; as tendências centrais da ciência são pressupostos transcendentais. Não se fez ciência até hoje, sem antes ter-se assumido de antemão alguma tese filosófica. - Ao negar o materialismo em detrimento do idealismo matemático, Heisenberg buscou superar também o experimentalismo. Heisenberg não nega a importância da prática experimental para a ciência, mas sua ênfase claramente é dirigida à especulação pura, ou, à teoria. Em certos casos limites, onde nenhuma experiência é possível, somente a teoria pode apreender algo do real. - O que chamamos de formalismo matemático no caso de Heisenberg não é somente uma postura epistêmica. A matemática não é somente o melhor instrumento de que dispomos para a compreensão da natureza. Há também um compromisso ontológico. Heisenberg acena diversas vezes para o fato de que aquilo que é ontologicamente fundamental, a simetria, ou forma pura, não é material, é de natureza matemática. Os entes fundamentais são abstratos, revelando uma ordem central no real. Entretanto, as teorias não revelam a ordem central como ela é, mas apenas como nós a entendemos, porque entre a ordem matemática que organiza o real e a manipulação matemática teórica, há uma lacuna que somente em raríssimas ocasiões tende a zero. No pensamento de Heisenberg há uma profunda relação entre ontologia e lógica. As proposições lógicas se referem a fatos do mundo. O mundo a que a lógica clássica se refere é o mundo macroscópico, da experiência imediata e da física clássica, o mundo material. A mecânica quântica revela um nível de realidade até então desconhecido, onde fenômenos desconcertantes são corriqueiros. O mundo clássico da experiência ordinária e o mundo quântico subatômico em nada se assemelham. Uma vez que a mecânica quântica, na visão de Heisenberg, é incompatível com a ontologia materialista do mundo clássico, a lógica clássica deixa de “funcionar”. Se a mecânica quântica implica uma nova ontologia, deve ser elaborada também uma nova lógica. As investigações de Heisenberg, acerca da necessidade de uma lógica quântica, contudo, deverão ser detalhadas em outra ocasião. Referências Bibliográfica 1.1. Obras de Werner Heisenberg Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 632 HEISENBERG, W. A Imagem da Natureza na Física Moderna. Lisboa: Livros do Brasil, 1981. _____. A ordenação da realidade: 1942. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. _____. A parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política.Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. _____. Física e filosofia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987. _____. Más Allá de La Física. Madri: Editorial Católica, S. A., 1974. _____. Nuclear Physics. London: Methuen & CO. LTD.,1953. _____. Páginas de reflexão e auto-retrato. Lisboa: Gradiva, 1990. _____. Philosophic problems of nuclear science. New York: Philosophical Library, 1952. 1.2. Bibliografiasecundária BACHELARD, G. A experiência do espaço na física contemporânea. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010. 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Mas também ficaram ao cargo dos jesuítas os cuidados com a saúde e, nesse sentido, protagonizaram o papel de médicos de almas e corpos. No quadro das enfermidades, as boticas jesuítas, locais apropriados e dedicados à confecção de medicamentos, revelaram-se importante recurso para amenizar o cotidiano colonial, envolvido por epidemias, doenças e precariedade. A partir disso, o objetivo desta comunicação é apresentar a contribuição das boticas jesuítas no contexto do desenvolvimento de cuidados, conhecimentos e processos de cura no Brasil do período colonial. Palavras-chave: Boticas Jesuítas, doenças e Brasil colonial. Abstract: Upon arriving in Brazil in 1549, the Jesuits were faced with a reality quite different from that found in Europe and largely hostile to the establishment of the colonizer. Throughout the colonial period, had the task of carrying forward the process of catechesis and conversion of indigenous people and take care of the education of the colonial population. But also the position of the Jesuits were the health care and, accordingly, carried out the role of physicians of souls and bodies. In the context of disease, the Jesuits, the pharmacies, appropriate locations and dedicated to making medicines have proved important resource to ease the daily colonial surrounded by epidemics, disease and insecurity. From this, the objective of this communication is to present the contribution of pharmacies Jesuits in the development of care, knowledge and healing processes in colonial Brazil. Keywords: Jesuits pharmacies, diseases and colonial Brazil. O início da Época Moderna foi marcado, entre outros acontecimentos relevantes, pelo esforço da Igreja Católica, no quadro mais amplo do contexto reformista, por uma redefinição de dogmas e restauração da disciplina 1 . O Concílio de Trento, realizado entre os anos de 1545 e 1563, desempenhou papel fundamental nesse processo ao indicar a existência de maiores 1 Ver DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. Trad. João Pedro Mendes. São Paulo: Pioneira, 1989. CHAUNU, Pierre. O tempo das Reformas. Lisboa: edições 70, 1993. 2v. E, MULLET, Michael. A Contra- Reforma. Lisboa: Gradiva, 1985. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 637 chances de êxito na medida em que se buscou produzir na população europeia daqueles tempos comportamentos melhores dos que aqueles de momentos anteriores. Nesse contexto, os membros da Companhia de Jesus se destacaram como grandes protagonistas. Pregadores de um novo tipo de catolicismo, caracterizado pela renovação, pelo combate e pelo espírito expansionista, a Ordem junto com a Inquisição se viram fortalecidas através do Concílio. A prática de missionação e o trabalho pedagógico forjaram as bases estruturadoras da Companhia de Jesus, que viu o corpo de seus membros aumentar em uma escala incomparável com o passar do tempo. Se em 1556, após 16 anos de sua fundação, “a Companhia contava com 1150 membros, no intervalo de 20 anos, em 1580, passou a contar com mais de 5000 homens”. (CASTELNAU-L`ESTOILE, 2006) Com o propósito de expandir a fé católica, os missionários encontravam-se dispersos pelo mundo, e não apenas restringidos à Europa. Ásia, África e América passaram a fazer parte do seu campo de atuação e desde fins do século XVI, os jesuítas fizeram parte do processo colonizador de regiões ligadas tanto ao Império português, quanto espanhol. A identidade jesuíta, caracterizada pelo “modo de fazer”, resultante da longa duração de formação com estudos intelectuais e exercícios espirituais, buscou consolidar a unidade do corpo dos membros dispersos. Desse modo, os jesuítas no universo ultramarino se destacaram por uma atuação diversificada, que levou em consideração, e mesmo tolerou peculiaridades locais que não ofendessem o cristianismo, mas também desempenharam atividades para além daquelas relacionadas às esferas missionária e educacional. Na América portuguesa, a Igreja marcou lugar por meio da associação com a Coroa na empresa colonial, sendo a Companhia de Jesus um dos braços de atuação desde 1549, quando padre Nóbrega junto de outros jesuítas desembarcou em Salvador na companhia de Tomé de Souza, para o cargo de Governador geral. Enquanto homens inseridos no mundo colonial, e, sobretudo para atuar nele, os jesuítas não mediram esforços para se relacionar e pensar a sociedade colonial, marcando rigidamente o seu espaço nela. Os primeiros relatos da vida cotidiana na colônia expõem, além da hostilidade do clima e da fauna, o estado de penúria a que estavam expostos seus moradores. Nóbrega relatou ter encontrado uns “quarenta ou cinqüenta moradores” em condições marcadas pela precariedade, não havendo “óleos de ungir, nem para baptisar”. (NÓBREGA, 1988) Somou-se a isso o estado religioso da população colonial e os péssimos exemplos dados pelo próprio clero paroquial, envolvido, não raras vezes, em mancebias e atividades pouco ou quase nada dignas de religiosos. Em carta de 1559 foi colocada a questão: Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 638 assim está agora a terra nestes termos que, si contarem todas as casas d´esta terra, todas acharão cheias de peccados mortaes, cheias de adultérios, fornicações, incestos, e abominações, em tanto que me deito a cuidar si tem Christo algum limpo nesta terra, e escassamente se offerece um ou dous que guardem bem seu estado, ao menos sem peccado publico. (NÓBREGA, 1988) De modo semelhante, o choque cultural com as populações indígenas causou nos jesuítas a impressão de que a propagação do cristianismo nestas terras seria tarefa árdua. A cultura indígena mostrava-se tão distante dos modelos compreendidos pela cristandade que beirava o incompreensível. O indígena não poderia ser comparado aos padrões culturais ou corporais já conhecidos e como consequência disso foi conferida a noção de in-civilização, caracterizada pela animalidade de seus costumes como, por exemplo, o incesto, o canibalismo e a nudez. Nóbrega chegou a afirmar que os povos aqui encontrados não passavam de cães em se comerem, e matarem e são porcos, por vícios, e na maneira de se tratarem, e esta deve ser a razão, por que alguns padres, que do reino vieram, os vejo resfriados, porque vinham cuidando de converter a todo o Brasil em uma hora e vêm-se que não podem converter em um anno por sua rudeza e bestialidade. (NÓBREGA, 1988) Para além dos hábitos da população colonial e do choque cultural com os indígenas, a situação dos serviços de saúde foi outro ponto que mereceu a atenção dos jesuítas. A atuação nesse campo, além de importante, foi igualmente marcante. Padre José de Anchieta, conhecido por seu incansável desempenho na tarefa catequética, pela confecção de gramáticas e peças teatrais se destacou também pelo exercício do ofício de enfermeiro, em função das circunstâncias. (LEITE, 1953) Contudo, passado os primeiros anos depois, muitos irmãos se dedicaram aos serviços de enfermagem como ocupação própria, quer no tratamento dos padres e alunos dos Colégios e Seminários, quer dos índios nas Aldeias e dos escravos nas Fazendas, quer do público em geral nas guerras e invasões holandesas, quer ainda de doentes particulares, - e isto, sempre, em qualquer tempo que batiam a porta dos Colégios, nas cidades e vilas. (LEITE, 1956) O estado de precariedade em que se encontrava a colônia em relação aos serviços de saúde obrigou os jesuítas a assumir grandes desafios, atuando na observação dos sintomas e evolução das doenças e buscando aplicar a terapêutica para curá-las. Isso, pelo fato de serem aqui escassos os médicos formados nas instituições de ensino europeias, ao menos até o Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 639 século XVIII. Adaptando-se a realidade colonial, jesuítas como o já citado José de Anchieta e os irmãos João Gonçalves e Gregório Serrão aprenderam, no Brasil quinhentista, o ofício das artes médicas na prática, cumprindo, desse modo, a autorização que a Ordem possuía desde 1576, dada pelo Papa Gregório XIII, para prosseguir com a prática médica em locais onde não os houvesse. O avanço da colonização permitiu aos poucos o desbravamento do território, a conquista de homens e espaços. Nas primeiras décadas do quinhentos, após iniciado o processo de efetivação da colonização, fundaram-se núcleos populacionais que se caracterizaram pela situação de isolamento em face da imensidão do território. A descontiguidade característica da vida na colônia se fez presente nas representações cartográficas, marcando um mundo que se movia lentamente por meio de limites geográficos que a natureza brutalizada e desconhecia impunha. (NOVAIS; SOUZA, 1997) A esse cenário, somava-se o quadro de doenças e epidemias as quais estiveram expostas a população colonial. Surtos epidêmicos de gripe, “prioris” (pleuris, espécie de pneumonia), sarampo (ampollas), febre amarela e varíola (bexigas/doença maligna), além de doenças como as câmaras de sangue (disenteria) e as sexualmente transmissíveis, como a sífilis e a gonorréia, traziam consigo uma situação de desorganização social à vida dos colonos, quando não desencadeavam a morte em grande quantidade, o que afetava diretamente a empreitada colonial, pela carência de braços para o trabalho nas lavouras, proporcionando períodos de fome que colaboravam ainda mais para a situação de desnutrição. Em face desse quadro, que perdurou por todo o período colonial, os jesuítas estabeleceram estratégias na busca de conciliar a missão pedagógico-evangelizadora com a necessidade de sobrevivência. Nesse empreendimento, o contato permanente com as populações indígenas foi essencial, pois permitiu que os jesuítas tomassem conhecimento das propriedades terapêuticas das plantas nativas. E, dessa forma, unissem o saber que já possuíam com o que foi aprendido através da interação com os índios, aclimatando e plantando ervas de efeitos curativos. A resultante desse processo foi à manipulação e confecção de medicamentos por meio das boticas existentes nos colégios jesuítas. Cabe ressaltar que os medicamentos vindos do Reino estiveram, inúmeras vezes, comprometidos pelo longo tempo de viagem, bem como por conta da pirataria e pelas dificuldades de navegação, que impediram diversas vezes a vinda de navios portugueses. Em alguns casos, quando os medicamentos chegavam à colônia, a demora na liberação da alfândega atrelada ao longo trajeto até seu destino final e às péssimas condições de transporte acabavam por colocar em risco a qualidade dos mesmos. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 640 Da manipulação de ervas, produtos animais e minerais resultaram medicamentos para uma variedade grande de males que acometiam à vida cotidiana dos colonos. O jesuíta Fernão Cardim descreveu os efeitos terapêuticos do que chamou de “ervas que servem para mezinhas”, destacando a utilização da igpecacóaya (ipecacuanha), erva proveitosa no tratamento das câmaras de sangue (disenteria acompanhada de sangramento), além de outras como a erva santa indicada para feridas, catarros, além de doenças da cabeça, estômago e asmáticos, a sobaúra apropriada para “chagas velhas, que já não têm outro remédio” e a goembegoaçú, usada no tratamento do “fluxo de sangue de mulheres”. (CARDIM, 1980) As boticas jesuítas funcionaram como uma espécie de oficina ou laboratório e estiveram localizadas em dependências especiais dos colégios, anexo às enfermarias. Lá foram guardados e preparados medicamentos como triagas, pós, unguentos, emplastros, xaropes, tinturas e outros, que se encontravam disponibilizados de forma gratuita ao público em geral, com exceção dos que possuíam melhores condições financeiras e poderiam pagar. Nesse caso, a renda era revertida para a botica do próprio colégio, fato indicativo de que houve a preocupação com o constante provimento desses espaços com tudo o que fosse necessário para o seu bom desempenho, afinal essas boticas eram um dos poucos recursos da população colonial. A botica do Colégio da Bahia “era ampla, ao rés do chão (Terreiro de Jesus), no lugar precisamente onde é hoje a entrada da Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia”, mas em todos os grandes colégios, as boticas tiveram lugar preponderante. (LEITE, 1956) Estiveram ainda todas bem equipadas. No inventário de 1760, do Colégio do Maranhão, consta que em sua botica havia “quatro estantes onde se alinhavam os recipientes constituídos por vasos de barro e redomas de vidro (...) tinha mais [de] 400, todos com os remédios necessários para aquela terra, os quais importariam 400$000 reis”. (LEITE, 1953) Além de possuir um total de 35 volumes de Medicina e Botica, dentre os quais Serafim Leite sinalizou para a existência de obras de Curvo de Semedo como Observações, Atalaya e Polianteia; e de Ferreira, Luz da Cirurgia; Luz da Medicina; e a Pharmacopeia Lusitana. Sem contar a variedade de instrumentos como fornalhas, estufas, alambiques, vidros de tamanhos variados, bacias, balanças, entre outros. (LEITE, 1953) Existe também para o mesmo Colégio do Maranhão referência a existência de uma farmácia flutuante, mais conhecida como Botica do Mar, responsável pelo abastecimento dos lugares da costa, desde o Maranhão a Belém do Pará. (LEITE, 1956) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 641 O manuscrito do catálogo do Colégio jesuítico de Santo Alexandre, localizado em Belém do Grão-Pará, trouxe a notícia de que sua botica achava-se junto com a rouparia, por falta de lugar, e que neste local se encontravam além de caixas e baús, “bacias para lavar os pés e sangrias”, almofariz, alambiques, “estantes antigas, com vidros, vasos, bocetos e balança; alguns medicamentos antigos não deste ano [1720]”. (MARTINS, 2009) Para o caso da província jesuítica do Paraguai, estudada por Cristina Deckmann Fleck, datam do ano de 1630 notícias referentes às boticas, onde poderiam ser encontrados “produtos, infusões, bálsamos e sais lá preparados”. (FLECK, 2010) Os medicamentos produzidos pelas boticas da Companhia de Jesus, como a Triaga Brasílica e a Pedra Infernal, ambos confeccionados na botica do Colégio da Bahia, ganharam o mundo, projetando a América portuguesa no cenário internacional de circulação de saberes e contribuindo para reforçar a rede de Colégios jesuítas espalhados pelo mundo. Da reunião dos saberes e medicamentos produzidos em cada Colégio jesuíta surgiu uma importante compilação intitulada Colecção de várias receitas e segredos particulares da nossa Companhia de Portugal, da Índia, de Macau e do Brasil. Compostas e experimentadas pelos melhores médicos e boticários mais celebres que tem havido nestas Partes. Aumentada com alguns índices e notícias muito curiosas e necessárias para a boa direção e acerto contra as enfermidades. Nesta obra, encontram-se os variados tipos de medicamentos produzidos nas boticas da Companhia de Jesus, permitindo-nos identificar as moléstias mais frequentes que assolavam o cotidiano das populações, bem como as formas de tratamento desenvolvidas. Para o caso da América portuguesa, temos que os medicamentos desenvolvidos destinavam-se, preferencialmente para a terapêutica das doenças de pele, a anemia e a sífilis. Entrementes, as boticas jesuítas também elaboraram medicamentos para enfermidades da pele 2; para doenças anêmicas 8; para males venéreos 7; eméticos ou vomitórios 7; purgantes 6; para febres e sezonismo 4; para enfermidades das senhoras 4; para chagas e feridas 3; para vermes intestinais 3; para tumores duros 3; para apoplexias 3; para paralisia 2; para histerismo 2; para lobinhos, verrugas e cancros (não malignos) 2; para doenças dos olhos 2; para dores de cabeça 2; e um específico para cada uma das seguintes enfermidades: do peito, coração, estômago, cólicas, disenterias, varíola ( remédio que se apresenta não como eficaz em todos os casos, mas útil), reumatismo, gota, hidropisia, epilepsia, escorbuto, insônia e mordeduras de cobras. (LEITE, 1956) Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 642 Intencionou-se com essa comunicação indicar, ainda que em linhas gerais, que a atividade das boticas jesuítas na colônia, além de intensa e grandiosa, foi também fundamental para a vida cotidiana de uma população que esteve, desde sempre, exposta ao isolamento, às intempéries climáticas, aos ataques de animais, a toda sorte de doenças e epidemias, além de períodos de fome, por vezes prolongado. Dedicando-se aos serviços de saúde, na qualidade de boticários, em função das circunstâncias e necessidades, os jesuítas desempenharam a função de médicos de almas e de corpos, desenvolvendo nesse contexto cuidados, conhecimentos e processos de cura no Brasil colonial. Referências Bibliográficas CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980. CASTELNAU-L`ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil 1580-1620. Tradução Ilka Stern Cohen. 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Lisboa: Gradiva, 1985. NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil. Tradução de João Ribeiro Fernandes. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1988. Fábio Freitas et al (orgs.). Anais do III Encontro Nacional de Pós-Graduandos em História das ciências – ENAPEHC 2013. Mariana: UFOP / UFMG, 2014. ISBN 978-85-62707-52-0 643 NOVAIS, Fernando A.; SOUZA, Laura de Mello e. (Orgs). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 644 ORGANIZAÇÃO, REALIZAÇÃO E APOIO......................................... Realização Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP Reitor: Marcone Jamilson Freitas Souza Vice-Reitora: Célia Maria Fernandes Nunes Apoio Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Reitor: Clélio Campolina Diniz Vice-reitor: Rocksane de Carvalho Norton Programa de Pós-Graduação em História da UFOP Coordenador: Marco Antônio Silveira Vice-coordenador: Fábio Duarte Joly Programa de Pós-Graduação em História da UFMG Coordenador: Kátia Gerab Baggio Vice-coordenador: José Newton Coelho Meneses Scientia – Grupo de Teoria e História da Ciência Coordenadores: Bernardo Jefferson de Oliveira Betânia Figueiredo Gonçalves Mauro L. L Condé Organização: Fábio Freitas, Felipe Daniel do Lago Godoi, Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa Ávila, Lucas de Melo Andrade, Paloma Porto Silva ISBN: 978-85-62707-52-0
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