Alexis Milonopoulos - Michel Foucault. Genealogia Anarqueologia e Pirotecnia

March 22, 2018 | Author: Alexis Milonopoulos | Category: Power (Social And Political), Michel Foucault, Discourse, Science, Truth


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michel foucault. genealogia, anarqueologia e pirotecnia.alexis milonopoulos O saber não é feito para compreender, é feito para cortar michel foucault Foucault aponta no seu curso intitulado Em Defesa da Sociedade, ministrado em 1976 no Collège de France uma distinção: os saberes foram cindidos em dois, os saberes totalitários, caracterizados por teorias totalitárias, envolventes e globais, sendo que a título de exemplo temos o marxismo e a psicanálise; e também os “saberes sujeitados”, que são “uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, saberes como saberes insuficientemente requeridos”1. A genealogia é de grande importância para a redescoberta desses saberes sujeitados, e por genealogia entende-se “o acoplamento dos conhecimentos locais e das memórias locais, acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais”2, negando a tirania dos discursos englobadores, as suas hierarquias e as vanguardas teóricas. Trata-se por meio da genealogia “de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretende filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns”3. O que está em questão, portanto, é uma insurreição dos saberes contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior da nossa sociedade. Discurso científico este que emerge no século XVIII, o século do disciplinamento dos saberes, quando ocorre, de um lado, a organização de cada 1 elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade na medida em que nega a possiblidade de vir a ser ciência. e é. as falhas que formaram o presente. seus abalos. escavando os basfond. pois. deixar-lhes o tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob sua guarda. o “escalonamento desses saberes assim disciplinados do interior. esperar vê-los surgir. portanto. ele é uma relação de força. visando dessujeitar os saberes históricos e tornálos livres. pois. o poder para Foucault não é algo que se dá. não ter pudor de ir procurá-las lá onde elas estão. formal e científico. precisamente por travar combate contra efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico. com o rosto do outro. ou seja. do ascetismo. na medida em que nega um devir-ciência. O genealogista necessita da história para conjurar a quimera da origem (. essencialmente. os erros.). Não deve ser tomado. as derrotas mal digeridas. a origem. se troca ou se retoma. capazes de oposição e luta contra a coerção de um discurso teórico. será. Buscar a proveniência possibilita enxergar os acidentes. ao contrário. da moral. suas surpresas. sua distribuição. do conhecimento não será. só existe em ato. as vacilantes vitórias. mas sim a proveniência (herkunft) e a emergência (entestehung). É preciso saber reconhecer os acontecimentos da história. máscaras enfim retiradas. como o trata a filosofia jurídico-política de centralidade do poder. como uma anticiência. como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo.saber como disciplina e. se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos. que dão conta dos atavismos e das hereditariedades”5. sua hierarquização recíproca numa espécie de campo global ou de disciplina global a que chamam precisamente a «ciência»”4. Apenas uma lembrança pertinente. o disparate. mas a exterioridade do acidente”6. sua intercomunicação. unitário. é agitar aquilo que 2 .. “Fazer a genealogia dos valores. A genealogia se configura. “é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o ser. negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história. do outro. pois. Locke e Rousseau. o que reprime. O objeto da genealogia não é. partir em busca de sua «origem». cujas figuras principais são Hobbes. O poder se exerce em rede. funciona em cadeia.. prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade. a partir dessas discursividades locais assim descritas. Trata-se de arriscar a destruição do sujeito de conhecimento na vontade. por meio da emergência as forças entram em cena. e a genealogia. Interessa aquilo que pode haver de irregular. operando totalizações. indefinidamente desdobrada. produz-se em um certo estado de forças e analisá-la é mostrar esse jogo de forças. enfim. donde. de saber”7. antes. Na genealogia. Em suma. com a discórdia entre elas. rachar aquilo que parece unido. não se apoiando mais em nenhuma constância. entendida por Foucault como um saber perspectivo. A emergência.parece imóvel. qualquer coisa de uso rigorosamente instrumental. desconcertar os conformes. seu próprio paradoxo até agora”10. A história para Foucault é. retoma a “história efetiva” descrita por Nietzsche em as Considerações Extemporâneas. os saberes dessujeitados que daí se desprendem”8. como diz Nietzsche. jamais mostram a necessidade de alguma coisa. a tática que faz intervir. pela introdução do acaso e do descontínuo. “não se trata mais de julgar nosso passado em nome de uma verdade que o nosso presente seria o único a deter. e parte do princípio de que a história genealogicamente dirigida “não tem por fim reencontrar as raízes de nossa identidade. aparece o seu lugar de afrontamento. através dos quais o impossível foi produzido e reengendra seu próprio escândalo. essa primeira pátria à qual os metafísicos prometem que nós retornaremos. a série de encadeamentos. ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam”9. de imprevisível em um processo histórico. “As histórias que faço não são explicativas. e não a origem. de modo que as forças em luta na história insurgem contra toda aquela tradição da história que tende a dissolver o acontecimento singular em uma continuidade ideal. seja para consolidarem-se ou para fugirem do desfalecimento. 3 . por sua vez. seja no âmbito de uma sociedade ou de uma cultura. de casual. A relação entre genealogia e história. mas. a história passa a ser “efetiva”. mas ao contrário. “a arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades locais. obstinar em dissipá-la. definida então como pesquisa da emergência e da procedência. o disparate. ela não pretende demarcar o território único de onde nós viemos. preocupando-se com o começo histórico das coisas. pelo menos em alguns de seus pontos. a produção da verdade na consciência dos indivíduos pelos procedimentos lógicos e experimentais. não há hegemonia sem a manifestação da verdade como um conjunto de procedimentos possíveis. pois. e mostra que há uma relação entre o exercício do poder e a manifestação da verdade. não há hegemonia – exercício do poder em grego – sem rituais ou formas de manifestação da verdade. é porque o poder ali não se encontra. é preciso que exista o verdadeiro. e enfim. O conhecimento. a verdade tem poder. Como se operam esses efeitos de poder e como eles se tornam possíveis são as perguntas as quais a anarqueologia se esforçará para responder. pelos quais se atualiza o que é colocado como verdadeiro. quero dizer. a importância e a necessidade para o exercício do poder de uma manifestação da verdade. como dito antes. um parênteses. No entanto. “Lá onde existe poder. ela está ligada a uma série de fenômenos e relações de poder. é muito fraco ou é incapaz de poder”11. senão. um deslocamento da noção de saber-poder. onde se quer mostrar efetivamente que é ali que reside o poder. onde é preciso que exista poder. de uma maneira indispensável. ou seja. não há exercício do poder sem alêthourgia. Não há exercício do poder. que toma forma de subjetividade. por sua vez. verbais ou não. que tem efeitos que vão além das relações imediatamente utilitárias do conhecimento. então. é importante salientar que o poder é contestável. e lá onde não existe o verdadeiro. Foucault apresenta a noção de governo pela verdade. Em resumo. segundo.Em Do governo dos vivos. Nessa relação de saber-poder e governo pela verdade insere-se a anarqueologia. uma das formas possíveis de alêthourgia. enunciar toda a série de efeitos de poder as quais e ao qual o saber está aliado. 4 . no sentido de que ele não é inevitável ou evidente. Foucault sublinha na primeira aula deste curso três temas: primeiro a relação entre manifestação da verdade e o exercício do poder. não é. a alêthourgia a manifestação da verdade que faz muito mais que permitir conhecer. ele não tem uma legitimidade própria. curso ministrado em 1980 também no Collège de France. uma atitude teórico-prática que preocupa-se em detectar. onde não existe manifestação do verdadeiro. essa manifestação de verdade na forma de subjetividade. de que o saber e a verdade jamais estarão próximos da violência. como sugere Foucault. retomam-se “as análises táticas e estratégicas num nível extraordinariamente baixo. frente a este duplo indissociável. pois. uma pluralidade de saberes. o fato de que o século XVIII foi atravessado por uma multiplicidade. compreendida. A genealogia e a anarqueologia se situam. 5 . que parece certo. é importante frisar que “as genealogias são mais precisamente insurreições”15. no limite como instrumental de guerra. à cruzada em nome do triunfo da razão empírica e científica.. que poder e saber estão diretamente implicados. que protagonizaram um imenso e múltiplo combate. situada no eixo conhecimento-verdade. da batalha. do afrontamento. O pensamento é tomado por Foucault como instrumental. da desordem e da guerra é reimplantada pelo Estado moderno. pois a verdade da verdade é a guerra. em um eixo discurso-poder ou. também em termos de guerra. seguindo Nietzsche. frente a essas batalhas que não cessam. que parece conforme. Frente a estes embates e combates. frente a este debate. nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” 14. portanto. que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber. em um eixo prática discursiva-enfrentamento de poder. Renúncia. cotidiano”12.) Temos antes que admitir que o poder produz saber. que parece previsível. “o conjunto dos processos através dos quais a verdade prevalece são os mecanismos de poder que lhe asseguram o poder”13. afinal.. suas exigências e seus interesses. e a verdade é tomada. àquilo que parece imóvel. (. todos vigorosos e ao mesmo tempo delicados. composto de múltiplas batalhas de uns contra os outros. e vão de encontro ao presunçoso empreendimento das Luzes. por conseqüência. Não se pode perder de vista. tão cara a qualquer organização do saber ocidental. afastam-se da história das ciências. E é justamente a partir do disciplinamento dos saberes ocorrido no decorrer do século XVIII. ínfimo. saber/poder. que a idéia.Por meio da combinação de genealogia e anarqueologia retoma-se o problema da guerra. de “toda uma tradição que deixa imaginar que só pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e que o saber só pode desenvolver-se fora das injunções. a Genealogia e a História” in Microfísica do poder. Foucault. Tradução de Maria Idem. Ibidem. Organização e Tradução Idem. Op. Notas 1 Foucault. Cit. Não sou a favor da destruição. Cit.. 1999. 12. “Nietzsche. p. Op. de que se possa fazer caírem os muros. 37. p. Ibidem. 217 e 218. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). para um cerco. 16. finalmente. 2 3 4 5 de Roberto Machado. 21.. uma destruição.. uma guerra. Um pirotécnico é inicialmente um geólogo. a tática que será empregada. Seria o ardil? O cerco? Seria a tocaia ou bem o ataque direto? O método. p. Uma vez tudo isto bem delimitado. Enviam-se informes de reconhecimento. Cit. Fabrico alguma coisa que serve. O que é fácil cavar? O que vai resistir? Observa de que maneira as fortalezas estão implantadas. Michel. Ele olha as camadas do terreno. mandam-se fazer relatórios. São Paulo: Martins Fontes. Ibidem. de que se possa avançar. p. pp. p. 37. p. Michel. 13. resta o experimental. 35. p. Op. finalmente. nada mais é que esta estratégia16. p. em seguida. Rio de Janeiro: Edições Graal. alocam-se vigias. 6 7 8 9 10 6 . constante e imutável! * Como você se definiria? Eu sou um pirotécnico. p. as dobras. 1979. Ermantina Galvão.E já constatara Pierre-Joseph Proudhon: nada é fixo. Perscruta os relevos que podem ser utilizados para esconder-se ou lançar-se de assalto. 20. Define-se. mas sou a favor de que se possa passar. as falhas. 13. o tatear. Tradução de Raquel Ramalhete.11 Foucault. entrevistas. RJ: Oliveira. Michel. p. p. 99. fulgurações da diferença” in Verve. 15 16 7 . Idem. Roger-Pol. Petrópolis. Foucault. 2007. Roger-Pol. v. 2006: pp. São Paulo: Graal. “Foucault. Droit. 2007. 279. p. Michel Foucault. p. 27. São Paulo: Nu-Sol. 12. 2008. Tradução de Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. 277. “Do Governo dos Vivos” in Verve. 96 13 14 Vozes. v. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Paulo: Nu-Sol. 69-70. p. 2006. Michel. Salete. 11. São Droit. 12 Coordenação editorial de Roberto Machado. Transcrição e tradução de Nildo Avelino.
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