Quatro teses sobre Políticas Ambientais ante os Constrangimentos daGlobalização Henri Acselrad Professor do IPPUR/UFRJ e pesquisador do CNPq Maio 2002 A literatura sobre política ambiental costuma registrar dois modelos conceituais: o modelo dito racional e o modelo dito realista. No primeiro, acredita-se que nenhum interesse influi na definição do problema ou na seleção de soluções. Considera-se que nenhum objetivo tem impacto na percepção dos problemas. A tecnologia e a ciência responderiam às necessidades das políticas, não constituindo-se como atores independentes dotados de agendas próprias. O modelo é linear e sua teoria social unidimensional – o governo otimizaria o benefício social a partir de causas claras e efeitos conhecidos. Ignoram-se contextos históricos, geográficos e culturais; homens e mulheres são “homo economicus” unidimensionais. O que escapa à racionalidade e à ordem é considerado apenas ruído. No segundo modelo, porém, o ruído pode ser justamente o que tem de mais explicativo. Este modelo, dito realista, ao contrário do primeiro, considera as motivações dos atores, a cultura, os diferentes tipos de conhecimentos e racionalidades em jogo. Trata-se de um modelo conceitual interativo e não-linear que define as condições sob as quais os diferentes tipos de conhecimento podem ter impactos relevantes sobre as políticas. Desenvolveremos a seguir um exercício analítico que procura discutir as políticas ambientais brasileiras contemporâneas à luz do modelo conceitual dito realista, procurando evidenciar os atores e interesses em jogo, suas razões e lógicas próprias. Destacaremos em particular quatro mecanismos que têm sido particularmente exacerbados pelo chamado processo de globalização: a “guerra ambiental” favorecida pela competição interlocal, as dimensões ambientais da inserção internacional da circulação de mercadorias, a intensificação dos riscos ambientais associados à desregulação e a acentuação das desigualdades socioambientais. 1. A desregulação socioambiental vem sendo estimulada pela crescente competição interlocal, colocando a necessidade de combater, de forma interinstitucional e articulada, a “guerra ambiental” do mesmo modo que a “guerra fiscal”. Sabemos que a noção de globalização é vaga e de usos múltiplos. Mas se há um processo que bem caracteriza as condições renovadas pelas quais se tem reproduzido o capitalismo através das reformas político-institucionais iniciadas nos anos 90, este é o da grande rapidez pela qual os capitais passaram a se deslocar no espaço da acumulação produtiva e financeira. Abertura de mercados, privatizações e desregulação foram mecanismos decisivos para liberar as grandes empresas transnacionais de constrangimentos que até há pouco eram impostos pelos sistemas políticos. Redefiniu-se a estrutura da propriedade interna ao próprio capital por fusões e absorções, mas redefiniram-se também as condições da relação do mesmo com a própria sociedade – em particular com os espaços sociais onde os níveis de organização haviam, de algum modo, levado ao estabelecimento de um corpo de normas de regulação social e ambiental. Ou seja, a abertura dos mercados permitiu aos capitais atuarem diretamente como agentes políticos, buscando alterar, por sua influência, políticas ambientais e trabalhistas. Mas, por que meios? Pelo que poderíamos chamar de chantagem da localização. Argüindo a sua capacidade de gerar empregos e receitas para os governos locais, as grandes empresas passaram a procurar obter vantagens fiscais e regulatórias como condição necessária para a alocação de seus investimentos. Por um lado, passaram a acionar os mecanismos de uma competição interlocal, movida pela disposição de cada localidade atrair para si os recursos de investimento disponíveis no mercado global. Por outro, passaram a dividir as sociedades locais, que se viram premidas, por um lado, pela necessidade de criar empregos e, por outro, pelas pressões das corporações que buscam vantagens locacionais – sob as formas da desregulação fiscal, social e ambiental. São dois os resultados desta chantagem de localização: por um lado, as normas sociais e ambientais das localidades que cedem às pressões empresariais são revogadas, atenuadas ou burladas; por outro, os movimentos sociais perdem parte de sua base de apoio, acusados que são de fazer exigências que dificultam a vinda de capitais com sua suposta dinamização da renda e do emprego. Nas localidades que não cedem, os governos locais e os movimentos serão responsabilizados por não oferecerem a “hospitalidade” exigida pelos capitais. Concretamente, utilizando-se de sua enorme liberdade de se localizar e se deslocalizar, as grandes corporações procuram, de um só golpe, desmontar o aparato regulatório social, urbano e ambiental, e enfraquecer as resistências da sociedade civil. Ali onde os governos locais cedem, o capital obtém as condições socioambientais que mais lhes favorecem; onde os governos locais não cedem, criam-se, pelo déficit de investimento, condições para o enfraquecimento da organização da sociedade, de modo a ali também preparar-se um futuro mais hospitaleiro para as corporações. A tão bem falada “competição” cuida de fazer com que as condições sociais e ambientais médias do território sejam suficientemente desreguladas para liberar os empreendimentos de qualquer compromisso social ou com a preservação do meio ambiente. Trata-se, portanto, de um conflito social em que o diferencial de mobilidade é decisivo - os agentes econômicos que são mais móveis – no caso, as grandes empresas - ganham poder sobre os atores sociais menos móveis - tais como sindicatos e governos locais. Eis aí os resultados nefastos da nova correlação de forças propiciada pelas reformas políticas efetuadas pelo neoliberalismo. Se as corporações usam a chantagem do emprego para fazer com que a sociedade aceite “empregos de baixa qualidade social e ambiental”, a resistência às suas pressões deverá ser desenvolvida por uma aliança que seja capaz de fazer valer a demanda por “empregos de alta qualidade social e ambiental”. Ou seja, uma aliança que reúna forças sintonizadas dos movimentos sindical e ambientalista. Mas, por outro lado, estas alianças não poderão se efetuar apenas ao nível das localidades sob pressão das corporações, mas também naquelas que possam vir a ser manipuladas pelas empresas para efetuar suas ameaças de deslocalização. É exemplar o caso recente da Aracruz, que, derrotada conjunturalmente por uma lei estadual na Assembléia do Espírito Santo, imediatamente direcionou seus planos de expansão da monocultura do eucalipto para as áreas deprimidas do norte do estado do Rio de Janeiro, procurando capturar o apoio tanto de governos como dos próprios movimentos sociais. Portanto, para resistir à “exportação da injustiça ambiental”, a organização da sociedade em rede interlocal é fundamental. No caso do eucalipto, por exemplo, foi essencial uma conjugação de ações entre a Rede Deserto Verde, do Espírito Santo - onde uma articulação de múltiplos sujeitos sociais já elabora uma crítica teórica e prática do modelo de desenvolvimento dominante na região – e os movimentos do norte do estado do Rio de do sul da Bahia 1 . Portanto, uma política ambiental democrática deverá criar limites à pressão empresarial por desregulação ambiental elaborando, à imagem de uma política de combate à guerra fiscal, instrumentos que limitem a capacidade das grandes empresas pressionarem os governos estaduais e municipais a flexibilizarem suas normas ambientais através da chantagem da criação de emprego e receitas fiscais. 2. O problema da integração viária, pertinente aos programas de transporte, desenvolvimento e competição internacional, tende a se resolver desde que apropriadamente enfrentada a questão da democratização da terra. A construção de vias de transporte não pode ser fator de desenvolvimento sem estar acompanhada de medidas que estimulem a própria disseminação espacial e social da atividade econômica, assegurando fluxos de cargas suficientes para rentabilizar as referidas vias. De nada vale para a maioria da população trabalhadora do país construírem-se vias de transporte, na expectativa de se verificarem seus efeitos indiretos no desenvolvimento, sem que se promova simultaneamente a distribuição da terra, a abertura de vicinais, programas de crédito e assistência técnica para o fortalecimento da agricultura familiar ao longo das áreas servidas pelas obras viárias, em acordo com as condições ambientais locais. Conforme já sustentava Rebouças no século passado, “toda empresa viária deve começar por ser uma empresa territorial, a solução do problema viário devendo começar com a solução do problema da terra” 2 . O problema da rentabilidade das vias de transporte estaria resolvido, portanto com a democratização do acesso à terra de suas margens. A democratização do acesso à terra e a seus recursos seria igualmente garantia de que tais vias não venham a servir exclusivamente à exploração predatória da madeira, à especulação fundiária e à grande monocultura químico-mecanizada de commodities. A montagem de uma infra- estrutura de transportes pensada à luz da integração ao mercado internacional e na perspectiva da atração de capitais internacionais para seu financiamento só serve a um modelo de desenvolvimento voltado para a exportação de recursos naturais e energia, recentemente revalorizado por setores do Banco Mundial, para os quais “alguns países 1 cf. Movimento Alerta contra o Deserto Verde, Os Danos Ambientais da Monocultura do Eucalipto no Espírito Santo e na Bahia, FASE/ES, Vitória, 2001, 127 p. 2 cf. A. Rebouças, 1938 apud O. J. A.Galvão, Comércio interestadual por vias internas e integração regional no Brasil. In: Anais do XXI Encontro Nacional de Economia. Belo Horizonte:ANPEC, 1993, p. 157–279. latino-americanos demonstraram como o sucesso do seu desenvolvimento foi sustentado precisamente pelas exportações de produtos baseados nas suas riquezas naturais” 3 . Na ótica da sustentabilidade democrática, ao contrário, a estratégia de desenvolvimento na área dos transportes deve adotar uma perspectiva integradora que articule o todo nacional, enquanto cenário permanente de lutas democratizantes, subordinando a inserção competitiva aos propósitos básicos da distribuição da terra e da renda, assim como da redução das desigualdades regionais. O meio ambiente, por sua vez, não deveria, nesta perspectiva, estar reduzido a sua expressão econômica, tal como o foi no estudo dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento durante o governo FHC, mas sim considerado como variável pertinente aos diferentes projetos socioculturais da sociedade: nem um simples momento da economia de materiais e de espaço, nem um simples discurso sobre novas oportunidades de negócios. Ao se considerar integralmente o modo como as intervenções espaciais do desenvolvimento interferirão no meio ambiente, estar-se-á, ao mesmo tempo, evidenciando o mapa da diversidade de projetos socioterritoriais e dando a tais projetos o tratamento democrático, como vias possíveis para a construção sustentável de uma justiça ambiental no País. 3. Para a prevenção dos desastres socioambientais, requer-se a adoção de um keynesianismo hidráulico e florestal Com as políticas neoliberais enfraquecendo a capacidade do Estado regular o movimento de mercadorias e de capitais, o governo FHC tendeu a exercer seu poder remanescente na atração de capitais, atuando nas áreas onde possuía ainda alguma autonomia: na oferta de isenções fiscais, na compressão salarial e na desregulação ambiental. Pudemos encontrar as marcas desta desregulamentação na ausência de políticas de prevenção aos incêndios florestais de Roraima - vinculados ao livre curso que foi dado aos grandes interesses pecuaristas e especulativos na região amazônica - assim como na ausência de políticas de prevenção da crise alimentar advinda com a mais que previsível seca de 1998 no Nordeste brasileiro. Estes foram exemplos emblemáticos do “declínio das políticas públicas”, onde propostas que se pretendiam regulatórias, como as da Agenda-21, foram inviabilizadas por um processo que podemos chamar de “despolitização das práticas de governo”. Pois em contexto de concentração monotemática na estabilidade monetária, uma boa pilotagem da taxa de câmbio e da taxa de juros resumiu a função governativa do Estado. Como afirmou o cientista político José Luis Fiori, “o esquema rígido da política deflacionária e o risco de instabilização especulativa eliminaram as possibilidades de qualquer política pública - a saúde do povo depende da saúde dos bancos” e não dos investimentos em saúde 4 . 3 cf. D. Ferranti – G. Perry, Recursos naturais e nova economia. O Globo, 24 out. 2001. 4 cf. J.L.Fiori, “A Governabilidade Democrática na Nova Ordem Econômica” in Novos Estudos Cebrap n. 43, setembro 1995, pp. 157-172. Na estratégia política dos dois governos Fernando Henrique Cardoso, a sustentabilidade do meio ambiente esteve dependendo fortemente da sustentabilidade dos bancos. Com o estreitamento da esfera pública e da capacidade de se fazer política, na vigência de tal estratégia, quem governou o meio ambiente foi, em grande medida, o mercado - pela exploração predatória das florestas, pelo derrame clandestino de efluentes nos rios e baías, pela intensificação da exportação de recursos naturais e energia barata para o mercado global. E o mercado tem se mostrado renitentemente incapaz de regular a complexidade dos processos socioecológicos, apenas restringindo-se a reduzir cada porção do espaço ao simples valor que o mesmo encerra para os atores centrais da reestruturação global. Portanto, se em 1998 o Nordeste viveu uma seca só comparável à de 1983, a despeito do alerta previdente e de alta tecnologia do Centro de Pesquisas do Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, é porque o modelo governamental de inserção passiva na mundialização supôs reduzir o desenvolvimento a um simples subproduto do que se entende por “plena vigência dos mecanismos de mercado”, ainda que ao prejuízo das dimensões tidas por subsidiárias como meio ambiente, educação, saúde etc. “Desenvolver”, nesta acepção, significa simplesmente impedir que os investidores especulativos, na metáfora ironicamente ecológica do falecido Roberto Campos, “precipitem-se num estouro da boiada”, demonstrando “coragem de carneiro e velocidade de lebre” 5 . Logo, do mesmo modo como vemos se perfilar, ante os olhos desalentados dos brasileiros, o tipo degradado de saúde e educação que o mercado nos pode oferecer, as secas e queimadas de 1998, assim como, em áreas urbanas, as seguidas descobertas de depósitos irregulares de resíduos industriais tóxicos e perigosos em áreas residenciais no ano 2001, ofereceram-nos os sinais muito claros da política ambiental que o mercado dita. Uma política ambiental democrática requer a garantia das condições ambientais essenciais à segurança alimentar da população e à preservação dos ecossistemas florestais de que dependem populações indígenas e extrativistas, bem como dos microclimas requeridos para a produção agrícola em regiões de fronteira. Nesse sentido, todos os esforços devem ser empreendidos para associar os conhecimento de alta tecnologia do sensoriamento remoto e do geoprocessamento aos conhecimentos dos pequenos produtores e das populações tradicionais para prevenir os efeitos sociais indesejáveis dos eventos climáticos previsíveis. Secas, queimadas e inundações podem ser assim evitados e/ou seus indesejados efeitos sociais minorados por programas de controle de cheias, de manutenção de canais e de irrigação, de garantia de transporte e de estocagem de alimentos; de apoio técnico e creditício à pequena produção agrícola em regiões de fronteira – o que configuraria medidas de um verdadeiro keynesianismo hidráulico e florestal. 4. Para fazer frente à injustiça ambiental crescente, cabe criar instâncias específicas de discussão e ação política para a construção de um meio ambiente que seja compartilhado de forma justa. 5 cf. Roberto Campos, “A Crise Russa e Nós”, Folha de SP, 20/9/1998, p.4 A injustiça ambiental caracteriza o modelo de desenvolvimento dominante no Brasil. Além das incertezas do desemprego, da desproteção social e da precarização do trabalho, a maioria da população brasileira encontra-se hoje exposta a fortes riscos ambientais, seja nos locais de trabalho, de moradia ou no ambiente em que transita. Os trabalhadores, minorias étnicas, populações tradicionais e grupos sociais mais vulneráveis estão expostos aos riscos decorrentes das substâncias perigosas, da falta de saneamento básico, de moradias em encostas perigosas e em beiras de cursos d´água sujeitos a enchentes, da proximidade de depósitos de lixo tóxico, ou do fato de viverem sobre gasodutos ou sob linhas de transmissão de eletricidade. Os grupos sociais de menor renda, em geral, são os que têm menor acesso ao ar puro, à água potável, ao saneamento básico e à segurança fundiária. As dinâmicas econômicas geram um processo de exclusão territorial e social que, nas cidades, leva à periferização de grande massa de trabalhadores e, no campo, por falta de expectativa em obter melhores condições de vida, leva ao êxodo para os grandes centros urbanos. As populações tradicionais de extrativistas e pequenos produtores que vivem nas regiões da fronteira de expansão das atividades capitalistas sofrem, por sua vez, as pressões do deslocamento compulsório de suas áreas de moradia e trabalho, perdendo o acesso à terra, às matas e aos rios, sendo expulsas por grandes projetos hidrelétricos, viários ou de exploração mineral, madeireira e agropecuária. Ou então têm as suas atividades de sobrevivência ameaçadas pela definição pouco democrática e pouco participativa dos limites e das condições de uso de unidades de conservação. Todas estas situações refletem um mesmo processo: a enorme concentração de poder na apropriação dos recursos ambientais que caracteriza a história do nosso país. Uma concentração de poder que tem se revelado a principal responsável pelo que vem sendo chamado de injustiça ambiental. Esta injustiça ambiental é o mecanismo pelo qual as sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, concentram os recursos ambientais sob o poder dos grandes interesses econômicos e destinam a maior carga de danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis. Por justiça ambiental, ao contrário, entende-se o conjunto de princípios e práticas que 6 : a- asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas; b- asseguram acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país; c- asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem 6 Declaração de constituição da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Niterói, setembro 2001. como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito; d- favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso. A injustiça ambiental resulta da lógica perversa de um sistema de produção, de ocupação do solo, de destruição de ecossistemas, de alocação espacial de processos poluentes, que penaliza as condições de saúde da população trabalhadora, moradora de bairros pobres e excluída pelos grandes projetos de desenvolvimento. Esta é a lógica que mantém grandes parcelas da população às margens das cidades e da cidadania, sem água potável, coleta adequada de lixo e tratamento de esgoto, uma lógica que permite que grandes empresas lucrem com a imposição de riscos ambientais e sanitários aos grupos que, embora majoritários, por serem pobres, têm menos poder de se fazer ouvir na sociedade e, sobretudo, nas esferas do poder. Enquanto as populações de maior renda têm meios de se deslocar para áreas mais protegidas da degradação ambiental, as populações pobres são espacialmente segregadas, residindo em terrenos menos valorizados e geotecnicamente inseguros, utilizando-se de terras agrícolas que perderam fertilidade e antigas áreas industriais abandonadas, via de regra contaminadas por aterros tóxicos clandestinos. Os trabalhadores urbanos e rurais, por sua vez, estão freqüentemente submetidos aos riscos de tecnologias sujas, muitas delas proibidas nos países mais industrializados, que disseminam contaminantes que se acumulam de maneira persistente no meio ambiente. Esses contaminantes, além de provocarem doenças nos próprios trabalhadores, produzem "acidentes" por vezes fatais com crianças que circulam em áreas de periferia onde ocorrem com freqüência os descartes clandestinos de resíduos tóxicos e perigosos. A irresponsabilidade ambiental das empresas imprevidentes atinge em primeiro lugar e com maior intensidade as mulheres, a quem cabe freqüentemente a lavagem dos uniformes de trabalho contaminados de seus maridos ou o manejo de recipientes de agrotóxico transformados em utensílios de cozinha. Esse ciclo de irresponsabilidade ambiental e social das empresas poluentes e, igualmente, de muitos gestores e órgãos governamentais desatentos, ameaça o conjunto dos setores sociais, haja visto que rios e alimentos contaminados por agrotóxicos e pela falta de tratamento de esgoto acabam por afetar o conjunto dos consumidores e residentes das cidades. A anencefalia nas crianças nascidas em Cubatão (SP), a presença das substâncias cancerígenas conhecidas como “drins” nas pequenas chácaras de Paulínia (SP), a estigmatização que perpetua o desemprego dos trabalhadores contaminados por dioxina no ABC paulista, a alta incidência de suicídio entre os trabalhadores rurais usuários de agrotóxicos em Venâncio Aires (RS) são exemplos que configuram as manifestações visíveis de um modelo fundado na injustiça estrutural e na desatenção ambiental de empresas e governos. O enfrentamento deste modelo requer que se desfaça a obscuridade e o silêncio que são lançados sobre a distribuição desigual dos riscos ambientais. A denúncia do mesmo, por outro lado, implica em desenvolver articuladamente programas ambientais e sociais: não se trata de buscar o deslocamento espacial das práticas danosas para áreas onde a sociedade esteja menos organizada, mas sim de democratizar todas as decisões relativas à localização e às implicações ambientais e sanitárias das práticas produtivas e dos grandes projetos econômicos e de infraestrutura. O tema da justiça ambiental indica a necessidade de trabalhar a questão do ambiente não apenas em termos de preservação, mas também de distribuição e justiça, oferecendo o marco conceitual necessário para aproximar as medidas de promoção dos direitos sociais e humanos, da qualidade coletiva de vida e da sustentabilidade ambiental. Nesta perspectiva, são necessárias instâncias de discussão e ação capazes de favorecer o enfrentamento da injustiça ambiental. A criação de uma Câmara Técnica de Justiça Ambiental no CONAMA, por exemplo, pode ajudar no enfrentamento dos males derivados da distribuição desigual dos riscos ambientais no país, estimulando a geração de informações relativas às condições sociais da distribuição dos riscos e formulando medidas para a superação da desigualdade ambiental que afeta as condições de existência de populações pobres, minorias étnicas, trabalhadores dos campos e das cidades, assegurando efetivamente iguais diretos à proteção ambiental. O mesmo pode ser feito através do estímulo à criação de fóruns de tratamento da desigualdade ambiental nos diferentes Conselhos Estaduais de Meio Ambiente. BIBLIOGRAFIA ACSELRAD, H., Políticas Ambientais e Construção Democrática, in M. Silva (org.), O Desafio da Sustentabilidade, Ed. 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Report "Acselrad - 2002 - Quatro Teses Sobre Políticas Públicas Ambientais A"