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March 28, 2018 | Author: iedaleo | Category: Short Stories, Dogs, Cats, Saint, Love


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Description

A Revista A Revista Cruviana é uma produção independente que conta com o apoio da editora Sarau das Letras. A proposta é semestral, sendo uma edição impressa a cada cinco publicações. Os contos enviados são submetidos a um conselho editorial, formado por uma equipe de parceiros com experiência literária. A edição, diagramação e publicação são de responsabilidade de seu organizador. O objetivo da Revista Cruviana é aproximar contistas, demais escritores e outros artistas, de modo que os mais conhecidos sirvam de apoio aos estreantes. Todos os envolvidos são convidados a fazer parte da divulgação da ideia através das redes sociais, mailing e outros meios, virtuais, ou não. Responsabilidade O editor da Revista Cruviana é isento de toda e qualquer informação que tenha sido apresentada de maneira equivocada por parte dos autores aqui publicados, bem como de possíveis práticas ilícitas como plágio e outras. Organizador: José de Paiva Rebouças (Jornalista, articulista e poeta) Revisão: Regiane Santos Cabral de Paiva (Professora de língua e literatura espanhola da UERN) Comissão editorial: • Clauder Arcanjo (Escritor e editor) • David de Medeiros Leite (Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca/Espanha, escritor, editor e professor da UERN) • Carlos Gildemar Pontes (Escritor, ensaísta, editor e professor de literatura da UFCG) • Raimundo Leontino Filho (Escritor, poeta, ensaísta; doutor em literatura é professor da UERN). Contato [email protected] www.revistacruviana.blogspot.com A arte é um dos meios que une os homens. Leon Tolstoi revistacruviana.com .blogspot.www. transforma-se em mulher sedutora e. .‘~ A Deusa do vento “Cruviana”. que deitado em sua rede. ao despertar com os primeiros raios do Sol. tem a nítida sensação de estar apaixonado. Mal sabe ele que essa paixão não é só pela Cruviana. de madrugada. mas também pelos encantos que a Terra de Makunaimî possui~’ Gabriela Makuxi Terra Indígena São Marcos (Boa Vista/RR). deixase levar pelo encanto da brisa fria e. chega de mansinho e seduz o forasteiro. dE MiraNda CoNVIDaDoS 33 WaltEr MorEira SaNtos 45 ClaUdEr ArcaNjo traVÉS 49 DE RaImUNDo LEoNtINo FIlho SINaIS O INFErNo 52 Carlos GildEmar PoNtEs 55 MÁrio GErsoN 63 LIlIa SoUZa ÁlIBE O amor DE AlENCar O colecionador de guarda-chuvas 58 David MEdEiros LEitE Em NomE Do PaI .ÍNDICE 19 OSCarINa JosÉ dE Paiva REboUÇas HomENagEm O CalÇÃo VErmElho 25 YvoNNE R. ColaBoraÇÃo INtErNaCIoNal 66 73 75 81 84 89 93 96 99 101 Marga PEdro GarcÍa LaviN CoNFISSÃo Carla DUartE O homem batata-frita REgiaNE SaNtos Cabral dE Paiva 3ª tomo A Cor DoS olhoS Maria da GlÓria JEsUs dE OlivEira Um SEgUNDo E mEIo AlEXaNdrE CUNHa dos SaNtos DEVoÇÃo ArlEtE MENdEs ACrE ChEIro Da mortE SidNEy SUmmErs A SoBrINha DE MárIo Prata GUstavo NisHida ASCENÇÃo E QUEDa Do CorPo JoaQUim DaNtas ECoS DE Uma VIDa RaoNi G. HENriQUE CRUVIANA 7 . 105 108 110 113 124 128 133 NoVE aNoS Tobias GoUlÃo 4ª tomo JaNaÍNa EliaNa Klas A VIagEm IEda LEoNEs NascimENto ENtrElUgarES PEdro FErNaNdEs dE O. NEto ISSo É gUErra SidilEidE BatalHa do RÊgo SEr tÃo rESIStÊNCIa ElilsoN JosÉ Batista A FIlha Do PolICIal ANcHiEta Rolim 8 CRUVIANA editorial Acerca da quinta edição A Revista Cruviana mantém vivo o seu projeto inicial de juntar talento e experiência. Reunindo contos de diversas partes do Brasil, de Portugal e Argentina, o projeto sustenta a sua universalidade. Nesta quinta edição, os contos de escritores consagrados como Olga Savary, Walter Moreira Santos, Gildemar Pontes entre outros, se encontram com os novos talentos das letras brasileira e estrangeira, provando que não pode haver fronteira entre a literatura e o livre pensamento. Apenas na quinta edição, conseguimos a participação do poeta e escritor Raimundo Leontino Filho. Mesmo fazendo parte CRUVIANA 9 de nosso Conselho Editorial desde o início, Leontino resistiu sob algumas justificativas. Apontou-nos apenas três contos, nos permitindo a publicação de um deles. Não é verdade que o poeta tem limitação para a prosa de ficção, mas é nítido o traço poético em cada frase, sentença e pensamento construtivo da trama. Um dos destaques deste projeto é o resgate de um texto da escritora mossoroense (RN) Yvonne R. de Miranda. “O calção vermelho (Argus, 1987)”, título que também deu nome ao livro de contos, revela a magnitude de uma escritora que sumiu das vistas potiguares, mas que continua inevitavelmente atual. Publicada no Rio de Janeiro, Yvonne se destacou na década de 1980, com uma série de trabalhos impressos despertando interesse de muitos críticos, entre eles Elói Pontes, do jornal O Globo. A apresentação de seu trabalho é feito aqui na Revista pelo conselheiro editorial David Medeiros Leite. Destacamos novamente a participação do escritor pernambucano, de Vitória de Santo Antão, Walter Moreira Santos, ganhador de mais de 100 prêmios literários, entre eles o José Mindlin e, atualmente, o Pernambuco de Literatura. Sua colaboração é mais uma prova da seriedade depositada no projeto Cruviana. Na mesma dimensão, agradecemos a sempre disposição de Carlos Gildemar Pontes, também ganhador de diversos prêmios literários e que, embora seja cearense, entra aqui como representante da Paraíba, por sua atuação como professor de literatura da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), campus de Cajazeiras/PB. Além deles, temos ainda a participação da escritora Maria da Glória Jesus de Oliveira (RS), dos primos Roni e Tobias Goulão (GO), Lilia Souza (PR), Alexandre Cunha (RJ), Ieda Leones e Sid Summers (BA), além de Arlete Mendes e outros escritores de São Paulo. Importante citar ainda a participação de Carla Duarte (Portugal) e do excelente poeta e contista argentino Pedro 10 CRUVIANA Nesta edição. ao escritor Clauder Arcanjo.García Lavin. Acreditamos ter realizado nesta quinta edição mais um feito em favor da ficção brasileira. ele ganha duas publicações. representa o espírito poético que habita em cada um de nós. permitindo aos leitores uma versão do mundo a partir da visão atual dos autores impressos nas páginas da Revista Cruviana. sendo uma inédita em língua espanhola. Pedro Fernandes. Regiane Santos Cabral de Paiva. Queremos ainda fazer referência aos escritores potiguares: Mário Gerson (Mossoró). através da editora Sarau das Letras. entusiasta deste projeto ao lado de David Leite. José de Paiva Rebouças Organizador CRUVIANA 11 . A cadeira do escritor vazia. que desde o início tem nos presenteado com verdadeiras obras primas da literatura portenha. Sobre a capa A fotografia da capa da quinta edição da Revista Cruviana foi tirada na Fundação Casa de Jorge Amado. além de outros colaboradores de outras partes do Rio Grande do Norte. Joaquim Dantas e David Medeiros Leite (Natal). em Salvador (BA). representados aqui pelo agitador cultural Elilson José Batista. por permitir esse encontro intercontinental da nova literatura. e uma tradução realizada pela professora de Literatura Hispanoamericana. nosso agradecimento pela colaboração como contista e participação direta como editor. Por último. 12 CRUVIANA . mesmo assim. O único registro que encontrei sobre Yvonne foi no livro Presença da Mulher na Literatura do RN. de autoria de Yvonne Rêgo de Miranda. o nome dessa mossoroense cuja farta produção literária é praticamente desconhecida por estas paragens. com a publicação do conto “O Calção Vermelho”. extraído do livro homônimo. É bem verdade que Yvonne publicou seus livros no eixo Brasília-Rio de Janeiro. resgata. de um inexplicável esquecimento. Mas. organizado por Zelma Bezerra Furtado e Kacianni de Sousa Ferreira. causa-me espécie nunca CRUVIANA 13 . publicado pela Academia Feminina de Letras do RN.homenagem Yvonne Rêgo de Miranda A revista Cruviana. . Também merece registro que a sempre solícita pesquisadora Conceição Medeiros é uma potiguar que possui considerável material sobre Yvonne. Yvonne Rêgo de Miranda. 1987). 1982). David de Medeiros Leite Conselho Editorial da Revista Cruviana 14 CRUVIANA . escritora nascida no chão de Mossoró.Farofeiros Internacionais (Argus. irmã de Yvonne. O primeiro deles constitui-se importante registro histórico.. Tive o privilegio de ler três deles: Homens e Fatos da Constituinte de 1946 (Argus. O amor que nossa querida mãezinha nos falava desde quando éramos crianças. merece nossa atenção. Enfim. datada de 2009.ter sido citada ou comentada por nossos curiosos pesquisadores. crônicas. já o segundo contém deliciosas e bem humoradas crônicas de viagens. em vários gêneros: conto. e O Calção Vermelho (Argus. 1986). Yvonne. Pedi sua permissão para transcrever um parágrafo de uma carta. Yvan e Yolanda. e do terceiro é de onde se extraiu o conto aqui publicado. Eu já nasci em Natal e Yêddo nasceu no Rio de Janeiro. Através da Europa . memórias. E foram muitos livros. Que Mossoró foi em sua vida ‘um pedacinho de céu na terra’. A missiva termina assim: Ia esquecendo uma coisa que não só para Yvonne mas para todos nós seus irmãos (que infelizmente agora somos só dois) tem um grande valor. que Conceição recebeu de Yvete. Ali nasceram os seus filhos. Foto: Ana Pérola Pacheco CRUVIANA 15 . 16 CRUVIANA . oscarina José de Paiva Rebouças Sentada na salinha pequena. vivera seus últimos momentos de lucidez razoável. Oscarina vê a missa na televisão. Estendia ao rádio as respostas para ela mesma no hiato da solidão tardia. Seu juízo fora atingido pela manivela da cacimba que ainda antes da meia idade a botara no chão. algo nunca imaginado antes quando o rádio era a única tecnologia para seus ouvidos. toca na tela e sussurra como no tempo em que conversava consigo mesma. No meio do mato na serra azul. Passou a percorrer a lista interCRUVIANA 17 . ela esqueceu-se do óbvio e se prendeu nas lembranças de algum passado. Dizem que desde esse tempo. Interage. Dois vaqueiros cuidando do gado e dos filhos com o mesmo intento e devoção. A hora mais tarde que dormia antes era às 21h. O seu filho Pedro. antes talvez. as ovelhas. depois a do armazém – a cacimba. Era cedo porque foi isso que lhes disseram. lugar que quase não ia quando a serra era seu único mundo: a casa grande – primeiro a da estrada. 18 CRUVIANA . mas viveram juntos para sempre. Faz isso também com os netos. Elas. Todos com nome de gente. até hoje. Se o padre manda. Pressa do sol que se espreguiça cedo. a lástima da dor. não estranha a solidão das moscas. as aroeiras. Fora isso. só quando. Incendiou quase vazio. tivessem tido mais espaço para seus ouvidos. os currais. Todos amados de maneira mais primitiva a que. Não se conversavam muito. devaneios e incertezas daquilo que lhe conduziu até agora. movia-se como quem tem pressa. possivelmente. Sentada em frente da televisão na pequena sala vazia. Pressa do fogo e do fogão a lenha. as vacas e o vazio dos caminhos. Talvez ela ainda se lembre dele.minável dos filhos até lembrar-se do nome que quer chamar. morto drasticamente na explosão de um balde de combustível. os pereiros. O marido tinha a mesma idade que ela. pequena e magrinha em seu vestido acinturado. ela obedece. ela levanta. Agora. se reza. Todos sofreram e trazem. são apagadas pelo barulho que vem da rua na pequena cidade. Ela. nem a linha tênue da memória. mas o queimou por inteiro. já não lembrava mais e perguntava aos que rodeavam o caixão: quem era? Enviuvou cedo. quando na serra já é quase madrugada. O resto são elucubrações. aos 76. no entanto. mas dorme no mesmo ritmo e deixava tudo um breu. seja a mais real. porque quando perdeu o filho mais velho para o álcool. na dependência da lamparina. por ventura ia a um enterro de algum conhecido ou parente. Deste tempo que não imuniza as carnes. Um pouco pior. Ela transfigurava-se instantaneamente em suas personalidades como se pudesse escolher seguir uma das vidas propostas. de filho em filho. Foi ali aonde ela veio ao mundo junto a vários irmãos. no entanto ela era filha de um de seus filhos. Ele morreu e ela ficou na companhia do tempo que lhe estendeu o prazo da vida. Também criaram muitas vacas e cortaram muitas terras. mas criaram o resto. ação frenética e meio atormentada. de lugar em lugar. andava sem parar. Mas cometera os erros que ela mesma jamais cometera. Foi lá também que se deixou interessar por seu primo. Continuava chamando-se Oscarina. embora também tivesse caído nos braços dos primos. Tudo isso estava no ritmo da caminhada.Oscarina nasceu no mato há mais de 90 anos. Luzes cortando as lembranças e ações. Primeiro se viu nascendo no mesmo lugar. Oscarina teve um sonho confuso e distante daquilo que tinha à mão. Mudanças de planos e diegese. Nascera na pele de uma neta e seguia perdida como ela mesma. Depois perderam mais um filho e tiveram de criar seus netos. Não teve a chance de se apaixonar. A casa pequena e escura lembrava uma construção medieval. de uma só vez ou de muitas maneiras. via as pedras devorarem sua meninice e a ausência de ação levá-la por um percurso mais incerto do que o que caminhava agora. ela mesma e outras três pessoas. mas as ações realizadas na estrada lhe fazia pensar ser. Sonhou que caminhava em passos firmes para um rumo desconhecido. Cresceu junto com as pedras que enfeitavam o seu quintal. Tivera quase tantos filhos CRUVIANA 19 . Um dia. Como se não tivesse escolha. talvez. Com menos recursos. Perderam dois no nascimento. ao mesmo tempo em que atravessava situações distintas e estranhas para a sua alma. que se casou com ele e passou a seguilo como retirante. Deixou-a para sempre esquecendo o que fora ou o que fizera. bem a cara de seus 20 CRUVIANA . Não saberia do futuro porque o tempo lhe permitia o desinteresse. Tinha diversos documentos que precisava de seu nome. Estava em um relacionamento sério e expunha na mesa uma foto com uma criança. Oscarina não daria seus filhos a ninguém. Agora tinha mais idade e mais propósitos. Virou-se de súbito e encontrou-se consigo mesma. filhos que iriam à escola. mas só criara alguns. Uma dor no palato. com a personalidade que assumira anteriormente. não diretamente. Tinha-lhe lembranças tão duras quanto. sem ser gorda. mas já sendo outra. Sim. Possivelmente seu filho. bem parecida. não tinha certeza. Uma mão forte lhe acarinhou as costas.quanto. os criaria com barro se fosse o caso. pelo menos caberia nos vestidos acinturados. Estava diferente do que se conhecia. porém. mas tinha as mãos duras e o pescoço grosso. Oscarina agora se assinava como Oskarine e o fazia desvairadamente. ela se permitira ir além das possibilidades. três vezes. era rechonchuda. duas. Vestia calças e partia de outro lugar. Tudo parecia melhor e Oscarina sorriu levemente. Algo lhe permitia escrever de novo sobre as linhas tortas. contudo parecialhe mais emergente para as mudanças. Não tinha tempo para os amores efêmeros e dava o que tinha para concluir a universidade. a que acabara de abandonar. Tinha estudado e se tornado assistente administrativa de uma grande universidade. Uma angústia de fome e sede sugara-lhe as palavras e o pranto lhe enrijeceu a garganta. Era bonita e se parecia mais com ela mesma. nesta nova pele não tinha escolha. Escreveu seu nome uma. mas talvez tivesse filhos. Poderia seguir marchando à lira dos 20 anos. Era agora funcionária pública. foi aí que se deu conta que algo novamente estava diferente. Não vinha da serra. As narinas inchadas e as lágrimas sugando-lhe o resto de ar. Caboclinho marrento. da limitação da pobreza moral e seria uma entre poucos. filhos melhores e mais saudáveis. mas veio nascer em Mossoró (RN). Editor e organizador da Revista Cruviana. Revigorante. CRUVIANA 21 . poeta e escritor. substantivoplural. Escreve semanalmente a coluna Balada do Impostor (Jornal de Fato e Defato. parecia segura. Com tanto dinheiro. por mais que a estrada se abrisse em sua frente. Sorriu sozinha. Resolveu deixar os papéis e retomar a estrada. as que respondiam pelo nome.com.blogspot. e das vacas. Ela abriu os olhos. Passou pela casa velha. beiju e tapioca. Talvez não precisasse vender as novilhas que lhe afeiçoara. e não tinha que se preocupar com a falta de chuva.aspirinasurubus. fez o sinal da cruz e sentou-se novamente sem pressa como se nada tivesse acontecido.filhos. nem resíduos para o gado. É jornalista. não lhe faltaria farinha e queijo. O dinheiro que ganharia com aquele trabalho deveria ser bem mais do que a pensão da Previdência que ganhava na velhice. Afeiçoou-se a ele rápido achando ser mesmo seu.br). Gostava agora dessa vida porque.com). Era possível que eles soubessem o que ela tanto queria. O matinho crescendo sob seus pés e o rádio cantando a Ave Maria. levantou-se da cadeira. O cheiro era de neblina sobre o esterco.com) e mantém coluna fixa no Substantivo Plural (www. voltou para a televisão. uma a uma. Um vento frio tingiu-lhe os cabelos e marcaram-lhe a pele com sulcos profundos. pelos terreiros de louça e entrou nos currais. tentando encontrar o que procurava. JOSÉ DE PAIVA REBOUÇAS é de Apodi (RN). é também responsável pelo projeto Aspirinas & Urubus (www. tocou a tela. um a um. Um baralho velho adormecia sozinho na mesa cumprida e as moscas voltavam a lamentar o silêncio do dia. fechou a porta abafando o barulho da rua. mas sentiu falta de alguma coisa e começou a chamar pelo nome dos filhos. 22 CRUVIANA . A velha e elegante senhora quis falar. acontecidos frequentemente com pessoas conhecidas. aí. do rosto muito jovem.Quieta. já devia estar preparada para a violência. Através do noticiário dos jornais. olhos fixos nela. dos fatos. se não qué se machuca! A expressão entre perversa. Revólver nas mãos. de Miranda** A porta foi aberta violentamente. assustavam mais do que a própria arma. decidida e. a hipnotizá-la. Por quê? Indagou-se apavorada.O calção vermelho* Yvonne R. . vovó. paradoxalmente. inquieta. CRUVIANA 23 . Não encontrou a voz. a grana. . Era uma questão de vida ou de morte. surpresa. disposta a seguir o primeiro que lhe falara e que já sumia na curva da escada. mas não tocassem nela! Num salto ele estava diante da porta abeta. Pelezinho. vai falando. Um assalto! E a vozinha? . tão caridosa! Que a matassem. Talvez o que tinha. ele seguia atento os movimentos da moça. O bem mais precioso. cabelos longos e despenteados. fica aqui e dá um aperto nessa velha.. Adriana deixou cair o livro. Deu um passo a frente. Era pouco. Adriana tão linda. os ouro..Pára aí.. Tu aí. tão boa.Velha. vai dizendo logo onde tá os dola. . os ouro? Precisava responder. obedecer ao jovem marginal.. Que iriam aqueles marginais fazer com “sua menina”? Levantou-se. tênis sujos.Nicão.Tu aí. pronto para puxar o gatilho ante qualquer sinal de resistência.. dá uma espiada lá nos fundo. As pernas tremiam.Dipressinha. dona! Enfiou o robe e começou a juntar tudo o que havia de valor. Sentiu um calafrio. moça. não iria satisfazer o assaltante! Calças jeans velhas. o 38 seguro pelas duas mãos. velha do diabo. linda no seu baby-doll. a grana viva. Jesus. Vou dá uma geral na casa. os satisfizesse. encarando o intruso. Adriana que já devia estar deitada no segundo andar.. O principal era salvar Adriana. sinão o pau vai comê e já! Onde tá os dola... precisava entregar logo tudo de valor que tinha em casa! Seria suficiente? O grosso já estava no cofre do banco. 24 CRUVIANA . sinão te arrebento os miolos! O safanão fê-la cair novamente na poltrona. .. Ela... a cena que ele odiava. disputando como cães sem dono – que eram – o prazer de segurar-lhe a mão. Foi abrindo caminho até chegar junto da moça. de ganharem um beijo de despedida. pequenas coisas que distribuídas por ela com carinho. . descontrolando-se momentaneamente. – Moça. e estava sempre indo para ali.... Não tenho casa minha. Mas representava alguns momentos de alegria para quem não tinha nenhuma. Aquele cheiro.Oi. Resmungavam. os doces. Também. – Não posso. As outras crianças já se agrupavam em volta dela. A levavam até ao portão.Tia. Brigão. sentir seu cheiro bom. Não era ele. acostumados a serem tratados como lixo. Uma vez por mês. o coração aos pulos. Ela. Mas até esses acabavam aguardando ansiosos aqueles momentos de alegria. Com ela por perto. Sua mão! Como era macia! Por que ela não era sua mãe.. Eles não compreendiam. onde tudo era ruim. Ele parou indeciso. Rude. Alguns. Especialmente para ele.. Era outro. Correu. Na hora da saída. se derretia. Sempre a mesma.. queridinhos. sempre interessada nos problemas de cada um daqueles meninos.. CRUVIANA 25 . Sempre indagando. derrubou o vidro de perfume. sua irmã? Por que ele era um menino sujo das ruas. tomavam um valor diferente para todos. tudo mudava quando ela aparecia. . Revoltado. Chegava a rir. Compreendam. Atrevido. João. . ela chegou! Não esperou segundo aviso.João! João. Até os sacanas dos inspetores ficavam dando uma de bonzinhos. me leva. nojento? As bolas de gude. moro com minha família. me leva com você.. vocês são tantos e eu uma só. Pouco. como vai? Está ficando um rapazinho hem? Sorriu totalmente. Fiquei contente que tivesse sonhado comigo.A tia não pode levá-lo. Ficou preso na cela escura dois dias.Tia. Tinham lhe contado tudo. Estava mentindo! Não o queria! Nunca mais pediria nada a ninguém! Deu-lhe um empurrão. Eu não. Longe de meninos e inspetores. tomou coragem. como quando levara uma bofetada do inspetor... Risinhos. – Mentiroso! Mentiroso! Tu me paga! O seguraram. me leva com você? Eu sou são. Mas passou a ser respeitado. Conseguiu desprender-se.. . Na outra visita dela não apareceu. . Fugiu revoltado. Queria falar com ele. queridinho.. Por que se rebaixara? Aquela dona era igualzinha a todos os filhos da p.. 26 CRUVIANA . Deu um jeito de falar com ela. Tome isto. Abriu o embrulho tremendo.. Diz você... talvez. Faço tudo que me manda. abraçara-o envolvendo-o naquele cheiro bom. Se ela lhe dera o calção. sim? Ela passara-lhe a mão na cabeça. rapazinho. No dia seguinte pegou o outro de jeito.Que bobagem. Dominou o orgulho. Sei trabaiá.Cochichos. diz você. Ela mandou procurá-lo. Beijou-o na testa e se foi. Longe dos outros... Era um calção vermelho. ele sonhou que a senhora deu pra ele um calção de banho vermelho. Fugiu envergonhado sem olhar para ela. Avançou enfurecido para outro menino. E a decisão do companheiro pegando-o de surpresa: Moça.. . Ela vai estudar num país muito distante daqui. é para você. E bateu no Tonho pruque ele disse que isso era só sonhos de boboca. que conhecia. Me leva.. O rosto começou a queimar. o mais lindo que já vira em sua vida! Um dia. deixa tudo aí. tia. Ela o chamou. a cabeça arrebentada. A cabeça girando. Nunca mais a vira.Moça.. cara. Pintou sujeira. Era ela! Ela que lhe dera aquele calção vermelho que o fizera tão feliz! Como não a reconhecera logo? Baixou o 38.. A mulher velha estava estirada no chão. Eu não queria fazê sujeira em sua casa. – Quando voltar.. Esperou. Não vou lhe fazê mal.. desconfiando. no pátio. vou dar um jeito de tirá-lo daqui. Teve a certeza. levando-o para conversar à parte.. ouviu uma conversa do diretor. Saiu correndo. foi transferido para outro estabelecimento de internos maiores. Teve então a certeza de que não mais a veria. Ainda viu-lhe o olhar cheio de surpresa. desgraçado! Um tiro só.. Ao completar 12 anos. . Deu-lhe um abraço e prometeu.Tu não. Nos primeiros degraus ouviu os tiros. Esperou. envergonhado. Mesmo que ela voltasse.. Nem a ninguém de sua casa. Envergonhado. CRUVIANA 27 . Olhou-a humilde. Ela deteve-se atordoada ao ver o corpo ensanguentado do outro ladrão. . Ela ia mesmo estudar no estrangeiro. O perfume! Fixou-a..Dias depois. – Foi ele! gaguejou. Veio despedir-se de todos. Esperou. Ficou olhando de longe. Acertou bem na cabeça do parceiro. Acabou de descer de três em três.João. Trouxe de presentes para eles a TV dela. Ela surgiu na escada.. a velhota não queria obedê. Sonhou.. Com ela foram os últimos momentos bons que a vida lhe dera. vamo dá o fora.. . Ela não lhe mentira. Garanto. Cansou. Arrependeu-se do empurrão.. Durante a transcrição do livro. Com um grito de dor. batendo a porta com violência. abraçou-a soluçando desesperadamente. **YVONNE R. 1978).Lançando um olhar de raiva ao companheiro morto. DE MIRANDA nasceu em Mossoró (RN). Ela continuou imóvel. ele saiu. *Esta obra foi publicada originalmente pela editora Argus (RJ. Só então viu o corpo da avó. mas publicou o livro “O calção vermelho” no Rio de Janeiro em 1987. mantivemos todas as características do original. 28 CRUVIANA . sem compreender. As cidades – Anchieta Rolim CRUVIANA 29 . 30 CRUVIANA . pois o futuro é a China – e nada do que vem da China presta: as peças dos brinquedos chineses se soltam e matam engasgadas milhares de crianças ao redor do mundo. A mim só resta usar as maldiCRUVIANA 31 . Se o futuro é a China. então estamos todos perdidos – e eu o mais perdido de todos porque não tenho como pagar um curso de idiomas. os chineses querem apenas sobreviver.o inferno está cheio de velhos simpáticos e meninas boazinhas Walther Moreira Santos * Bill Gates mandou todos os jovens estudarem mandarim. Os chineses têm a ética de um bando de gafanhotos. tal um organismo viral. tintas tóxicas se desprendem e vão cegar os olhinhos inocentes das criançinhas felizes com suas primeiras bicicletas. ela está sempre trocando o d pelo n e comendo: ou Ovomaltine ou os esses dos plurais.tas gravatas chinesas. Não adianta reclamar. uma menina encardida sabe-se lá Deus com que idade e eu. . A menina que ele havia recolhido na rua e mais ou menos morava conosco há uns oito meses esperava à porta do meu quarto. às escondidas. 32 CRUVIANA . Em casa sempre fora cada um por si. E neste horrível tempo de vacas magras e ranger de dentes. Uma vez eu tive um gato e foi mesmo assim quando um carro atropelou ele: ficou chiano chiano chiano e depois pronto. O meu é me concentrar no que estou fazendo e esquecer tudo em volta. que se encolhem ante o calor do ferro de passar. Também. . Cada pessoa tem seu jeito de enganar a tristeza. sem dinheiro para arcar com a faculdade e sem algo para vender na praça (nem mesmo um sorriso de trinta e dois dentes perfeitos) eu tinha poucas opções. Geralmente dava certo.Ah. meu pai foi inventar de morrer. Vim dizer que o Velho tá morreno – me diz a Senhorita Ninguém. Um velho por volta dos 70 anos (cujos cigarros e bebida o faziam parecer com 90). a boca suja de Ovomaltine que ela adora comer às colheradas. Meia hora com ela e qualquer um vê que não tem jeito. sem emprego. . Ou ambos.É “borrifa” – resmungo para a Pequena Molambenta. bem no meio do período de provas e de uma gravata chinesa que não quer ser espichada. um cara de vinte e um.“Barrufa” com água que melhora! – diz a voz atrás de mim. e como eu voltara os olhos para a tábua de passar. Mas agora aquele delicado equilíbrio tinha desmoronado de vez. ela insistiu: . Morreu.Acho que o Velho tá morreno de verdade. Meu irmão também morreu assim. Isso não está na Bíblia – mas constato.. apesar da pele encardida e dos olhos de quem viu Roma ser incendiada. quero dizer.Como é que você sabe? Por acaso a senhorita fez algum curso de medicina pela internet e eu não estou sabendo? . é tudo a mesma coisa. não mordia.repetiu a Pequena Molambenta. aposto. apesar da língua ferina e de latir muito..Um gato.Gato.. . Bastaram umas lambidas e a saliva deve ter pedrado no estômago dele.Escutou? O velho tá morreno . Que tipo de esperteza era CRUVIANA 33 .Eu num já disse?! Um dia eu vi um cachorro morrer e ele ficou chiano chiano chiano do mesmo jeito que o velho está agora. A Senhorita Ninguém dessa vez não tirara a manhã para me aporrinhar em vão. E teve aquele gato que era daqui. morreu logo. Era cuidadoso – 25 anos dirigindo ônibus e nunca sofrera um arranhão.Ah.Não. Ela está se referindo a um gato horrível que inventou de se enfiar num saco de cimento. .A menina dizia ter quatorze mas não passava dos dez. bem! § “Batei e a porta se abrirá” E dentro do quarto haverá um velho morrendo. Mas também é fato que a garota não estaria melhor nas ruas. . A qualquer momento papai podia ser preso por pedofilia. Papai. . apesar de demitido tantas vezes por dirigir em alta velocidade e/ou embriagado.Lambendo cimento? . Papai não iria mais me amolar. você disse um gato. . à mercê de todo tipo de crueldade. . . cachorro.. Não é por que a pessoa está morrendo que vai deixar de ser roubada. estava casado com uma loira com um quarto da idade dele. Não nesta cidade. Papai ardia o ardor frio dos amaldiçoados. É claro que ele e papai não se falavam há muito 34 CRUVIANA . úmida e pegajosa – exatamente como o permanente ar rançoso desta cidade. Desabotoei a camisa grudenta de suor de papai. . Por mais que a escorraçassem. Estava com uns trezentos graus de febre. desconfiada. e fica me olhando. Não no Brasil. como se o que acabara de dizer fosse algum tipo de blasfêmia. papai tinha lá seus argumentos. . Preciso telefonar. A morte só é fria na cabeça dos desinformados.Pega o relógio. Afinal. ela sempre ficava ao alcance da mão. . como nos filmes. corri ao orelhão para telefonar para o irmão de papai. § Quem paga o coveiro escolhe a música Como estava sem créditos no celular. portanto: tinha vencido na vida. isso papai vivia questionando. Sorri – ela sempre dá um sorriso besta quando se sente ameaçada. e pus a mão em sua fronte. a aliança e a carteira dele antes que a ambulância chegue – diz ela. alegre e prestimosa – como um cão de estimação. A morte é quente. um cara que começara do nada e hoje possuía uma bela concessionária e.aquela minha que servia para entrar numa universidade mas não para ganhar dinheiro?. o Presidente da República era analfabeto e o Silvio Santos não passava de um mascate e veja só aonde eles chegaram! É.Pega você – eu digo.Se tu não pegar essas coisas agora o pessoal do hospital vai acabar fazendo isso – diz a menina. A Pequena Molambenta tinha razão. como todos aqueles jogadores negros da seleção brasileira de futebol. Eles cuidariam de tudo – entregariam papai moribundo ao hospital e uma vez confirmado morto. Papai não poderia ter escolhido dia pior para morrer – até na hora de morrer o filho da puta aprontava. Em criança eu não furtava frutas – eu furtava livros. Devo ter levado à falência umas dezessete livrarias e desfalcado um monte de bibliotecas públicas pois naquele tempo bom não havia câmeras de segurança ou sistemas de alarme. Tudo o que eu desejava era desaparecer antes que o proprietário do imóvel soubesse da morte e viesse correndo cobrar os três meses de aluguel atrasado. Então comecei a empilhar meus trapinhos e meus não poucos livros. Eu não precisava me importar com mais nada. Que paga o enterro escolhe a música. Saber fugir é a aptidão mais crucial na vida dos animais mais fracos. É preciso admitir que esse povo da rua amadurece cedo. pertencentes a papai.tempo (e meu tio tinha bons motivos para isso). lidariam com enterro. Inquilino morto não paga. além de receber pelas costas os comentários maldosos. Fugir é uma arte que os mais fracos não podem desprezar. ah os cortázas os borges os dostoieviskis ganhados-comprados-furtados de sebos só se equiparavam às montanhas himalaicas de garrafas vazias de vodka gim pinga cerveja. dois funcionários da concessionária puseram papai dentro e sumiram na poeira. e nunca parei. mas no câncer e na morte (afinal somos todos pré-cadáveres) ainda havia espaço para a solidariedade. o velho não durou duas horas no hospital. Mas esperar pela solidariedade familiar me faz perder a segunda chamada da prova de direito de família – logo. Meu tio acabava de me dar a notícia. CRUVIANA 35 . Uns trinta minutos depois um carro encostou à porta. perderei a bolsa que me permite cursar uma das mais caras universidades do país – como diabo farei para continuar no curso é o que preciso descobrir. as flores. um enterro decente – eu é que não iria reclamar das flores. A Senhorita Ninguém estava certa. antes mesmo de a pele mostrar os primeiros sinais de manchas senis assinalando o bolor do tempo numa carne com data de validade vencida – papai não sabia a sorte que tinha.Eu posso pedir a um amigo meu que venha aqui me ajudar a pegar tudo? Eu ri ao ver pelo canto do olho esquerdo os sofás desconjuntados como prostitutas velhas. a idade que ele tinha quando morreu. armários. seria uma das formas que a felicidade podia tomar. . Mas você nem chorou nem nada. ao menos. Para aquela menina encardida. . – Tu é muito ruim mesmo! O velho era legal. antes da incontinência urinária.E o resto das coisas? – quis saber a Senhorita Ninguém. E ela acabara de ganhar uma casa atulhada de cacarecos. Não havia tevê ou outro eletrodoméstico pois foram todos vendidos/engolidos pelas mensalidade da faculdade. camas – o que não estava se desmanchando pela ação dos cupins virava pó pela ação da ferrugem. Ela me olhou com os olhos arregalados de quem não acredita em generosidades. Parágrafo único. antes de eu conseguir a bolsa.Você nem teve pena dele – diz a Senhorita Ninguém.Como você pode saber o que estou sentindo? Virou psicóloga de uma hora para outra? Morrer antes do humilhante fraldão. Mas viver sem eletrodomésticos era uma constante lá em casa: sempre que conhecíamos o tempo das vacas magras e papai perdia o emprego lá se ia a tevê e os outros eletrodomésticos logo a seguiam.. . qualquer porcaria. Deixe para julgar seu pai quando tiver.Sei lá. . E 36 CRUVIANA . Nem se o amigo dela fosse dono de ferro velho! Geladeira. fogão. ganhar alguma coisa. o estofamento à mostra. Vende. Ela corre como uma maluca e eu começo a rir porque não deixa de ser engraçado pensar que a Pequena Molambenta poderia ser minha irmã. obrigado.bem provável que mamãe nunca tenha assistido a uma novela do início até o fim. Se não se encontra. As circunstâncias me forçam a telefonar para ela. por que ela não procura um analista? Tive vontade de perguntar. . com os olhos mais amarelos que os girassóis de Van Gogh. mas sem demora o Alceu alçou toda a tralha de dentro de casa e equilibrou numa carroça de recolher “material reciclável”.O pai dela morreu. É claro que não havia cachorro na casa: não era um lar de verdade. Posso apostar que nunca ninguém esvaziou uma casa tão rapidamente – em algumas coisas a ralé é mesmo nota mil! . Mas a frase devia ser praxe para ladrões e carteiros.Você pode trazer até o guarda. § A Elite é perfeitamente dispensável – não a ralé . só de discos eu estou feita! – exclamou a SenhoCRUVIANA 37 . O irmão dela mandou avisar. Diga só isso.Dona Maura não se encontra – disse a empregada. . estou me lixando. . embora isto não tenha dado muito certo. Daí me lembro que eu já tenho uma irmã.O senhor quer deixar recado? .Este é o Alceu. Em dois segundos a Senhorita Ninguém estava dentro de casa com um negro tamanho-família. Sou contra a pena de morte – mas abro uma exceção para algumas pessoas que atendem telefone. Não queria nem estar por perto quanto a raspa daquele entulho chegasse à rua. Mas antes passa no mercadinho e arranja umas caixas pra mim.A um real. .Tem cachorro? – a pergunta veio de fora junto com o ranger do portão. rita Ninguém. mas se apagava à sua coleção completa de discos do Nelson Gonçalves. o fato de papai ser um palerma não queria dizer que ele fosse um palerma em tempo integral. Eu podia apostar que sim. estava em a menina ser magra como um graveto. Ela sai pulando de um pé só. é bem provável eu pusesse fogo em tudo. as risadinhas espocando sacanas da menina e os grunhidos de papai. seja lá o que ele fizesse com a menina não seria pior do que ela encontraria lá fora. A diabetes tinha deixado papai impotente nos últimos anos. Chapeuzinho de roídas unhas vermelhas e o Lobo Mau. Pelo jeito. se é que havia alguma. gorda! – ouvia-se papai dizer e a graça. gorda! Me morda. com um leve tremor na voz. o diabo deve dar boas e surpreendidas gargalhadas. § Criatividade para surpreender até o diabo Foi aí que notei que a menina tinha restos de esmalte vermelho em todas as unhas dos pés de das mãos. Papai não tinha mais bandolim (vendera para pagar a conta de luz). Nessas horas vê-se claramente que a Elite é perfeitamente dispensável – não a ralé. Dinheiro não traz felicidade – mas manda buscar numa Ferrari. E qual a utilidade de um disco de Nelson Gonçalves nos dias de hoje? Não fosse a senhorita ninguém. Com um pouco de trato a menina poderia ser bonita. Mas esse povo está sempre levando a baixaria a patamares cada vez mais altos – sentado em seu barril de chope. finalmente morto.Me morda. Entendo suas noites. Ele: ho ho ho ho ho ho! e Ela: hi hi hi hi hi hi hi! . 38 CRUVIANA . também não tinha mais aparelho de som. no inferno. atrás dela como um Cristo sofredor vai o Alceu e a carroça de entulho. O imperador Calígula disse que é muito fácil ser um deus: basta endurecer o coração.Foi ele. por mais que mereçam. Conhece? .Você tem para onde ir? – eu pergunto. . . . se sabia que eram minhas?! Tenho vontade de gritar.Você não sabia que aquelas caixas eram minhas? É claro que ela sabia. Até na rádio ele consulta. Há mais que calvice na cabeça de velhos como papai. Então para sempre eu serei uma ameba.Mas ele é famoso.Pai Ramiro de Oxossi. . § O inferno está cheio de velhos simpáticos e meninas boazinhas Corro até a esquina e a chamo a dupla de volta. às vezes bate em mim um imprestável coração de gelatina.Não diga! CRUVIANA 39 .Há mais que piolhos na cabeça de tipos como a Pequena Mulambenta. Ela me conta que ficará na casa de um pai-de-santo. . . até político vai lá. O Alceu que pegou. E sem demora as duas caixas estão de volta. Meus livros. mas não consigo falar assim com quem está mais fodido do que eu. Não digo isto porque tenho pena dela. Perdido nessa bobeira não me dou conta de que o negão levara duas de minhas caixas também. Sua lesma desnutrida! e por que você deixou. .Por que estão levando minhas caixas? Ela olha para cima. . esmagada pelo sol a pino.Nunca vi mais fresco.Manda ele botar tudo no lugar onde achou. Mas aos 11 (?) anos ela já é diplomada e pós-graduada na arte de furtar. Pelo menos uma pessoa está feliz neste lindo planeta poluído.A fila de velhos pedófilos dá a volta ao mundo.Te cuida. e se a fama dos pais de santo prevalecer. . Papai estava na horrível fase onde os velhos ficam ruminando a mesma história. . o inferno fechou para reforma. .Tem um soldado abestalhado aí na frente perguntando se teu pai mora aqui. toda saltitante. O tempo inteiro.Você não tinha ido embora? . § Quando o inferno fechou para reforma Vou pôr a gravata chinesa enquanto arrumo as idéias: com a certidão de óbito. senhores. . conto sórdido antigo. talvez eu arranje vaga na Casa do Estudante. Ela merece dias melhores. Adeus. o que é que eu digo a ele? Eu só sei que eu é que não moro mais. Principalmente porque não botávamos dinheiro dentro de casa. Ha ha ha! A Senhorita Ninguém está de volta. Bom. e de causar uma cicatriz na memória. E não deixa de ser. é minha única saída. o tempo todo. mas com um pouco de sorte. esse tal pai de santo vai ser uma mãe para a pequena cretina. O velho era tão filho da puta que quem passasse na porta veria um senhor simpático e uma menina boazinha (o inferno está cheio de velhos simpáticos e meninas boazinhas). 40 CRUVIANA . Porque por aqui.Você não quer o endereço de onde eu vou ficar? – pergunta ela. Chapeuzinho vermelho finalmente livre. mas a sós ele reclamava de tudo. estranhamente belo.Táaaaaaa! – ela desaparece. E a pequena agüentou uma boa pá de meses. . Com um carro desses o Militar H. e mais essa agora? Porém. Tenho 21 anos. só pode estar comendo da banda boa da vida – e indo morar lá estarei enfim dispensado de comer da banda podre. Então o cabo Anselmo se dignou a me informar: . O carro é bonito sim. O Coronel me deu o dia livre. não é um policial militar e sim um soldado raso do exército brasileiro que veio com um daqueles carros monstros bebedores de petróleo com tração nas quatro rodas. esse policial chegou tarde.informo.. Mas oh que alívio!. . A dona Justiça vai ficar sem receber.Quem vai levar é o carro. seja lá o que o velho tenha aprontado. . marido da minha irmã. . mais um estudante de Direito.Direito – eu digo. Papai morreu mas vou ganhar casa nova. mas há uma miniatura do horrível palhaço da Mcdonald pendurada no espelho que é de doer de mau-gosto.Vou te levar até a faculdade. E fuck you Mister Bill Gates! – eu terei um futuro – é só permanecer sorrindo . Pressão 12/8. para me levar ao meu novo lar. a gasolina é por conta do governo.Então quer dizer que você é o Bernardo? É impressão minha ou há um tom de xaveco na voz do Cabo Bonzinho? .Mas a bosta da faculdade é paga . em seguida pergunta o que estudo.Faço cara de quem vai levar o tiro de misericórdia – vou ver quem é esse policial.Legal. sobe aí. não eu – sorri o Cabo bonzinho. hoje em dia até os cachorros são bacharéis.Pois é. .mesmo sem estudar CRUVIANA 41 . Empurro minhas caixas dentro do carro e rejeito a carona do soldado bonzinho porque digo que vou para a faculdade e é muito contramão. depois. vindo a mando do Militar H. Meu Deus. alisando minha linda gravata barata. 42 CRUVIANA . me dizendo que não. é um dos brasileiros mais premiados da atualidade. Este conto foi originalmente publicado no livro O Metal de que Somos Feitos. É autor de: Helena Gold.muito embora o palhaço da Mcdonald balance e caçoe de mim durante todo trajeto. O ciclista. vencedor do prêmio Pernambuco de Literatura. com mais de 100 prêmios ganhos. dentre outros livros. Mas quem quer saber de mais essa bosta fabricada na China? WALTER MOREIRA SANTOS é de Vitória de Santo Antão (PE). Escritor e ilustrador.mandarim . sinais Clauder Arcanjo “O arrepio é o código do mistério que nos rodeia. estudioso de francês e latim. – foram as palavras do Mestre Galdino Epaminondas. – Estranho. percebido – na madrugada da segundafeira. sempre chamado a desvendar as estranhezas da província.” (Paulo Bomfim. em O Colecionador de Minutos) O primeiro. Após a grande feira do domingo. sob a copa do tamarineiro do Mercado Público. foi descoberto – melhor. com os CRUVIANA 43 . o primeiro das festas da Padroeira Senhora Sant’Anna. Muito estranho. Ele. óculos de fundo de garrafa. nos rodapés dos grandes tomos. Entenderam? Logo Cabo Dandora quis afastar todo mundo. Dispôs um cerco em torno do acontecido. Muito estranho. Mulher do sacristão da Matriz. – Estranho.. – Estranho. O bêbado Zarolho. a entornarem litros e mais litros da cachaça da bodega do Edmundo Simplista. meu povo. “Em busca dos mistérios da vida. praguejava. com receio de altercações. Desta feita. – Vão todos para casa! Deixem a questão com as autoridades constituídas. Muito estranho. – Estranho nada!. já marcadas pelo saco herniado. Muito estranho. altissonante. minha gente!” – anunciava. – rodava o cassetete de juá. o aviso segundo. O prefeito quis decretar estado de calamidade pública. na tentativa de preservar o objeto para a análise posterior. nas coisas nunca lidas. Seu Geraldo das Nicas.. Como ontem estava havendo festa lá no Alto. Com pouco. aposta- 44 CRUVIANA . na calçada de Dona Candinha do Matapasto. numa ressaca dos diabos. e incomodado com o movimento na sombra do seu tamarineiro predileto. Mais de olho no superfaturamento dos procedimentos do que mesmo no desvendamento do misterioso sinal. resolveram chamar os santos logo aqui no Mercado. quando lhe assacavam a pecha de maluco. os malandros de Licânia. – Estranho. a colocar o nariz nas letrinhas as mais pequenas. Pequenos círculos concêntricos. e fungava as calças de brim marrom. nem muito menos entendidas. Isto deve ser serviço das benzedeiras do Alto da Liberdade. Na noite da segunda-feira. Seria um sinal da Santa? — será preciso melhor acompanhar. Quinta-feira. – Estranho. De merrrrr.vam a origem e a relação entre os dois mistérios. em seguida. o ofício do rosário. no Céu.”.. convertida a pia mariana do Santo Ofício... após a morte do Seu Cristiano Falômetro.. Peia de fazer todos se urinarem de dor. – Mundiça! Na manhã da terça. Na quarta. amante inesquecível. “No Céu. “Deve ser coisa da oposição!”. Muito estranho. com minha mãe estarei. Em frente ao Patronato Sant’Anna. e com as filas de visitantes de várias cidadezinhas da ribeira do Acaraú para testemunharem o inesperado. cantavam a plenos pulmões as Irmãs de Maria. chamou CRUVIANA 45 . Para assombro das beatas. não sabiam se oravam ou se praguejavam contra tamanho infortúnio. – Minha Santa! Santa minha! As beatas entoaram o Salve Misericórdia. ex-prostituta do Caneco Amassado. onde já se viu!? Tudo obra de quem?! Deve ser arrumação deste prefeitinho de merda.” – Vão todos para casa! Deixem a questão com as autoridades constituídas. Cabo Dandora. Saudada com uma sova nos presos da cadeia. outro. atordoadas. no centro do Largo da Matriz de Sant’Anna. o sexto. puxando. o terceiro. outro aviso na calçada da delegacia. no Céu. “Que nada. Agora. na calada da noite.. em favor das almas mais desgarradas. O quarto.da!. No Céu. o prefeito. e desgraçadas. e de raiva do “maldito cabo”. para não perder o costume. As freiras. ao ficar sabendo de mais um acontecido. no purgatório. os meninos da Rua de Trás deram com mais um: o quinto. Sexta. Muito estranho. sob a regência de Dagmar das Piranhas. ainda amaciou o lombo de meia dúzia dos mais afogueados com sua adorada companheira de cós. – Estranho.. “No Céu. seu cabra frouxo. no sábado. clauderarcanjo@gmail. Lápis nas Veias e Novenário de Espinhos. homem de Deus! O caso é para o bem comum. e confidenciou-lhe: – Não podemos desperdiçar tal oportunidade. 46 CRUVIANA . Nosso município foi escolhido pelo Além.” – Estranho. preocupado com o “apurado das últimas ações públicas”. Nossa missão: servir ao povo! Nunca se esqueça: servir ao povo! – Estranho.o seu assessor de confiança. Foi o maior deles. Honre essas calças. o sétimo sinal deu-se na Prefeitura. já era notícia em todos os jornais do estado. conseguiu finalmente entrar no prédio. só nos resta dar uma “mãozinha” para tais sinais nunca faltarem.com. a cidade foi sacudida por um grito de horror. No Céu. Muito estranho. no Céu. e arrepio.. responsável pelas licitações mais rentáveis. Somos servidores públicos. A horda quilométrica de visitantes. CLAUDER ARCANJO é de Santana do Acaraú (CE). Você me entende? – . pelos fundos da prefeitura.. Autor de Licânia. ninguém entendeu nada. Você não acha? Agora. no Céu. Seu Chaga Magrela. Não houve expediente. a carregar o manto da Santa e a proclamar o fim dos tempos.. com minha mãe estarei. é também editor da editora Sarau das Letras e apoiador da Revista Cruviana. – Não me venha com esta cara de égua. bem em frente à porta principal.. Muito estranho. Quando o servidor Chaga Magrela. Quando. tudo acontecia do mesmo jeito: aquela cantilena enfadonha de enganar e ser enganada. o pesadelo de acreditar que o gozo nunca se liberta da CRUVIANA 47 . Leontino Filho “Que o amor é um duelo. tudo parecia um sonho: de repente.de través R. o amor entre um homem e uma mulher”. nada de novo. Nas vezes em que ele ficava. a mesma traição ascética que morre na rotina dos prazeres. (Antonio Carlos Villaça) 1º MOVIMENTO: volta Nas vezes em que ele saía. há: a ressaca de não olhar de frente a traição. o meu já está destroçado. Há algo mais deselegante do que um olhar traiçoeiro? Sim. a única poeira que inunda minha pele.imaginação: mas como acabar com o traiçoeiro engano? Ele que descubra nas noites mal dormidas. 48 CRUVIANA . não há diferença alguma. Olhos – tudo e nada mais – sem retorno: olho. lá de sua mesinha-de-cabeceira. Cada cortina abre-se para um dia igual aos outros. recebo outras borboletas de asas tão afiadas que desconfio até que não são para mim. cada vez mais morria a última gota do derradeiro beijo: baba que ensaia vôos dormentes de uma adormecida paixão. a cidade de abafadas vontades e intensa boçalidade nada só e ele nem nota: o olhar que para ele se volta. ainda mais quando se trata de separação: ela que siga seu rumo. de soslaio: olhos. Resta. E ele nem percebe os aflitos enganos que rondam o quarto onde. tanta precisão nessa seara cega de intensa metamorfose. Por quê? Nem tudo ou quase nada necessita de porquês. ele é. 2º MOVIMENTO: fica A vida. faz-se o mundo da solidão. de braços e pernas bem abertas. de preferência: de gorjeta em gorjeta. Há um certo modo de ser na cotidianidade todas as vezes que o silêncio. as mesmas aparências mudavam de rumo: no trabalho. o resto de solidão que ainda me sobra. atravessa o vasto território de mediocridades e ganha um colorido especial. confiantemente. traçado em linhas tão desalinhadas. sem ela. ventos que balançam o vazio das lembranças. somente passos ao léu. quanto engano. Nem sei mais a quem traio – a própria traição ou a mim mesma. Juras rondam o tempo de não dizer mais nada. em toda a sua finitude. segue. quer dizer. E quantas vezes o sino tocará a sua morte? Quando sai ou quando chega. sim. Ela que prossiga – no prumo do avesso. ele nem pressentia o fim. ainda. Nas vezes em que tudo parecia bem. R. as tuas – nossas traiçoeiras promessas de amores austeros: onde a orfandade de quem ama está. ficar é perder o senso e entrar. na vida. nas muitas vezes em que jurava o que nunca poderia cumprir. nada resta dos amores que juntos foram perdendo o viço. Imagens. retiro o meu nome. CRUVIANA 49 . se tudo corria contra nós: a mais sagrada mentira sangrava de tuas mãos e eu sentia imenso prazer em marcar as horas dos desencontros: sempre ao cair da noite eu me erguia – sonâmbulo de todas as mentiras: as minhas. Doutor em Estudos Literários pela UNESP (Campus de Araraquara/SP) com a tese: Lavoura arcaica – o narrador solto no meio do mundo (2005). DE ÂNGELA PARA ANTÔNIO NO VÍCIO DO DIA QUE CHEGA OU DE ANTÔNIO PARA ÂNGELA NA FARSA QUE GERMINA Quanta imaginação no parentesco turvo da noite: os amantes amando se traem. cada inferno acende uma brasa para a tua maldição. segue. de tantas luas e de poucos esquecimentos. De dentro do ódio. por isso mesmo. não esqueço. também pudera. na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. também. Nessa dilaceração. Leontino Filho nasceu em Aracati/CE. ela. ela. Doce Ângela de endemoninhados pensamentos. de vez. no purgatório das fantasias. a minha não a quer mais por perto. em cada saída. porque esqueceria. alheio às vontades do mundo. queria dizer mais diretamente o que só obliquamente me dizias: vai. Não. Publicou os seguintes livros de poemas: Amor – Uma Palavra de Consolo.muito medo entremeado na paixão distante: toda grande paixão está sempre para lá do horizonte. Cidade Íntima. Se o tempo assim o quiser. em outros lençóis. Entressafras e Sagrações ao Meio. e eu sabia. sem enfeites. ainda assim amam em tendas armadas de más-intenções: uma bênção para a pestilência do engano – salve-se quando puder. segue a picada que mais forte fere a alma: e. ainda assim. guardo penumbrosas saudades. sei lá em que camas ou redes soltas correm suas taras. afogueado Antônio. É poeta e professor Teoria da Literatura e Literatura Brasileira. perdida no olhar. em nome do pai Carlos Gildemar Pontes Pai nosso que estás no céu. alguns da Ásia. Gostava de acompanhar o pai nos passeios 50 CRUVIANA .. dos países da América do Sul. da Europa. De cedo já sabia muita Geografia. Capitais dos estados.. sempre na hora de dormir. Engraçado é que quarenta anos depois ele ainda ouvia falar nos mesmos nomes ou nos filhos e netos que herdaram esse poder. Ele era um menino especial. até nomes de governadores e presidentes. Sua memória fabulosa gravava imagens dos lugares da infância como quadros de um filme que passava à noite. juiz. nas compras pelo centro da cidade. Talvez fossem os olhos aflitos daquelas crianças infelizes. Ia para ganhar os adoráveis bolinhos de goma e alguma revista do Homem-aranha. Com a mãe andava às tardes. O mar sempre foi a sua maior paixão. Viveu muito tempo pelas casas. Passou a ver olhos no escuro.pelo subúrbio. sem lembrança da Geografia. No dia do seu sequestro. onde havia uma colcha marcada de sangue das suas feridas e muitas moscas. Aguentava as paradas intermináveis nas lojas porque sabia que seria recompensado com algum gibi e com o “bulim”. sua segunda paixão. do Superman. tirando-o dos trapos da cama velha. seus bolinhos que derretiam na boca. CRUVIANA 51 . Quando seu pai foi embora. do Homem de ferro. foi arrancado dos braços da mãe e colocado num internato. pelas praias tranquilas onde borbotavam jangadas cedinho da manhã. Sua mãe passou a ser a sua única Geografia. era como se em suas veias corresse água do mar. Sua memória foi abalada pelo seu sofrimento e o de muitas crianças. Esperava alucinado a hora de vê-la e chorava muito de uma dor maior que a dos maus tratos. gostava de passear e adorava comer bulim. Ali dentro era um lugar sem mar. do Fantasma. Olhos coloridos.. companheiras de todos os meninos. Não lembra quanto tempo passou ali. do Batman. superou a Geografia. Queria ser um super herói para punir os maus que judiavam com crianças e para afastar aqueles olhos que o perseguiam no escuro. Era uma dor na alma que não passava naquele internato. Era um menino de coração bondoso que sabia dos lugares. sua mãe entrou de supetão e quebrou o que pôde. do Quarteto fantástico. Onde andarão aqueles meninos e meninas do internato? Em que sorte de vida se meteram? Terá algum médico.. sem mapas e sem bulim. bolando. não soube de nada. Tornou-se triste. agarrado na barra do vestido da mãe. seu mar. e chorou novamente sobre aquele caixão de lembranças. meio oriental. Já velho e adoentado teria melhor vida num asilo. Assinou o protocolo de entrega do velho e pagou um ano adiantado. Reviu a mãe morta. Vice-presidente do Conselho Municipal de Cultura de Cajazeiras-PB.Bata sempre. A maioria não tinha pai nem mãe. Beijaflores e bem-te-vis deviam passar o dia ali. Na saída. de preferência nos lugares onde não ficam marcas. Na entrada do asilo foi recebido por uma enfermeira e por um sujeito forte. Editor da Revista Acauã. chamou o sujeito de olhos puxados e deu-lhe uma boa gorjeta. CARLOS GILDEMAR PONTES é escritor. Um dia desses. Iriam morrer da primeira doença que lhes entrasse pelas feridas. com olhos puxados. Sentiu calafrios e lembrou do traste do pai que o gerou. . Perdeu-a antes de terminar a faculdade. Havia flores no jardim do colégio Santo Antônio. E não pare de repetir no seu ouvido: “Eu vim lá do Internato Santo Antônio do Buraco!”. Poeta.it. 52 CRUVIANA . Lembrou da mãe trabalhando feito uma condenada para alimentá-lo e vesti-lo com carinho. pensou afinal que a sua cota de bondade permitiria que fizesse um último favor ao pai. Serão homens e mulheres tristes. gilpoeta@yahoo. o que aumentou ainda mais a sua dor da alma. Só o internato e a janela de vidro onde começava o mundo. O inferno e o céu não existiam. com uma expressão serena. Professor de Literatura da UFCG/ Cajazeiras. ele passou no lugar onde fora o internato. Olhou para a foto dos seus filhos e foi a procura do seu pai.governador? Claro que não. loucos para matarem aqueles demônios do internato. o amor de alencar Mário Gerson Assíduo frequentador de lojas de antiguidades. certa vez. manhãs iam embora. a de Alencar. O Livreiro. que Alencar folheara toda a sua estante de História Universal à procura de qualquer fotografia. caçando um retrato dentro dos livros. enquanto Alencar passava as páginas dos livros.. nos sebos que visitava. céleres. Bartolomeu. uma mania esquisita. nos fins de semana. contou-me.. a procurar fotografias antigas dentro de livros. Era comum vê-lo folhear páginas e páginas.. às vezes gastava tardes inteiras. Eu CRUVIANA 53 . Alencar sempre se dispôs. Ficava assim.. horas e horas. de discórdias e vaidades e. depois ia para gráfica acompanhar a gravação das chapas e a impressão do jornal. contou-me Bartolomeu. Primeiro. Lá aprendeu de tudo um pouco. Aos 30 era um bem-sucedido professor de Língua Portuguesa e Literatura. diziam alguns. Passou num concurso para professor. Não nascera para aquele mundo de cigarros e cafés.. e foi ensinar numa escola pública. como se dizia no jargão. de barulhos de máquinas. um amor silencioso. Alencar começara cedo demais numa profissão que mata antes de realizar os sonhos literários e assassina a criatividade.. Durante quase um ano.. zigue-zagueando pelos corredores. Alencar passou anos gostando de Marília. Era inteligente. Ouvia o barulho das máquinas. respeitoso. via a medida da página. A primeira experiência como jornalista foi um fracasso. Recebeu uma caneta e um bloco de notas para escrever a reportagem. Era muito velho para a moça.. Entrara na Redação ainda de calças curtas. Jovem ainda. escasso de informações. por que não. de anotações. Alencar rendeu-se a outras atividades. Passou o dia inteiro para redigir o primeiro parágrafo e no final da tarde concluiu o pequeno texto. 54 CRUVIANA . Numa manhã. começou como aprendiz. recluso. aos 26 anos. deixando recados. um repórter adoeceu e Alencar teve de substituí-lo. solteiro. de noites insones.nunca entendi o que ele queria com essa procura por fotos. Alencar fora jornalista num diário de sua cidade. Alencar apaixonouse por uma jovem estudante. de babões de plantão. Alencar ficou pela Redação. Um dia. Porém. também. de folhas de papel.. um troca-tintas. Especialmente discreto – mal abria a boca –. levando encomendas.. ficava vendo os outros escreverem. Alencar começou a colecionar objetos variados e estranhos: pedaços de papel.. De uma hora para outra.. antes da loucura o dominar. de tudo um pouco. RN. nem eu nem Bartolomeu desconfiamos da estranha mania de Alencar. CRUVIANA 55 . Por um tempo..Nos últimos tempos. começou a colecionar. É autor dos livros A Morte do Pescador (novela). E ele colecionava essas coisas?.. lenços manchados de batom. O Suspiro do Inimigo (Contos) e A Noite de Luvas Brancas (Poemas).. O vi muitas vezes vasculhando o lixo à procura de objetos. perguntei a Bartolomeu. Alencar sussurrou duas ou três palavras próximo à estante onde estavam os livros de poesia.. colheres de lanchonete. ele enlouqueceu. disse-me ele. objetos e utensílios inimagináveis. Colecionava. Bartolomeu aproximou-se para ouvir: Ele suplicava que o livro onde guardara o fio de cabelo e a fotografia de Marília sorrisse para ele... velhos cadernos. colecionar. MÁRIO GERSON nasceu em Mossoró. Da segunda vez que visitou o sebo de Bartolomeu. o colecionador de guarda-chuvas David de Medeiros Leite Meses e meses recolhida e murcha. cresce. porém. causas determinantes para o surgimento do colecionador. no poema “O Guarda-chuva”) O perfeccionismo extremado e o jeito sistemático de levar a vida foram. em casa 56 CRUVIANA . pode ser creditado a um ou outro esquecimento do inseparável guarda-chuva. (Mauro Mota. sai de casa. liberta-se da estufa. Agora.. O começo de tudo.. cresce na mão pluvial. a flor guardada (o guarda-chuva). decerto. nem mesmo os idênticos eram rejeitados. justamente. por aí. Não demorou nada para que os colegas de repartição começassem a presenteá-lo com guarda-chuvas. pelo fim do expediente. oferecendo um. ou seja. comentando CRUVIANA 57 . Em viagens de férias. em uma calçada. Sim. cuidadosamente reservado às situações emergenciais. No entanto. enfrentar uma intermitente garoa – ou até mesmo uma forte neblina . Este foi o motivo para que. crescia o esmero no acondicionamento e na sistematização dos registros individuais: origem. principalmente. pois nada lhe era mais incômodo que. ou à composição de um “estoque mínimo” destinado ao socorro de colegas. Era comum vê-lo admirandoos horas a fio. passou a ser o suvenir das cidades visitadas. senão que encontrar modelos diferentes: já havia certo esforço em não regalarem exemplares repetidos.isso todos já tinham bem claro -. o guarda-chuva. Quando via um camelô. sobremaneira aguçavam os sentidos do atento colecionador. Por motivos óbvios (não devoluções. a preocupação dos amigos não era lhe escolher o presente . nos casos de esquecimento. por exemplo. a preço convidativo. e emergiu clara divisão. nada de misturar as “peças” que seriam destinadas à coleção com as que pertenceriam ao referido “estoque mínimo”. As diferenças e os detalhes. descobrindo e anotando minúcias. coisas assim). geralmente despercebidos ao usuário comum. também.que lhe molhasse o engomado terno. avarias. E a coleção ganhava robustez em número e. características básicas. e sem perceber. Com o passar dos dias. um de reserva. Em seu aniversário. data de aquisição. não tardou. na medida em que seriam destinados ao uso diário. Dirceu foi comprando outros tantos. estes eram.ou no trabalho. os semelhantes. não hesitava em adquiri-lo. fosse providenciado para cada local. aos berros. a casa estava ingurgitada.As varetas daquele são admiravelmente arqueadas. Olhe. a cobertura desse outro é de material especial. revela um tom nobre.. veja bem. guarda-chuvas?!. e este. canetas. com o pensamento a ruminar o destino que daria ao que ele considerava “parte de minha vida”. banheiro social.. Seguiram-se noites insones. possuem diferenças. Mas. A divergência entre eles descambou para um nível insuportável. .Dirceu. O que antes ficara restrito ao quarto do filho – que não tivera – avançou para o de hóspedes. Com o passar do tempo. é comum ouvir-se falar em coleções de selos. corredor... os guarda-chuvas. se ninguém ao menos a visita? Francamente!. da porta de sua casa. biblioteca.. Quase suspirando.absorto: . .. distribuir 58 CRUVIANA . que comprei numa viagem a Pernambuco.Como as pessoas.Clotilde. Todos os cômodos ocupados. de cabo revestido de couro. sem maiores problemas. Após uma convivência de trinta anos. mesmo que pareçam iguais. melhor avaliadas por quem os olham de forma singular..esbravejava a mulher. cozinha. você terá que resolver: ou ela ou eu? À força do ultimato.. somente ocupamos lugares nunca utilizados! A prova maior é que seguimos fazendo tudo que fazíamos antes. . Com a chegada do inverno. chaveiros. o colecionador perdeu a alegria de viver. foi a primeira da extraordinária série das sombrinhas. finalmente. para que serve esta sua coleção.Isso não pode continuar assim! . sala. E. chegando mesmo a invadir o quarto do casal. A sombrinha colorida. o casamento parecia ameaçado. Dirceu encontrou a saída: esperou uma chuva torrencial para. filosofava: . tentando a reconciliação. Contudo. lhe sugeria uma bela aquarela. é um presente. Alguns ainda insistiam em alongar um pouco a conversa – misto de agradecimentos e curiosidade –. e seguiu em sua faina. sobre a inutilidade da coleção. ela lembrou-se de que. saíram caminhando.Nada. quando ouviam aquele grito oferecendo um guarda-chuva. como não havia restado um só guarda-chuva. De repente.a sua coleção. e continuava sua tarefa. Dirceu pôde contemplar a imagem mais bonita à visão dos seus olhos: sua coleção espraiada por toda a rua. De volta a casa. Transeuntes apressados levavam enorme susto. Depois da longa chuva. mesmo sob o cinzento da tarde. necessitariam adquirir outro tipo CRUVIANA 59 . quase todos. convidou-o para um passeio: era bom aproveitar a brisa vespertina.Quanto custa. a verificar se ela. deu de ombros. Calados. uma vontade de olhar para a janela. Em meio a tanta tristeza. também. a desfazer-lhe. E. nem eram percebidas. Clotilde. a pretexto de um café. Suas lágrimas. misturando-se com a chuva. uma alegria: a certa altura. no instante. talvez nunca antes concebida pelo mais talentoso dos pintores. escutavam: . Foi-lhe. então. perguntavam instintivamente: . da mulher. Pouco mais de uma hora foi o bastante para desmanchar o que edificara em vinte anos. mas o fluxo de pessoas era tão intenso que Dirceu apenas pedia desculpas. a gravidade do rosto. E ficou maravilhado com a diversidade de cores e formas em movimento que. senhor? Incrédulos. estava apreciando o “espetáculo”. inevitável a lembrança das repetidas vezes em que ouviu. De sorte que a cena conseguiu arrancar-lhe um sorriso. Ela escolheu uma branca. Incerto caminhar (poesia). não é mesmo? DAVID DE MEDEIROS LEITE é autor de vários livros. Foi quando.com 60 CRUVIANA . Dirceu voltou à mesma loja em busca de uma capa amarela que lhe tinha enchido os olhos no dia anterior. dentre eles: Ombudsman mossoroense (crônicas). davidmleite@hotmail. e Cartas de Salamanca (crônicas). a seus olhos tão bonitas. também. quase em tom de justificativa. bem cedo.de abrigo para os dias invernosos. Na manhã seguinte. Entraram em uma loja e pediram duas capas de chuva.É sempre bom termos alguma reserva para as eventualidades. uma verde e outra azul. comentou com o vendedor: . Terminou levando. e ele optou pelo vermelho. solteira e que morava sozinha. foi encontrado o corpo da modelo de 30 anos. Tribuna de Vale do Rio Doce. em seu apartamento. e não há evidências de arrombamento ou de luta. 21 Oito da manhã. seja um possível amante da vítima. Na manhã de ontem. 19 CRUVIANA 61 . O crime aconteceu na noite anterior. Suspeita-se que o assassino. ainda não identificado. com tiro no peito. “Mulher morta.” Quarta-feira.álibi Lilia Souza Sexta-feira. camisa. escrivaninha. casaco. revisora de texto. Professora. portão. lençol. Botões. porta. escadas. LILIA SOUZA nasceu em Volta Redonda – RJ. contista. pijama. sala. bolso. Apanha o livro na mesinha de cabeceira e continua a leitura interrompida na noite anterior – quando pegara no sono e o volume lhe caíra das mãos. até que amanheça. varanda. passos apressados. prédio. travesseiro. bolso do casaco. porta. pia. 62 CRUVIANA . logo ele estará roncando e dormirá como um menino. arma. sala. porta. cadeira. Dez minutos. porta. Membro efetivo do Centro de Letras do Paraná. torneira. escritório. Silêncio. cabelos. escada. Pente. poetisa. observa o marido. rua deserta. papel. veste a camisola. Como há dois anos. sabonete. Chinelo. travesseiro. escada. cama. Olhos fechados. Depois que se deitar. corredor. chinelo. Porta. Bolso. Licenciada em Letras. Escritório. lençol. chapéu. gaveta. descarga. torneira. mira. quarto. passos pela rua deserta. cadeira. toalha. dentifrício. boa-noite. escadas. Ruído de livro ao chão. arma. porta. luvas. sala. casaco. sapato. Ronco. casaco. toma o comprimido que rapidamente a faz dormir pesado até às sete da manhã. duas quadras. água. tampa. Banheiro. luvas. toalha. escritório. Enquanto engata a leitura. meticuloso. calça. passos leves. Com o leito já arrumado. preparandose com seu jeito disciplinado. gaveta. porta. Meia hora. quarto. torneira. varanda. corredor. sala. vaso. revólver. chapéu. campainha.Onze da noite. porta. portão. chinelo. Não é dia de se fazer amor. sala. passos leves. escrivaninha. zíper. porta. membro titular da Academia Paranaense da Poesia (onde ocupa a cadeira de número 34) e associada correspondente do ICOP – Instituto Cultural do Oeste Potiguar. meias. boa-noite. água. ronco. porta. Escada. mão no bolso. mas reside em Curitiba – PR. sem precisar de soníferos. porta. quarto. chinelos. porta fechada. corredor. torneira. Armário. pesquisadora. gaveta. ela se despe. tampa. porta. se penteia e se recosta à cama. Olhos abertos. escova. gaveta. gaveta. porta. porta. é especialista em construção de texto e literatura brasileira. duas quadras. Dez e cinquenta e cinco. cadeira. cama. tiro. Carla Diacov CRUVIANA 63 . pero aceleré mi paso y me perdí entre los otros peatones. diez años después de la fallida convocatoria. Me miró como uno mira a un amigo que hace tiempo que no ve. 64 CRUVIANA . pero esperando una respuesta sabida. pasados diez años de aquel terrible episodio. al oír mi nombre y volver mi mirada hacia ella me detuve. No recuerdo con claridad los hechos. me reconoció sin dudarlo y me preguntó con voz tímida. En esa oportunidad me había gritado para detenerme. cuando su llamado fue efectivo.Marga Pedro García Lavin Nos cruzamos por primera vez en la esquina de Bulnes y Corrientes. pero ella me lo afirmó en el segundo encuentro. lo arrojé al suelo y lo destrocé de un pisotón con el taco de mi zapato. lo creo muy humillante. Soy Marga. también fui alumna suya de la clase de filosofía en el año 72. siéntame! He vuelto para estar a su lado… -No señorita. ahora sí. Le dije para ocultar mi pánico. ella tomó más seguridad al ver la  marca de cigarrillos y la manera de encenderlo. aunque supiera que no era real). ¡Tóqueme.-¿Profesor Raúl Núnez? . profesor. esta porquería me esta matando. Que ya es suficiente. No sé qué pretende teniéndome enfrente suyo y diciéndome todas estas cosas. (Pensé en Marga. -Marga Solari… Si. no puede ser. Usted es una mujer muy bella. . estoy viva y frente a usted. -No. fue alumna mía. vos estabas… -No profesor. la recuerdo. mi exaltación. mientras encendía un cigarrillo para incomodarla. para seguirle la corriente a un imposible. su amante. Contrariamente a lo deseado. es de muy mal gusto jugar con estas cosas. Sin pensar acaso si el cigarrillo estaba o no encendido o a medio fumar.¿Quién es usted? Le respondí. que ya no puedo soportar más puntadas de lanza con CRUVIANA 65 . pero no es bueno hacer bromas con gente que ya no está entre nosotros. Dijo. Le dije.Si profesor. – Soy Marga Solari. Yo era el profesor Raúl Nuñez y esa esquina y ese encuentro. Al verla tan cerca sentí un profundo desasosiego. con un gran parecido a Marga. eran escenas repetidas. Mientras decía esto algo se estremecía en mí y me consolaba pensando que he pagado y seguiré pagando esa culpa toda mi vida. –Discúlpeme. ¿Sólo me recuerda como su alumna? ¿Tan poco he sido para usted? Me dijo mientras se levantaba levemente la camisa y me mostraba un lunar que tenía a la altura de su abdomen que yo y mi boca bien conocíamos. Quiero oírlo de sus labios y me iré para siempre.. ella corrió hacia mí. -No profesor. –¡Quédese profesor. Soy yo. casi gritando. es nuestro secreto… ¿Se acuerda? -No. Pero la misma inquietud. le dije mientras encendía otro cigarrillo y caminaba hacia atrás. o los chicos que salían del colegio. soy Marga. sin dejar de mirarle la cara. me paralizaba. realmente siento mucho haber creado en usted falsas expectativas. esa que nunca usamos. y atemorizado decidí huir. es una impostora bien informada. profesor. Habitación 37 del Hotel Mediterráneo de Montevideo. . Le prometo que la contactaré y hablaremos en otra ocasión y en otro ámbito. me dijo cerrando los ojos. perderme entre las señoras que hacían compras. Marga. -Discúlpeme no quiero llegar tarde a clase. huir por segunda vez. su Marga ¿Se acuerda cuando me hizo el amor en la oficina del rector? ¿Quién más que nosotros lo sabe? Al oír esto dudé.las que mi culpa me flagela. cuando yo era un hombre y ella apenas dejaba de ser una niña. -¿Siente lástima por mí? ¿Yo era su preferida. Pude salir corriendo. 66 CRUVIANA . como una novia. nada más que eso ¿Qué quiere? Estaba frente a ella y no podía escapar. abrazándome. -Sí. Mientras avanzaba hacia mí. si usted me deja le juro que mi vida será un tormento! Apenas me di vuelta para oírla se colgó con sus dos brazos de mi cuello. como esa jovencita que me abrazó por primera vez luego de clase en los años setenta. no? Dígamelo y lo dejo en paz. me tomó del brazo y me dijo.Estoy apurado señorita. es imposible. Me dijo levantando la voz. chocando con la gente que me insultaba. Caminé unos pasos más y giré para acelerar la huida.. la misma intranquilidad que me obligaba a salir de escena. tenía cicatrices por todo su cuerpo. No me importó. y busqué en uno de los bolsillos el móvil. -¡No se vaya profesor. Al abrazarla sentí que su corazón latía lento. ya sin pudor. como moviendo mercurio. la besé. -No fui yo profesor.Me besó y saqué mis labios. Un llamado telefónico. Me levanté de la cama y fui hasta una de las esquinas del cuarto donde había dejado sobre una silla mi saco. Es un error repetido que yo esté CRUVIANA 67 . no lo recuerdo. con bombazos pesados. me quedé dormido un breve instante. eran casi las once y cuarto de la noche. Volví hasta la cama. Me enseñó una de sus muñecas. fue su abandono. hace veinte años? Me dijo desde la cama. Luego. tenemos tres noches! ¿Se acuerda cuando usted me dijo eso. la lamí hasta no sentir mis labios ni mi lengua. -Lo amé profesor. ella todavía dormía. estaba fieramente cortada y dijo señalando la herida. Después de saciar el deseo. de la devoción que siento por usted. Miré el reloj. Giró la cabeza y desde su posición me miró y volvió a apoyar su rostro en la almohada. debía haber llegado a casa hacía más de una hora. Me puse los zapatos y me dispuse a retirarme. me despertó. Al denudarse me dijo. esa tarde falté a clases. Ella supo la causa y me dijo. en la oficina del rector. No dije nada. no las respondí. Bajé la mirada al ver su piel. lo amé cada una de esas noches que pasamos en Montevideo. miré hacia abajo y a los lados. que no llegué a contestar. en su casa. Tenía dos llamadas perdidas de mi esposa. Mentí. Fuimos a un hotel. Me besó nuevamente y la besé. Lo amé en sus clases. cada mutilación es fruto del amor. -No. la tomé por el hombro y la sacudí levemente para despertarla. -No se deje condicionar por lo que vea en mi cuerpo. mi mujer me dijo.aquí junto a usted. Disculpe. -¿Se acuerda. ella sentadita frente a vos. escuchándote con tanta atención. -Su esposa. Salí del hotel sin mirar atrás. Al llegar. pero debo irme. Olvidar 68 CRUVIANA . caminé dos o tres cuadras por Corrientes. Hubiera sido importante para su familia y para su memoria que hayamos ido. recuerdo Montevideo como otro echo común en mi vida. me lo dijo en Montevideo. dije mientras mi interior desconsolado era un letrero luminoso en la inseguridad de mi voz. Por eso te llamé dos veces. paré un taxi y ordené me llevara a mi casa. como todos los días. su hija. a esta hora ya debería estar en casa. hoy a las 8 de la tarde daban una misa en conmemoración de la muerte de Marga. venía y se quedaba horas hablando con vos ¡Me acuerdo como si la estuviese viendo!. Mi esposa debe estar preocupada. del perro que hoy no ha querido comer porque está enfermo y otros temas menores y cotidianos. no quise insistir para no molestarte. Raúl. De olvidar ese balcón y mí soberbia. -¿Su esposa? ¿Ahora le importa la preocupación de su esposa? -Ya es suficiente.. luego de hablar de nuestro hijo que vive en el extranjero. de la clase sobre Heidegger (que nunca dicté). su esposa…ella lo llamaba al hotel y le preguntaba sobre el seminario y usted le mentía concientemente para que no sospechara. -Llamó la señora de Solari para avisarnos que.. seguramente te habrás quedado con algunos alumnos fuera del aula hablando de la clase ¡Heidegger es tan difícil!. no creo merecer tal falta de respeto. ¡Veinte años ya! Cómo se pasa el tiempo… que buena chica era. aunque ya no hagamos tiempo de ir. profesor? -Sí. ¿Ahora le importa ella? Di el portazo y bajé corriendo por las escaleras.  Sin responder nada me senté en el sillón de la sala tratando de olvidar a Marga... No me vengas con cosas de adolescentes enamorados. subí hasta la habitación y vi sus cosas y esa ventana abierta. Apenas me levanté de la silla me detuvo un extraño e intenso movimiento en la calle. me senté frente al ventanal que da a la calle para perder la mirada entre los desconocidos que pasaban por la vereda. dijo que alguien se había arrojado desde alguno de los pisos superiores del hotel. Bajé al bar del hotel. Tampoco oí el amor. te calmas y podemos hablar como dos adultos.ese rostro y ese asfalto de la calle 18 de Julio. Ella gritó y lloró como una fiera. No atendí sus palabras ni lo determinante en ellas. ¡No me deje sola! -Marga. Recuerdo que discutimos antes de la terrible decisión. Maldigo haberla visto morir por atender mis miedos y humillar su amor. Yo callé y luego huí. lo que me pida. Olvidar esa voz que nombraba lo que yo no quería escuchar y esos días en Montevideo. tranquilízate. El mozo trajo mi güisqui. sabes cuales son los límites de nuestra relación. Metí mis pertenencias en la valija y las llevé al cuarto que CRUVIANA 69 . juntar mis cosas y volver a Buenos Aires con o sin ella. No. Me voy al bar. tranquilízate por favor. Mientras se oían gritos de horror y de auxilio y las sirenas de las ambulancias. Supuse el resto. tomé un sorbo y me dispuse a volver a la habitación y terminar con Marga. como una niña. así estás un momento sola. tengo la imagen grabada cuando entre mocos y lágrimas me dijo: -Haría todo por usted profesor. Dudé entre salir a la vereda o volver a la habitación. Las lágrimas mojaban sus pómulos y la sangre perturbada hinchaba las venas de su cuello. En ese mismo instante el botones que entraba al hotel desde la calle desencajado y a los gritos. pero no me deje sola. Ya hace tres décadas de su muerte. como hace diez.habíamos reservado para que nadie sospechase lo nuestro. Ahí estaba su hermoso cuerpo golpeado y muerto sobre el asfalto. 70 CRUVIANA . excepto cuando fue por estudios a la ciudad de Buenos Aires. de los chicos que vuelven de la escuela y el entramado de baldosas que recubren la acera. hice los trámites y volví a Buenos Aires con Marga. Me esperaba ahí. nasció en la ciudad de Azul (Pcia. Cuando sentí que buscaba el fondo de mis ojos me mantuve inmóvil. Era mi alumna. Declaré. lo estaba esperando. Mientras ella hablaba yo sólo veía en la periferia los pies de los caminantes. ¡Hace tanto tiempo lo espero! Me dijo. Dije que la conocía y que estaba conmigo. ella en una caja de madera en la bodega del barco. Hoy la vi de nuevo en la misma esquina y ella me vio. Al salir me acerqué hasta el cordón policial. Me arrodillé junto a su cadáver a esperar al médico. vivió toda su vida en Saladillo (Pcia. PEDRO GARCÍA LAVIN. mis canas y el lento caminar apoyado en mi bastón no me permitieron eludirla. un libro de poemas al que tituló “otra vez donde otras veces”. Reconocí el cadáver en la morgue. -Todo fue muy rápido. bajé la mirada en una retardada entrega. Marga me habló. Renuncié a mi voluntad y dejé que ella decidiera qué iba a pasar. Publicó en el año 2006. -Hola profesor. me dejaron acercar hasta ella. no sabía mucho sobre ella. de las señoras que hacen compras. Me paré frente a ella. Actualmente vive en Saladillo. Yo en el camarín. sabía bien que esta vez no podría huir. estábamos en el mismo hotel porque la universidad nos pagó un viaje para asistir al congreso de filosofía. donde trabaja y desempeña actividades en ralación a sus intereses artísticos que van desde la escritura y la fotografía. Ella me tomó del brazo y caminamos por Corrientes hasta perdernos entre la gente. de Buenos Aires). Volví al bar y de ahí salí a la calle. hasta la música y la pintura. de Buenos Aires). donde recebió el título de Administrador Agropecuario. Mientras la subían a la ambulancia respondí las preguntas de oficio que me hizo la policía. yo miré el piso. como hace treinta años. os grandes olhos castanhos cruzaram os meus negros. No dia que caiu saraiva. Traz um decote generoso. Todos os dias pelas 8h15 eu espero na janela da sala. faz invejar qualquer outra mulher. os saltos altos não atrapalham. o vento faz os cabelos louros esvoaçarem. De pasta na mão. Como desejo que olhe para mim. CRUVIANA 71 . o decote não estava lá. Como desejo que sorria para mim. no seu passo ligeiro. segue de cabeça erguida. mas o cabelo pintado de louro esvoaçava. que ela passe na rua.confissão Carla Duarte Vejo-a subir a rua de passo largo. mas ela não pareceu gostar. Como desejo cheirar o seu perfume. De momento. ela chorou e pediu para sair. Vi-a afagar as orelhas do hug. Como desejo tocar-lhe. capital do Algarve (Portugal).. Os dias quentes estavam a dar cabo de mim. corri à janela. convidei-a a entrar.. O seu perfume bailou no ar. Levei-a até ao altar e mostrei-lhe a tua foto. uma cadeira de verga. não a vi passar. um sorriso nos lábios vermelhos emergiu para mim. Desejei que fosse só minha. Como desejo ouvir a sua voz. o decote voltou. nessa tarde. hug enroscou-se ao lado dela. Ajudei-a sentar . até o cão ladrar. Fechei os olhos. escreve contos. Eles querem saber onde ela está . O pequeno cachorro correu para mim. Estava calor. ofereci-lhe um sumo fresco das laranjas do teu pomar.. e não a deixou sair do sofá até eu voltar com o teu pente de osso que pertencera à avó. cuspiu o delicioso néctar. vive em Lagos.. desenha e pinta quadros a óleo. A chuva passou. poderia ela sentir-se mal. na janela não conseguia ficar. Toquei-lhe no lindo cabelo louro. deixei à porta e sentei. cheirava a alecrim. de sorriso nos lábios um bom dia expressou. esperei. como as curvas bem definidas alegram os meus olhos. Uma vez mais vi-a a passar no seu andar gracioso. 72 CRUVIANA .Os dias passaram e eu desesperei pela aquela rua. rosnou. as calças deram lugar à saia. Sempre que a disposição aparece. CARLA DUARTE nasceu na cidade de Faro. … só eu sei. Querida mãe. numa bonita cidade costeira. elas menos pretenciosas. Fabián se levantou pela manhã com uma ressaca que lhe partia a cabeça. Roxana não queria sair com ele. Olha-se ao espelho e sorri. O fato é que ela aceitou uma tarde de quarta.O homem batata frita* Regiane Santos Cabral de Paiva (tradução) Quinta-feira. ele insistiu. mas estamos mais lindos. Às vezes. Ele disse sim a tudo e CRUVIANA 73 . A principio. Na noite anterior havia bebido muito. sob uma série de condições. não se deixam levar por esse primeiro impulso de histeria que as bloqueia. tinha saído com Roxana. como é natural. ou sem pretender ofendê-las. está feliz. não sabemos se é o que alinha os planetas. depois. assim que desse meia noite. Em seguida. antes de ontem e antes de antes de ontem a essa mesma hora. não temos esse menu. enquanto tivesse batatas fritas. Como todo meio-dia. Chamavam-no o místico da batata frita. Fabián a esperou às 10 da noite. tinha que adiantar uma hora dos relógios. as coisas funcionavam muito bem para ele. __ Senhor. a noite seguiu crescendo e terminaram meio bêbados. lhe perguntou: __ O que vai comer? __ O de sempre. devido ao ajuste pela mudança de estação. Na rua. Javier saiu de seu trabalho às 12. Foram comer. Mas ele não se importava com nada disso. Fabián. eram 8hs. A noite anterior. eram 8hs. Era como se tivesse acordado mais tarde do que o normal. além de pensar em Roxana – e hoje mais que nunca-. eram 9. conforme o pedido dela. a moça sardenta que atende no local. Ligou a tv no canal de notícias. disse a aparentemente ingênua moça. notou algo estranho. Karina. a convidou para tomar alguma coisa e. fizeram amor. 74 CRUVIANA . Olhou o relógio da parede. foi almoçar essas batatas fritas que não podia deixar de comer. Esse dia Fabián não chegaria a trabalhar. Outros tantos perderam-lhe o respeito por esta razão. naquela esquina. distribuir sacolas de batatas congeladas nos locais da rede Fritpap’s. dançando salsa num bar do bairro Once. respondeu Javier. via o mundo mais acordado do que ontem. olhando da varanda. Mais tarde. Sentou-se num banquinho que já tinha o formato de suas nádegas. que hoje não teria matéria prima para acompanhar os gordurosos hambúrgueres. enquanto se espreguiçava. Outros o consideravam um ‘batata frita’ por sua devoção ao indigesto tubérculo frito.marcaram lugar e hora. Seu trabalho é. depois o de pulso. caiu aos pés do mundo. Ele a escutava atentamente – ou pelo menos dava a entender. baixou a cabeça enquanto se apoiava em uma das colunas do local. Esses bastões que se nevam com o sal e se deslizam um a um como um snowboard sobre sua língua. incompreensivelmente longe dele. quero batata frita! Nada mais do que isso. O distribuidor de batatas não foi trabalhar e até amanhã não teremos. longe. Se quiser o combo 2. Esses costumes que não fazem mal a ninguém. o combo 3 lhe dá a sobremesa grátis. Hoje a luz não empurrava no óleo fumegante como um trigal. incalculável.. se colocou de lado. paladar e garganta. __ Desculpe senhor. com cebola e queijo. estaria. com tomate e sem alface.__ Posso lhe oferecer hambúrgueres simples. Pensou que toda luta por vedar sua felicidade. se quiser acrescentar algo mais. que não prejudicam. mergulhado em uma incontida depressão. lhe damos um quarto a mais de Poca Cola e Spiritis. mas se quiser uma sobremesa maior terá que pagar um pouquinho a mais. com alface e sem tomate.até que a olhou e. que não matam. com queijo e molho e pepino. Sentiu que morreria sem as batatas fritas e que tudo é tão.. tão injusto que nesse dia CRUVIANA 75 . sua alegria. e assim a moça seguiu falando durante dois ou três minutos. com presunto e queijo. mas hoje não temos batatas fritas. Venho todos os dias aqui e sempre me pergunta a mesma coisa. com um tom ansioso lhe disse: __ Menina. duplo. queijo. Quem segue!? Javier. com tomate e cebola. triplo com presunto. Hoje não poderia ver esses lampejos de ouro sobre os bastões amarelos. seus cotidianos costumes. que não invadem. sua estadia na terra teria sido inútil. a felicidade dos homens sempre está determinada por um sim ou por um não de uma mulher que nem sequer a conhecemos. conto original do poeta e contista argentino Pedro Garía Lavin.br 76 CRUVIANA . traduzido para o português por Regiane Santos Cabral de Paiva. *Hombre papafrita. desesperada e nula.regianelatina. se aventurou pela tradução. No final das contas. Mestra em Letras.blogspot. mas nasceu em São Paulo (SP) no bairro da Liberdade e hoje. a terra da liberdade. www. Dessa vez. é professora de literatura hispano-americana da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e comete alguns contos. REGIANE SANTOS CABRAL DE PAIVA é de Fortaleza (CE).com. mora em Mossoró. Fred Veras CRUVIANA 77 . 78 CRUVIANA . Passava o dia na roça. mamãe cortava um pedaço da carne seca e assada sobre a chapa e dava a cada o seu quinhão. Jorge olhava CRUVIANA 79 . Colocava a esteira de taboa no chão. era meio-dia. Papai fazia a prece de agradecimento. Mamãe espera ele chegar. e nós sentávamos ao redor. Se a sombra descesse sobre o cabo. punha a enxada de pé. almoçar.a cor dos olhos Maria da Glória Jesus de Oliveira Papai era um homem trabalhador. Para não haver briga com os manos. Seus olhos verdes pareciam ser o reflexo do milharal. Não tinha relógio. Hora de ir para a casa. Servia uma gamela de comida no centro. Quando o estômago roncava. Era irmão 80 CRUVIANA . O homem que fazia caixões também foi. O peixe era nosso sustento. encarregava-me de sair pela vizinhança. O dinheiro dava para comprar farinha de mandioca. Minha madrinha desceu. acompanhado da esposa e de um filho. papai fazia um carinho aveludado em minha cabeça com as mãos repletas de calos. Levou cobertas para as crianças. Às vezes. O dono da roça onde papai trabalhava passou a fazer coro conosco. Mais tarde. água e velas. Mamãe segurou nossas mãos e desceu a ladeira em direção à lagoa. Reuniu-se a nós na rezadeira. Quando ele pegava bastante. fazendo às vezes de guampa. Bem velha.para o meu e reclamava. até arroz. Papai tinha uma canoa. brincava um pouco. foi nos procurar. Papai também pescava. mas ela não arredaria pé até papai voltar. mas rezou. papai saiu para pescar e não voltou. Um dia. Acho que tinha outras intenções. Sentounos no trapiche e rezamos até ficar escuro. Dava um sorriso e subia a lomba cantarolando. Tia Lica. Antes de voltar ao trabalho. Depois do almoço. quando soube. foi a vez da comadre Alzira. Mamãe pilava. achou que deveria nos acompanhar. Titia também ficou rezando. Antes de sair. Amarrava um graveto no sentido contrário do sabugo de milho. Era mais gostoso do que o pirão de farinha de mandioca. papai fazia a sesta de quinze minutos. O padre. Era meu boizinho. vendendo. com casca. mas ainda servia. Tio Clarisdino ia passando de canoa e aportou. Prendia um cordão e eu ia puxando. dizendo que era maior do que o dele. quando não viu ninguém na nossa casa. comida. Tentou convencer mamãe. Mais fácil de conseguir do que a carne. a longa fila a acompanhava. Embora a tristeza de uns. Gaúcha dos Escritores Independentes. Hoje. Paris/France. Já fiz isto tantas vezes.Assoc. as mãos lisas e o sorriso. Com ela foram duas filhas. romance. vejo meu pai de olhos castanhos. Quando vou ao espelho. a parteira. mas não deixar a labuta. Mamãe levantou-se. Já eram muitas vozes. aos cuidados da casa e das crianças. Penso que agora os olhos de papai estão azuis. poesia. “Estelinha” – infantil – e “Nascidos do Coração” .com.infantil. cada um tomou seu rumo. No trapiche não cabia mais ninguém.mais velho de papai. Os demais a se aproximarem. (madaglor@ibest. Dona Minervina. velas e lampiões. Associação Internacional dos Poetas del Mundo. Sociedade Brasileira dos Poetas Aldravianistas. Atrás. Foi subindo a ladeira e deixando as lágrimas descerem. das Jornalistas e Escritas do Brasil. Vovó Marieta. “Ninho de Pedras”. o padeiro levou pães. Um desrespeito. é que deu fim à reunião. Quando amanheceu. aos afazeres. que tantas vezes ajudara mamãe. à CAPORI . Juntou-se a nós. Pertence à AJEB-RS. foram ficando pela beira da lagoa. Deixei meus filhos no carro e desci para o trapiche. Depois de abraçar a filha e chorar junto.Assoc. à AGEI . publicou: “Despertar”. contos. Instituto Brasileiro de Culturas Internacionais. “Contos Transeuntes”. Porto Alegre/RS. algumas lanternas. convenceu-a de que era hora de voltar à vida.br) CRUVIANA 81 . “Além do Jardim” – memórias. as lamentações já pareciam um piquenique. Falas mais altas e até risadas. Ciências e Letras Castro Alves. também se fez presente. meus cabelos estão grisalhos. Em certa parte do trajeto. o leiteiro trouxe um tarro de leite. reflexos da lagoa e do céu. Divine Académie Française des Arts Lettres et Culture. Ficou com o olhar perdido em direção à lagoa.Casa do Poeta Rio-grandense. segurou nossas mãos. Depois virou as costas e caminhou com os filhos: a fortuna que lhe restava. MARIA DA GLÓRIA JESUS DE OLIVEIRA. que morava distante. O açougueiro viajava com ele. aposentada. Membro da Academia de Artes. residente em POA-RS. o dono do armazém ofereceu café. Podia chorar o que quisesse. contribuindo de maneira decisiva com a crescente desenvoltura de nossa conversa. tornando o simpático bistrô ainda mais aprazível. As notas do piano compunham harmonicamente o som ambiente.um segundo e meio depois Alexandre Cunha dos Santos De súbito. Justamente aquele encontro. uma frase atravessada cruzou a mesa acometendo meus ouvidos desarmados. Pelo menos. o clima beligerante havia sido substituído por uma promissora 82 CRUVIANA . A segunda garrafa de vinho tinto trazia maior satisfação ao paladar que a anterior. o cenário era favorável. Até então. tinha o objetivo de acalmar os ânimos exaltados das últimas semanas. promovido à custa de muita insistência. de um vilão sem delito. Os primeiros dias foram de isolamento absoluto. o olhar de espanto e os dedos irrequietos coçando a cabeça de maneira intermitente desenhavam o perfil do réu sem defesa. no entanto. não conseguia parar de gaguejar.possibilidade de reconciliação. O rosto lívido. Não merecíamos ter a figura de um culpado inocente. Não adiantava repetir. ela passou a atender minhas ligações e. não me permitindo qualquer recurso em minha defesa. as evidências pareciam refutar de bate-pronto qualquer tentativa minha de explicar a situação. Como explicar um batom perdido no console do carro? Até existe justificativa. marcamos nosso jantar. Mesmo sem culpa no cartório. Tudo por causa de uma despretensiosa carona. Parecer culpado é tão constrangedor como ser culpado de fato. A partir da segunda semana. Era a primeira vez em que saía de casa nesses sete anos de casamento. Não imaginava encontrá-la tão atraente. A sentença já estava formulada. Jurei inocência. A traição arquitetada por sua imaginação tornara-se líquida e certa. havia me CRUVIANA 83 . O problema é levar alguém tão distraído a ponto de deixar um rastro inocente. que o raio do batom não era de nenhuma vagabunda com quem estava saindo. assim o casamento terminaria por algo concreto. pois não há nada demais em transportar uma colega de trabalho que seguiria por um trajeto semelhante. finalmente. algum tempo depois. pela décima vez. senti muita vontade de ter tido efetivamente alguma responsabilidade. ou melhor. de um pecado sem originalidade como estopim de nossa separação. Naquele instante. e as duas malas de roupas empilhadas sobre o capacho da porta de entrada indicavam o caminho a seguir. Seria mais justo pra nós dois. embora comprometedor ao faro feminino de uma esposa desconfiada. Rosana permanecia irredutível. esquecido da última vez em que se produzira daquela maneira – decididamente, Rosana não trazia consigo o cabelo, a pele e o olhar cotidianos. Não demorou muito, esvaziamos a primeira garrafa de vinho, quebrando a formalidade inicial e enchendo de sorrisos abertos o nosso encontro. Àquela altura, inúmeras recordações passeavam entre goles tintos e gestos apressados tentando resgatar episódios que cada um de nós expunha com promissor entusiasmo. Talvez, para reconstruir o futuro, seja menos penoso recorrer aos bons momentos do passado. E o fazíamos com plena competência. Começamos pelo nascimento da Clarinha. O cordão umbilical enrolado em seu pescoço sufocava a nossa esperança, e o medo da perda nos assombrou como nunca antes havíamos experimentado. Contudo, a explosão de alegria ao ouvir o choro mais aguardado de nossas vidas foi algo de retumbante, inigualável, inenarrável. Sempre nos emocionamos ao pensar... Rosana lembrou o dia do casamento no instante em que fizemos o segundo brinde. Ela se vangloriava em dizer ser a responsável por ter me ensinado a brindar de maneira polida: “Pôr a taça na mesa antes de provar a bebida é de uma pobreza de espírito sem precedentes...”, asseverava sempre num tom de provocação e com um meneio de cabeça reprovador. Antes da cerimônia, recomendou-me duas coisas apenas, ainda que umas trezentas vezes: “Não se esqueça de sorrir na entrada e, no brinde, pelo-amor-de-deus, não deixe de provar a bebida logo depois da saudação! Posso ficar tranquila?”. Pura quimera! Não ficaria tranquila enquanto não co meçasse a celebração e se certificasse do bom andamento de tudo. Brinquei que quase desisti de casar ao presenciar sua crise nervosa por causa das indesejáveis nuvens cinzentas. Eram realmente numerosas pela manhã, passeando intimidadoras e sobranceiras pelo céu – justo no grande dia! A recepção seria 84 CRUVIANA realizada num vasto gramado, ao ar livre, e, se a chuva tivesse chegado conforme a ameaça, a festa iria literalmente por água abaixo. Obviamente, não perdi a deixa: “Nunca entendi aquele seu piti, o maior prejudicado seria eu...” e prossegui sarcástico, porém evidenciando familiar carinho: “Eu quem tive de fazer dois investimentos de alto-risco de uma só vez: pagar uma fortuna por uma festa que podia não acontecer e consentir em passar o resto dos meus dias ao seu lado... Muita coragem!”. Ela me premiou com uma risada aberta, embora isso não significasse bastante devido às circunstâncias, devo confessar. A bebida já se encarregara de afastar qualquer inibinição remanescente. Nossa viagem ao passado finalmente chegou ao ponto de partida. Decisão da Copa de 94, as ruas do Leblon estavam apinhadas de gente na hora da disputa dos pênaltis. Minha euforia após a cobrança do Baggio por cima do travessão durou relativamente pouco. De súbito, senti uma ligeira, mas aguda queimadura no braço esquerdo. Era o cigarro de Rosana, que pulava feito louca no meio da multidão. Disse somente aceitar as desculpas se ela concordasse em tomar um sorvete. E o nosso primeiro beijo foi verde-claro, com gostinho de pistache... A noite caminhava para o desfecho esperado quando uma frase atravessada cruzou a mesa acometendo meus ouvidos desarmados. Eu não podia ter perdido o timming, não naquele momento. Rosana não se conteve e disparou em minha direção, cobrando mais compostura e respeito à sua presença. Meu descuido – chamemos desta maneira – durou um segundo e meio a mais, não chegou a dois – tenho certeza absoluta –, mas foi o suficiente para reavivar os nossos tempos mais críticos. Dispensável dizer que minha atitude mereça alguma defesa, mas era simplesmente impossível não observar a presença devastadora da dona daquele vestido justo. E digo justo não CRUVIANA 85 apenas pela estreiteza, mas, sobretudo, por delinear com desejável competência e fidelidade suas curvas. Perigosas curvas... Ao passar pela lateral da mesa, cativou simultaneamente nossos olhares por alguns instantes, meu e de Rosana. O grande erro, entretanto, foi me prolongar por um segundo e meio em minha atenta observação – uma eternidade para um homem acompanhado. O pior é que não cogitava de forma alguma aventurarme em qualquer relacionamento extraconjugal. Pura babaquice masculina... Não pedimos a terceira garrafa de vinho, a solicitação ao garçon foi de que telefonasse à cooperativa de táxi mais próxima da região. Em silêncio, sentimos o último gole descer amargo pela garganta quando a derradeira nota do piano desafinou, quebrando o encanto da noite. Paguei a conta antes que as luzes de nossos rostos se apagassem por completo. Partimos em carros separados, cada qual para seu respectivo destino. AlEXaNDrE CuNHa Dos SaNtos é Jornalista, contista, casado, três filhos queridos. Responsável pela Programação e Aquisição de Conteúdo do Canal Brasil. Trabalha na Globosat há 21 anos - os 14 últimos no Canal Brasil -, com passagens pelos canais GNT e Universal. Em 2004, foi premiado no 1º Concurso Contos do Rio, organizado pelo Jornal O Globo e pela Academia Brasileira de Letras. No mesmo ano, publicou seu 1º trabalho: “Pracinha Xavier”, parte integrante do livro “Contos do Rio”, da Editora Bom Texto. 86 CRUVIANA O quarto era escuro. Fazia como uma necessidade para sua existência.devoção Arlete Mendes Estava lá. mas estaria lá. Deitado.. Era o que sua consciência pedia. Ele. Para além de suas forças.. banhava-se. Sempre. CRUVIANA 87 . Não ousaria tomá-la.. Era o que fazia e mais nada. postava-se nua. Pois os corpos possuem uma consciência só deles. Nem ela o tomaria. Nua diante dele. que agora falava para ninguém. Era essa consciência que ela seguia. mas nunca deixaria de lado a mente e o espírito. Distante deleite. Imóvel. iluminado apenas pelo brilho da TV. Musa Impassível. perfumava-se. Via. apartada da mente e do espírito. Parada. Imponente. Talvez não houvesse como. Era como se continuasse em transe. Não. que a visse. seu corpo estava preso àquele outro. Antes não poderia sentir o prazer que só agora conhecera. Sem feição. Desvia-se. Devoção é para toda a vida. O fato é que nada do que é pode verdadeiramente ser. com o espírito e com a mente. Sem. 88 CRUVIANA . caminhava à esmo até chegar em casa. Impossível de decifrar se bom ou mau agouro. Estática. bateria. Sua única resistência era não se entregar. Haveria sempre de ir. Isto era tudo que lhe devia. Um fardo? O poder que a aprisionara. pulsava em descontrole. Simples assim. Por vezes.Na verdade era toda seguidora. Respondendo automaticamente aos estímulos do mundo externo. Por mais que ela vigiasse e zelasse seu homem e por ele fosse. por ela seria. que era seu alimento. que sentisse o cheiro do seu corpo limpo e perfumoso e a deixasse ir. a tocasse levemente o contorno do rosto com o suave dos dedos. Sem vida. como se estivesse sendo guiada por grandes cordas ocultas. nada do que se faça pode realmente dizer o que somos. complacente com o corpo. Fantoche. Presa imóvel diante da força do predador. Arrebatava-se. Completamente envolta pela lembrança do cheiro das mãos daquele homem. mas a vida é denso nevoeiro. com sua permissão. Não via o movimento da multidão. lar e nome. ou não. Sim. Não sabia como se mexer. Junto ao seu homem podia ser. Seria tudo o que ela quisesse. jamais a libertaria? Seu coração estava nu diante do homem que nunca fora seu. Deixaria estar. músculo involuntário. Elas cheiravam a pão quente saído do forno. Havia um homem seu que lhe dava valor. Fora dele e assim seria. haveria sempre de voltar. Não passamos de nuvem rala. . O coração gritou descompassado. É que o homem-sol. Encostou docemente seus lábios. roçava os dedos em seus longos fios gelados e a conduzia docemente ao leito. a abraçava. lenta e infinitamente. era frio. estava a esmigalhá-la. Já seu homem. porque ela o pertencia. Num ímpeto. Tinha hora de chegar e de partir. Desestrela. aquele que nunca fora e nem haveria de ser seu. Diante do outro que conhecia a nudez daquela mulher. até que não houvesse mais o pó de sua existência. Por isso sempre haveria de partir.. Diante do homem-sol. Desta vez lhe sussurrara obscenidades. a expulsava para longe. a mulher agarrou-se a um fio de coragem e disse: CRUVIANA 89 . Juravam um para o outro a eternidade e suados adormeciam. por dentro. também ela obedecia aquele homem. mas ele. Homem-sol. E ele. Não deixa nunca de obedecer. embora o quarto estivesse quente e úmido pelo banho demorado. Ela? Sua mera estrela cadente. Novamente tinha de cumprir a sina. ele avançara. Olhando para esse frio. senão ainda estaria vagueante. Giraria em torno dele para sempre? Era a gravidade? A mesma força que a arrastava. Não podia ser tocada. importava-se? Quem sabe? Mas o universo nunca se importaria. Dizia que a tomaria. porque o amor é obedientemente cego. Agora decadente. Essa crença era a única força que a trazia de volta. E lá estava nua e casta. que nunca fora seu. que nunca fora seu. nunca seria totalmente dele. o que ele via era o lusco-fusco dos seus fragmentos. Do mesmo modo. mais do que a dele própria. a casa e seu homem a exigiam. este confiava. Ela também os obedecia. Havia criado um sistema planetário inteiro. apenas. seu homem.Todo dia os filhos. pois há muito fora espedaçada pelo universo. Tinha os cabelos úmidos ao chegar em casa. Enregelou-se. É mestre em Letras e professora de Língua Portugesa na rede municipal de ensino. Eterna entrega ao desconhecido.-Já não basta tudo o que tens de mim? Dei-te minha juventude. para seus filhos.. mora em São Paulo.. ArlEtE MENDEs. que sempre a exigiam de volta e assim haveria de cumprir. Teus filhos! Nunca saberás o que fazer com o que gratuitamente te ofereço! Vestiu-se mais depressa do que o de costume e foi-se.. Choraria mais se houvesse mais caminho para chorar. um lar. Tem participado de alguns concursos literários e de alguns projetos coletivos. 90 CRUVIANA . Mas ali se secou e seguiu para seu quarto.. Chorou o caminho de volta. para seu homem. Ou que eu veja como borboletas CRUVIANA 91 .acre cheiro da morte Sidney Summers Houve um tempo que eu corria desesperado ao banheiro para urinar e era recepcionado com as boas vindas de um cagalhão alheio. sejam apena os vermes da mosca varejeira que devoram a carne. Eu era um empregado desinteressado e mal remunerado com poucas horas de sono. Fora um tempo em que meu tempo era ocupado com trabalho inútil. talvez. vermes que se transformaram em borboleta. mas isso foi essencial para que a flor desabrochasse. Nem sei se eu poderia chamá-la de flor. pura perda de tempo. um tolete fétido e grosso que não teria conseguido sair pelo meu cu. O movimento ascendente como um gráfico de função exponencial começou com a publicação em revistas simples. Que você e todo o resto se fodam. Senti que eu poderia continuar. Agora tenho água quente no chuveiro e nas torneiras. Não digo que fiquei exatamente feliz. dementes e incapazes podem conceber isso sem esforços. Não me custava nada e eu ainda ganhava um assunto a mais se tivesse a oportunidade de dialogar com alguém. em textos. Minha vida deve ser mesmo pura poesia. reproduzindo valores em que não creio. Tudo isso. uma mobília tradicional em madeira de lei. Somente por relatar a realidade. não entendi como o relato de meu cotidiano. Consegui. muitas vezes. esquecidos e sujos que margeiam a Avenida Paralela e agora estou aconchegado e protegido em conforto num lar burguês. foi capaz disso. Tanto faz. não interessaria a ninguém. Mas como disse um poeta famoso que esqueci o nome: “o poeta é irrazoável”. a visão dos meus olhos. me espalhar pelo Brasil. Hoje preciso inventar coisas que vivi para continuar com a grana fácil. Mas antes quero que saiba que escrevi tudo isso num rou- 92 CRUVIANA . a minha realidade. sem tramas ou requinte. A literatura é uma arriscada corda bamba.por que com eles veio o dinheiro fácil. Eu não sou poeta. Esse texto. Mas como continuo o mesmo. depois pelo universo lusófono. Ganhei um concurso literário. tive a companhia dos lagos mortos.. para os lugares que nunca visitei. Minto sem me preocupar em ser convincente ou que saibam da irrealidade dos fatos.. uma cama confortável. espaço e tempo. pelo mundo hispânico e pelo globo. Até os mais néscios. por exemplo. num endereço fixo. quase uma complexa equação física. mas irrazoável. daquelas que qualquer um que tenha combinado certo número de palavras com um mínimo de coerência poderia ser publicado. o conforto compensa. Em degredo. co-autor de “Ratos com Asas” e “Pão com Recheio de Sobras”. A falta de alimento matará o corpo com o tempo. Will Cagliostro. mesmo que o corpo esteja aparentemente bem. Deus fez as uvas. Nunca deixe de acreditar na sua própria merda. CRUVIANA 93 .. pelo suave aroma do meu pós-barba. Se esse é o cheiro acre da morte. Ele me cai muito bem. a lama do fundo do poço. aproveite como der.. Atualmente é estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA. Já me falaram que eu. Meu conselho e exemplo coincidem. Como roteirista trabalhou nos curtas “Olho Mágico” e “Aroma de Café e Cinzas” e na web-seri “Mata-Alta” (4 capítulos). E o resto? Não se esqueça de se alimentar e de transcender os limites da mente sem preconceito. Sempre de um jeito diferente. Não me reconhecem após eu ter trocado a podridão que me cobria. o homem as passas. para outros menos. Saí a pouco da hidromassagem e estou esperando a puta morena mais gata (e mais cara) que já vi. SIDNEY SUMMERS é escritor. Se sente próximo a literatura marginal. “Para Além do que Não Há” e “Os Dias Quentes se Arrastam Mornos”. autor de “Prazer. estou morto. mas a burrice extermina a alma. Para uns mais. mais imaculado que a virgem Maria.pão branco. Sid!”. Quando saio de casa tenho a sensação de atravessar um imenso cortejo de zumbis. A vida sempre será difícil. o que quer que seja isso e considera sua obra uma espécie de pós-beat. Tem textos publicados em diversas revistas nacionais e internacionais. um grande escritor. não sois? . Era canhota.a sobrinha do mário prata Gustavo Nishida A menina entra no escritório do cara. Ué? A minha presença. Concentrado. Faz um cafuné estranho no busto do Mozart que está em cima da vitrola. levantou uma borracha que estava por ali sobre a mesa e estendeu o braço esquerdo.dramaturgicamente. Oras. não tinhas notado? Já falei pra parar com esse tu. como se fosse uma caveira. como de costume. só se dá conta da presença dela porque há.exclamou o cronista. 94 CRUVIANA . aquele pequeno chute no pé da escrivaninha: Que susto! . É! Quais mais seriam? . Sem carteirinha. tio. Carterinha. Era o seu tio preferido. Ela gostou dele.sorriu pela concordância do qual. ele chiaria que seus fãs lhe enviariam uma carteirinha e a exibiriam por aí com orgulho salientando o ditongo da palavra: Car-tei-ri-nha. o que quer? E já basta de segundas pessoas! . Gostava dela também. desse Purgatório e desse Dante que você tá falando. tio. ela gostava dele. só passei pra dar um oi. Sabe. oras! Sabe. implicou com a menina. como se não gostasse dos tus e vósses ultramarinos. Você sacaneou com o velhinho lá no Purgatório? Como assim? Que velhinho? Que purgatório? Aquele do Dante. Do Dante Alberto. Agora é narrador de futebol? A menina riu. Mas ter percebido que CRUVIANA 95 . sei lá. O Mário sentiu seu rosto esquentar. Ah.respondeu atônito e quase engasgando. Ah. mas do nada: Você não gosta de velho. porque o tio Mário não tinha desses clubes. Sem contar que já tinha finalizado crônicas com as tiradas da menina. tio? O quê? . Que rude! Chega desses erres múltiplos também. já tô treinando pra quando tiver idade pra falar assim. Ah.Ah. Quase que as lentes dos óculos se embaçaram. Tá. O Mário ficou desapontado pela falta de referências literárias da menina.gramaticalmente. Oi. menina. Achou o tio nervoso engraçado. Um silêncio surgiu. Achava que ela tinha insights legais e engraçados. Certamente. sei lá. Tinha acabado de tomar nota sobre o treino dos erres múltiplos para quando ficasse mais velha. Uma fã. é desse velhinho. Tinha lido tudo do cara. campus Sorocaba. Que foi. leciona no curso de Pedagogia da UFSCar. 96 CRUVIANA . Graminha verde. Lá se interessou pela literatura e pelas línguas. Ela deu uma piscadela e foi servindo um chá para ele. O Prata franziu a testa. Ele disse “Fala. disse: Foi mal. Pedindo licença por entre os dentes. Muita água. Gildão conduziu o senhorzinho até o Mário. Levantou da cadeira e foi à janela. Ele. Te chamei de Jabour. Que importa. Tomou água. Ficou por ali para qualquer eventual emergência. Jabour!” com a certeza absoluta que esse era o cronista certo. Lá estavam os chalés de Gildão e de Gema Margarida. Foi à rua e buscou um velhinho qualquer. A menina fez uma cara de prossiga. Só daqueles que não sabem o meu nome. Certamente. Hoje. Lá estava ele sentado em um toco em frente da casa sem varada da rua de baixo. mas cresceu em Capão Bonito (interior de São Paulo). GUSTAVO NISHIDA nasceu em Votorantim (SP). pensou o Prata. De repente. Olhou para o quintal. Parou diante do velhinho e permitiu ser reconhecido. entraram lá. sorrindo. Em minutos. O Mário a abraçou e pediu um tratamento vip para o velhote. Escreve pequenos contos porque gosta de situações insólitas. Veríssimo. o velhinho se sentiu o avô do pequeno Charlie da Fantástica Fábrica de Chocolate saindo dançando após anos e anos de cama. Pegou o senhorzinho pelo braço e o levou ao chalé da Gildão. ingressou no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná. Não se contentou. não acendeu um cigarro porque seria muito caro voltar ao SPA do Diário para parar mais uma vez de fumar.ela não tinha entendido o processo de criação daquele folhetim moderno realmente o desapontou. o daime da Gildão bateu forte no velho e lhe abriu as portas da percepção. não é que eu não gosto deles. Em 2002. tio? Não pensei que ficaria bravo! Sabe. doutor em Letras. Enquanto esperava. um bom dia aos tijolos do muro conhecido. A torneira da rua. o veneno. A camisa lhe vai aberta. Uma última golfada. Todas as latas de lixo choram a queda de um irmão. Neandertal. outro. Não existem palavras. O pão da CRUVIANA 97 . Quanto tempo levou para se desconhecer? Que vida viveu em merda?! Se preparando a boca para o vômito. O homem em busca de café. Barba de animal a caminhar numa nova manhã comum.“ascensão e queda do corpo” Morre assim um verme. Navalhada no sangue. Os olhos em chama agasalham a rua num último abraço. Com o rosto limpo em água corrente. Um gole. Joaquim Dantas De tombo em tombo. Quantas gotas de café maldito. as estantes por todos os lados. Jogado. A sala cheia de livros. de alunos. Num gradeado. e nada há ali que justifique barulho. Porque as certezas não são feitas da cor das árvores. Leitor. O fogo. Todos contra uma idéia. Que coma algo. Descrente de milagres impensados. tomando café de pequeno. Vai ser grande. Todos. Ali. Ainda acordado. mas que seja vazio. Construiu o mundo das idéias. Todas as verdades que lhe deram os livros.rua. mas sim da incolor reação dos axiomas. todas as certezas que lhe deram os fogos. nem cinzas. as horas já não o são. Todas as mãos dadas seriam união. ao correto. Verifica novamente o céu. Os brutos e sua voz. pai de suas palavras. Um amor ao digno. vai ser magnífico. Um discurso aos outros. Ensinará 98 CRUVIANA . Cresceu ali. sua fala de professor inflamado. Gênio. Não viu. Sangue sobre as palavras sagradas. Corações calados e bichos. Todos os olhos sorveriam justiça. ao cansaço. As estrelas já não são vermelhas. um corpo. pendurada a única camisa. Um mimo. A porca noite é escura. as paisagens já não são vermelhas. Excepcional. Hominis Estupidus. À vergonha. Porque não era belo. Somente ali. Talvez pela primeira vez. Porque não era vivo. Se deixa em pelos. ao vento. Fuça. ao humano. Todos aplaudem o caminhar precoce. Não quis ver muito além das janelas. de debates. Luz de poste ao longe. Todo o sentido que se perca. Um militante. Um apaixonado. Todos riem as falas balbuciadas. Lambe lixo de uma bota suja. Dono de suas certezas. na rua. e uma idéia se tornou tão quebradiça quanto ossos. Não adiantou acreditar em si quando a verborragia se transformou em brutalidade. que viva algo. Agora reduzido a nada. O garoto filho do pai. Nem pó. Filho de pai e mãe dedicados. Continua escrevendo conto CRUVIANA 99 .aos outros. Um herói nasce ao seu modo. Sono maneiro. carne e sangue. Perpetuará a espécie. JoaQuIm DaNtas nasceu no dia 8 de setembro de 1989. Que vida! Que vida! Sapatinho limpo de caminhar sobre os tapetes. sua terra de coração. foi criado em Mossoró-RN. É ainda vivo. perpetuará o saber. feito fumaça que ganha volume quando se tenta dissipá-la. Henrique Do lado de cá. Não se espante pela intimidade. Tusso a cada cinco segundos. as ações podem ser vítimas dos efeitos. crescemos juntos. maldito 100 CRUVIANA . no nosso mundo. Mas até onde vão todos esses efeitos colaterais? Meu nome é Joel. Parece até que há um relógio marcando esse exato momento. Daí. É tudo meio descontrolado por aqui. Como uma atitude que é tomada em busca de um fim específico. mas meu médico carinhosamente me chama de bronquite. mas no caminho acaba por gerar dezenas de outras atitudes.ecos de uma vida Raoni G. a “gentileza”. também disparei contra ele. deu seu último suspiro. no entanto. pensou em enfiar a mão na bolsa para apanhar o dinheiro que lá estava e entregá-lo ao cretino armado. tornei-me um mero escravo do tempo. maldito miserável. essa história de convivência nunca deu certo. Marisa. Dez vezes. O problema com a tosse não é resultado de uma bronquite.seja. éramos apaixonados. Não era de tiros que ele gostava? Pois então. A bala atravessou sua cabeça e ainda resvalou no rosto da amiga. No meu caso. CRUVIANA 101 . tudo o que vejo é a velha e companheira fumaça.. que estava no banco de passageiros. disse o doutor. Marisa. O que havia de bondade no meu coração foi dissolvido naquele dia. e então disparou. Paradas em um semáforo. ficaram aterrorizadas quando um indivíduo chegou numa moto ao lado da porta de Marisa e encostou o cano em sua cabeça. De um homem. Mas também. comecei a fumar. ela e uma amiga. Certa vez até me senti merecedor de uma medalhe. Mas o miserável pensou que ela fosse sacar uma arma ou coisa do tipo. nos filmes babacas de comédia romântica. Devo confessar que isso me ajudou a encontrar o miserável responsável pelo disparo. como o apelido sugere. Não como esses que se vê nas famílias certinhas. Pediu as joias. E isso durou até o dia em que ela. Com a morte de Marisa. pois acredito ter batido todos os recordes: fumei oito maços num só dia! Dentes e barba amarelados. Um fim trágico para quem só quis ajudar. Já nem sei mais se a minha morte virá por aquela que trago intencionalmente ou por essa outra que sai das podres fábricas e dos irritantes carros. eu também já tive um amor. A bala atravessou o lobo temporal. Entretanto.. Hálito corrosivo. mas sim pelos 25 anos e alguns milhares de maços que fumei. se realmente existir. Pele enrugada. aonde quer que eu vá neste podre emaranhado de prédios. Como você. Disse que aquilo que crescia dentro de mim era apenas o eco de uma vida desregrada. HENRIQUE é natural de Pirinópolis. o médico tentou justificar a obra prima que estava sendo formada dentro dos meus pulmões. Na verdade. Após me dar essa bela notícia. mora em Anápolis (GO). ao morrer. pois.com/raonihenrique. Eu poderia até estar feliz. Agora tenho alguns meses de vida. o que significa esse “seguir em frente” que todos dizem? Droga! Meu cigarro acabou. Há alguns anos escreve contos que são postados em seu blog: issuu. Maldita ironia. A metástase trouxe de presente ao meu corpo a pluralidade: o que era apenas um tumor tornou-se quinze. É graduado em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda – e atua em uma agência de publicidade como redator. meu destino será outro: um lugar onde o fogo e a fumaça não cessam. 102 CRUVIANA . ou se foi uma praga por eu ter praticado a vingança. Goías. Mas como sou responsável pela minha decadência.Anos se foram sem que eu me desse conta. não? RAONI G. O difícil é saber se isso foi resultado do tabaco. E o reflexo dos meus atos me trouxe de presente o câncer. iria para perto do meu amor. Todo esse tempo não foi capaz de me fazer seguir em frente. Atualmente. e notei uma coisa estranha: estava com os braços sem pelos e minhas mãos estavam pequenas. Despertei de forma estranha. sentindo-me bem mais leve. diários. que demorei a reconhecer como minha. Observei-me ao levantar da cama.. o CRUVIANA 103 . Sem preocupações com emprego. estava novamente com nove anos! Rondei pela casa. Estava realmente mais leve. E o melhor.. E estava em uma antiga casa na qual morei por volta dos nove anos. Daí percebi. monografia e trabalhos. Voltei aos tempos de aluno de escola. já era manhã e tive que ir ao colégio.nove anos Tobias Goulão Depois de mais um dia comum acordei no meio da noite. faculdade. Percebi que essa vida. Escreve quando não há mais para onde correr. Olhando os talões. Aproveitei e ignorei aquilo. a não ser uma tela em branco na qual pode fazer o que achar melhor. estava pensado e agindo como criança novamente. mas não me preocupei. Corri. Estava tudo vazio. agora se alimentava de minhas lembranças. A aula chegou ao seu fim. Pia cheia de vasilhas sujas e com os talões de contas debaixo da porta. TOBIAS GOULÃO é mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás. Chegando lá não havia ninguém. outro susto! Estavam com MEU nome! Como eu. que divide o tempo entre os estudos. Além da falta de não ter que me preocupar. além de tomar meus dias. uma criança. Vi que eram coisas da minha vida atual. Ri muito com isso. Nem mãe. Coitada da professora. Xerox. tinha isso? Então olhei para a mesa e vi um monte de livros. filmes e séries que mais chamam a atenção. diários. dormir e sonhar. o trabalho e os livros. 104 CRUVIANA . mas a única da qual me lembro é a de História. não me flagelei por “perder” esse tempo. E o melhor. natural de Pirenópolis. Brinquei. no fim dos anos 90 e ainda ensinava como se estivesse na década de 60. aquele era um tempo no qual eu podia deitar.estágio já era! Assisti às cinco aulas. nem pai. Ri. fichas de estágio e um notebook. Foi então que veio a maior saudade da infância. Fui voltando a casa e uma cena me amedrontou. Até meus sonhos foram roubados. além de se alimentar de minha energia e vitalidade. Augusto Paiva CRUVIANA 105 . e cada martelada do prédio ao lado lhe fazia lembrar. elas riam. e todos continuavam amanhecendo e saindo em busca do mesmo pão com gosto de brioche. O mundo não havia parado. Ele olhava para ela com ternura e tentava acalmá-la até a chegada do médico.Janaina Eliana Klas Janaina corria para a janela. 106 CRUVIANA . falava a Janaina do prenuncio de suas loucas viagens. tapava os ouvidos e fugia de si. O bem-te-vi que ria na janela. As vozes vinham por todos os lados. que aquilo tudo não passava de uma alucinação. cantando cantigas tribais. comprar uma casa medíocre. e um dia ter uma aposentadoria medíocre. sem o pé no chão que causa vergonha.São Paulo. viver uma vida medíocre. Escrevo no http://eutodososdias. andar em seu carro medíocre. exerço a função de Secretário de Escola na Secretária da Educação no Municipio de Suzano .blogspot. Lembrou-se de Ismália. CRUVIANA 107 .br/. que o pão. Janaina sabia onde estava. que não era brioche. sem o rosto afogueado que causa medo..Dentro dela uma cantiga de pássaros pedia que continuasse o jogo e voasse. sem os sonhos que podem fazê-la saltar da torre. No cimento Janaína enlouquecera. Tudo que tenho para chamar de meu. Janaína queria correr. Ela podia acalmar-se. Ela só queria viver sem ter a dor latente de negar que dentro dela morava alguém. aquela que quando enlouqueceu pôs-se na torre a sonhar. Janaina só queria ir trabalhar no dia seguinte..ali o lugar é meu. O bem-te-vi pararia de cantar e ela. ELIANA KLAS é formada Tecnologa em Secretariado pela Universidade Nove de Julho . meu canto. seu trabalho garantiria o futuro de sua filha e aquelas vozes iriam embora. Com o pé na terra. Mas agora eles já estavam lá. alguém maior que ela. Tapou os ouvidos e mandou o pássaro ficar quieto..São Paulo. chegaria à sua mesa.. amanhã ela iria ao trabalho... ela voltaria a ser só Janaina. esta noite ela dormiria.com. Estava tudo bem. o pão. e de tão louca morreu no fundo do mar.meu quarto. Vários motivos a fizeram alterar a data. a ensinar. descompromissar-se. apenas a partida interessava. Gosto nunca experimentado. Frutas nunca saboreadas. O destino era incerto. de rotina. aventurar-se. Sair sem destino. gente não igual. sem hora para acordar. a aprender. Lua. Tão bom! Sem preocupação com a chegada. 108 CRUVIANA . de convenções sociais. Seu instinto de animal livre. Sem hora para dormir. de cartão de ponto. Não seria “uma viagem”. mas tanto a dizer. “Seria a viagem”.a viagem Ieda Leones Nascimento Preparou-se por dias. liberto de horários. Paisagens novas. chuva. mas nunca vistos. sotaques vários. Sol.estrelas. Sua imaginação viajava. Besteira. enfileirar-se. O outro está ali com sua vontade contrária. não morder o capim. sim. não ter parada certa. Planta aquática que o rio leva. Ver gentes diversas. Porém o outro estava ali. uns grãos de feijão. Quando criança quis fugir com um grupo de ciganos. mesmo nos sentindo só. boi de canga. Ser outro ser.  Não casara por isso. modo de contar o tempo todo seu. Percorrer caminhos. É matar sua melhor parte. Não cheirar a flor. Nasceu sem raiz que busca abrigo nas profundezas da terra. ter obrigação para com outro. isso. as iaras. Sons diferentes. nem ter o sol os raios de sol lambendo sua nudez. outros ritos. Receber a esmola nossa de cada dia. é perder metade de si. outros ritmos. Ver terras alheias que os olhos hão de comer. Não viver. Conhecer vários lugares. Lugares outros que alegram ou entristeçam os olhos. Ela secando. Sua vontade imperando. sem relógio. ressequidos. música do vento. atalhos verdejantes. de respirar. de ser e não ser de espiar. Libertou-se. vento rio. Cresceu. amanhã acolá. mar. a farinha nossa de cada dia. como o rio no verão. brinca com os peixes. banho de cachoeira. sol. Pena! Sua vontade não está só. Sentir a vida na sua dinâmica de contrários. Não ser você. Hoje aqui. não sentir a chuva escorrendo pelo corpo. Tão bom. Casar é por algemas. um pedaço de pão. Bicho adestrado. da água. operários de fábricas. corpo cansado sobre o catre.  A mãe percebeu sua intenção e a emparedou. Nunca estamos sós. Viajar por viajar. cheiro de capim verde e um violão. impedindo o fazer e a felicidade do outro. Vida? Não. CRUVIANA 109 . Não ver as estrelas. Nas horas vagas e em que surge a inspiração se arvora a escrever contos. A chuva chorou por ela. 49 anos.A viagem entristeceu. Ensina há 20 anos numa escola do estado. Adoeceu. especializada em Estudos Literários pela UNEB e mestranda em Crítica Cultural pela mesma instituição. Professora de Língua Portuguesa. crônicas e poesias. Desenganada. se ressentiu. IEDA LEONES NASCIMENTO. 110 CRUVIANA . Apenas uma cruz na beira da estrada. recolheu-se. Só uma data escrita em tinta preta. nascida e residente em Salvador-Bahia. E ainda era. uma sala e uma cozinha. Uma casa só existe se há alguém nela. dos meus avós. Tudo por aqui já tinha sido um dia um rebanho de gente. Três casas com pelo menos três pessoas dentro dela já é um rebanho. mas bicho não é gente.entrelugares Por Pedro Fernandes de O. ainda mais quando a casa se resume a dois pequenos quartos. o maior era o lá de casa. bicho não é alguém. a nossa e a dos meus tios. Neto 1 No sítio todas as casas estavam vazias de adultos. Pode ser que haja bicho. Do rebanho que restara. E eram três – a principal. Havia outras mais. porque CRUVIANA 111 . mas casa vazia não se enumera. ainda os criados debaixo das saias de minha avó. Não tem trabalho para ninguém pressas bandas de cá. eu catorze e ele treze. como dizia minha tia. O que as mulheres faziam com os homens era dá o cu. isso era. numa dessas conversas sexuais. pais de família. nunca tive a permissão de entrar debaixo da saia como tinham meu pai e meu tio. Nunca fiz questão. Preferem ficar nesse fim de mundo. concluímos. dizia ouvir por cima da parede do quarto os gemidos do pai sobre a mãe querendo por a pomba numa toca e a pomba. isso sim. eu preferia não crer nessa conclusão de Pedro. Não por aí. Apesar de sempre me perguntar para quê então servia as mulheres terem tabacas. eu não acho que as coisas sejam desse jeito não. e como santa era lacrada de cu e tabaca. era uma Nossa Senhora. Mas. e quando produz o que comer mal dá pra o bucho. Conceição. Não vê os irmãos que se foram daqui como que vivem? Eles são é dois frouxos. Conceição. você não acha? Nossos maridos. Em se tratando de minha avó. ainda viverem às tetas da velha. tudo já quase de cabelo branco no cu.eu tinha um irmão mais novo um ano que eu. E me baseando no que minha tia dizia. era o que nós homens tínhamos no meio das pernas e a toca era cu. Uma vergonha. um frangote de sete para oito anos. mas é só. avó e ainda mais madrinha. Imagine que quando eu era ainda meninote. Santa não como aquelas de garrancho que 112 CRUVIANA . Para mim. sempre mais atrevido que eu. mas pela barriga. O que minha avó fazia nua em cima da cama devia ser amaciar o cu para o meu avô. Eram. Pedro. Mas que vó era uma santa. numa terra que só produz pedra. comadre. Por onde meu pai e meus tios haviam saído eu não sei. E nascíamos todos de uma cuzada. Por lá creio que não tinha coisa boa de vê. Ainda têm essas frentes de emergência. o que que eles podem fazer? Alguma coisa. dou com minha avó de saia arribada em cima da cama fazendo não sei o quê. Minha avó era também minha madrinha e eu vivia mais na barra da saia dela. O fato é que eu não fiquei doido. Pecado é não rezar. Pedro dizia que Deus era muito interesseiro querer que todo mundo viva por aí só pensando nele quando se tem tanta coisa melhor para CRUVIANA 113 . O grande mal de deixar de celebrar minhas missas debaixo da caraúba é que perdi a majestade divina. que esse seu menino mais velho. a minha professora de catecismo. descompondo os inimigos. porque comunguei quase depois de velho. eu tinha era arrepios de saber rezar uma missa de ponta a outra para meus fiéis invisíveis. achava aquilo princípio de maluquice. arrastando latas num alaúzo. Deus devia era se sentir muito bem tendo como morada aquela grandeza da planta. E se minha tia Rosa. a única de belo porte que tinha no sítio. Deus gosta que lembremos dele. Conceição. passei a rezar minhas missas mais escondido. tem pareia com Paixão e não custará nada quando ele pegar as trouxas e correr por aí no meio do dia. feito o doido. pelo menos foi o que me disse mais tarde. e minha tia dizia ser aquilo alaúzo de doido. Que todos os anos coloria meio quarteirão à beira do rio Salgado de amarelo e era tudo um cheiro agridoce no ar.eu fazia e pendurava no tronco da grande caraúba do sítio para rezar minhas missas num latim desconjuntado. do que minha mãe morria de orgulho. Eu ando fora de hora. Que atravessava verões e secas e não perdia a majestade. Principalmente dos alaúzos. dona Rosa é uma puta. Tenho para mim. pecado é se desfazer de Deus. E morria de medo de sair meio-dia ou noite afora feito o doido Paixão. ainda mais quando para louvá-lo. Também acho que Deus gostava daquilo tudo. Eu sempre escutava no rádio da minha avó todos aqueles vivas e aqueles tirinetes de fogos que eu repetia no tom que eu achava que devia ser nas minhas missas. uma puta doida sem fim. virado num guaxinim. Depois da resposta desse dia. As rezas de mentira foram sendo substituídas pelas de verdade e descobri que o que fazia nunca nem era heresia. No dia que escutei isso. vão comer a merda dos grã-finos. rouco desse jeito. Você já viu aqui na casa velha da sua avó entrar coisa que valha? A única coisa de valor que ainda existe aqui é aquele rádio velho que aliás só tá vivo ainda.se pensar e ainda ter de passar vergonha por ficar em alaridos no meio dos matos feito doido. 2 Nos dias de feira todos tomavam o rumo da cidade. Pari onze. Café da manhã era um naco de rapadura preta com farinha. que você sabe bem. Tão tudo por aí. Para vender ou trocar as pequenas produções por produções nenhuma. ou são um bando de ingratos. E tem uma coisa. Não se contentaram com os regurgito da velha aqui. quando tem essas trovoadas eu não saio nem a porrete de riba da cama. mas a mãe não se importa. Zé. até quando Ele achar que a gente deva fazer isso. Francisco e Manuel estão todos pelo mundo. caga-se no outro. porque Betinha. se querem cagar macio. e o resto. E pra mim tá de bom tamanho. meu filho. morreram dois. Não esse aposento que hoje dão pros velhos. E 114 CRUVIANA . enquanto eu tava passada em cima da cama. cuidou de livrar o pobre dos trovões e dos relâmpagos daquela chuva do ano passado. Tendo a farinha para misturar com o feijão. Nunca tive os olhos grandes. quando seu avô. Deus me perdoe. na seca. come-se tudo num dia. todos se criaram. viu. querem ter a pança farta. o açúcar para fazer uma garapa de lanche. segurando nos bagos Dele. morrendo de dor. de dor e de medo. tempos piores já foram. mesmo sendo doida. Vamos escapando. Paulo. sim. E o que eu digo é que tem de poupar as merdas que o que sua avó ganha para suster esse rebanho de menino não chega não. Ou comida não é merda? Comida é merda mesmo. Que sempre foi assim em vida de campo. porque aqui a bosta é seca. Produzir para trocar por merda. o resto a gente se vira com o que aparecer da terra. tinha de arribar de casa e trazer de fora o que comer. como dizia minha mãe. Nos dias de feira. E de novo.só os filhos chegando que graças a Deus. quando eu quase morri. Rosa. que dona Maria é por demais muito ignorante. e os almoços de sábado era coisa que pouco vingava. olhe. o sítio estava vazio de adultos. E foi quando dessa conversa que corri para dizer para Pedro que o que as mulheres davam não era o cu. Pedro e meu irmão. mãe deixava o que servia de comida para nós. que dependendo da posição. só um foi de aborto. Depois de casada ainda querem ser arrochadinha. que conversar com quem entende a gente. nunca mais ele tem me procurado. Não deu nem de mamar direito ao bezerro pequeno. vive batendo perna no meio do mundo. Quando meu tio chegava e pai não vinha junto. que não tem coisa melhor. aliás. tacou logo esses mingau de farinha sem sustança nenhuma. Vai morrer seca. em casa às vezes ficavam as mulheres a cuidar do que não tinha para cuidar. que sou muito mulher para dizer que aqui não veio ninguém mais que Joaquim. Eu não. só tem um e se acha toda cu doce. ele sempre mais esperto em safadezas que eu. Meu pai sempre vinha com umas e outras na cabeça e um bafo de cão. Vive enfiada na pílula. Sobrou eu. E. Hoje minhas noras só querem ser cocota. cu também fica no meio das pernas. era a tabaca. mas é mesmo que não ter. faço o que tenho de fazer em casa e vou todo dia dar satisfação as minhas amigas. A da esquerda. Deus me deu bucho bom. disse que isso era só conversa de mulher. A da frente. 3 Nesse dia. Dos que morreram. eu ouvia as queixas de minha mãe para minha tia Rosa. E em casa. depois que o Vicente nasceu. que o almoço só era feito quando os maridos voltam para casa. Do que tenho meio das pernas cuido eu. Mas era um por ano. que. tem dois. deixou todo esse tempo a tabaca azedando em casa e quer que a das noras dê o mofo. tomava banho de perfume e saía para o sítio CRUVIANA 115 . Só para contar lorota. ou meu pai tinha couro de bode para espírito ruim. Vicente pouco conversava comigo. minha mãe trocou danados de braveza pelo riso solto. só dizia que tomar umas e outras. briboto e carga d’água. danado? Meu pai. Morria de medo de aquele perpétuo jejum de surra fosse descumprido se eu ameaçasse o lugar do meu pai. Conceição. e menino. Não tás tomando o lambedor de pepaconha que fiz não. desses assuntos. não tem para que menino na feira. Mas. que diabos que Vicente tinha feito que o lençol estava em algumas partes mais amarelo que o de costume. menino fica em casa na barra da saia da mãe. Vicente é quem vai à feira comigo por esses dias. Meu avô porque talvez fosse velho e acho quando nos vem a velhice a gente não serve mesmo mais para nada. lá em casa nunca foi verdade. um sobe e desce do lençol no escuro e no dia seguinte a reclamação da minha mãe. Posso mesmo garantir que era o meu pai em miniatura. Cabritote de barbicha tem de conhecer as coisas do mundo. sabedor de que há outros catarros. Até cachaça roubou escondido num dia de novena só para experimentar sua macheza. e quem bebia ficava tomado pelo Diabo e tudo de ruim podia fazer. Nunca o vi judiar de minha mãe. Mas quando Vicente bebeu. tudo bem. Encatarrado não estava. eu não dormir no resto de noite que ainda sobrou depois da novena. Deixa o menino. mas enquanto for frangote. Eu ainda ensaiei perguntar se meu tio e o meu avô era menos macho que meu pai porque nunca vi nem soube que eles vivessem de beber. E se minha avó sempre dizia que cachaça era coisa do Diabo. fica em casa. 116 CRUVIANA . Entendedora. Vicente não dizia nada. foi quem ficou contente. Só muito remexido na rede. era muita coisa de macho do interior. não há para que ir.vizinho. parece que antes de José. Há de ir. Quando for gente. nunca judiou de nós. Vivia mais na barra da calça de pai. mesmo que todo aquele manchado seco parecesse catarro. assim quando em vez. Fiquei na espera de ver a macheza do meu irmão. Aliás. Não vi muita coisa. nunca perguntei nada. certamente. Era coisa melhor ou pior que feira. Imagine o que é ter na família. mijar de cócoras como os padres. Eu não acho nada de bom. E nesse terreiro de aves vez por outra havia grande arranca-rabo. conservada em mínguas até que viesse outro dia desses para abrir de novo esses sorrisos. tu pensas que não sei o que se passa entre essas maricota de saia preta não? Do que dizem. um rezador de missa. Recebiam camisetas escolhidas entre o verde e o amarelo. Imagine eu ter um filho meu moça. 4 Mas nesse dia não era feira. sonhos por pouca coisa e causa nenhuma e tudo ficava vazio durante e depois desse dia. de mim para mim. mas desse dia passei a rezar uma vez e olhe lá por semana por detrás dos grandes serrotes que tinham perto da casa de Pedro. prefiro filho meu macho. é coisa de moça. mas agora em voz baixa. Nesse dia de vazio que não era de feira. E não era da bandeira do Brasil. e eu muito que acredito. Todos acordavam de sorriso estampado no rosto. Doulhe é uma surra de quixaba para desvirar a frescura. Era de bacuraus e araras. era de esperança. é que nos seminários é igual na marinha. Conceição. quero nunca um mal desses. cada uma de um lado do terreiro. Uma embandeirava a casa de verde. Que meu pai sabia. É que nesses dias todos iam e voltavam para cidade de carros. a outro de amarelo. Rezava embaixo das algarobas lá de perto de casa com quase a mesma frequência que rezava na caraúba grande do roçado. essa coisa de usar saia. Desde então reduzi ainda mais minhas missas de mentira. Só mãe é que colocava fé de me ter padre.E dizia que eu só ia servir para ser beato mesmo. Joaquim? Vai fazer é crescer as novenas aqui de casa. e já era muito. dando ré e vestindo saia. É claro que depois não era vazio de pessoas. Vendiase dignidade. mas levava aquilo tudo como molecagem. Principalmente entre mãe e tia. Todo mundo dá para trás. todos comiam de graça banquetes dado às CRUVIANA 117 . E mais tarde. fazia de um tijolo dois três e erguia tudo com o barro acrescentando mais uma novidade à casa. fazendo brincadeiras de nada. Olhando para cima vi. Foi numa dessas reformas que estavam no teto meu pai e meu tio e nós cá embaixo. ficava por lá e só depois da meia-noite é que um carro qualquer empoeirava a frente lá de casa. meu pai nem sempre tinha tijolos e cimento para o sonho dele. Então. e ano após ano.escondidas e parte só voltava para casa depois de aprender pela manhã a desenhar números com cartões furados numa tentativa analfabeta de reconhecer qual era o lado que deviam marcar xis ou cruz. Que meu pai era um sonhador. tanto que puxei e repuxei. Até que fiquei vendo Vicente dando uma de ajudante. É verdade que esses dias em que o sítio ficava vazio só aconteciam na eternidade dos anos. mas ninguém comentou nada. No banho à noite fiz comparações imaginárias entre o entrepernas do meu tio e o meu. Eu voltei 118 CRUVIANA . geralmente os homens. sem precisar da cachaça que meu irmão bebeu. Outra parte. rasguei-me e sujei o lençol de pouco sangue e muito visgo em jatos com cheiro de clara de ovo. As mínguas que nos chegavam de tempos em tempos eram em parte sacos de cimento e tijolos. pela perna do calção. todas as casas estavam vazias de adultos. pendurados numa nuvem negra de pentelhos os colhões e o pau do meu tio. aproveitava o que derrubava. Só voltava para casa depois também dos arrotos do almoço e da bebedeira no fim do dia. Vi e baixei a vista de fingimento que não vi. Queria transformar a casa em mansão e todos os anos desfazia e fazia de novo com um cômodo a mais. meu pai era um e até meu tio não escapava. se o dos bacuraus ou o das araras. eu e Pedro. 5 Nesse dia. A única certeza que tive no dia seguinte é que meu pau tinha a forma do que do meu tio e achava que havia ganhado macheza também. Minha mãe há de ter percebido os lençóis. o poço soterrado.a caraúba e fiz à vontade a missa que há tempos não fazia. Depois visitei as fazendas que nós tínhamos perdidas no meio do mato. Mas. o mais desleixado. Entrei pela porta da cozinha e na sala meus ouvidos pressentiram conversas sussurradas vindas do quarto. Por meu irmão é que eu não colocava a mão no fogo e de mim para mim concluí logo que a única pessoa capaz daquilo era ele. se passava! Nem inventei de organizar aquela bagunça para não dá tempo da raiva ir embora. E talvez por essa proximidade entre nós dois é que ele sempre preferisse está aonde meu pai estava a estar com a gente. dessa vez. era uma delas. que era a mais velha. os pintinhos caídos. Receio que eles não me viram. Fiquei pensando em quem poderia ter feito aquele tipo de maldade comigo. O que faziam por qualquer motivo obrigava os dois a estarem de olhos fechados presos num mundo muito particular que a simples vista de um intruso poderia ser capaz de destruir. e também raça rara. E Vicente tinha uma ponta de inveja de mim com Pedro. O pedregulho de vacas e o caminhão de lata eram as únicas coisas de conservado que existia. mas a minha tinha mais coisas que a do meu irmão. tudo havia passado dos limites. Era Vicente sobre Pedro que avançava corpo adentro um do outro. Eram várias. agora. Pedro era muito meu amigo. Vicente. E embaixo CRUVIANA 119 . A surpresa que tive foi ver todas as galinhas partidas ao meio. Baixei a raiva e coloquei no lugar a curiosidade. Fui com passos de pena e sobre minha cama deparei-me com dois corpos nus. Muitas das galinhas que eu tinha no meu galinheiro foram presentes dele. e a de meu primo. Fui para casa como quem vai de partida para um acerto de contas de gente adulta. porque nem sempre os pereiros produzem galinhas do tipo. Ah. Não tinha sido ele e a suspeita recaía sempre em conclusões para uma única pessoa. Só podia! Por pura demonstração de macheza. A pintadinha. a casa bagunçada. Vi e corri de volta para fora de casa. Meu primo não havia sido. ele estava descartado. das algarobas quis pensar sobre qual era o sentido daquela cena. Lembrei-me de Pedro me vendo nu enquanto tomava banho na casa de minha avó. Que era sempre assim. No início da noite ele me via passar lá de casa, com toalha nas costas e sabonete na mão indo para a casa da minha avó e me acompanhava sempre durante os banhos. Ele na porta do banheiro, pouco falava. Ficava mais ouvindo minha conversa solta. Nunca dei a mínima para o porquê daquilo. A amizade que tínhamos desde criança nos permitia que não tivéssemos pudores. Agora, eu gostava de me exibir para ele. Principalmente depois que me tornei homem. Se ele reparou o detalhe do meu sexo, antes fechado, agora exposto, também nunca me disse e nem perguntou sobre nada. Depois, lembrei-me de quando, intrigado com esse espírito de curiosidade do primo, cheguei a conversar uma noite com meu irmão sobre o caso. Ele calado estava e calado ficou. Só quebrou o silêncio sobre numa outra noite muitos dias depois com uma observação nada sensível. O que sei, Dedé, era como ele me chamava, é que Pedro e você são duas frutinhas, nasceram com pau só para mijar. Fiquei pensando no que isso significava. Na escola tinha um menino chamado Joaquim e todos faziam o diabo com ele. E das provocações feitas a ele, uma era com essa palavra que meu irmão nomeou a mim e meu primo. Mas tive comigo sempre acreditando que frutinha fosse qualquer coisa como mole, que apanha fácil. Tanto era isso, que num dia dessas confusões, eu entrei na roda daqueles que cantavam em bom som, Lá vem Joaquim-quim-quim, das pernas torta-ta-ta, enquanto os outros surravam e chamavam ele de frutinha. Depois do que vi, sei que não é mais só isso. Eu já estava no oitão da casa de vó quando vi Pedro que corria em minha direção. Perguntou onde eu estava. Desconversei com duas palavras e disse que ia almoçar. Vicente já havia posto o almoço e depois de deixar a louça com a encomenda de que eu lavasse disse que ia por aí. Deixei a comida para ficar de 120 CRUVIANA olho na fresta da janela a ver qual rumo ele tomava. Não foi para a casa de Pedro como pensei. Depois do almoço, saí para conversar com meu primo. Queria saber dele o que faria para me vingar de Vicente pela destruição de minha fazenda. A porta da casa estava aberta e não havia sinal qualquer de vida. Entrei e no quarto da cozinha, de bruços, o corpo nu de Pedro. Branco. Magro. Um menino em formação. Nunca o tinha visto assim. Retornei para casa e aí fiquei até que minha mãe chegasse. Deitei-me cedo numa cama de impressões que tresandavam ao suor de Vicente e Pedro. E mais tarde meu irmão se levantava, mais forte, de pau em riste. Vinha em minha direção. Pegava-me e fazia comigo o que fizera com Pedro. Eu abafava o gemido de dor nos lençóis. E vi vindo a beleza do corpo nu de Pedro, branco, que assistia a tudo e caía num riso solto entrecortado com um palavreado que eu não entendia. Daí a pouco, éramos nós três. Vicente cada vez mais forte, cada vez maior. Vocês são duas frutinhas, nasceram com pau só para mijar. Na manhã seguinte voltei à fazenda. Vicente e Pedro já lá estavam. Para minha surpresa, tudo estava reposto no lugar. Uma galinha pintadinha igual no lugar da outra, o poço refeito, com água e tudo. Deixei os dois e fui ter com meu pai. Era tempo de inverno e no sítio as casas estavam vazias de adultos. PEDRO FERNANDES DE O. NETO é de 1985. Nascido em Lajes, Rio Grande do Norte. Atualmente é aluno do Doutorado em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde desenvolve tese sobre António Lobo Antunes e José Saramago. É autor de O ser em O conto da ilha desconhecida diante do ser sartriano (ensaio acadêmico, inédito), Sertanices (poesia, inédito), Bardos (poesia, inédito), Palavras de pedra e cal (poesia, edição independente) e Retratos para a construção do feminino na prosa de José Saramago (ensaio acadêmico, Editora Appris). Foi editor do jornaleco Trabuco. É moderador do blog Letras in.verso e re.verso. Coordena o projeto Um caderno para Saramago. É editor do caderno-revista 7faces, um periódico eletrônico de poesia. CRUVIANA 121 isso é guerra Sidileide Batalha do Rêgo Meu nome é Paul Witshon, tenho vinte e quatro anos de idade e sou um soldado do exército americano. Há dois anos encontro-me nesse campo de batalha denominado Sinsig. Hoje faz exatamente dois dias que não durmo, pois é um pouco difícil adormecer com o odor forte de pedaços de corpos humanos decompondo-se. Na verdade, estou com medo de fechar os olhos e não acordar mais. Minha garganta está seca e minha pele do rosto está queimada por causa do sol forte. No momento, estou segurando a morte nas mãos em forma de arma. No lugar desta Sten MKV, queria estar segurando a minha filha, que deve ter 122 CRUVIANA A guerra está declarada. esperando o milagre da vida acontecer. uma noite de tempestade. . Não consigo descrever a emoção daquele momento. Levantei da cadeira e acendi um cigarro. com a cabeça entre as mãos. Aproximei-me devagarinho. mas lágrimas quentes escorreram dos meus olhos. aposto que as duas estão melhores do que nós dois – disse Andrew. . Mary encontrava-se segurando um pequeno ser. uma pequena flor”.Pensei. Recordo-me agora a noite do seu nascimento..Não estou dormindo e nem sonhando acordado. onde se ouviam os trovões e viam-se os raios. Andrew também era americano. acorde! Está dormindo em pé ou sonhando acordado? – Perguntou. escutei um choro de criança e adentrei no quarto. as toalhas da cama estavam ensanguentadas.“Então era uma menina. Mais novo do que eu apenas três anos. era dia 03 de setembro de 1939. apenas estava pensando na minha filha e na Mary.Paul. . como elas devem estar? – Falei sentando-me ao lado do Andrew. no corredor do hospital. abaixei-me e peguei minha filha nos braços. de deCRUVIANA 123 . . A Mary estava pálida e suada. o coração disparado. Parei perto da cabeceira da cama. Fiquei caminhando de um lado para o outro enquanto tragava o cigarro e passava uma das mãos entre os cabelos.. A TV do corredor estava ligada e por um momento deixei de fitar aqueles pequenos olhos azuis para ouvir o pronunciamento do presidente. Após duas horas de espera.Não se preocupe Paul. .Rose.agora dois anos e três meses de idade. Olhei novamente para aqueles lindos olhos e falei baixinho: . Eu estava sentado na cadeira.me Andrew sentando-se em um pedaço de madeira que estava à minha frente. Andrew tinha orgulho de estar na guerra. chorei e rezei. Hoje à noite os meus colegas irão se divertir torturando-os. Estava sempre com um belo sorriso nos lábios e costumava cantar o hino nacional enquanto cavava os poços para reter água da chuva. Olhei o retrato das duas sorridentes e chorei novamente.“Acho que são japoneses. Levantei da cama do alojamento. 124 CRUVIANA . Pedi a Deus que o ser humano deixasse de ter tanta ganância e que a guerra acabasse. vi o Porsche entrando no campo cheio de prisioneiros acorrentados uns aos outros. ajoelhei e rezei. como de costume .” .Acho melhor deixarmos de jogar conversa fora e irmos para a fila da ração. sentei na cama e peguei embaixo dela a caixa em que guardava as cartas da Mary e sua foto segurando nossa pequena Rose. Não era casado e nem tinha filhos. . – Falei levantando-me e pegando minha MKV do chão. apenas quando chovia. talvez por esse motivo ele não se importasse de passar anos fora de casa. muitas vezes. Tomar banho. silenciosa. totalmente. A noite foi tranquila. . peguei minha garrafa térmica com água e lavei as minhas partes íntimas. Enquanto estava na fila aguardando chegar a minha vez para pegar a comida. nesses dois anos em que estou aqui. Vesti meu uniforme.. Ração era o nome dado a nossa comida que.. A sirene tocou às cinco horas da madrugada. Porque homens também choram e também têm fé. Os soldados puxavam com violência os prisioneiros de cima do carro.era hora da ração.fender o seu país. que caiam no chão e eram chutados até levantarem. E pela primeira vez.pensei. É como se eu estivesse vivendo a vida de outra pessoa. consegui recuperar o sono atrasado. era um pedaço de pão com enlatados. Tudo que eu queria era apenas voltar para casa. o momento de rezar e de tentar sobreviver. é hora de matar ou de morrer. É apenas um grupo de novos aviões estadunidenses. enquanto os caças japoneses atiraram contra Pearl Harbor. Na manhã seguinte.Esses não são aviões estadunidenses. entre a ganância e o poder.Está tudo bem rapaz. É graduanda do curso de Letras Português na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Estou vendo companheiros meus serem mortos. . categoria contos.Corri para pegar minha arma. olhei a data no relógio era 7 de dezembro de 1941. filha de Adalto Batalha e Damiana Bezerra. Esse é o momento. Estou pensando na minha filha. O momento de matar e o momento de morrer. Estávamos esperando-os – Disse o capitão. Contista. Seus contos e crônicas podem ser encontrados em seu blog: www. enquanto me pergunto pelo que exatamente estou lutando.Após falar com Deus. Bolsista do Programa de Iniciação a docência – PIBID. Saí da cabine e olhei para o céu. No ano de 2011 ficou em 2° lugar no primeiro concurso de literatura da cidade de Assú. e eles estavam vindo pela direita e pela esquerda. SIDILEIDE BATALHA DO RÊGO nasceu na cidade de São Miguel-RN. Andrew contou-me que há dois dias soldados da base de Pearl Harbor afundaram um mini submarino japonês que estava tentando lançar torpedos na base. cronista e poetisa. No caminho soube pelo Andrew que fomos escalados juntamente com outros dez soldados para a base de Pearl Harbor.com CRUVIANA 125 . atua como roteirista de peças teatrais. enquanto eu monitorava o radar.esme-tudosobreeueele. . A base de Pearl Harbor ficava na ilha de Oahu.blogspot. levantei e fui para o refeitório. Por volta das oito horas da manhã o radar indicou a presença de aviões. Estou correndo e atirando. gritei pelo capitão. Hawai. dezenas de caças se aproximavam. Nesse inferno o inocente nunca sobrevive. O barulho era ensurdecedor. entre o início e o fim. Eles estavam precisando de pilotos para os caças. Eu e os outros soldados chegamos lá por volta do meio dia. Isso é guerra. entre o bem e o mal. Droga! . Um clarão cortou o céu. numa onomatopeia que o despertava em alvoroço. Todos sofrem com a seca. só pesadelos. dos Carnaúbas da Várzea de Baixo. Os ani- 126 CRUVIANA . Todavia. e quando isso ocorria. afirmava que nunca tinha visto uma seca daquela. nos seus 56 anos de vida. não era sono. mas esquálidos. João Carnaúba não se preocupava tanto com os seus familiares e agregados. Apareciam os animais de sua gleba gigantes. balidos e berros. a superlativar o sofrimento na forma de mugidos.  Já não dormia. relinchos.ser tão resistência Elilson José Batista I João Carnaúba. vender a um marchante para descarnar o quê nessas ossadas?” Certo era que não havia mais dinheiro para sustentar o gado com rações de farelos e outros nutrientes caros. com parcimônia. mulher? Se nossos vizinhos estão na mesma penúria. Não se ouviam os cantos dos pássaros. A matemática era infalível: nessa pisada. contaminava a todos. tão-só. só dava para sustentar. um agouro. A tristeza dos animais. fiado se necessário. A longa estiagem afetava os homens e os animais. restando só recolher – cada vez mais distante – xique-xiques e mandacarus para serem assados em fogueiras para a queima dos espinhos. Eles estão consumindo nossos recursos e nossas forças”. Estava uma situação estarrecedora. Em vão. repisava: “Homem.. Carnaúba retrucava: “A quem..mais. pois se vendesse uma rês por mês. domesticados. como que a trazer-lhe à realidade. venda esse gado por qualquer preço. a forçar indícios que viessem amenizar o seu sofrimento e dos outros. Quanto à comida. Para fugir dos pesadelos. esposa de João. Além do mais. CRUVIANA 127 . Dona Chiquinha. lutando para escapar com os seus. a perscrutar o céu. Eu não aguento mais esse sofrimento desses pobres brutos. a deprimir mais o contexto e o ambiente. não tinha mais que se falar da existência de ração verde para os animais: palmas e macambiras já tinham se acabado. encaminhava-se ao curral para levar os animais para beber da pouca água que ainda restava no açude. dependiam sobremaneira dos zelos e encaminhamentos do homem. João Carnaúba. E a escassez d’água e de alimentos atingiam mais duramente os brutos que os humanos. Com os primeiros raios. notadamente a bovina. esse homem já saia de casa de madrugada. para serem juntados a uma forragem que incluía até papelão. longe. duas reses. o pequeno rebanho desapareceria. sem pasto e sem água. De repente os animais se inquietam. que não traz frescor. Não há que se falar em flora: tão-só galhos e troncos. que acinzentam a visão. num ambiente tão adverso para se demonstrar verdura. levantando tudo que posso ser suspenso com sua força. O mormaço é sufocante. o precioso líquido se esvai. observa-se a sujidade deslocada. Difícil encontrar água. os juazeiros.   II   Tudo parado. Nos barreiros. ao longe. notadamente reses que não resistiram à fome e à sede. de forma 128 CRUVIANA . e outro. ou estão totalmente vazios. num estado abiótico. refletindo os raios solares num tom laranja. Animais e pássaros evitam se deslocar e se agasalham nas raríssimas sombras e abrigos. nessas condições. o tom cinza é pontilhado por carcaças de animais. marcante nos desesperançado. Visto por cima. aqui e alhures. replicado até as abas da serra. mas sim vai crescendo e se transforma num redemoinho. O mormaço cresce. Às vezes surge um pequeno pé-de-vento. Uma aragem benfazeja e contínua prepara o terreno para o grande ato. e outro.típico sertanejo do semiárido. Findo o fenômeno agourento. E se apercebe a mudança. tinha um constante olhar vago. De vez em quando. pequenos açudes e riachos resta quase nada. o silêncio é quebrado pelo cantar monótono das cigarras. instantaneamente. Nada se move. Já se veem raios. esses sertanejos que teimam em permanecer verdes. Jogue-se um pouco de água que. e se ouve os trovões. pequenos oásis. que não seja para o consumo do astro-rei. A terra está ressequida há cerca de oito meses. E a torre se avoluma. Cai o primeiro pingo e outro. No mais. O rebombo está mais próximo e mais forte. Quem não conhece esse fantástico ecossistema se impressionará com o antes e o depois. Pequenos filetes de água se avolumam. tudo que estava no seu leito seco. esses palavreados dos homens das ciências não quer dizer nadinha de nada. Há alegria. Surge o cheiro característico da terra ressequida sendo aguada. com seu característico canto que o nomeou. rebrota toda a fauna sertaneja logo após a primeira chuva. Já a força da água barrenta dos riachos carrega carcaças de animais. galhos. três anos seguidos de seca. em estado de torpor. ali. compadre. eles diziam! E falavam também em esquentamento e esfriamento de água do mar. retorna à região o tiziu. e impressionar os adversários. Parece que adormecido.   III   Após a colheita segura e os animais engordados. Já se ouve a chuva grossa se aproximando. a saltitar verticalmente para fazer corte às fêmeas. seu vizinho: “Compadre. Eles podem ser sabidos CRUVIANA 129 . acolá. João Carnaúba. A flora e a fauna revigoradas. aqui. garboso e falastrão. a desaguar nos açudes e barragens ressequidos. Como que por milagre. árvores inteiras. que envolve a tudo e a todos. Chove forte. o tiziu vai a outras paragens. dos ventos que vinham da Amazônia e dos oceanos.lenta. proseia no balcão da Botega com Tenório Barbalho. A Natureza agora atua com vigor. descem nas depressões e se agrupam nos córregos. Parada a invernada. As árvores trocam a sobriedade da cor cinza. até o retorno das águas. em todo seu esplendor. o pasto vigora no outrora campo desnudo. que afluem nos riachos. à espera da sagrada água. Além do mais. o estado de ânimo é outro quando chove no sertão. renasce a alegria sertaneja. Editor do blog Rapadura Cult. E queima-se mais lenha na fogueira – é certo . Quando Deus fia. ambos pela UERN. ELILSON JOSÉ BATISTA. Depois de infindáveis meses em que lutou pela vida – dele e dos circunjacentes – e aprendeu a suportar as agruras que a natureza lhe traz. com especialização em Linguística e em Direito do Trabalho. 130 CRUVIANA .lá com seus estudos. bem e mal. amigo. comete seus poemas e envereda pela prosa. pode cortar as terras. Mas os meteorologistas não se fazem de arrogantes e participam prazerosamente das festas. seca e inverno. Músico amador. As festas juninas são revigorantes. real e ideal. Potiguar de Pau dos Ferros.   Se a privação de algumas coisas necessárias é parte essencial da felicidade. e jogar as sementes”. então o sertanejo é feliz. E goza esse período de bonança certo que não será permanente. Formado em Letras e Direito. com farturas de comidas.em homenagem aos padroeiros sertanejos. mas não mandam na natureza. Depois de três meses de invernada. bebidas e forró. a sua sabedoria empírica já entende que tudo é cíclico: vida e morte. um longo silêncio envolvia a sala. estava terminado.  levanta-se da mesa e vai para o CRUVIANA 131 . por causa da fadiga. o corpo cansado. pega o carro e volta pra casa. porém. enxuga-se como se fosse um ritual.. em seguida o almoço é servido. pinga no chão por onde ele passa. perde o apetite. pega uma toalha branca. nunca cometera um erro. estavam vidrados.   passa direto para o banheiro e toma um banho.seus olhos.  o sangue nas luvas. depois. em uma pia lava-se.. até desaparecer a última gota que por descuido havia salpicado em seu rosto. firme. limpando. tudo saiu à sua maneira.a filha do policial Anchieta Rolim . como sempre.  não havia mais nada a fazer. sai às pressas. sua esposa.  fica um longo tempo embaixo do chuveiro.  quando entra no quarto. em uma rua pouco movimentada. onde está escrito: “não entre sem permissão”. ela olha para o lado.  senta-se na cama. poucos minutos depois. vira-se de costas e calça suas luvas. ao lado. o telefone. ele atende e sai as pressas. no final deles. depois de confortá-la. volta para casa. coloca a toalha branca e imediatamente começa tudo de novo. ele se aproxima. como de costume. às pressas. pouco tempo depois o telefone toca. em sua 132 CRUVIANA . a alguns quilômetros dali. ele já havia saído.  fitando seus olhos. ela fica nervosa mas não questiona. atrás de descanso. era de uma estrutura impressionante. é rápida a conversa. Imediatamente. é seu marido. no terceiro andar. beija-lhe a testa em sinal de carinho. ele nota o quanto a moça está apavorada. mulher dedicada.quarto. a esposa já dorme. passa por uma grande porta de vidro. com cautela e frieza. o que não era de costume. pega o aparelho e liga para o policial. como se estivesse dopada. passa direto para o banho. perto da pia.  como de costume. com requinte e pericia. ao entardecer. só retorna depois das duas horas da madrugada. de repente. segue em frente percorrendo longos corredores. ver manchas de sangue. carecia-lhe os cabelos em seguida beija-lhe o rosto e deita-se a seu lado. paredes de mármore tendo em volta um belo jardim. dirige-se a um quarto. entra na sala.  em sua frente uma linda jovem de mais ou menos vinte anos de idade encontrase deitada. ele avisa que não vai almoçar em casa. Vêm. pega o jornal e começa folheando as páginas policias. ele deita-se um pouco. tenta acalmá-la. ao acordar. troca a colcha e os lençóis. abre a porta e percebe que não há ninguém. levantase e. é assim que ele age. imediatamente. o dia amanhece. troca de roupa rapidamente. ele entra em um prédio de arquitetura moderna. conversam algo. olhando a cama. vai direto ao assunto. sem perceber. vi quando saiu às pressas hoje pela manhã. e continua: “o corte foi cirurgicamente perfeito. ele segue ao a seu encontro. principalmente as daquele dia. CRUVIANA 133 . só não sabia que era você quem iria fazer a cirurgia.. e eufórico. “por pouco eu quase desistia. estava trêmulo. (embora por esse último trabalho não tenha cobrado nada)”. fiquei nervoso. coisa que raramente eu sinto por alguém (deve ser pelo fato de eu conhecê-la). ainda bem que ela sangrou pouco e. soube que a cirurgia foi bem sucedida.” de repente seus pensamentos são interrompidos pelo barulho de um automóvel. quero agradecê-lo por ter salvo a vida de minha filha. veste a mesma roupa suja com manchas de sangue. é também poeta e tem enveredado para o a prosa. as lembranças dos últimos dias. é quando a empregada bate à porta de seu quarto e avisa que um policial está na sala querendo vê-lo. fala:  carlos. escultor e artística visual. com medo que algo desse errado. que linda jovem! lembra-se ele. em seguida.  nas pressas. acabei de chegar do hospital. o policial é um homem forte de aproximadamente um metro de noventa de altura. a companhia toca e ele sai rapidamente do banho. que não ficou nenhuma sequela do estrago que a bala causou no lindo rosto de nossa querida helena. depois afasta-se um pouco e olhando diretamente nos olhos desaba: nos olhos cansados daquele senhor. sou bem pago pelo que faço. Artista plástico.mente cansada. quase não deixei marcas.  assim que os dois se encontram o policial avança em sua direção e o agarra com todas as forças que possui. cometendo alguns contos. mas tive que fazer. ANCHIETA ROLIM é de Areia Branca (RN). obrigado por ter pedido para sua esposa ana me ligar. ela demostrava tanto medo que chegou a me causar um sentimento de pena. pela primeira vez. meu querido irmão.. . de Francisco Rodrigues da Costa. Medeiros – Org. 6 – CASA DO ESTUDANTE DE MOSSORÓ: PEDAÇOS DA SUA HISTÓRIA. de Francisco Rodrigues da Costa. 20 – DÊ CARONA PARA A SAÚDE. 5 – MESSIAS TARGINO-RN: ORIGENS. 13 – LÁPIS NAS VEIAS. de Manoel Leite de Souza (Neuzo). 10 – PELAS RUAS DE HAVANA. de Rubens Coelho. 14 – INCERTO CAMINHAR. de Sebastião Almeida de Medeiros. de Francisco Rodrigues da Costa. de Maria de Fátima Medeiros Leite. de Marcos Antônio de Andrade Medeiros. de Francisco Honório de Medeiros Filho. de Renard Perez. 15 – JOÃO BATISTA CASCUDO RODRIGUES: LIÇÕES DE UM PROFESSOR.: Márcia Tavares Silva. 7 – PERDOA-ME POR ME PRENDERES!. de Francisco Honório de Medeiros Filho. de Clauder Arcanjo. de Clauder Arcanjo. . 26 – MINHA VIDA. 19 – MASSILON: NAS VEREDAS DO CANGAÇO. de Marcos Antônio de Andrade Medeiros. de Raimundo Nonato da Silva. 16 – A DANÇA DOS CROMOSSOMOS. de Milton Marques de Medeiros.PUBLICAÇÕES DA EDITORA SARAU DAS LETRAS 1 – SAUDADES. de David de Medeiros Leite. 12 – O ALFABETO: A BRINCADEIRA DAS LETRINHAS. 23 – CAMINHOS DE RECORDAÇÕES. 2 – DUARTE FILHO: EXEMPLO DE DIGNIDADE NA VIDA E NA POLÍTICA. de Líria Nogueira Alvino e Raimunda Medeiros Germano. Joriana Pontes. 25 – DONA HILDA. simples em todos os aspectos. de Paulo de Tarso Correia de Melo. de Pedro Du Bois. 11 – SERES. 4 – QUARTEIRÃO DA FOME. de Francisco Françuí de Almeida. MEUS SONHOS. 9 – JUSTIÇA VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA E OUTROS FRAGMENTOS. de Carlos Santos. Jeska K. 22 – SABOR DE AMAR. de Clauder Arcanjo. 17 – COMEÇO DE CAMINHO: O ÁSPERO AMOR. 3 – LICÂNIA. de Edimar Teixeira Diniz. de David de Medeiros Leite e Lupercio Luiz de Azevedo. 24 – O SONHO DE UM DROGADO. de Edilson Pinto Junior. 18 – SÓ RINDO II: A POLÍTICA DO BOM HUMOR DO PALANQUE AOS BASTIDORES. de Ana Carla de Azevedo. 8 – FOLHAS DE OUTONO. 21 – O LAGARTO DO FOLHIÇO. Maria Helena de Medeiros Leite e Valdete Medeiros Leite. 27 – NOVENÁRIO DE ESPINHOS. RUAS E ESQUINAS. DE POVOADO A VILA.). de Lupercio Luiz de Azevedo. de Julio F. de Maria Maria Gomes e Antonio Francisco. de Rizolete Fernandes.28 – A MÚSICA E O SERTÃO ABSOLUTO: A EXPERIÊNCIA NO CANCIONEIRO DE ELOMAR FIGUEIRA MELLO. de Paulo de Tarso Correia de Melo (coedição com a editora Corpos. de Sânzio de Azevedo. 46 – BECOS. 30 – TRABALHAR E VIVER O QUE PUDER: Biografia de Francisco Ferreira Souto filho. de Alexandre Abrantes. de David de Medeiros Leite. 57 – QUANDO MENOS SE ESPERA. 39 – PORTÃO DE EMBARQUE 2: PORTUGAL (2ª edição). Rezende (coedição com a editora Epifania). D. de Tobias Queiroz (e-book). de Francisco Rodrigues da Costa. 34 – Contrapontos: REFLEXÕES A PARTIR DA VIDA EM REBANHO. de CA Ribeiro Neto. de Salamanca-Espanha). 42 – MISTO CÓDICE (CÓDICE MESTIZO) – edição bilíngue. de Leonam Cunha. 48 – COTIDIANAS. coedição com a Coleção Mossoroense. de Fábio Lucas. de Caio César Muniz (org. . de Josafá Inácio da Costa. de Manoel Onofre Jr. 51 – GÊNESE. 35 – RELENDO GUILHERME DE ALMEIDA. de Edimar Teixeira Diniz. 31 – CARTAS DE SALAMANCA. 55 – FUTEBOL DE MOSSORÓ: PEQUENAS GRANDES HISTÓRIAS. de Patricia Tenório. de David de Medeiros Leite. 49 – ALGODÃO E SAL. MEIO URBANO. 29 – LIVRO DE LINHAGENS. de Cícera Bruna. de Paulo de Tarso Correia de Melo (coedição com a editora Trilce. de Dulce Cavalcante. 56 – CASA DAS LÂMPADAS. de Everkley Magno Freire Tavares. de Nelson Patriota. 41 – O ZELADOR DO CÉU E SEUS COMPARSAS. 43 – INCERTO CAMINHAR (INCIERTO CAMINAR) – 2ª edição (bilíngue). 45 – MESSIAS TARGINO-RN: ORIGENS (2ª edição). 52 – RASTROS NAS AREIAS BRANCAS. 36 – SOB O CÉU DE NATAL. 50 – EXÍLIO SEM CANÇÃO. 37 – UNS POTIGUARES. de Demétrio Vieira Diniz. 32 – UPANEMA. de Antônio Alvino da Silva Filho. 44 – LUÍS GOMES: UM RESGATE HISTÓRICO. de David de Medeiros Leite. de Edith Souto e Jacques Cassiano Fernandes Vidal. 38 – MEIO HUMANO. 47 – COMO SE ÍCARO FALASSE. de José Nicodemos. coedição com a Coleção Mossoroense. 33 – GESTÃO PARTICIPATIVA E POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA AVALIAÇÃO DO PRONAF.. 54 – HERÁCLITO NA FILOSOFIA DO JOVEM NIETZSCHE... 53 – VOCÊ VAI CONTINUAR VIVENDO DA MÚSICA? O MERCADO INDIE E SUAS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS. 40 – BICICLETAS DE PAPEL. de Myrna Barreto (e-book). de Porto-Portugal). de João Pessoa Cavalcante. 65 – VIRANDO CACHORRO A GRITO. de Anchieta Rolim. de Rizolete Fernandes (coedição com a Trilce Ediciones. de Paulo de Tarso Correia de Melo. 61 – CANTO NOVO. 69 – À FLOR DA PELE. 67 – INFOGRAFIA INTERATIVA NA REDAÇÃO: O EXEMPLO DO DIÁRIO DO NORDESTE. 63 – CONTAGEM REGRESSIVA. de William Robson Cordeiro. 64 – UM SERTANEJO. de Francisco Françuí de Almeida. 67 – CRUVIANA. de Ugo Monte. 59 – LUTO DOCE. 68 – O SONHO DE UM DROGADO (2ª edição). de Fátima Feitosa. de Tatiana Morais. CURRAIS NOVOS E O TEMPO. 66 – VENTO DA TARDE (VIENTO DE LA TARDE) – edição bilíngue. de Salamanca-Espanha). de Maria Maria Gomes. coedição com a Santos Editora. . 60 – ROCK’N ROLL: UMA BREVE HISTÓRIA DA MÚSICA QUE MUDOU A MANEIRA DE VER O MUNDO. organização de José de Paiva Rebouças. de Jair Farias Oliveira. de Artur Paula Fausto de Medeiros. Contos. 62 – CURVAS DOS TEMPOS.58 – DIÁRIO DE NATAL. .Este livro foi composto na fonte Constantia. na Expressão Gráfica (Fortaleza/CE). em setembro de 2013. impresso em papel pólen bold. entada em frente da televisão na pequena sala vazia. são apagadas pelo barulho que vem da rua na pequena cidade. não estranha a solidão das moscas. Agora. lugar que quase não ia quando a serra era seu único mundo: a casa grande – primeiro a da estrada. tivessem tido mais espaço para seus ouvidos. as vacas e o vazio dos caminhos. Elas. as aroeiras. as ovelhas. S APOIO CULTURAL ISBN – 978-85-60650-54-5 . depois a do armazém – a cacimba. os pereiros. no entanto. os currais. antes talvez.
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