A Sacralização Do Cotidiano

March 20, 2018 | Author: ericooal | Category: God, Franz Kafka, Death, Poetry, Reality


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22/03/2015Revista Cult » A sacralização do cotidiano    Assine 0800 703 3000 SAC Bate­papo E­mail Notícias Esporte Entretenimento Mulher Shopping   na Cult CONECTE­SE BUSCAR Esqueci minha senha LOGIN  na Web   SENHA  MATÉRIAS EDIÇÕES COLUNAS OFICINA LITERÁRIA TV CULT BLOG MARCIA TIBURI ESPAÇO CULT LOJA CULT Home  > Edições  > 187  > A sacralização do cotidiano A sacralização do cotidiano O conceito central para o pensador: o conceito de Deus. Trata­se de um Deus poético TAGS: deus, Gustavo Bernardo, Vilém Flusser EDIÇÃO  199 Gustavo Bernardo EDIÇÕES ANTERIORES A vida de uma pessoa faz parte da realidade: premissa acaciana. No entanto, Vilém Flusser afirma, no seu primeiro livro, que a língua cria a realidade. Ora, se a língua cria a realidade, o que cria a língua? Para o filósofo, a poesia cria a língua. Mas, se a poesia cria a língua e a língua cria a realidade, quem ou o que cria a poesia? A poesia cria a si mesma, responde Flusser: ela é uma espécie de causa suficiente. Logo, a poesia se compara a nada ou ninguém menos do que Deus. Vemos aqui conceito central para o pensador: o conceito de Deus. Trata­se de um Deus poético. Vilém Flusser é religioso? Não. Ele faz parte do vasto grupo de judeus sem Deus do século 20. Apesar disso, a noção e a necessidade de Deus formam o norte da vida e da obra desse homem. No capítulo “Maravilhas” do livro Natural:mente, Vilém Flusser recorda que as mulheres da sua família queriam lhe provar que Deus existia. Desde tenra idade, o iniciam na metafísica. Elas mostram evidências de Deus apontando ora para uma flor maravilhosa, ora para a maravilhosa cor de um pássaro. Suponho que essa experiência seja vivida por nós outros. Apresentam­nos as belezas e as maravilhas da natureza como prova incontestável da existência de um Deus criador. Todavia, quando menino, Vilém se depara com um tio que lhe prova a falsidade desse tipo de prova. Com oito anos de idade, esse tio o leva para pescar. Na beira do rio Moldávia, o tio lhe mostra como enfiar as minhocas vivas no anzol. Ver o seu tio querido comprazendo­se em torturar as pequenas minhocas faz com que a ideologia do Deus criador deste mundo maravilhoso torne horroroso este mesmo mundo. A vivência é muito forte, misturando nojo, dó e sentimento de culpa. Flusser descobre a estupidez brutal do suposto criador das minhocas, dos peixes e dos pescadores. No entanto, para não ver Deus como estúpido, Vilém prefere deixar de vê­lo como Criador. Por piedade de Deus, Flusser deixa de crer no Deus criador. http://revistacult.uol.com.br/home/2014/06/a­sacralizacao­do­cotidiano/ 1/4 pic. torna profundo o mundo e opacas as coisas.22/03/2015 Revista Cult » A sacralização do cotidiano O menino compreende que a hipótese do Deus Criador é contrária à fé em um Deus do amor e da esperança. Vilém e Edith. no ponto de vista do cientista e do professor que acreditam no que falam. No mesmo mês da chegada de Hitler a Praga. das drogas. assim como a contemplação da paisagem deixa obscura a visão clara do mapa. Em um mundo saturado de imagens. tão belo quanto terrível. o filósofo conhece outras explicações para a brutalidade da natureza: a explicação científica. não mostra nenhuma das regras do jogo de Deus para criar e.com/HHSmDCMVpw Retweetado por Revista Cult A ciência descarta a hipótese “Deus” enquanto a filosofia mata Deus. Se vejo as regras que constituem o mundo. mais intensa do que a própria realidade. Flusser então recusa o Deus dos filósofos para conservar o Deus existencial. Ele compreende que o Deus responsável pela morte da minhoca mata o Deus para o qual pede toda noite que tome conta da mãe. mas sempre à procura de Deus. supondo que enxergam melhor assim. zunem e grasnam. ao afirmar que Deus criou a vida. O escritor. mas sabe que se assumir Deus como criador do mundo não pode mais amar nem Deus nem o mundo. porque nunca inteiramente explicáveis. Flusser dava graças ao deus das línguas “que permitiu o fenômeno Guimarães Rosa. publicado na CULT 199: goo. do Estado. é um obscurantista. porém. andando sempre de costas para a morte.com. A explicação primitiva. O homem religioso. algo o incomoda. Entretanto. como que para provar de forma prática as minhas teorias”.uol. Se o jogo tem regras. Reconhecia a existência de pessoas religiosamente surdas: elas viveriam em mundos rasos e se movimentariam entre dimensões transparentes. algumas pessoas abafam a voz da religiosidade e vivem com óculos escuros. Em contrapartida. transformando toda a realidade numa ficção trágica e. ao contrário. como a clareza também é chata. Ele precisa de Deus para que o mundo não se evapore em formas transparentes. arbitrário e irrelevante a ponto de eu não conseguir mais enxergar qualquer mundo. não explica nada. ele pode ser compreendido e reproduzido. vêm para http://revistacult. mas Deus retorna no mesmo instante. seria igualmente um obscurantista. O menino que ele continua a ser quer amar Deus sobre todas as coisas como lhe ensinaram. mas sempre em busca de religião; uma vida sem Deus. lá o que seja. as pegaria sempre pelas costas.gl/81Ylb1 Expandir Autêntica Editora @autentica_ed 18 mar A @revistacult destaca "O Sol e o Peixe: prosas poéticas". com medo de a Inglaterra ser invadida. Ele entendia essa ausência­procura como a própria definição da filosofia.gl/pyq2ZA Expandir Revista Cult @revistacult 19 mar Leia o artigo do psicanalista Gilson Iannini que abre o dossiê "A linguagem do trauma". e a explicação filosófica. Ora. À medida que cresce. nossa mente cristã desconsidera o ponto de vista da minhoca e do ratinho. mas é exatamente a circunstância de não se revelarem quaisquer regras da criação que mantém a força da explicação “Deus”. A predisposição religiosa deixa obscura a visão clara do mundo. Vilém foge junto com Edith. Ou Deus criou o mundo – e portanto é tão cruel que se diverte com o sofrimento das minhocas e dos meninos – ou Deus é bom – e portanto não criou esse mundo: não há conciliação possível. do pai e da irmã. Em 1939. de Virginia Woolf​ e traduçaõ de Tomaz Tadeu. existe a ficção de Kafka e de Guimarães Rosa. A morte. No entanto. A tal da natureza na verdade é brutal: todos os seres cantam e chilram. ele completa 19 anos de idade quando os nazistas invadem o seu país.twitter. não deixa de ser igualmente um obscurantista. Como se deseja a clareza. portanto. sua namorada. O desvio do ardor religioso para o campo do profano resulta no endeusamento do dinheiro. e torna problemática a morte. O filósofo costumava dizer: perguntas têm sentido apenas quando não têm resposta. goo. Eles o fazem em louvor da fome. O pintor. como formulou Jacques Monod. Ele não concilia a noção de um Deus criador com a noção de um Deus bom. através do jogo entre o acaso e a necessidade. embora saiba que assim o mundo se resume em minhocas espetadas no anzol do tio. São duas inautenticidades opostas que complicam o fenômeno da religiosidade. no ponto de vista do cartógrafo. Quando Paris cai. Vilém também precisa de Deus enquanto criador do mundo. forçando­nos a caminhar de frente para ela. porque explicáveis. portanto. entretanto. Por isso. Se há um jogo. mas não em louvor do Senhor. Passa a se perguntar como a fé “consegue resistir ao peso morto do dogma de um Deus criador”.br/home/2014/06/a­sacralizacao­do­cotidiano/ 2/4 . No entanto. Flusser sabe que nossa mente cristã admira a perfeição da natureza porque todo passarinho tem a sua minhoca e todo gatinho tem o seu ratinho. Estas explicações lhe parecem melhores do que aquela que postula um Deus criador de tudo o que existe. A teoria de Monod complementa a de Darwin por ser mais formal. dos media. Vilém Flusser dava graças ao deus das línguas que fez o Riobaldo de Rosa dizer: “Deus existe mesmo quando não há”. por isso mesmo. as fotografias de Lenise Pinheiro convidam a uma radical fruição. o mundo volta a se compactar. O ensinamento do tio e os conflitos entre o Deus criador e o Deus bom retornam na vida de Vilém Flusser de uma maneira que mal podemos imaginar. o mundo se revela vazio. Ao mesmo tempo. na direção da Inglaterra. A predisposição religiosa. sabe que “Deus é uma péssima explicação do mundo”. Tweetar para @revistacult Vilém compreendia por religiosidade a capacidade de captar a dimensão sacra do mundo. Se não vejo as regras que constituem o mundo e sua criação. da química. rosnam e grunhem. através da teoria da evolução de Charles Darwin. Considerava que vivia uma vida sem religião. TWITTER Tweets Revista Cult @revistacult Seguir 20 mar De olho no teatro. no ponto de vista daquele que não é incomodado pela dimensão sacra do mundo. a saber: ele não consegue descartar a explicação “Deus”. ele tem regras. algumas dessas pessoas fingem um sentimento religioso para o qual não têm capacidade.  remando contra a corrente apenas o suficiente para não se mover. meu pai? O senhor vem. Gosto de imaginar Vilém inundado pela memória do pai. eu tomo o seu lugar. Justamente em Praga Flusser reencontra o seu pai: como um nome gravado na parede do Memorial da Sinagoga Pinkas. agora mesmo. meu pai? O senhor vem. do senhor. imaginando a si mesmo à beira das águas imaginárias do seu amigo brasileiro. Vilém decerto imaginou­se como o filho sem nome do conto de Guimarães Rosa. Seja o primeiro entre seus amigos. Gosto de imaginar que. por meses. autor do livro A dúvida de Flusser (Globo Livros. os pais de Kafka e de Guimarães Rosa são projeções metonímicas reduzidas da figura de Deus. 2012) Comente    Compartilhar Imprimir Curtir 6 pessoas curtiram isso. Gustav não fugiu da barbárie com o filho. À beira do rio Moldávia. para permanecer na terceira margem do rio no lugar de Gustav. na França.com. ou se ele foge. da terrível Carta ao pai. enquanto revê a sua própria vida e cumpre mais uma vez o eterno retorno do mesmo terror e da mesma esperança. O filho esperou encontrá­lo por toda a vida: no Brasil. O pai não vai a lugar nenhum. seu pai manda fazer uma pequena canoa e parte nela para o meio do rio. ainda e sempre à procura do Deus em que não acredita. desatinado. Nas docas do Rio de Janeiro. Todos os seus entes queridos são espetados. remando dentro de uma pequena canoa. e é também o próprio pai de Kafka. Ele fica ali. O filho sente que o pai vem “da parte de além”. Vilém perguntaria ao pai. Vilém recebe a notícia de que o seu pai morrera no campo de Buchenwald.br/home/2014/06/a­sacralizacao­do­cotidiano/ 3/4 . agora com cabelos brancos. no absurdo anzol dos nazistas. a ambas vontades. e eu. O pai de Vilém se chamava Gustav Flusser. na Alemanha e em Praga. Elas morreriam em 1942. O pai. num acidente de trânsito. Sabemos que Vilém lia muito literatura. preenchem todos os centímetros quadrados das paredes das salas que constituem o Memorial. aonde chegam em agosto de 1940. Flusser morre em 1991. o filho. o pai de Vilém Flusser também se torna uma projeção metonímica reduzida da figura de Deus. Vilém descobre o nome do seu pai. para onde volta para fazer uma conferência. como minhocas judias. Vejo­o parado no centro da sala. na canoa. Gustavo Bernardo é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). acompanhados das datas de nascimento e morte. http://revistacult. em Auschwitz. remando contra a corrente desde então. o escritor João Guimarães Rosa. Este Memorial é dedicado às 80 mil vítimas tchecas dos nazistas. Depois de décadas esperando esse pai na margem do rio. No centro do Memorial. então. e nos pede perdão até hoje. Ele dedicou seus melhores comentários especialmente a dois autores de ficção: Franz Kafka e João Guimarães Rosa. O Pai de Kafka é o pai do inseto chamado Gregor Samsa. num acidente de trânsito e justamente em Praga. Creio que ele se encontra lá. antes da conferência e do acidente fatal. o professor Gustav Flusser. O filho sente “o grave frio dos medos” e adoece. na canoa!”. em ordem alfabética. a esperar o pai que se mantém na terceira margem do rio. decide chamá­lo aos gritos: “está na hora de tomar o seu lugar. Como continuamos falando desse menino tcheco duas décadas após a sua morte. por anos. o pai de que o afastaram irremediavelmente. eu tomo o seu lugar. Eu só não sei se ele troca de lugar com o pai. Vilém teria visitado sozinho o Memorial da Sinagoga Pinkas. revendo o nome do pai na parede. ele rema para a margem. permanece apenas no meio do rio. A mãe e a irmã haviam sido presas e deportadas.uol. quando que seja. do senhor. De algum modo. na rua Siroká. a ambas vontades. Ele percebe que vai morrer e pede que também depositem o seu corpo numa pequena canoa e a soltem no rio. Apavorado. no meio do rio Moldávia. O pai escuta. Da mesma maneira que Deus é a projeção metonímica agigantada da figura paterna. por décadas a fio. creio que Vilém é mais corajoso do que o filho do conto de Guimarães Rosa. Pela primeira vez em tantos anos. na canoa!”. quando que seja. foge. Seus nomes. O pai de Rosa cria a terceira margem do rio como uma bela metáfora da transcendência. Neste momento. O Pai de Guimarães Rosa é o pai do mais belo conto da literatura brasileira: “A terceira margem do rio”. como se dentro da história de Guimarães Rosa: “está na hora de tomar o seu lugar. O filho chama o pai de “nosso pai”.22/03/2015 Revista Cult » A sacralização do cotidiano o Brasil. e eu. O nome me espelha e me assusta. porque ele o procurou por toda a vida: esse personagem é o Pai. É esse filho que nos conta: quando menino. Vilém Flusser de fato morre poucas horas depois. desaparece. agora mesmo. Há um personagem comum a ambos que orientou toda a filosofia de Vilém. Gustav permaneceu em Praga e foi assassinado. http://revistacult. Seja o primeiro a comentar.. 70 | 10º andar | Paraíso | São Paulo. ✉ Assinar feed Editora Bregantini d Adicione o Disqus no seu site  Assine ou compre a Cult Anuncie Privacidade Equipe Pç.br/home/2014/06/a­sacralizacao­do­cotidiano/ 4/4 .: (11) 3385­3386 Copyright © 2014 Editora Bregantini.: (11) 3385­3385 ­ Fax. SP | CEP 01533­070 | Tel. Todos os direitos reservados. Santo Agostinho..com.22/03/2015 Revista Cult » A sacralização do cotidiano ARTIGOS RELACIONADOS 09/12 ­ A ficção de Deus – Gustavo Bernardo 23/06 ­ Brasileiro no melhor dos casos 13/02 ­ A caixa preta 11/02 ­ A consumidora consumida 0 Comentários Revista Cult   Recommend ⤤ Compartilhar   Entrar Ordenar por Melhor avaliado Comece a discussão.uol.
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