A Nuvem do Não SaberO texto a seguir é a condensação de uma palestra do Pe. Barry William Malone, SM (1) no retiro "Oração Profunda com os Místicos Ingleses", organizado pelo Círculo Gregório de Nissa e realizado no Centro Marista de Mendes, RJ de 26 a 28 de setembro de 2008. Um livro com o conteúdo completo de todas as palestras foi publicado em 2010 pelo autor, sob o título "Um Retiro com os Místicos Ingleses". Para adquirir um exemplar, mande e-mail para o Pe. Barry William (
[email protected]) perguntando sobre o modo de proceder. ********** Estávamos em 1984, e eu havia passado o dia na periferia de Peshawar, na Província Noroeste do Paquistão. Havíamos visitado alguns dos muitos campos de refugiados. Estimava-se haver uns dois milhões de refugiados afegãos no Paquistão naquela época. Eles estavam se refugiando dos russos, que tinham naquele tempo controle absoluto do Afeganistão. As cenas eram lamentáveis — acampamentos de tendas, e o inverno se aproximando. Muito poucos homens nos acampamentos, e muitos deles fortemente armados. Membros mutilados. Ociosidade forçada. Visitamos uma Missionária Médica de Maria, norte-americana, que havia passado meses organizando programas sanitários para os acampamentos em nome das Nações Unidas. Ali estava ela — em roupas paquistanesas, sentada depois de um dia de trabalho intenso, e lendo — o que lia? A Nuvem do Não Saber — um livro espiritual da Inglaterra do século 14 (2). Na segunda metade do século, quase ao mesmo tempo em que Walter Hilton (3) escrevia sua ―Escalada da Perfeição‖, outro trabalho apareceu na Inglaterra chamado ―A Nuvem do Não Saber‖. O autor é desconhecido. A maioria dos estudiosos acredita que ele veio do centro da Inglaterra. Ele escreveu este trabalho para sugerir a alguém que o tempo havia chegado para avançar na vida espiritual, e mudar a maneira como aquela pessoa vinha orando. O ensinamento do livro é, hoje em dia, bem conhecido dos que praticam a Oração Centrante. Ele sugere que seu discípulo pare de tentar rezar usando sua imaginação ou pensando e, em vez disso, repita interiormente uma pequena palavra como um ato contínuo de fé e amor. Ele até sugere que esta palavra poderia ser ―Deus‖ ou ―Amor‖. Quando a pessoa que assim reza notar que está distraída, o livro ensina, ela deverá simplesmente retornar à repetição amorosa interior da palavra. O autor chama a este exercício ―contemplação‖. No capítulo 7 de seu livro, o mestre anônimo indicou que esta maneira de rezar não é para todos. Ele escreve: ―A pessoa vai falhar em seu propósito, se chegar à contemplação sem muita meditação sobre seu estado deplorável, sobre a Paixão de Nosso Senhor, a afabilidade e bondade de Deus‖. Mas ele vai adiante para afirmar: ―Mas para penetrar na Nuvem do Não Saber, a pessoa que por muito tempo praticou essas meditações precisa deixá-las de lado, colocando-as e segurando-as debaixo da Nuvem do Esquecimento‖. Qual é, na realidade, o tempo apropriado para deixarmos de pensar em Deus e pararmos de tentar conversar com Deus sobre todas as coisas? Esta é uma questão sempre presente. O autor insiste que é bom pensar sobre a bondade de Deus e amar e louvar Deus por sua bondade, mas ele escreve que é melhor pensar ―Apenas no Ser‖ de Deus e amar e louvar a Deus por Ele mesmo. nossa leitura das Sagradas Escrituras. Esta forma de oração é um caminho para uma oração mais silenciosa — caso seja para isto. mas nesta oração escolhemos não pensar ou meditar sobre tudo isto mas. conscientemente repetimos nossa palavra. que é incompreensível para nós. a profundidade e a vida da Santíssima Trindade. sejam simples distrações. A dinâmica do ensinamento da ―Nuvem do Não Saber‖ é aquela dinâmica de uma amizade que se aprofunda e fica mais íntima. lindamente escrita. mas podemos amáLo — de fato. nossa oração com os outros. Palavras são instrumentos de amor e amizade. na amizade. Uma leitura guiada da ―Nuvem‖. Não podemos alcançar Deus diretamente por nosso entendimento. Chega o tempo.Temos aqui três expressões que talvez necessitem alguma explicação: a) A Nuvem do Não Saber: figura a nossa incapacidade de conhecer Deus como Deus é em Si Mesmo — intenção que ultrapassa nossa habilidade de pensar sobre Ele ou ainda mais imaginá-Lo. Algumas pessoas descobrem esta forma de oração com alívio e gratidão. c) O Ser Desnudo de Deus: isto significa apenas Deus como Deus é em Si Mesmo. De acordo com nosso mestre. Jesus que morreu e ressuscitou. Assim colocamos de lado os pensamentos — sejam eles piedosos. pensamento ou discurso interior. podemos amar a Deus diretamente. Deus é muito. Abraçar a oração de repetição de uma palavra de amor não significa jogar fora todas as outras formas de rezar. mas têm limites — sua superficialidade e inadequação podem bloquear uma amizade mais profunda. que o Senhor nos chama. Escolhemos um lugar sossegado para evitar distrações e suavemente (com certeza nenhuma violência contra si mesmo é recomendada!). endereçamos nossa palavra de fé e amor a Deus. de preferência.11). a experiência de Deus — a contemplação — é um não conhecimento. Aceitamos tudo que o Deus nos revelou. Mas nossa fé e amor ainda necessitam de algum alimento. Assim. Certamente este foi meu caso. que permanece escondido na Nuvem do Não Saber. Por isso a leitura e releitura da ―Nuvem do Não Saber‖ seria provavelmente muito útil. que vai se purificando. em resposta. Muitos fecham os olhos. especialmente a revelação muito especial de Deus que é Jesus. nascido de Maria. descansar em Sua presença. colocamo-los debaixo da Nuvem do Esquecimento — e deixamos nossa palavra ser como uma flecha que atravessa a Nuvem do Não Saber. mas significa ajustar nossa vida para termos tempo de ―ficar em quietude e saber que Deus é Deus‖ (Sl 46. Talvez leve algum tempo para integrar esta oração em nossa vida cotidiana. fazer atos de amor. Há um tempo para ser silenciosos. Colocamo-los de lado — ou.onde Deus graciosamente aceita nosso amor e fé. retornando a ela quando distraídos. muito maior do que nossa fraca compreensão dEle. por exemplo). É de esperar que tenham continuidade nossa vida litúrgica. em que apenas ficarmos quietos juntos é perfeitamente bom. nossas conversas sobre a fé. Aceitamos a verdade. é apresentada no livro . Escolhemos simplesmente deixar que Deus nos ame e. de fato. outros os fixam sobre certo ponto (uma cruz ou ícone.como diz o autor. b) A Nuvem do Esquecimento: procuramos penetrar na Nuvem do Não Saber deixando de lado deliberadamente toda imaginação. apenas permanecer consciente e amorosamente nessa presença. certa ocasião: ―A experiência foi maravilhosa. enquanto outras sentem-se ameaçadas. ou para levar a Eucaristia a uma pessoa doente. lembrando a postura. De onde vem tudo isto? A tradição do Pseudo Dionísio (7) é bem evidente. A repetição da palavra é uma maneira de permanecer em quietude.―A Busca Amorosa por Deus‖. OCSO (4). Algumas pessoas acham muito agradáveis o silêncio e a quietude. Estamos diante de ensinamentos que evidenciam a influência da Alexandria cristã do terceiro ao sexto século. um ato religioso. podemos retornar suavemente a nossa palavra. Mas quando a fé. Animais podem andar. Mas podemos andar pela rua para roubar um banco. Podemos evitar o sono. algo que muitos acham difícil. Cair no sono de vez em quando durante a oração não é das piores coisas que podem nos acontecer! A sensação de nos sentirmos ameaçados pelo silêncio interior pode ser muito desconfortável. Quem reza de acordo com os ensinamentos da ―Nuvem‖ não está à procura do nada. Dionísio foi um monge sírio. A motivação transforma o andar. ―A Nuvem do Não Saber‖ é uma das grandes riquezas da tradição mística inglesa. Lembremos bem claramente que a meta ou finalidade de nossa Oração Centrante não é a eliminação de toda atividade intelectual. Quando notamos que aconteceu. Logo que nos acostumamos com o silêncio. escolhendo o tempo e o lugar para nossa oração. Acho útil lembrar que repetir interiormente uma palavra não é. Os três são monges trapistas norte-americanos e vários de seus trabalhos estão disponíveis em português. Mas precisamos ainda discernir com responsabilidade se esta forma de oração é a melhor para nós. Thomas Keating (5) e o Pe. sim. mas sim de Deus. De maneira similar. e realmente não é nada sem Deus. Afinal. Muitas pessoas acham a repetição da palavra amorosa uma grande ajuda. a ameaça parece desaparecer por completo. em ato religioso. e é: sim. andar pode ser uma ação moralmente neutra — em si mesmo nem boa. Alguém me disse. Eles chamam de ―Oração Centrante‖ a forma de oração ensinada na ―Nuvem‖. do Pe. Outros autores na tradição da ―Nuvem‖ são o Pe. O estilo do livro é tão inglês — muito pouca auto-referência extravagante. Tal fato é muito normal e não deve nos preocupar. a confiança e o amor motivam a repetição. nossa motivação pode transformar a simples repetição interior da nossa palavra de amor em ato de fé e amor. em si mesmo. A tensão nervosa provocada por nosso estilo ativo de vida pode tornar bastante difícil sentar em quietude. Embora tal atividade seja deliberadamente reduzida ao mínimo. Vamos nos referir aqui a São João da Cruz quando ele ensina que tudo que não é Deus é como o nada. nem má. Basil Pennington (6). um encontro com Deus. William Meninger. Às vezes paramos de repetir nossa palavra sem nos darmos conta disso. e outras dizem que adormecem. soltando sapatos apertados. Até Santo . ou andar numa procissão religiosa. Seus escritos chegaram à Europa Ocidental na Idade Média. nunca ficamos completamente passivos. lavando rosto e mãos antes da oração. mas em geral decorre da falta de hábito. Mas o ensinamento é cauteloso e claro. esta prática se transforma em ato religioso. repousante e até alegre — mas será que foi realmente oração‖? Minha resposta foi. os mais elevados Conceitos de Deus nunca atingem sua verdadeira grandeza. Atualmente vive em Belo Horizonte. do capítulo 9 da ―Nuvem‖: ―Tenha muita certeza que você nunca terá a visão de Deus sem nuvem nesta vida.Tomás de Aquino cita-o com respeito. falou sobre a teologia espiritual de Dionísio em discurso na audiência geral semanal de 14 de Maio de 2008... considerada obra basilar da Teologia da Negação ou Teologia Apofática. Barry William Malone. O Processo do Perdão (2006). Recife.. Mas poderá ter a percepção Dele. esquecer todo o resto. Com o Pseudo Dionísio a palavra ‗místico‘ torna-se mais pessoal. Ricardo de São Victor é. OCSO publicados no Brasil: Deus ao Alcance das Mãos (Paulinas. O Mistério de Cristo (Loyola. OCSO publicados no Brasil: Intimidade com Deus (Paulus. SM é Conselheiro do Círculo Gregório de Nissa. 2006). 2005).. A Editora Santuário publicou. o elo principal entre Dionísio e o autor da ―Nuvem‖. Ela é Jesus Cristo.. do mesmo autor. pertence à Sociedade de Maria (Padres Maristas) e trabalha no Brasil desde 1984.. 2005). Ou. Por isso.‖ (1) O Pe. Basil Pennington. provavelmente. A Condição Humana (Santuário. erga seu amor até aquela Nuvem. (5) Livros de Thomas Keating.. A face de Deus é nossa incapacidade de expressar verdadeiramente o que ele é. 2005). Convite ao Amor (Loyola. OCSO — A Busca Amorosa por Deus. se Ele estiver disposto. Permitam que cite algumas palavras do Papa: ―Deus é encontrado sobretudo no louvor. que tornou-se próximo de nós em Jesus Cristo‖. traduzida por Dom Lino Correia Marques de Miranda Moreira. mais precisamente. (7) Dionísio — monge sírio do Século V. OSB. considerado importante mestre espiritual por sua obra A Escalada da Perfeição. (6) Livros de M. 2008. Como o trabalho foi publicado sob o pseudônimo de Dionísio Areopagita . vamos ler. não apenas na reflexão. o caminho para Deus é o próprio Deus. Ela exprime o caminho da alma em direção a Deus . Mente Aberta. Permanecem sempre aquém Dele . publicou pelo final desse século o curto tratado Teologia Mística. a dá-la a você. (4) William Meninger. Na simplicidade das imagens bíblicas encontramos mais verdade do que nos grandes conceitos. 1999). deixe Deus elevar seu amor até ela. por sua graça.. um "lúcido e equilibrado" guia para a vida contemplativa. Nascido na Nova Zelândia em 1944. 1982). Oração Centrante (Editora Palas Athena. Coração Aberto (Edições Loyola. E procure. traduzida por Maria de Moraes Barros. Bento XVI. Para concluir. O Pseudo Dionísio nos mostra que. (3) Walter Hilton (1343-1396): místico agostiniano inglês. por outro lado. mais íntima. e a da Editora Vozes (2008). afinal. 2002). esta face de Deus é muito concreta. por sua graça. Edições Bagaço. Pároco e Reitor / Formador do Seminário de Padres Maristas instalado naquela cidade. O atual Papa. onde exerce as funções de Capelão Universitário. (2) As principais edições da "Nuvem do Não Saber" publicadas no Brasil são as da Paulus Editora (1987). Somente através dessas imagens podemos captar sua verdadeira face — e. Nesse contato com Deus. abraçando a eles mesmos e a todo o universo. no sentido estrito. SJ (2) distingue duas formas de contemplação reconhecidas pela tradição da Igreja: a adquirida e a infusa. na obscuridade. OCSO (Thomas Merton)menciona cinco "elementos essenciais da contemplação mística": 1. 5. a contemplação pressupõe um estado interior de silêncio. polarizada pela consciência permanente de sua presença. para ir a Deus no nada. refletir a opinião de uma importante parcela desses autores e o magistério da Igreja. No livro "Espiritualidade. Do lado do homem. Presença anterior à nossa experiência dela e que. no desprendimento e na "noite". que lhe têm associado.. para além de palavras. o Pe. Por vezes simplesmente referida como um "descanso" em Deus. 3. Por sua vez.(que foi um discípulo de São Paulo). transcende os sentidos. Os que a conhecem falam do despertar (muitas vezes inesperado) da consciência viva de uma presença misteriosa e amorosa.) É um trabalho de união interior e de identificação na caridade divina. um "olhar amoroso" para ele. de abandono e apaziguamento. diferentes significados. a contemplação infusa é puro dom. Contemplação e Paz" (3). o Mistério Último.. No nível superior. nos tempos atuais ele é usualmente chamado "Pseudo Dionísio". em seu nível inferior. de conhecimento no "desconhecimento". A contemplação é obra do amor. 4.. William Johnston. OCSO (1) a contemplação. nem mesmo. segundo Santo Agostinho. afetivo. 2. ao longo da história. (. a fonte de onde jorra continuamente a vida". é mais íntima de nós que nós mesmos. e o contemplativo prova que ama deixando todas as coisas. (. Em outro texto. pelo assentimento a sua ação em nós e pelo continuado abandono a sua vontade. É a vida caracterizada pelo deixar-se transformar. É um desenvolvimento natural de uma vida dedicada à oração e a outras práticas contemplativas. "um desenvolvimento normal da graça do batismo" é "a abertura da mente e do coração – de todo o nosso ser – a Deus. . Daí ser ela caracterizada por uma espécie de luz-nas-trevas. Vida contemplativa é a vida orientada para a busca de Deus.. O Pe. o mesmo autor nos diz que a contemplação é "uma experiência da presença do Deus Trinitário como o substrato em que nosso ser se enraíza. na medida do possível. Contemplação O sentido da palavra contemplação não é consensual entre os autores cristãos. Louis Merton. deve haver desapego das coisas sensíveis. deve haver certa afinidade amorosa de ambas as partes. A primeira forma resulta do esforço humano auxiliado pela graça.) um esforço generoso de renúncia ascética de si mesmo. mesmo as espirituais. Esse conhecimento de Deus no "desconhecimento" não é intelectual. transcende o próprio intelecto. pensamentos e emoções". É uma intuição que. Mas o fator decisivo na contemplação é a livre e imprevisível ação de Deus. Para Dom Thomas Keating. O esforço humano é de pequena importância para alcançá-la. deixar-se construir por Deus. A seleção de definições apresentada neste texto procura. SJ: Arise. por outro lado. SaintMaur.. o convite à vida contemplativa. para que mesmo sua ação seja decorrente da superabundância de sua contemplação. sejam religiosos. Felizmente. eles têm uma necessidade mais urgente de oração (. Bem ao contrário. Eles devem pedir a graça de uma vida interior bastante intensa. OCSO: Mente Aberta Coração Aberto – Edições Loyola. a idéia de duas formas inconciliáveis de vida: a vida ativa e a vida contemplativa. 2000 (3) Thomas Merton: Espiritualide.Ao longo da história o conceito de vida contemplativa tem sido. superado este engano. Por ser a forma de vida monástica aquela que oferece mais oportunidades para a prática regular e intensa da oração. My Love .. ―Aqueles que estão engajados na vida ativa não devem renunciar à contemplação sob o pretexto de que não levam uma vida contemplativa. eles têm uma razão a mais para apegar-se à contemplação. tornou-se comum considerar a vida contemplativa como um privilégio exclusivo dos religiosos das ordens de clausura. 2005 (2) William Johnston. New York. Mysticism for a New Era – Orbis Books. Há bons motivos para recusar. assimilado (com certa razão) ao de vida de oração. Como escrevem Jacques e Raïssa Maritain (4). Contemplação e Paz – Editora Itatiaia. 1962 (4) Jacques e Raïssa Maritain: De la Vie d'Oraison – l'Art Catholique. é possível hoje estender a todos os cristãos.. (1) Thomas Keating. sejam leigos. 1998 .) A substância da contemplação não lhes é recusada. 1947 – Ed. freqüentemente..