A Morte de Olivier Becaille - Emile Zola

May 21, 2018 | Author: Flavia Santana de Souza | Category: Death, Paris, Science, Sleep, Sky


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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." todos morreriam um dia.A MORTE DE OLIVIER BÉCAILLE 1 Foi num sábado. aquela carne atingida pela imobilidade. Um pouco de repouso bastaria. sem respirar. mas com perfeita nitidez. Como era frágil e as pessoas me acariciavam com compaixão. Era a ideia da terra que . Muito bem! Morria-se. acreditava vencer meu medo. uma luz esbranquiçada onde os objetos se fundiam. repetindo. tudo acabava. Em seguida. mas os sons esmaecidos pareciam vir de muito longe. encarava a morte. muito pobres. nesse vazio. o olho direito encontrava-se completamente paralisado. mal tendo como aguardar meu salário do primeiro mês de trabalho na administração em que conquistara um posto. como que um raio me aniquilara. pensava com constância que não sobreviveria. que morri. E. quase fui levado por febres agudas. E aquele pensamento sobre a terra provocava-me um terror ao qual não conseguia me acostumar. enquanto a inteligência continuava funcionando. Quando cresci. lento e preguiçoso. apenas o pensamento permanecia. Minha pobre Marguerite chorava de joelhos junto ao leito. inclinando-se sobre meu rosto. procurando roupa de cama. Por duas vezes. acima de meus membros inertes. Só meu olho esquerdo ainda enxergava um clarão confuso. achando que se tratava de um desmaio. e eu mesmo proibira que Marguerite fosse chamar um médico quando me deitei na manhã em que chegamos em Paris naquele apartamento mobiliado da rue Dauphine. era a morte? Será que minha alma estaria se demorando assim no meu crânio antes de alçar voo? Desde a infância eu era sujeito a crises nervosas. ao meu redor. gaguejou. Às vezes. acorreu. todos se acostumaram a me considerar doentio. meu Deus! Ele está morto! Então aquele estado singular de torpor. embora me obsedasse noite e dia. era o cansaço da viagem que me deixava assim tão abatido. foi tomada pelo terror. tocando-me as mãos. após dias de reflexão. explodindo em lágrimas: – Meu Deus! Meu Deus! Ele está morto! Eu ouvia tudo. Em seguida um arrepio brusco me congelava. E eis que uma crise súbita me arrebatava! Seria a morte? Eu imaginara uma noite mais escura. Havíamos abandonado bruscamente nossa província. Já bem pequeno tinha medo de morrer. após três dias de enfermidade. transtornada. às seis horas da manhã. Minha mulher remexia há alguns instantes na mala. que me enterrariam logo. nem uma fibra de minha carne obedecia-me. nada devia ser mais cômodo nem melhor. Quando se endireitou e me viu rígido. entregava-me à minha vertigem como se uma mão gigante me balançasse por cima de um abismo escuro. um silêncio mais pesado. e. ainda bem jovem. Minha vontade morrera. a voz dilacerada: – Ele está morto. conservei essa ideia fixa. Acontecera uma síncope de todo o meu ser. Chegava a me sentir quase feliz. Em seguida. os olhos abertos. No entanto sentia-me tomado por uma terrível angústia. Lembro-me dos instantes mais felizes que passei com Marguerite. quando pensava nela construindo sonhos para o futuro. ela é escondida como ocultamos nosso sexo. O terrível “Para quê?” ressoava como um toque fúnebre em meus ouvidos. todo o tempo o aguardo de uma separação fatal deteriorava minhas alegrias. dos pântanos salgados a perder de vista. Era um bem-estar egoísta. a uma casa semidesmoronada. Um desânimo imenso tomava conta de mim. a necessidade da morte parecia-me mais abominável no torpor do despertar. Quando me acontecia algo de bom.voltava e prevalecia sobre meus raciocínios. A estrada faz uma curva. Não ousamos contar nosso mal a ninguém. Sensação estranha e curiosa que me divertia: parecia uma voz distante que contava minha história. que trabalhavam nos pântanos salgados e já viviam penosamente das salinas próximas. O pior desse tormento. nas melhores épocas de minha existência tive melancolias súbitas que ninguém compreendia. A ansiedade apertava-me o peito. Em seguida. porém. talvez dali a uma hora. na verdade não tive razão de temê-la tanto. é que o suportamos no contexto de uma vergonha secreta. Quantas vezes à noite acordei sobressaltado sem saber que sopro perpassara meu sonho. comer panquecas na residência dos pais de Marguerite. eu entrava para a administração do hospital como empregado. Nos primeiros meses de nosso casamento. todos se surpreendiam por me ver sombrio. E se eu estivesse adormecendo para sempre? E se eu fechasse os olhos para nunca mais tornar a abri-los? Não sei se outras pessoas também sofrem esse tormento que devastou minha vida. ia até lá com meu pai. Ali escavava-se um buraco escuro: meu pai estava morrendo. A lembrança de um pedacinho de terra perto de Guérande. um descanso no qual esquecia minhas preocupações. deitados lado a lado. eu balbuciava: “Meu Deus! Meu Deus! Temos de morrer!”. Quando eu tinha sete anos. pois não se fala da morte mais do que se pronunciam algumas palavras obscenas. Então minha imaginação comprazia-se no luto. lembravame do colégio de Nantes onde crescera. devem arrepiar-se com o mesmo arrepio quando a luz está apagada. na estrada de Piriac. e. Minha vida inteira passava com rapidez diante de mim. do tédio das paredes antigas. juntando as mãos desesperado. Era porque de repente a ideia de meu vazio atravessara minha alegria. Precisaríamos deixar-nos. já que levaria a um dilaceramento tão cruel. me perseguia. destruía minhas esperanças. Refletia sobre essas coisas enquanto minha querida Marguerite continuava a soluçar. ela ou eu? Ambas as alternativas me enterneciam até às lágrimas desenvolvendo o quadro de nossa vidas partidas. do desejo perene do vasto horizonte de Guérande. como um espetáculo ao qual a partir de então me sentia alheio. quando ela dormia à noite ao meu lado. Se a morte era apenas esse desmaio da carne. Tem-se medo dela a ponto de nem se citar seu nome. A morte ergueu-se entre mim e tudo o que amei. Quem iria primeiro. Muitas vezes o marido e a mulher. iniciava uma vida monótona cuja única alegria eram minhas visitas dominicais à velha casa da estrada de . da parte baixa da cidade e do mar imenso disposto sob o céu. Dava-me muito dó não saber como acalmar sua dor dizendo-lhe que eu não estava sofrendo. talvez amanhã. e eu me perguntava para que a felicidade de se estar junto. e nem um nem outro fala. Só tornava a dormir com dificuldade. Principalmente minha memória adquirira uma vivacidade extraordinária. Assim. um bosquete de pinheiros desce em debandada uma vertente rochosa. o sono me preocupava por se parecer tanto com a morte. Isso era passado. e isso para sempre. em Guérande. isso iria aliviá-los. A mancha branca que meu olho esquerdo enxergava empalidecia aos poucos. em que não mais seria. como um antigo amigo de minha família tratara de encontrar um posto em Paris para mim. Ela gostava de mim porque a levava para passear de charrete. como os bancos da terceira classe fossem muito duros. queria ir embora. Marguerite não passava então de uma criança.. não pareceu por demais aborrecida. Paris inteira passava por lá. já que eu ouvia e raciocinava. Quando se acostumou à ideia de ser minha mulher. sem um único apoio. a lareira. mais tarde. pasmados com o tumulto das ruas. Só que o vazio me aterrorizara desde minha infância. escura e profunda. atemorizada por aquela grande Paris da qual não conhecia uma única pedra e que trovejava tão terrivelmente. Não conhecíamos ninguém em Paris. A janela dava para a rue Dauphine. marcava 10h06. surpreendi minha mulher banhada em lágrimas. ela não dissera não. Marguerite teve de ficar de anáguas. Porém. pus Marguerite no colo para que ela dormisse no macio. dava uma olhada na rua e em seguida voltava muito pálida. compreendi pelos seus gestos amedrontados que ela me achava horroroso. Como apressáramos a partida. quando voltei para casa. Minha mulher cuidara de mim com sua doçura sorridente. Submissa. E naquele momento eu acabara de morrer naquele catre estreito de hotel mobiliado. levei minha querida criança para a capital a fim de que ela nunca mais chorasse. Eis toda a minha juventude. e a região resvalava para uma grande miséria. mas lembrava-me do quarto com muita nitidez. Nela. E o que faria se eu não acordasse mais? O que seria dela naquela cidade imensa. sozinha. só me esperavam na segunda-feira seguinte em minha administração. Meu Deus! Ele está morto! Ele está morto! A morte portanto não era o vazio. sem seu pêndulo. sem que nunca mais minha existência conseguisse recomeçar. ainda estupefatos pelas quinze horas de trem. à direita. No trem ela ria. na manhã em que a pedi em casamento. Os pais a deram para mim de imediato. fazendo tanta algazarra que ouvia os vidros tremerem. lamentava-se. e. pois as salinas já não rendiam praticamente nada. de joelhos sobre as lajotas. centavo por centavo. beijava-a e repetia com loucura: – Olivier. graças a alguns trabalhos suplementares. ainda por séculos e séculos. quando voltamos para casa. e. À noite. aproximava-se da janela. era uma sensação estranha aquele aprisionamento no quarto em que a viagem acabara de nos lançar. lembro-me de que chovia torrencialmente. Ao final de seis meses.. A partir do momento em que senti necessidade de ficar acamado. Um dia. pois seu vestido estava ensopado. enquanto minha mulher. Ela estava se entediando. enchia-me de . ignorante de tudo? Marguerite tomara uma de minhas mãos que estava pendurada.Piriac. Não conseguia imaginar o desaparecimento de meu ser. inerte à beira da cama. responda. No dia do casamento. De vez em quando. eu economizara um bom dinheiro. e aquele ano de um futuro que eu não veria. À esquerda ficava a cômoda. Às vezes eu estremecia quando encontrava em um jornal uma data futura do século seguinte: com certeza eu não estaria mais vivo naquela data. Vivemos algum tempo na região. a supressão total do que eu era. no meio da qual um relógio de pêndulo avariado. mas sentia o quanto estava perturbada. as coisas iam de mal a pior. Aos poucos. Em seguida. Ela mostrara-se muito prestativa desde a nossa chegada. vocês ainda não desarrumaram completamente as malas. quando ela dissesse de novo: – Ele está morto. fiquei três dias sem conseguir praticamente me alimentar. Entrementes a senhora apoderava-se do quarto com uma autoridade grosseira. não. os vizinhos devem se ajudar.. Muito em breve. Marguerite soluçava como uma criança. Há pouco estava abatido demais. além disso. desde aquela época. Marguerite não precisava desesperar-se daquele jeito porque eu não me sentia em condições de virar a cabeça no travesseiro para lhe sorrir. ganhavam no máximo quarenta soldos com esse trabalho.. a Senhora Gabin. – Não se preocupe com nada – repetia. – Meu Deus! Ele se foi? – perguntou. De imediato. Um proprietário intratável vendera seus móveis no inverno anterior. Seja razoável. uma outra crise de pranto ainda a abalava. vizinha? Mais uma crise. Diga. Não é porque seu marido se foi que você tem de morrer de desespero. morava no hotel com sua filha Adèle. só me deixou mais deprimida. Uma nova vida começaria para nós. de vez em quando. logo iria inclinar-me e estreitar Marguerite em meus braços para secar suas lágrimas! Que alegria nosso reencontro! E como nos amaríamos ainda mais! Descansaria mais dois dias e depois iria à minha administração. meu Deus. Era de uma mulher idosa. eu iria beijá-la e murmuraria bem baixinho para não assustá-la: – Não. tocou em mim. menina de dez anos. e ali tentou consolá-la. mais vasta. Eu estava dormindo. sentou-a na poltrona manca perto da lareira. o que me fez pensar que estava acendendo ao meu lado uma das . Sim. A senhora Gabin ergueu-a. Ambas recortavam abajures.. – Você vai acabar ficando doente.. a porta abriu-se bruscamente. Mas decerto não era a morte. – Justo agora Dédé foi entregar nosso trabalho. esta sempre fora minha esperança. contou-nos sua história. comovida por nossa situação. Você está vendo que estou vivo e que a amo. Olhou-me. não é? Reconheci a voz. não é? Ouvia-a abrir a cômoda. Mas isso de nada adiantou. Compreendi que ela estava se aproximando. riscou um fósforo.. e uma voz exclamou: – O que está acontecendo. Só que eu não tinha pressa. Marguerite calou-se. depois tornou a falar com dó: – Minha pobre menina! Minha pobre menina! Esgotada. mais feliz. Não tinha mais forças. Claro que quando perdi Gabin fiquei como você. 2 Aos gritos de Marguerite. Pelo amor de Deus. mas há roupa de cama na cômoda. Ela deve ter pego uma toalha que estendeu no criado-mudo. Com certeza acordaria logo.angústia. e.. baixando a voz. que morava no mesmo andar que nós. Eu não era o mundo e tudo não desmoronaria quando eu fosse embora? Sonhar com a vida na morte. minha filhinha. ele está morto! –. tão branca ao lado dele! E o jovem contemplara-a com tanta profundidade enquanto ela lhe sorria dizendo que ele era muito gentil por vir daquele modo saber notícias minhas! .. percebia seus menores gestos. onde viera recolher antigos créditos de seu pai. Marguerite parara de chorar. eu bem que sabia que você estava aqui!.. Você não tem condições de tratar disso. e senti-a recuar inquieta até a porta. De repente.. Seus olhos deviam estar arregalados. Enfim. talvez porque sua saúde fosse ótima. Eu acompanhava cada movimento seu pelo quarto. Ela estava tão bonita. Não sentira seu dedo em minhas pálpebras. muito belo. a menina de dez anos. – Está. A porta porém tornou a abrir-se. só de olhar ela percebeu o que estava acontecendo.. três francos e quatro soldos. Dédé. entrou gritando com sua voz de flauta: – Mamãe! Mamãe! Ah. Marguerite não respondeu. ele está morto! Reinou um profundo silêncio. Ele morava em um quarto ao lado e mostrara-se muito prestativo. uma massa informe. Eu detestava-o. oh. – Felizmente a ouvi gritar. um frio leve começou a gelar-me. ela mostrou-lhe a cama. Eu não quero deixá-la sozinha. – As crianças sabem tudo hoje em dia.. enquanto um estranho. o atestado de óbito. os detalhes do féretro. Deus sabe como tento criá-la bem. ela devia estar me olhando perturbada e compreendendo vagamente. vou ver se o senhor Simoneau está em casa. Na véspera ainda. – Pobre senhor! – murmurou. aqui está o seu dinheiro. mamãe. temos de pensar nas formalidades.. vá brincar – respondeu a senhora Gabin. o que fazer! Interrompeu seu discurso e passou sem transição a um outro assunto. entrara no quarto e eu sofrera ao vê-lo sentado perto de Marguerite.. Trouxe vinte dúzias de abajures. Tornou a falar entre os dentes. ela sabe tudo. Por momentos parecia voar como uma chama sutil pelo ar do quarto. Vira-o três ou quatro vezes durante minha curta enfermidade. o único morto que viu foi seu tio François e. não ia embora. Esmagada na cadeira. – Bem. aposentado na província e que morrera há pouco tempo. Eu assistia a toda aquela cena como de muito longe. Olhe.velas da lareira à guisa de círio. minha menina. Não adianta nada. só tinha quatro anos. Hein? Se você permitir. – Silêncio! Silêncio! Cale a boca! – repetia a mãe em vão. parece ter sido tomada por um medo louco e fugiu derrubando uma cadeira. A criança. repousava na cama. – Ele está morto.. No entanto queria que Marguerite recusasse os serviços desse Simoneau. Veja esta daí.. porém. calculo os minutos para ter certeza de que não está passeando por aí. Quando vai fazer alguma compra ou quando a mando entregar o trabalho. E de repente o clarão vago que ainda enxergava com o olho esquerdo desapareceu.. A senhora Gabin acabara de fechar meus olhos. No entanto. A senhora Gabin contara-nos que ele estava só de passagem por Paris. – O moço está dormindo? – perguntou muito baixinho. Era um rapaz alto. não existem mais crianças.. Dédé calou-se.. A senhora Gabin continuava rondando pelo quarto. Quando compreendi. muito forte. querida. Como a menina continuasse falando. naquela época. E esse médico que não vinha. na época de minha grande doença nervosa. Aquilo sempre custava muito caro. Para não perder tempo. As horas passavam. e não se faça de boba. tivera síncopes de várias horas. Devia tratar-se de um daqueles casos de catalepsia de que ouvira falar. minha senhora – murmurou Simoneau. E eu acordaria e consolaria Marguerite. Pela janela aberta. Por um leve tilintar do cobre do candelabro no mármore do criado-mudo. – E então? – perguntou-lhe a velha senhora à meia voz. evoquei sua figura. Evidentemente era uma crise dessa natureza que me mantinha rígido como um morto e enganava a todos em torno de mim. Ela proibia-lhe de me olhar. Quando o silêncio tornou a cair. Marguerite recusava-se a comer qualquer coisa. o sangue tornaria a circular no relaxamento dos músculos. após ter pedido permissão a Marguerite. Ele empurrou a porta com suavidade e. Entrementes. Finalmente Simoneau voltou. entre – murmurou quando trouxe a menina –. como o chamava a senhora Gabin! Ele veria com certeza de imediato que eu estava simplesmente em estado letárgico. Já quando era criança. E começava a ter uma consciência exata de meu estado.. suas queridas mãozinhas de criança ardendo de febre! – Coloco-me à sua disposição. começou novamente a chorar. Ele não tentou consolá-la. dizia.. assim que Marguerite o viu. O coração.. porém. porém. podiam perguntar-lhe. trouxe Dédé. porque. Em todo caso. Aguardava-o com terrível impaciência. – O féretro é para amanhã às onze horas. É claro que Dédé dava umas . – Está tudo combinado – respondeu ele. achava mais conveniente. o dia passou. Até. nas trevas que me envolviam. o médico do atestado de óbito. pareceu-me que haviam acabado de trocar a vela. do único homem que conhecia. confortou-a e calou-se. que acabara de voltar. E como ela devia estar bonita com seus cabelos louros soltos. Faria o necessário. a senhora Gabin acompanhou-o. ela temia que a pobre moça não tivesse um centavo. ou vai se ver comigo. tornaria a bater. – Se quiser que me encarregue de tudo. a senhora Gabin acabara trazendo seus abajures. e eu a ouvi falar de dinheiro passando perto de mim. Estava vivo. já que percebia os menores gestos que se passavam ao meu redor. subiam os ruídos da rue Dauphine. O féretro sairia no dia seguinte às onze horas: as palavras repercutiram em meu crânio como o ressoar de sinos fúnebres.. perguntei-me se aquele pesadelo perduraria assim por muito tempo. Simoneau foi sentar-se perto de Marguerite. exortava-me à paciência. saberia despertar-me. A tarde passou. perturbado.– Aqui está o senhor Simoneau – murmurou a senhora Gabin. Contudo. e distinguia-o com nitidez. Simoneau fez a velha calar-se. Ela respondeu-lhe por palavras entrecortadas. A senhora Gabin trouxera o almoço. não olhe para o lado de lá. despertava-lhe a dor. – Vamos. A senhora Gabin assim mesmo adiantou-se: – O médico ainda não apareceu para o atestado de óbito. compadecido por ver a pobre mulher em tal desespero. seu rosto pálido. Raciocinando dessa maneira. como o jovem estivesse indo embora. Não queria atormentar Marguerite. A presença daquele amigo. Passaria na prefeitura e encomendaria o féretro. Eu não conseguia vê-lo. Não se preocupe com nada e não fale dessas coisas diante da pobre mulher. ela não gostava nada de deixar as crianças sozinhas por muito tempo. senhor – respondeu Simoneau. Ah. o médico – disse a senhora Gabin. não é preciso – disse o médico tranquilamente. muito delicados. – O senhor quer que eu pegue a lâmpada para iluminar melhor? – ofereceu Simoneau. haviam se instalado diante de nossa mesa. responda. Eu imaginava que ela devia ter visto Simoneau inclinar-se em direção a Marguerite e que achara aquilo engraçado. Uma revolta furiosa subia dentro de mim pelos laços terríveis que me amarravam. Repetia-lhe com fúria: – Trabalhe ou mando-a embora. não poder falar. Nada cansa mais do que esses primeiros dias de primavera. Era minha vida que ia embora. Por duas vezes Simoneau levantou-se. Entrementes. . – Vou bater em você. o que a faz rir? A criança balbuciava.. o médico acabara de se aproximar num passo rápido. imbecil? – perguntou-lhe a mãe. apressado. E essa noite. Não conhecia aquele homem e sentia que amava minha mulher. Ambas. A senhora Gabin pusera Dédé no saguão porque uma criança não precisa assistir a cenas assim. mãe e filha. no quarto. tossira. Eu não estava morto! Queria gritar que não estava morto! – A que horas morreu? – perguntou. Eu adivinhava-o cansado. O ruído de suas tesouras recortando os abajures chegava distintamente até mim. Vamos. A lâmpada estava acesa quando bateram à porta. pois ouvia sua mãe dar-lhe uns tapas nos braços. – Ah.. – Às seis da manhã – respondeu Simoneau. Pareceu-me porém que simplesmente se inclinara. A ideia abominável de que estava aproveitando o sono de Marguerite para roçar os lábios em seus cabelos torturava-me. o ar indiferente. o moço vai puxar seus pés. Ela não rira. Vencida pelo cansaço. impaciente. injúrias sufocavam-me. Marguerite levantara-se tremente. Gritos. e ela esforçava-se por arrastar minha mulher para a janela a fim de poupar-lhe tal espetáculo. Como a lâmpada iluminasse pouco o quarto. prestativo. o único ruído era o das tesouras. Com certeza tivera muito o que fazer o dia todo. – Por que você está rindo. miserável. Era de fato o médico.olhadas de vez em quando. Oh. E. onde nem mais um sopro passava. Marguerite devia estar cochilando. Tocara minha mão? Pousara a sua em meu coração? Não saberia dizer. Como. perguntou: – O corpo está aqui? – Está sim. Uma risada da pequena Dédé rematou minha irritação. pois elas não trabalhavam muito depressa: eu contava cada abajur para combater minha angústia crescente. não era preciso! Aquele homem tinha minha vida em suas mãos e achava inútil proceder a um exame atento. Nem mesmo se desculpou por estar vindo tão tarde. não poder mexer um único membro! O médico acrescentou: – Esse tempo pesado é ruim. exigiam decerto um recorte complicado. lágrimas. – Não. dilaceravam minha garganta em convulsão. E afastou-se. Deviam ser cerca de sete horas. A princípio aquele despertar ruidoso de Paris acalmou-me: parecia-me impossível que me enterrassem em meio a toda aquela vida. os olhos fechados. Houve um instante de silêncio. ainda daria tempo. ele iria confortá-la. num relance. distinguir a vida da morte! E estava indo embora. A pequena Dédé devia estar brincando no saguão. O médico devia estar se inclinado diante de Marguerite. Se acordasse por volta das dez horas. Já fazia 25 horas que eu estava dormindo. O último ruído que chamou minha atenção foi o ruído fraco das tesouras da senhora Gabin e de Dédé. Se eu não despertasse antes do dia seguinte às onze horas. – Minha querida – disse a velha –. 3 Impossível descrever minha agonia na manhã do dia seguinte. Tratei de perceber quantas pessoas havia no quarto e o que estavam fazendo. outra voz rouca anunciando cenouras. à medida que a hora do féretro se aproximava. enterrariam-me vivo. silencioso na escuridão. Simoneau a contemplava. A senhora Gabin abrira a janela. Uma lembrança acabou de me tranquilizar. sentado diante dela. ele saiu do quarto. Foi como um desmaio na própria morte. O rangido de um trinco arrancou-me da sonolência. enquanto. seu sono era até tão profundo que os médicos hesitavam em fazer qualquer declaração. senhor – disse Simoneau. E esse pensamento era tão apavorante que perdi consciência do que me cercava. acabara. pois não conseguia. que voltara. Simoneau com certeza não estava mais ali: nenhum ruído revelava-me sua presença.transformado pelo hábito profissional em uma máquina e que vinha ao leito dos mortos com a ideia de simples formalidade a ser cumprida! Então aquele homem nada sabia! Então toda a sua ciência era mentirosa. Marguerite recusara-se a dormir no quarto da vizinha. a voz aguda e frágil de uma garota que vendia morrião. O velório começava. ouvi seus passos descendo a escada. em seguida o homem sentara-se e conseguiu levantarse de imediato. enquanto a senhora Gabin fechava a janela. Recordeime ter visto um caso semelhante ao meu quando trabalhava no hospital de Guérande. veio um riso de criança de fora. Depois. Minha última esperança desaparecia com aquele homem. Finalmente falaram. pois. Ela estava ali. Só os chinelos da senhora Gabin arrastavam-se pelo assoalho. . Aquilo permaneceu em mim como um pesadelo horrível no qual minhas sensações eram tão singulares. o terror me estrangulava ainda mais. O que tornava terrível minha tortura era eu continuar esperando um despertar brusco. meio deitada no fundo da poltrona com seu belo rosto pálido. e seus cílios continuavam ensopados de lágrimas. eu estava condenado. Um homem dormira daquele modo durante 28 horas. Foi apenas por volta da manhã que tornei a ter consciência das pessoas e das coisas que me cercavam. Todos calaram-se. estando a porta aberta. que me seria difícil mencioná-las com exatidão. indo embora! – Boa noite. tão turvas. pois eu ouvia gritos de comerciantes na rua. E. você deveria tomá-lo enquanto está quente. Bem. Apesar de sua fraqueza. Eu ainda tinha aqueles trajes que pensava usar em Paris apenas em ocasiões especiais. não é tarde demais – respondeu a senhora Gabin. – Diga-lhes para subir.. quero pôr nele o que temos de mais bonito.. num instante. mas eu precisava disso. e o leve gotejar do filtro sobre a lareira informou-me que estava fazendo café. tudo isso vai se perder – repetia a senhora Gabin.Ela dirigia-se a Marguerite. – Ponham isso atrás da cama. o senhor vai levá-la à força para meu quarto. – Bem.. – Não é por nada – continuou –. Mas os minutos passavam. senhor Simoneau. Que horas eram então? Talvez nove horas. Ela parou... À porta. tocou-me muito. um ruído que de início não compreendi. me vestiu com uma ternura de irmã e esposa. Marguerite respondia. Sua voz. Decerto acabara de entrar. quero ficar – respondeu Marguerite. banhava-me com o seu pranto. Então. sucumbindo sob a emoção. quebrada de dor. Simoneau falou. Estava mudada. Queria poder retribuir seu abraço gritando-lhe “Estou vivo!” e permanecia impotente. resoluta. a voz entrecortada: – Deixe. temos de acabar com isso. – É que tenho medo do desespero dessa pobre mulher. Agora. E o que senti quando ouvi a luta pavorosa que . esgotada pelo esforço que acabara de fazer. Aquelas palavras atingiram-me o coração. Não quero que ela fique aqui. Ah. está quente. auxiliada pela velha senhora. que chorava por mim todas as lágrimas de seu coração. Na minha idade de nada serve ficar acordada. – Você não devia estar fazendo isso. de repente. como um último consolo. querida.. tudo estará pronto. – Não. Depois ela tornou a cair na poltrona. Sabia que ela não tirava os olhos de mim.. devia abandonar-me como uma massa inerte.. Retomou: – Escute. suas tábuas recém-aplainadas. Meu Deus! Então estava tudo acabado? Iriam levar-me naquela caixa que sentia a meus pés? Tive no entanto uma suprema alegria. A velha pareceu refletir. Eu sentia que estava mais uma vez em seus braços a cada peça de roupa que vestia em mim. abraçava-me. Foi ela que. Marguerite quis dispensar-me os últimos cuidados. Parecia alguém carregando um móvel que batia nas paredes da escada estreita demais. só uma gotinha. É um favor que vai lhe fazer. E a noite é triste quando aconteceu alguma desgraça numa casa. – Viu. – Os senhores estão chegando cedo demais – disse a senhora Gabin parecendo malhumorada. E forçou Marguerite a tomar uma xícara. – Eles estão lá em baixo – murmurou.. que eu não ouvia desde a véspera. Era o ataúde. E eu o via na noite densa. O esquife já estava no quarto. também baixando a voz. Enquanto isso. querida mulher! Eu a sentia perto de mim. novo em folha. iria para o meu quarto e esperaria lá. se fosse boazinha. Tome o café. Aos poucos entendi ao ouvir novamente as lágrimas de Marguerite.. reconforta. Compreendi que ela estava me vestindo com as roupas do dia do nosso casamento. Você precisa de forças para chegar ao final do dia. – Vamos. agora que o chão está livre! Na raiva ciumenta que me transtornava. passos pesados caminhavam pelo cômodo. – Puxa. pois tinham de descer três andares. minha mulher agarrava-se aos móveis repetindo: – Oh. tudo acabara. – Por piedade – implorava –. alto e sólido. A luta prolongava-se. Embora não estivesse nada quente por volta das quatro horas da manhã. Entrementes. e ela. quando ele não estiver mais aqui. – O caixão é comprido demais. não – repetia minha mulher –.aconteceu! Simoneau aproximara-se de Marguerite. Ele levou-a embora. talvez a beijá-la! A porta abrira-se de novo. Pensem que só tenho a ele no mundo e. sim. Minhas ideias perdiam a nitidez. sempre fui boba. – Essa mulherzinha não vai demorar a voltar. não quero. estarei sozinha. Simoneau iria pegar Marguerite e levá-la embora assim? De repente ela gritou. sou boa demais. Ela falava com pessoas desconhecidas que lhe respondiam apenas por grunhidos. Naquele momento puxaram o caixão para o meio do quarto e compreendi. senhor. pois agora ela só lançava lamentos de criança. os soluços perderam-se e eu imaginava vê-los. – Não pouparam madeira – disse a voz rouca de um papa-defuntos. Eu estava condenado. à minha frente. sozinho a consolá-lo. E não é muito divertido. – Vocês compreendem. carregue-a no colo. um homem a arrebatara antes mesmo que eu estivesse enterrado. É por pura bondade de coração que estou tratando dos negócios deles. mas ainda a ouvia. Não via Marguerite desde a véspera. e eles ficaram satisfeitos com isso. seguindo-o a partir daquele momento para qualquer lugar onde ele quisesse levá-la. Solte-me. Quando me pegavam pelos ombros e pelos pés. sou só uma vizinha. Agora. Mas as molas de minha carne estavam quebradas. venha comigo. considerava aquele roubo como um rapto abominável. Sim. não sou parente. tudo rolava em mim como em uma nuvem de fumaça negra. ele. rebentada. levando-a junto ao peito. Nada tenho a ganhar com tudo isso. – Ótimo.. misericórdia.. poupe a si mesma uma dor inútil. e sentia tal lassidão que foi como que um alívio não contar com mais nada. E estava com ela por trás da divisória. . tinham-na tomado de mim. – Não. Simoneau deve tê-la agarrado com seus braços vigorosos. Bem. – Depressa. quero ficar até o último minuto. pois o despertar não acontecia. Eu não era pesado. E permanecia tão rígido que nem mesmo conseguia levantar as pálpebras para ver o que estava acontecendo ali. – Ande. ele ficará mais à vontade – acrescentou um outro. abandonando-se. vou ficar. molhada de lágrimas. Com um impulso furioso. rápido. a senhora Gabin de repente se zangou. quis me levantar. a senhora Gabin cochichava nos ouvidos do jovem. ao pescoço. passei a noite. depressa – repetia a senhora Gabin. rindo. que dificuldade! – murmurou a senhora Gabin. agarre-a. perto da cama. suplicando-lhe que não permanecesse no quarto. Não bato nela todos os dias. e aquilo não evitava que eu concentrasse os últimos esforços de minha inteligência em adivinhar se estávamos virando à direita ou à esquerda. e cuidado com a rampa do segundo andar. só que ela precisa me obedecer. alguém precisava descer. Ao meu redor... Levaram-me embora.. perdi qualquer noção dos lugares que atravessávamos. um pouco apertado por uma tábua. Depois. E. está quase desabando. os ruídos só chegavam a mim abafados e prolongados. eu vivera. e a minha sensação era estar balançando num mar cheio de ondas. E tudo terminou bem depressa. houve uma parada.. como se o esquife de pinho tivesse se transformado em uma grande caixa de ressonância. tiraram-me do carro fúnebre. os transeuntes passando produziam um clamor confuso que a sonoridade do caixão desenvolvia. Mas os homens estavam com pressa. Eu sentia-me como um condenado levado ao local do suplício. A princípio. Ressoaram dois tapas vigorosos. rápido. prometi à mulher dele colocar um travesseiro sob a cabeça. Era Dédé que entreabrira a porta e passara a cabeça descabelada. A julgar pelo que diziam. vou ensiná-la a olhar pelas frestas. eu cabia muito bem dentro do caixão porque era miúdo. As últimas palavras que alcançaram meus ouvidos naquele quarto da rue Dauphine foi essa frase da senhora Gabin: – Desçam devagar. Sempre que há um morto. Espere. era de estar atento ao caminho que estávamos tomando para ir ao cemitério. Eu estava comodamente deitado e poderia achar que ainda estava na cama não fosse por um incômodo no meu braço esquerdo. elas ficam rondando.. quando a mãe tornou a entrar. enquanto o martelo ressoava com ritmo. preocupação imbecil e como que mecânica. esperando o golpe final que não chegava. e entendi que estávamos em uma igreja. os veículos rodando. O carro fúnebre sacudia-me pelo pavimento das ruas. É boazinha. carregaram-me. eu sentia que estava em um lugar deserto. todas as garotas são assim. o rodar mais suave e contínuo fez-me achar que estávamos percorrendo um passeio. Os pregos entraram um a um. Recordo-me contudo de que a única preocupação que eu ainda tinha. falou da filha com os homens que me arrumavam no caixão. com o céu vasto sobre a . Acabou-se. Um dobre de sinos avisou-me que estávamos passando perto de uma igreja. Não conhecia uma única rua de Paris. ressoando de maneira estranha. Os operários pareciam embaladores fechando uma caixa de frutas secas com sua habilidade despreocupada. a senhora sabe – disse um dos homens –. Pousaram a tampa. enfiaram o travesseiro machucando-me. segui o itinerário com bastante nitidez. Pararam. Aliás. a partir daquele momento minhas lembranças são muito vagas. seguidos de uma explosão de soluços. Um deles procurava o martelo por todos os cantos soltando palavrões. ignorava a localização exata dos grandes cemitérios cujo nome já tinham pronunciado à minha frente. Os ruídos haviam cessado. mas tão curiosa. – Ela tem dez anos. – Ela tem de enfiar o nariz por toda a parte. Porém. Haviam esquecido a ferramenta embaixo.– Que menina! – exclamou. – Esperem – exclamou a senhora Gabin –. – Oh. A partir de então. e senti um abalo em todo o meu corpo quando duas marteladas enfiaram o primeiro prego. embasbacado. Queria ver colocarem o moço na caixa. quando o carro fúnebre abalou-se de novo. sob as árvores.. 4 Por quanto tempo fiquei assim? Não saberia dizer. acho. Depois.cabeça. mais de cem pessoas. só que nas duas extremidades do túnel. tão sonoro que achei que o caixão se partira em dois. Eu não era mais. toda uma multidão que me fornecia novos episódios incessantemente. Muitas vezes. voltou-me a consciência de ser. de repente. Éramos prisioneiros em uma espécie de adega sem saída. sem esperança. tateava-se as rodas com a mão para não haver trombadas e assim . com minha predisposição natural para invenções terríveis. A morte de todos nós era apenas uma questão de horas. enquanto cordas roçavam como arcos os cantos do caixão. Houve uma salmodia. sem chegar a se comer uns aos outros. e ele agonizava. repito. Simoneau e outros. A via estava desobstruída. Um desabamento duplo acabara de acontecer. Quando o trem passou sob um túnel. Eu variava o drama até o infinito. deixavam de se mexer. mulheres. Bem que havia algumas provisões no trem. diziam. murados por blocos de rocha. e que eu tomara o trem para ir juntar-me a ela. máquinas poderosas. uma eternidade e um segundo têm a mesma duração. ferozes. mas logo a comida vinha a faltar e. um barulho pavoroso ribombou com um estrondo de trovão. Desde as primeiras horas. os locatários do hotel. o que provocava um som de contrabaixo rachado. pelo último pedaço de pão. de repente. um padre balbuciava em latim. Era o fim. caiu-me sobre o ventre. Um pesadelo destacou-se do fundo negro que barrava meu horizonte. outro. Empurravam um velho a socos. eclodiu um pouco à esquerda de minha cabeça. Por uns dois minutos houve um ruído de pisadas. à nossa frente e atrás de nós. ainda mais violento. confusamente. crianças. rondavam em torno do trem como feras soltas em busca de uma presa. a abóboda desabara e encontrávamo-nos desse modo no centro de uma montanha. Continuava dormindo. o combustível das lâmpadas esgotara-se. tratando-o com familiaridade. E esse meu sonho era uma imaginação estranha que em outros tempos muitas vezes me atormentara de olhos abertos quando. uma mãe combatia como uma loba para defender os três ou quatro bocados reservados a seu filho. Meus atores eram homens. Imaginei portanto que minha mulher estava me esperando em algum lugar em Guérande. Quando se passava de um vagão para outro. Decerto algumas pessoas acompanhavam o féretro. os vagões permaneciam intactos. pois alguns sussurros chegavam até mim. os miseráveis famintos lutavam. como o ressoar de um tiro de canhão. um segundo choque ocorreu a meus pés. Todas as classes misturavam-se. e ainda esse trabalho exigia infinitas precauções. dois recém-casados grunhiam nos braços um do outro. um alto funcionário. senti que estava mergulhando. Nosso trem não recebera uma única pedra. Nenhuma esperança de socorro. No nada. Iniciava-se então uma agonia longa e pavorosa. as pessoas desciam. chorava no ombro de um operário. minha imaginação trabalhara com esse dado terrível. mas comecei a sonhar. Um choque terrível. Aos poucos. Em meu vagão. seria preciso um mês para desobstruir o túnel. E desmaiei. um homem muito rico. as luzes da locomotiva acabaram por se apagar. saboreava o prazer atroz de criar catástrofes para mim. força inútil. misturava a imaginação do poço de ar e de sua mancha de céu com a realidade do fosso em que sufocava. com seus viajantes que morriam um a um. que não se via. que aumentava. muda e imóvel na sombra. presa de um arrepio. pelos seus enormes flancos adormecidos. um abismo negro. De repente. E eu sufocava com isso. Com certeza pudera permanecer por tanto tempo privado de ar graças à síncope que suspendera em mim as funções vitais. contemplava as trevas. o céu não estava mais ali. murado daquela forma por inteiro sob a terra. Os olhos desmesuradamente abertos. eu estava me mexendo. Mas desta vez eu sofria mais de frio e de falta de ar. Continuava a sufocar. Ah. Precisava de todas as minhas faculdades mentais se quisesse tentar me salvar. dos pés à cabeça. E todos corríamos para ver esse poço de ar no alto do qual se via uma mancha azul do tamanho de um pão redondo. claridades vermelhas alargavam-se e desapareciam. lembrei-me. Talvez enxergasse um buraco. Nada era mais assustador do que esse trem. enquanto os braços trementes se erguiam na direção da manchinha de um azul pálido. Restava-me fazer um último teste: abri a boca. falei. descia ao horror dos mínimos detalhes. como um gelo. Não haveria algum meio de sair dali? Meu sonho retornava. Depois a lucidez voltava. batia os dentes. Onde estava? Decerto ainda no túnel. Eu estava completamente deitado e sentia à direita e à esquerda as paredes duras que me apertavam os flancos. uma fenda. uma gota de luz! Mas só faíscas de fogo passavam na escuridão. Em primeiro lugar. eu afastava esse pesadelo imbecil. parecia que a abóboda de rocha desabava sobre meu peito. crescíamos em sua direção para respirar. como um enterrado vivo. um vizinho que não se sabia estar ali. porém. Eu urrara. Contudo ressoara um grito de libertação. que toda a montanha pesava e me esmagava. mas bati o crânio com violência. Nada. Um clamor furioso: “Salvos! Salvos!” saía de todas as bocas.chegava-se à locomotiva que se reconhecia pela sua biela fria. minhas mãos tocavam as tábuas do caixão. Há muito tempo imaginávamos ouvir ao longe um ruído surdo e acarinhávamos a esperança de que estavam trabalhando perto de nós. meu cérebro ainda não estava funcionando muito bem. No entanto. Quis erguer-me. eu estava encerrado. nem mesmo à distância. Saíra finalmente daquela síncope que me atingira por longas horas com a rigidez de um cadáver? Sim. O horror eriçou meus cabelos e senti a pavorosa verdade fluir dentro de mim. caía junto a seu ombro. As trevas eram atravessadas por urros. esmagado sob a terra! Fiz um esforço supremo para me acalmar e refletir. insondável. Um manto de neve caía-me sobre os ombros. chamando Marguerite. e minha voz não seria ouvida. instintivamente. Meu Deus! Então era verdade? Podia andar. A rocha envolvia-me por todos os lados. o grande perigo pareceu ser o sufocamento. que meus pulmões . uma umidade pesada chovia sobre meu crânio. Um de nós acabara de descobrir um poço no túnel. agora que meu coração estava batendo. De repente. decerto operários instalando um guindaste para iniciar nosso salvamento. Eu me comprazia. distinguíamos com clareza pontos negros que se agitavam. A violência desse clamor despertou-me. E a mancha azul desaparecera. a salvação absolutamente não chegava dali. Nunca senti tanto frio. e minha voz naquela caixa de pinho adquirira um som rouco tão apavorante que eu mesmo me assustei. gritar que estava vivo. que alegria aquela mancha azul! Era o céu. precisavam de ar, eu morreria de asfixia se não saísse o mais rápido possível. Também sofria com o frio e temia deixar ser invadido por aquele torpor mortal dos homens que caem na neve para não mais se erguer. Enquanto me repetia que precisava de calma, sentia lufadas de loucura subindo-me ao crânio. Então estimulava-me, tentando me lembrar o que sabia sobre o modo como as pessoas são enterradas. Decerto estava em uma vala de concessão por cinco anos; aquilo tirava-me uma esperança, pois observara em outros tempos em Nantes que as trincheiras da vala comum deixavam quase à superfície, em seu acúmulo contínuo, os pés dos últimos caixões inumados. Bastaria então quebrar uma tábua para escapar; enquanto que, se eu me encontrasse em um buraco completamente tapado, tinha sobre mim toda uma camada espessa de terra que seria um terrível obstáculo. Não ouvira dizer que em Paris se enterrava a seis palmos de profundidade? Como perfurar aquela massa enorme? Se eu chegasse a conseguir romper a tampa, a terra não entraria, não deslizaria como areia fina, não encheria meus olhos e minha boca? E ainda eu morreria de uma morte abominável, de um afogamento na lama. Entrementes eu tateava com cuidado ao meu redor. O caixão era grande, era possível eu mexer os braços com facilidade. Na tampa não senti qualquer fenda. À direita e à esquerda, as tábuas estavam mal aplainadas, mas eram resistentes e sólidas. Deslizei o braço dobrado ao longo do peito para levá-lo até a cabeça. Ali, descobri na tábua da ponta um nó que cedia levemente à pressão; com a maior dificuldade, acabei por afastar o nó e, do outro lado, introduzindo o dedo, reconheci a terra, uma terra gordurosa, argilosa e molhada. Aquilo, porém, de nada adiantava. Cheguei a lamentar ter tirado aquele nó, como se a terra pudesse entrar. Uma outra experiência ocupou-me por um instante: dei pancadas em todo o caixão a fim de saber se por acaso não haveria algum vazio à direita ou à esquerda. O som foi o mesmo por toda parte. Como estivesse dando também pontapés leves, pareceu-me contudo que o som era mais claro na ponta. Talvez fosse apenas um efeito da sonoridade da madeira. Então comecei a dar empurrões leves, os braços para a frente, com os punhos. A madeira resistiu. Em seguida usei os joelhos apoiando-me nos pés e na cintura. Nenhum estalo. Acabei usando toda a minha força, empurrava com o corpo inteiro com tanta violência que meus ossos machucados gritaram. E foi nesse momento que fiquei louco. Até então eu resistira à vertigem, aos sopros de raiva que subiam de vez em quando em mim como uma fumaça de embriaguez. Eu reprimia principalmente os gritos, pois sabia que se gritasse estaria perdido. De repente comecei a gritar, a urrar. Era mais forte do que eu, os urros saíam de minha garganta que desinchava. Pedia socorro com uma voz que não conhecia em mim, ficando cada vez mais transtornado a cada apelo, gritando que não queria morrer. E arranhava a madeira com as unhas, contorcia-me em convulsões de lobo enjaulado. Quanto tempo durou a crise? Não sei, mas ainda sinto a dureza implacável do caixão em que me debatia, ainda ouço a tempestade de gritos e soluços com que enchia aquelas quatro tábuas. Num último clarão de razão, quis me conter e não consegui. Seguiu-se um grande abatimento. Aguardava a morte em meio a uma pavorosa sonolência. Aquele caixão era de pedra; jamais conseguiria quebrá-lo. E aquela certeza de minha derrota deixava-me inerte, sem coragem para repetir os esforços. Outro sofrimento, a fome, acrescentara-se ao frio e à asfixia. Eu estava desmaiando. Logo o suplício tornou-se intolerável. Com o dedo tentei pegar montinhos de terra pelo nó que escavara e comi aquela terra, o que aumentou meu tormento. Mordia os braços, não ousando tirar sangue, tentado por minha carne, sugando a pele com vontade de nela enfiar os dentes. Ah, como desejei a morte naquele momento! Durante toda a minha vida, tremera diante do nada; e eu o queria, o exigia, jamais seria tão negro. Que infantilidade temer aquele sono sem sonho, aquela eternidade de silêncio e trevas! A morte só era boa porque suprimia o ser de uma só vez, para sempre. Oh, dormir como as pedras, voltar à argila, deixar de ser! Minhas mãos, tateando, continuavam maquinalmente a passear pela madeira. De repente piquei meu polegar esquerdo, e a dor leve arrancou-me do torpor. O que seria? Procurei de novo, reconheci um prego, um prego que os papa-defuntos haviam enfiado obliquamente e que não alcançara a borda do caixão. Era muito longo, muito pontudo. A sua cabeça estava presa na tampa, mas senti que se mexia. A partir daquele instante, fui tomado por uma única ideia: pegar aquele prego. Passei a mão direita sobre minha barriga, comecei a abalá-lo. Ele não cedia, daria um enorme trabalho. Muitas vezes mudava de mão, pois a mão esquerda, mal colocada, se cansava depressa. Enquanto eu insistia daquela forma, todo um plano desenvolvera-se na minha cabeça. Aquele prego tornara-se a salvação. Eu precisava dela de qualquer jeito. Mas será que ainda daria tempo? A fome me torturava, tive de parar, presa de uma vertigem que deixava minhas mãos moles, a mente vacilante. Sugara as gotas que escorriam da picada em meu polegar. Então mordi meu braço, bebi meu sangue, esporeado pela dor, reanimado por aquele vinho morno e acre que me molhava a boca. E, voltando ao prego com as duas mãos, consegui arrancá-lo. Naquele momento, acreditei no sucesso. Meu plano era simples. Enfiei a ponta do prego na tampa e tracei uma linha reta, a mais longa possível, por onde passei o prego de modo a fazer um entalhe. Minhas mãos estavam enrijecendo, eu insistia com fúria. Quando achei ter feito incisões suficientes na madeira, tive a ideia de me virar, de deitar de bruços e, em seguida, erguendo-me nos joelhos e nos cotovelos, empurrar com a cintura. Porém, embora a tampa tivesse estalado, ainda não se quebrara. O entalhe não fora profundo o suficiente. Tive de voltar a deitar de costas e retomar a tarefa, o que me custou muito. Finalmente, fiz mais um esforço e, desta feita, a tampa rebentou de uma ponta a outra. É verdade que eu ainda não estava salvo, mas a esperança inundou meu coração. Parara de empurrar, de me mexer, com medo de provocar algum desmoronamento que pudesse me enterrar. Meu plano era usar a tampa como escudo, ao mesmo tempo que tentaria escavar uma espécie de poço na argila. Infelizmente esse trabalho apresentava grandes dificuldades: torrões densos que se soltavam obstruíam as tábuas que eu não conseguia manobrar; jamais chegaria ao chão, alguns desmoronamentos parciais já me dobravam a espinha e enterravam meu rosto na terra. O medo voltava a tomar conta de mim quando, deitando-me para encontrar um ponto de apoio, acreditei estar sentindo que a tábua que fechava o caixão, nos pés, cedia sob a pressão. Então bati com vigor os calcanhares, calculando que poderia haver naquele lugar uma fossa que estariam escavando. De repente meus pés se enfiaram no vazio. A previsão fora correta: ali havia uma fossa recém-aberta. Só tinha de atravessar uma fina divisória de terra para rolar para aquela fossa. Meu Deus! Estava salvo! Por um instante fiquei de costas, os olhos voltados para cima, no fundo do buraco. Era noite. No céu, as estrelas brilhavam num azulado de veludo. De vez em quando, uma brisa que se erguia trazia-me a tepidez da primavera, o odor das árvores. Meu Deus! Estava salvo, respirava, estava aquecido, e chorava, e balbuciava, as mãos devotamente estendidas para o espaço. Oh, como era bom viver! 5 Meu primeiro pensamento foi ir até o abrigo do guarda do cemitério para que ele mandasse alguém me acompanhar até em casa. Mas algumas ideias, ainda vagas, detiveramme. Eu assustaria todo o mundo. Para que me apressar, já que eu dominava a situação? Apalpei meus membros, só tinha uma leve mordida de meus próprios dentes no braço esquerdo; e a febrezinha que disso resultara excitava-me, proporcionava-me uma força inesperada. Com certeza conseguiria andar sem ajuda. Então deixei de ter pressa. Todas as espécies de devaneios confusos atravessavam-me o cérebro. Sentira perto de mim na fossa as ferramentas dos coveiros e senti a necessidade de reparar o estrago que acabara de fazer, de tapar o buraco, para que não se conseguisse perceber minha ressurreição. Naquele momento, minhas ideias não eram claras; só achava inútil divulgar a aventura, sentindo vergonha de estar vivo quando o mundo inteiro achava que eu estivesse morto. Em meia hora de trabalho consegui apagar qualquer vestígio. E saltei para fora da fossa. Que bela noite! Um silêncio profundo reinava no cemitério. As árvores escuras recortavam sombras imóveis no meio do branco dos túmulos. Enquanto tentava me orientar, observei que toda uma metade do céu queimava com um reflexo de incêndio. Paris era ali. Dirigi-me para aquele lado ao longo de uma avenida, na escuridão dos galhos. Porém, após uns cinquenta passos, tive de parar, já sem fôlego. E sentei-me em um banco de pedra. Só então examinei-me: eu estava completamente vestido, até calçado, só me faltava um chapéu. Como agradeci a minha querida Marguerite pelo sentimento piedoso que a levara a colocar em mim aquelas roupas! A lembrança brusca de Marguerite fez com que eu tornasse a me levantar. Queria vê-la. No final da alameda, uma muralha me deteve. Subi em um túmulo e, quando fiquei pendurado no espigão, do outro lado do muro, deixei-me cair. A queda foi rude. Em seguida, caminhei por alguns minutos por uma grande rua deserta que contornava o cemitério. Ignorava por completo onde estava; repetia-me porém com a obstinação da ideia fixa que voltaria para Paris e saberia encontrar a rue Dauphine. Algumas pessoas passaram, nem mesmo lhes fiz perguntas, tomado pela desconfiança, não querendo confiar meu caso a ninguém. Hoje tenho consciência de que já estava com muita febre e de que delirava. Enfim, quando desemboquei numa grande avenida, senti um ofuscamento e caí pesadamente na calçada. Aqui existe um vazio na minha vida. Fiquei três semanas inconsciente. Quando finalmente despertei, estava em um quarto desconhecido. Um homem estava cuidando de mim. Contou-me simplesmente que uma manhã me pegou no boulevard Montparnasse e me levou . uma jovem descabelada. Bem no fundo de mim. Quando pudesse sair. Prestei atenção. Enfim. – Era o que ela poderia fazer de melhor. mas jamais o médico aludiu ao que eu possa ter dito. como que um sacrifício cumprido há muito tempo. O senhor Simoneau testemunhava-lhe tanta amizade. a pobre mocinha do terceiro acabou se decidindo? – O que a senhora quer? – respondeu a senhora Gabin. Nada me detinha. Entrementes o verão chegara. que morava lá. Naquele momento. No momento em que me sentava a uma mesa.. – E então – perguntou a senhora –. partiram ontem. Numa manhã de junho finalmente consegui autorização para passear um pouco. Caminhava lentamente. ela plantou-se diante do balcão e começou com a senhora do estabelecimento os mexericos de todos os dias.. Ande depressa. nem mesmo tentando me lembrar. Parecia ter sonhado com aquilo e com mais algumas coisas que iria ficar sabendo. Durante mais oito dias fiquei acamado. vi justamente a senhora Gabin trazendo uma xícara para comprar dois soldos de café. A mulher do balcão deu uma risadinha. um jovem que a perseguia estendeu a cabeça e beijou-a no pescoço. Sua caridade permaneceu discreta. com um daqueles sóis alegres que proporcionam juventude às ruas da velha Paris. respondia-me com brusquidão que meu caso lhe parecera curioso e que ele quisera estudá-lo. Eu enfiara o rosto no jornal. muito pálido. Não era Marguerite. De repente. Foi bem-sucedido em seus negócios. – Mas juro-lhe pela minha honra que nada vi de excuso.para sua casa. veria. Estou esperando. as mãos tremendo. e o rapaz comportava-se muito bem.. nos primeiros dias de minha convalescença. Quando eu agradecia. – Mamãe. – Com certeza isso terminará com um casamento – continuou a senhora Gabin. contemplei a última janela do terceiro andar à esquerda. atrás dela. não é? Farão o que quiserem. pois a lembrança cansa e dói. Mais tarde ele tampouco me interrogou. Ergui os olhos. e sua proposta foi levá-la para sua terra e viver na casa de uma tia dele que precisava de uma pessoa de confiança. A casa estava toda amarela de sol. não me permitiu fazer-lhe nenhuma pergunta. meu rosto encovarase. a cabeça fraca. Por um instante permaneci na rua indeciso. Um medo infantil agitava-me. a porta que dava do restaurante para o corredor abriu-se por completo. Sentia-me cheio de pudor e medo. Cheguei a ela e tive dificuldade de reconhecer o hotel mobiliado onde nos hospedáramos. O melhor talvez fosse procurar antes aquela senhora idosa. Se me apresentasse bruscamente a Marguerite. Além disso. Devia estar irreconhecível: a barba crescera-me durante a febre cerebral. A pobrezinha chorava o marido. pensando em subir e fazer perguntas aos namorados que continuavam rindo ao sol. havia como que um grande vazio. temia matá-la. a senhora Gabin. Depois decidi entrar no restaurantezinho do térreo. você não vai subir?. perguntando aos passantes em cada encruzilhada onde era a rue Dauphine. a camisola torta. ali se debruçou. Mas desagradava-me colocar alguém entre nós. Reconheci-a por um restaurante sórdido do térreo que nos fornecia a alimentação. Não fiquei nada surpreso. Era uma manhã maravilhosa... e Dédé entrou. Ela estava completamente aberta. Talvez no delírio da febre tivesse deixado escapar um nome. . Quando o luto dela terminar. uma grande herança. de suas impaciências. como você amola! – disse a mãe. Por que atrapalharia de novo a sua vida? Um morto não tem ciúmes. vi que o jardim de Luxembourg estava à minha frente. uma dama em uma cidadezinha. forte como um turco. Cheguei a sorrir vendo minha sombra ao sol. Pensar em Marguerite agora me enternecia. muito amada. afinal. mas ela parece não me querer. agora que não tenho qualquer razão para viver. aquele magrelo. o defunto não valia o senhor Simoneau – explicou a senhora Gabin. ela acabara de chorar por um irmão. Entrei e sentei-me ao sol. Sempre gemendo! E não tinha um centavo! Ah.. que trabalhou e comeu como todo o mundo. Ele é mesmo um homem de verdade! – Vá embora de uma vez – gritou a velha empurrando-a. A querida mulher mostrara-se bondosa. – Você sempre mete seu nariz onde não deve. verdade! Um marido como aquele é desagradável para uma mulher de sangue quente. Em seguida. de sua vida morna e cansada. Ora.. . A morte não me amedronta mais. Quando ergui a cabeça. não estava sofrendo demais. era bem miúdo. Que sorte! Quando me vi de volta à rua. um homem rico. muito feliz. para concluir: – Olhe. vivi um pouco por toda a parte. – Nossa Senhora. – Eu não o engolia. No entanto. devaneando com grande suavidade. eu fora um bom homem morrendo e com certeza não faria a besteira cruel de ressuscitar. e temo que ela me esqueça. De fato. Sou um homem medíocre.– Daqui a pouco. A criança ficou ouvindo as duas mulheres com seu ar precoce de garota criada nas ruas de Paris. Eu a imaginava no interior. Mas eu nunca fora seu amante. – Oh! – interrompeu Dédé.. – Eu o vi. fora uma ideia estranha casar-me com Marguerite. caminhava devagar. tornava-se mais bela. Enquanto o senhor Simoneau. Desde então viajei muito. o outro fez bem em morrer. as pernas rebentadas. E lembrava-me de seu tédio em Guérande. muito festejada. tinha três meninos e duas meninas.. um dia em que estava se lavando. não. Muitas vezes riram dele quando não parava de fazer confidências e de repetir sua frase favorita. que sonhava transformá-lo em um senhor. Acabara ali depois de procurar uma moradia barata. teve de suprir todas as necessidades da pequena família. Filho de um pedreiro de Marselha. rasgado nos ombros e cujas mangas lhe subiam acima dos punhos. por cima dos cimos verdes. o Louvre. Além. decidido a acampar enquanto não encontrasse alguma colocação. A história de Nantas era curta. Bem jovem. convencido de que os fortes são de qualquer forma os vitoriosos. De acordo com ele. começara a estudar no liceu da cidade estimulado pela ternura ambiciosa da mamãe. com uma cama. Nantas teve de aceitar um empreguinho junto a um negociante. Depois. sentia que tinha gênio. Aos domingos. onde arrastou por doze anos uma vida cuja monotonia o exasperava. a janela talhada nas ardósias. Nantas conseguia ver um pedaço do jardim da mansão no qual as árvores magníficas lançavam sua sombra. quando passeava sozinho pelos subúrbios abrasadores de Marselha. uma mesa e uma cadeira. A partir daquele momento. Três dias depois. a miséria e a nudez daquele cômodo sem lareira não o incomodavam. O papel sujo. divisava-se o corte do Sena.NANTAS 1 O quarto em que Nantas morava desde que chegara de Marselha ficava no último andar de uma casa da rue de Lille. as Tulherias. dizia ser uma força. abria-se uma perspectiva de Paris. diante da cidade rica e imensa que deve tomar de assalto no dia seguinte. O resto não tinha importância. frase que se tornava cômica quando se o via em seu fino redingote preto. Teria fugido vinte vezes se seu dever filial não o tivesse mantido preso em Marselha ao lado do pai. Nantas mobiliara-o com simplicidade. Os pais esfalfaram-se para permitir que chegasse até os exames finais do segundo ciclo. Desde que adormecia diante do Louvre e das Tulherias. só vendo a ela no mundo. vendera os poucos pertences do lar e partira para Paris com duzentos francos no bolso. ao lado da mansão do barão Danvilliers. encontrou o pedreiro morto. o cachimbo ainda quente ao seu lado. Aos poucos. Nantas carregava uma ambição obstinada da fortuna que herdara da mãe. quando sua mãe morreu. Debruçando-se. o teto escuro. “Sou uma força”. que mandara construí-la em antigas áreas de serviço. Era um quarto estreito de mansarda. a vontade fria. ao voltar para casa. bastava querer e poder. à beira de uma estrada. todo um mar de tetos até as distâncias perdidas do cemitério Père-Lachaise. Porém. um dia. a enfiada dos cais. comparava-se a um general que se deita em um albergue miserável. A casa pertencia ao barão. que caíra de um andaime e ficara paralisado. Era um rapaz que tomava decisões depressa. membro do conselho de Estado. no fundo de seu ser havia como que um impulso instintivo que o . construíra dessa forma para si uma religião da força. o posto já estava ocupado. um veículo o sujou. De Montmartre à rue de Lille. ademais. Finalmente. extenuado. Um rio de lama corria pelas ruas. Não tinha mais dinheiro e nenhum amigo para emprestar-lhe vinte soldos. e não acharam sua letra bonita o suficiente em Montmartre. olhou para as Tulherias com ciúme. A princípio só queria pão. pretendiam subir com tranquilidade a esse lugar por uma necessidade natural de lógica. uma multidão ocupada chocava-se com ele nas calçadas. Nantas fora até Bercy. Nantas voltou a seu quarto sem ter comido nada. achava que seu suicídio puniria Paris. E foi com esses vinte francos que teve de viver mais um mês comendo só pão. tomado por uma vontade de ferro de acabar aos socos com a multidão que barrava as ruas: aquilo vingaria a tolice do destino. as mãos sempre vazias. O destino parecia-lhe ilógico e injusto. Ele deteve-se vários minutos diante da loja de um cambista: talvez cinco francos lhe bastassem para ser um dia o senhor de toda aquela gente. uma daquelas chuvas cinzentas tão frias de Paris. A chuva caíra o dia todo. examinando a calça que a lama enrijecera e seus sapatos deformados que transformavam o assoalho em um lago. sentir em si uma potência e não encontrar uma pessoa que o adivinhasse. No mesmo dia em que chegou. era o sentimento bem nítido de uma inteligência e de uma vontade que.lançava para frente. ele teve de limpar o rosto que um jato de lama fustigara. os dentes cerrados. Ser uma força. que lhe desse o primeiro escudo de que . um apetite de prazeres vulgares. Então passou a andar mais depressa. Na ponte dos Saints-Pères. A chuva cessara. alquebrado de cansaço. Não se desencorajava. Não era absolutamente uma vontade baixa. Desta vez era mesmo o fim. ao final de um mês. Porém. Na véspera acabara com seu último pedaço de pão. Nantas achou que lhe bastaria estender os braços para encontrar uma posição digna de sua pessoa. Uma noite. caminhou devagar. Quase foi esmagado por um ônibus na rue Richelieu. Molhado até os ossos. sentou-se com todo o seu peso na cadeira. dizendose que um dia conseguiria abrir seu caminho naquela sociedade onde ainda não era nada aos trinta anos. o coração cheio de amargura. com o que viver em Paris. uma menininha bem vestida obrigouo a desviar da linha reta que seguia com a rigidez de um javali acossado por uma matilha. Seu orgulho perdurava. outros faziam-lhe promessas que não cumpriam. não obtivera qualquer resultado: diziam que o momento era ruim. Ele aceitaria qualquer coisa. Haviam lhe dado cartas de recomendação que entregou nos seus respectivos endereços. contando com o apoio deles. restavam-lhe no máximo uns vinte francos. pois tinha certeza de que abriria caminho para a fortuna na primeira colocação que encontrasse. onde lhe haviam dito que encontraria trabalho. um terreno qualquer para construir depois pedra sobre pedra. como um animal ferido que volta para morrer na toca. mas em Bercy. percorrendo Paris de manhã à noite e voltando para dormir sem luz. No meio da place du Carrousel. Nantas perguntava-se como se mataria. e aquele desvio pareceu-lhe a suprema humilhação: até as crianças impediam-no de passar. refugiado em seu quarto. em seguida a Montmartre. com cinco francos é possível viver oito dias e em oito dias se fazem muitas coisas. Eram suas duas últimas esperanças. Entrementes sua bolsa se esvaziava. só que uma cólera surda começava a dominá-lo. Enquanto sonhava assim. e ele voltava para comer um prato de batatas com o pai enfermo. bateu à porta de alguns compatriotas. A partir do momento em que tocou as calçadas de Paris. começou a procurar uma colocação. por não estarem em seu lugar. percebera uma moça loura. Além disso. No entanto. ela disse seu nome: . eu me venderia. devorando-se como um leão enjaulado. O sol escondia-se por trás das grandes árvores da mansão Danvilliers. precisava de luz. – Os senhores podem conversar. – Senhor – começou –. muito gorda. com a ponta do dedinho. Ele não era nada romanesco. todo o seu ser sublevava-se de raiva. que espreitam as oportunidades. como eu me venderia se me dessem os primeiros cem soldos de minha fortuna futura! A ideia de vender-se ocupou-o por um momento. interrogando-a com os olhos. Mas logo se acalmava. carregava nele uma nova força. sentia uma imensa decepção quando seus olhares recaíam sobre seus braços inúteis. Entrementes. Muitas vezes. De repente foi despertado por uma voz. nenhuma tarefa o amedrontava. tomei a liberdade de mandá-la subir. orgulho de princesa. rosto de boneca branco de velha carola. – Pronto – prosseguiu. Ia morrer. um sol de outono cujos raios de ouro acendiam as folhas amareladas. Depois sorriu. disse a si mesmo que estava inventando distrações. passara da idade em que os rapazes sonham nas mansardas que senhoritas mundanas vêm trazer-lhes grandes paixões e grandes fortunas. Haviam lhe contado. naquela hora suprema do suicídio. no mesmo instante. teria recorrido a ela. Será que encontramos onde nos vender? Os escroques. no desvio de uma alameda. e ia destruir aquela máquina. despedaçando o crânio no pavimento da rua. e murmurou num impulso de raiva: – Oh. após construir uma máquina maravilhosa. cerrou os punhos. um político vinha comprá-lo para torná-lo um instrumento. muito alta. como percebesse que o quarto estava às escuras. um dia a quebrara a marteladas diante da indiferença da multidão. Se houvesse em algum lugar uma casa de penhores onde se concedessem empréstimos aceitando como caução a vontade e a energia. Ela erguera seu veuzinho. Nantas. achava a morte maior. estava tão cansado que adormeceu na cadeira. um banqueiro levava-o para usar sua inteligência o tempo todo. desceu correndo para buscar uma vela. E. desdenhando a honra. quando era pequeno. morrem na miséria sem jamais colocar a mão em um comprador. e permanecia ali. Quando lhe ofereceu a única cadeira. rejeitado em seu canto. retirando-se. Jamais a vira. Imaginava mercados. a história de um inventor que. E sentou-se de novo. olhava para a dama surpreso. Muito bem! Ele era esse homem. Temeu estar sendo covarde. Ela parecia conhecer a pessoa que estava trazendo ao mesmo tempo com complacência e respeito. jurando que se jogaria da janela assim que a noite caísse. e ele aceitava. de ele lembrar-se de repente da bela moça loura tão altiva. Contudo aconteceu. que despertara sobressaltado. um mecanismo raro de inteligência e vontade. Era a zeladora que introduzia uma senhora em seu quarto. Qual seria o seu nome? Porém.. ergueria um mundo. entre as massas de folhagens.precisava! Aquilo parecia-lhe uma tolice monstruosa. reduzido à impotência. dizendo-se que bastaria ser forte e triunfar um dia. Nantas levantou-se como que atraído por aquele adeus do astro.. ninguém os incomodará. baixinha. Era uma mulher de 45 anos. Por um instante debruçou-se à janela. pois só sentia ódio das pessoas daquela mansão cujas janelas entreabertas revelavam cantos de luxo severo. para lhe falar de um negócio importante. tornando à sua voz melosa –. porém. Sei o quanto a vida foi difícil para o senhor até agora. tomado pela curiosidade.. dar-lhe-iam uma posição. senhora?. A senhorita Chuin poderia continuar e no entanto cada vez mais procurava cumprimentos. Decidiu esperar a mulher explicar-se. Nantas parara de rir... Esperava alguma resposta. muito rica. Juro-lhe que apenas a simpatia. – Ora. – Essa moça está grávida e é preciso reconhecer a criança – disse a senhorita Chuin com toda a clareza. sustentando as frases delicadas com um sorriso. Em tudo isso existe apenas o desejo de ser-lhe útil. Nantas não a interrompia. – Afinal. esquecendo-se das fórmulas açucaradas para chegar mais rápido ao ponto. parece que o senhor iria longe se alguém lhe estendesse a mão. toda a raiva de . Deram-me a seu respeito as informações mais tocantes. Ela talvez tivesse continuado a falar por muito tempo... A verdade é que o senhor irá salvar uma família do desespero. Ela. Finalmente falou com uma voz muito suave.. examinava o cômodo apertado e parecia hesitar sobre como iniciar a conversa. meu Deus. Ah.. ele vai achar que se trata de uma reparação. perguntou-lhe diretamente: – O senhor sentiria alguma repulsa em se casar? – Casar-me! – exclamou Nantas. abaixando a voz instintivamente..– Senhorita Chuin. O pai ignora o fato. não creia tratar-se de espionagem. O rapaz achou que aquela dama estava lhe oferecendo alguma colocação. agora que o gelo se quebrara. não tinha pressa. O primeiro movimento de Nantas foi expulsar a casamenteira. senhor. – Senhor. Parou de falar mais uma vez. Retorquiu-lhe que aceitaria tudo. Era um contrato como qualquer outro... Alguma pobre moça que eu nem mesmo poderia alimentar. Mais uma vez perdoe-me intrometer-me assim em sua existência. – Oh. A desgraça é que o verdadeiro sedutor é casado. A dama. a gravidez está no início. Venho. Por favor. – O senhor é um rapaz de muito futuro. Dá cá. Ele daria seu nome. porém... não aceito essa palavra tão feia... e fui eu quem teve a ideia de casar a pobre moça o mais rápido possível. uma infâmia – exclamou a senhorita Chuin. sentiu que não comia desde a véspera. com quanta coragem o senhor lutou para encontrar uma colocação e qual é hoje o resultado cruel de tantos esforços. apresentando o marido como o autor da criança.. Por que recusaria? Há pouco não pedira para se vender? Muito bem! Acabavam de comprá-lo. achando que sua zeladora devia ter fornecido todos aqueles detalhes. Enfim.. Meu plano amortecerá o golpe. Nantas deixara de ouvi-la. de ótima família. – Não. qual é o negócio? – perguntou. Ele tivera de sentar-se à beira da cama. morreria de desgosto. Olhou sua calça suja da lama de Paris. quem me quereria. modos ternos de dizer as coisas. Tomei a liberdade de acompanhar suas iniciativas e fiquei muito tocada por sua louvável firmeza na desventura. toma lá. uma moça muito bonita. há homens que de fato não têm moral. – A senhora está me propondo uma infâmia – murmurou. estou vindo como amiga. O nome senhorita Chuin nada lhe revelava. Conheço o pai. senhor. que colocaria de imediato em suas mãos os meios de alcançar a mais elevada posição. O filho de um pedreiro. ficara como que fulminado com a história que a senhorita Chuin lhe contara sobre a desonra de Flavie. Depois exigiu explicações claras da senhorita Chuin. E devaneava com amargura à beira da lareira. fui eu quem pensou no senhor... Poderia encontrar um homem com títulos. a solteirona levantou-se e disse. A jovem não disse não quando mencionei o seu nome.. Embora ela tivesse levado os fatos ao passado.. Até então não fora pronunciado qualquer nome. só se distinguia a massa das árvores pelo adensamento da sombra. É educado. A noite estava muito escura. Ela ou outra. Não me esqueça. Fui eu quem criou a senhorita Flavie. estou à sua inteira disposição.. não queria nada. a filha do barão. Desde a véspera. que importância afinal isso tinha! A mulher não entrava no negócio.. Quando ficou sozinho. Moro na casa do barão Danvilliers onde sou governanta desde a morte da baronesa. os tivesse suavizado. acabou pedindo vinte mil francos pelo aporte que se constituiria para o jovem. A uma pergunta de Nantas. uma janela estava iluminada na fachada escura da mansão. Preferi porém escolher alguém de fora do mundo da pobre criança. Nantas foi debruçar-se à janela. após ter deixado discretamente sobre a mesa um envelope que continha uma nota de quinhentos francos.. Além disso. o senhor vai me agradecer um dia. Era um adiantamento para as primeiras despesas.. Nantas ergueu os olhos para Paris rugindo nas trevas. – Joseph. para os cruzamentos da margem esquerda iluminados pelas chamas dançantes do gás. o senhor vai longe. tem a cabeça no lugar. conheço um que beijaria minhas mãos. está para chegar um rapaz que você deve trazer até mim. ela mostrou-se expansiva. um cômodo severo de pé direito alto forrado de couro com móveis antigos. – Ouça. Finalmente iria pisar naquele mundo que o rejeitava e o levava ao suicídio! – Aceito – disse com crueza. para as ruas. o ancião ficara chocado. e tratou Paris com familiaridade e superioridade: – Agora você é minha! 2 O barão Danvilliers estava na sala que lhe servia de escritório. um morto de fome que não ocupava nenhum cargo confessável! A senhorita Chuin bem que acreditava que ele fosse um rapaz de futuro. Naquela manhã. aguardava a visita do homem que não conhecia e que lhe usurpava a filha. E retirou-se. A senhorita Flavie é a jovem em questão. Parecerá mais romanesco. O que ela queria por sua missão? Ela ofendeu-se. o senhor me agrada. Não estou para mais ninguém.seus dois meses de buscas e de humilhações voltou ao seu coração.. mas quanta vergonha em uma família que até então não fora . Oh. Então era aquela moça alta e loura que caminhava com um porte de rainha e que nem se dignava a vê-lo. para os cais. No entanto. é um bom negócio.. e só o fato de que o sedutor poderia oferecer a reparação suprema ainda o mantinha de pé. E como Nantas não regateasse. Oh. apresentando-se novamente: – Senhorita Chuin. Tocou a campainha. repetiu com mais ênfase: – Uma má ação. Quase morri. uma tradição de dignidade e respeito? Muito bem. que começava a revoltar-se. Nantas ficou muito pálido. Não conseguiu. a voz seca de um homem que combina um negócio: . apesar do domínio que tinha sobre si mesmo. O gesto do barão.. contudo. como Nantas fosse se desculpar. – O senhor Nantas – anunciou Joseph. – Perdi a cabeça – murmurou. seu crime continuaria grave. é uma sujeira na qual não entrarei.. Este tivera a inteligência de não ceder ao desejo de vestir roupas novas. quis usar a cegueira da paixão como pretexto.. – Foi um dote ganho com facilidade. mas sem humildade. Ele tornou a sentar-se. foi terrível.. Tomara todas as providências.. a voz tonitruante: – Cale-se! Eu disse-lhe que não queria saber de nada. profundamente perturbado. senhor – interrompeu o jovem. Aceitara um papel bem difícil. o velho continuou.. Não cabe ao senhor falar aqui. tratando de inventar um romance. Parou no meio do cômodo e esperou em pé. Após um silêncio. Não quero saber de nada.maculada! Flavie acusara-se com uma espécie de arrebatamento para poupar a menor censura à sua governanta. e hoje minhas mãos estão tremendo. não estou lhe perguntando nada. não saiu mais do quarto. Estou lhe dizendo o que devo dizer-lhe e o que o senhor deve ouvir. mas bem usadas. – Permita-me. Ao nome de sua filha. que entrava. Mas seus cabelos acabaram de ficar brancos.. Cale-se e escute-me. temia ceder a alguma violência. o senhor não está sentindo aqui uma honra secular.. o barão levantou-se e gritou. Nantas inclinava-se. – Então é o senhor – gaguejou o ancião. O senhor me ultrajou. comprara um redingote e calças pretas ainda limpas. O barão não se levantou. Desde aquela explicação penosa. Não lhe perguntei nada. queria resolver pessoalmente aquele caso abominável. Nantas baixara a cabeça de novo... senhor! O senhor fustigou tudo isso. Ao final de um momento de silêncio. Só virou a cabeça e fixou os olhos em Nantas. Antes de perdoar. o barão recusavase a vê-la. a emoção estrangulava-o. disse simplesmente: – O senhor cometeu uma má ação.. tremente. Não é da minha conta minha filha ter ido procurá-lo ou o senhor ter vindo até ela. um tremor senil agitavalhe a cabeça. Mesmo que minha filha tivesse se lançado sobre o senhor. peço-lhe que não procure me dar explicações. prosseguir. esgotado. pois o senhor está vindo até mim como culpado.. Veja essa casa: nossa família nela viveu por mais de três séculos sem uma mácula. o senhor tinha a certeza de pegar a filha e o pai em uma armadilha. Só os ladrões entram com tanta violência nas famílias. que em nada se assemelhava a um aventureiro. Guardem suas confissões para vocês. porém. Contudo. E. como se de repente tivesse envelhecido dez anos... – Não pude ver a senhorita Flavie. aquilo proporcionava-lhe o aspecto de um estudante pobre e cuidadoso. – O quê? O que o senhor quer que eu lhe permita?. senhora – foi a simples resposta de Nantas. – Então. Uma emoção acabara de apoderar-se dele diante do velho. Talvez o senhor contasse com mais. senhor. e minha filha não se casaria com um homem menos rico do que ela. Ele levantou-se. Até então não se haviam visto. Mas ergueu a cabeça. – Finalmente – concluiu o barão –. Aqui estão. Foi ela quem falou primeiro. pois sou eu quem estou à sua mercê. aqui está este homem. Disse com calma: – A senhorita Flavie herdou quando da morte da mãe uma soma de duzentos mil francos que só caberia a ela no dia de seu casamento. que devo lhe prestar. Nantas permanecia de pé e imóvel. Talvez tivesse chorado nos três últimos dias em que não saíra do quarto. lera os números. deixou-os a sós. Se tremera diante do pai pois sabia que o estava enganando. – Minha filha – disse o barão –. aliás. O barão interrompeu-o. senhor. Essa soma já rendeu juros. onde só coloca as mãos com nojo. Sei que o senhor não possui nada. como se para ele o casamento já se houvesse consumado. que era sua cúmplice. reinou um momento de silêncio. – Joseph. O senhor está aqui para me oferecer uma transação que se tornou necessária. Estou lhe dando o dote que era destinado a ela. . melhor assim – continuou. senhor – disse Nantas –. O senhor deve tomar posse dos duzentos mil francos junto a meu banqueiro no dia seguinte ao casamento. não pronunciou nem mais uma única palavra. Nantas e Flavie entreolhavam-se. tão direito e simples. Prometi conservar meu sangue-frio. porém acham que sou mais rico do que sou de fato. o negócio foi concluído? – Sim. reconheço ao senhor no contrato que meu tabelião redigiu hoje de manhã uma renda de duzentos mil francos. só quero sua filha. – O senhor não tem o direito de recusar.. como o rapaz permanecesse mudo após essa última crueldade. E. – Mas. os grandes olhos cinzentos que não baixavam.. senhor. sou eu que lhe pertenço. Nantas tentou detê-lo em vão. Ele abrira um documento. andava devagar. sentia-se pequeno e sem força diante dele.– Peço-lhe perdão. – Bem. senhor. Finalmente Flavie entrou. Ela fez um beicinho involuntário. mas a frieza de suas faces devia ter congelado suas lágrimas. – Temia não encontrar ninguém para a transação. que lhe parecia muito alto depois que se acalmara. Nantas sentiu na voz dela todo o desprezo com que ela o esmagava. envolveu-o num longo olhar que parecia nele procurar a baixeza. Sejamos transigentes. minhas contas de tutor. diga à senhorita que a estou esperando imediatamente em meu gabinete. E foi embora. Ela pareceu-lhe muito bela com seu rosto pálido e altivo. pretendia ser firme e decidido diante da filha. E a partir daquele momento passou a falar como um advogado que resolve de maneira amigável um processo vergonhoso. o barão concluiu a entrevista chamando o criado. não estou lhe pedindo dinheiro. Estava enganando aquele velho. Não é o senhor que pertence a mim. Quando a porta tornou a fechar-se. O casamento acontecerá no prazo legal. só isso. e eu estou lhe dando o meu. só nos resta nos agradecermos um ao outro pelo favor que estamos nos prestando.. A senhorita Chuin quase sugerira o estupro. quando lhe contou sua vida devorada pela . Seu sedutor era um certo senhor des Fondettes. Estou muito satisfeito em observar na senhora a coragem de nossas situações respectivas. Era exatamente aquilo que desejava. no campo. acho que a senhora está julgando erroneamente a situação que nos envolve a ambos. A senhorita Chuin. Nantas teve um movimento amigável. ela não respondeu. naquilo que a senhora acaba de chamar de transação com muita correção. em pé de completa igualdade. A cada frase. Nantas aceitava com um sinal da cabeça.. Acrescentou: – Se eu achasse que deveria ser galante. O senhor deve abandonar qualquer direito sobre mim. não nos conhecemos. e eu não terei qualquer dever para com o senhor. muito polido –. A partir de hoje somos dois sócios cujas contribuições se equilibram. A posição de ambos era delicada. uma tarde ela encontrara-se entre os braços daquele homem sem saber efetivamente como aquilo pudera acontecer e até que ponto consentira. Mas estamos acima de cumprimentos tão insípidos. – Ah. Então ela exprimiu-se com clareza.. suplicando-lhe que não se magoasse. um sorriso de desdém. Ele evitou insistir mais. Como ela estivesse passando um mês na casa deles. – Senhor! – disse Flavie com violência. senhora – disse com tranquilidade. senhora – disse Nantas. Um vinco de orgulho irritado riscava-lhe a testa. o marido de uma de suas amigas de convento. Talvez tenhamos sido feitos para nos entender. continuou: – O senhor está informado de minhas condições? – Não. mas não teríamos de fato motivos para nos detestar assim à primeira vista. Estou vendo que a senhora me despreza. apreciava a bonomia. estamos em pé de igualdade. o orgulho revoltado. diria que condições tão duras me desesperam.– Desculpe-me. Nossas vidas continuarão completamente distintas e separadas. Como todas as pessoas que têm consciência de sua força. é porque ignora minha história. Só lhe peço uma coisa.. tenho necessidade de rendas. e a senhora está me proporcionando essas rendas. sem qualquer hesitação ou rubor. A senhora precisa de um nome para esconder um erro que não me permito julgar. Entendo que a partir de hoje. – Queira mas ditar. No entanto. senhora. – Isso mesmo.. senhora – exclamou –. os dois deveriam tolerar certas alusões.. Por minha vez. – O senhor será para sempre apenas meu marido de nome. que mantinha perfeita calma. de uma certa posição social para realizar grandes empreendimentos. E seu discurso foi febril. Ela deixara de sorrir. Mas ele inclinou-se com respeito. Ao final de um momento de silêncio. numa segunda conversa. de fato – interrompeu Flavie. Entramos na vida por uma trilha em que não se colhem flores. é que não abuse da liberdade que lhe forneço a ponto de tornar minha intervenção necessária. – Veja só.. sem o que o bom entendimento se tornaria impossível. apaixonado. contara-lhe o erro de Flavie. submeto-me a elas de antemão. De repente.. o tom breve de um homem que discute um contrato. senhora. Uma manhã. nenhum traço de seu rosto se movia. talvez ficasse orgulhosa de se apoiar em meu braço dizendo para si mesma que está me fornecendo finalmente os meios de ser alguém. que dava para a rue de Beaune. se a senhora soubesse tudo o que troa em mim. ele seria forte. Ela escutava-o muito ereta. Envolvido em todas as grandes empresas ferroviárias. A onipotência a tudo desculpava. após ter se reconciliado com a filha e o genro. reservando para si apenas um pavilhão situado no outro canto do jardim. Em seguida revelou seu desdém pelo que denominava as convenções sociais nas quais chafurdam os homens comuns. colocara-se como futuro ministro das finanças. o barão deixara-lhes a mansão. descreveu a vida soberana que saberia construir para si. se soubesse das noites ardentes que passei sonhando sempre o mesmo sonho. feliz. E ele fazia-se a pergunta que revirava há dias. sem conseguir encontrar a resposta: será que ela o notara à janela para ter aceito com tanta rapidez o plano da senhorita Chuin quando a governanta mencionara seu nome? Ocorreu-lhe o pensamento singular de que talvez ela começasse a amá-lo com um amor romanesco se ele recusasse indignado o negócio que a governanta fora lhe oferecer. – Combinado. queria desempenhar um papel político e conseguira ser nomeado deputado em uma região onde tinha muitas fazendas. Assim que passou a participar do corpo legislativo. Só estou aceitando seu dinheiro como meio de subir muito. era melhor não haver nada de comum entre eles. Qual a importância do juízo das multidões quando se pisava sobre elas! Tratava-se de ser superior. Não temia mais qualquer obstáculo. E retirou-se. Como pudera ceder à vontade tola de convencer aquela mulher? Ela era muito bela. Com os seus conhecimentos especiais e sua facilidade para . e Flavie permaneceu glacial. – Não me vendo por sua fortuna. o tempo todo carregado pela realidade do dia seguinte. Calou-se. pois ela poderia atrapalhá-lo na vida. nossas vidas completamente separadas. Agora aquele gabinete era seu.. Nantas tornou de imediato a seu ar cerimonioso. quando de sua primeira conversa. E. uma liberdade absoluta. depressa acumulara imensa fortuna. nada prevalecia contra a força. Nantas conquistara uma situação financeira e industrial das mais elevadas.. Em seguida. Oh. como se ele não lhe tivesse confessado nada. meu marido só de nome.ambição em Marselha e explicou a raiva de seus dois meses de tentativas inúteis em Paris. ela repetiu com secura: – Muito bem. em linhas gerais. Porém sua ambição não se detinha nisso. 3 Dez anos se passaram. – Não acredite que eu seja simplesmente um interesseiro – acrescentou. a senhora me compreenderia. insatisfeito consigo mesmo. enfronhado em todas as especulações de terrenos que assinalaram os primeiros anos do império. Nantas encontrava-se no gabinete em que o barão Danvilliers o recebera em outros tempos tão rudemente. Em dez anos. alguns imóveis atrás de balcões. o ruído de ouro era contínuo. levantou-se e foi apertar as mãos do presidente. em contato com a província e o estrangeiro. No momento em que o presidente concluía. E ele. de sacos abertos esvaziando-se sobre as mesas. uma portinha que dava para a residência abriu-se. senhor duque – disse. ordenou-lhe que chamasse a camareira da senhora. você sabe se a senhora já voltou para casa? E. – Germain – perguntou –. reinava uma atividade prodigiosa. Após a sessão. mas vá fazer o que estou mandando. a visita do presidente do corpo legislativo poderia ser muito significativa. soberbo de sangue-frio.. porém. espalharam-se rumores de que o ministro das finanças ia se demitir e que já estavam designando nos grupos o jovem deputado como seu sucessor. realizava finalmente seu antigo sonho de força. na antecâmara acotovelava-se uma multidão. Será que aceitaria a pasta das finanças e com que programa? Então Nantas. solicitadores. – Peço-lhe que me desculpe. teorias pessoais que provocavam grande estardalhaço e que ele sabia preocuparem o imperador. Não sabia que o senhor estava aqui. está aí o senhor presidente do corpo legislativo que está insistindo em entrar. deu-lhe a entender que fora enviado pelo imperador para sondá-lo. Nantas de repente empalideceu. Parecia preocupado. outros indo e vindo sem parar. Nantas chamou o funcionário que guardava a sua porta. como o funcionário respondesse que não sabia. a música sempre pesada de uma caixa cujo fluxo aparentemente inundaria as ruas. batendo as portas. sentado à escrivaninha. e a camareira da senhora apareceu. ao mesmo tempo que tinha.falar. No entanto. um discurso de Nantas impressionara tanto que o artigo em discussão fora enviado à Comissão para ser emendado no sentido por ele indicado. Nantas mostrou-se mal-humorado. – Ah. senhor – murmurou –. Nos vastos escritórios que instalara no térreo da mansão. Acredite que muito me toca a honra de sua presença. De resto. Ele dera de ombros: nada fora decidido. Nantas estava atolado de trabalho. um bramido de triunfo subia. – Desculpe. não terminou a frase que estava pronunciando. Depois. dizendo: – Tudo bem! Que entre. políticos. homens de negócios. sentia-se o motor inteligente de uma máquina colossal que movia reinos e impérios. Muitas vezes grandes personagens ali esperavam com paciência uma hora inteira. dizendo que estava indo naquele mesmo instante falar com o imperador para comunicar-lhe o programa debatido.. Na véspera. sob a impassibilidade de seu rosto. Por alguns momentos não pararam de trocar cumprimentos num tom de cordialidade. Pareceu sacudir a preocupação que dele se apoderava. Finalmente chegava ao último degrau. a respeito de um problema capital do orçamento. Então. colocou suas condições. a cada dia assumia uma posição mais importante. Germain. Correu . Naquela manhã. alcançava o topo. o presidente. Mais um passo e teria todas as cabeças abaixo dele. Era um mundo de empregados. Paris inteira de joelhos diante do poder. Porém. demonstrava com habilidade uma dedicação absoluta ao império. só tivera com o imperador uma entrevista sobre pontos especiais. em matéria de finanças. Ademais. sem entrar em detalhes. não saía. Compreendendo a ingenuidade daquele interrogatório. Mas perdera o sangue-frio. E. viúvo há seis meses. Aos poucos sua agitação aumentara. durante dez anos. – Estraguei meu negócio – deixou escapar em voz alta quando o presidente saiu. E ele quase não saboreava aquele triunfo como se prometera. chegava a ter o orçamento da França nas mãos. Ela devia ter se reconciliado com o senhor des Fondettes. com o ar apressado de uma cliente. Sentia um cansaço. interrompido por um acesso de raiva. Muitas pessoas foram falar com ele. Nantas acabou por simplesmente dizer: – Assim que a senhora chegar. de imediato sentia-se empalidecendo. tornando-o alvo de zombaria de todos. Flavie entrou ainda com os trajes com que saíra. Nantas chamou Germain para encarregá-lo de ir procurar o senhor Danvilliers. Um diplomata falou de um empréstimo que uma potência vizinha queria fazer em Paris. É claro que Nantas se proibia o ciúmes. Duas horas haviam se passado.. E sentiu um mal-estar. espantou-o com palavras pouco hábeis. a mente longe. bruscamente. Só. Nantas. logo saberia se seria a favor ou contra o império. E sua força abandonava-o. o duque aproximara-se de uma janela e ficara olhando para o pátio. mesmo quando se aventurara aos lances mais arriscados no início de sua fortuna. balbuciou. recusando-se a receber mais gente naquele dia. Quando uma chama. Desfilaram muitas criaturas prestando-lhe contas de vinte negócios consideráveis. O ruído do ouro continuava nos escritórios vizinhos. aceitava os louvores sem dar um único sorriso. sua personalidade desenvolvida desmesuradamente tornava-se o centro em torno do qual girava um mundo. Jamais permitiria que a mulher comprometesse sua situação. senhor duque. caminhou por seu gabinente.. se o barão estivesse em casa. Surpreso. Então a senhora saíra cedo? Tinha dito onde ia? Quando voltaria? A camareira respondia com frases vagas. podia impedir ou precipitar uma guerra apoiando ou combatendo o empréstimo do qual haviam lhe falado. uma mão fria tocasse sua nuca. e Flavie ainda não aparecera. – Essa pasta não vai mais ser minha. observara rigidamente o acordo combinado. desculpando-se de novo. Era o triunfo. todos prodigalizavam elogios exagerados ao seu discurso da véspera. uma febre de ambição satisfeita lhe subia ao rosto. Nantas voltou a si. estremecia ao menor ruído. não tirara as luvas nem o chapéu. sem se sentar. Finalmente recebeu grande número de colegas seus da câmara. Mas a jovem senhora. como uma moça inteligente que não quer se comprometer. fez . Com certeza sua mulher fora a algum encontro. aquele sentimento de marido que quer simplesmente ser respeitado invadia-o com tamanha perturbação que jamais sentira algo semelhante. fez-lhe perguntas. cuja voz tremia. como se por trás. bem baixinho. só que não pretendia ser ridicularizado. Um engenheiro tinha de apresentar-lhe um relatório que anunciava lucros enormes na exploração de uma mina. disse-lhe que teria subido até os aposentos dela se soubesse que ela já tinha voltado. avise-a de que quero falar com ela.para a mulher murmurando: – Desculpe-me. um trepidar de fábrica fazia as paredes tremerem como se todo aquele ouro que fazia barulho fosse produzido ali. Bastava-lhe pegar uma pena para enviar despachos que rejubilariam ou consternariam os mercados europeus. Derrubado no fundo de sua poltrona. – Desonrar o seu nome. fraco como uma criança. Então Nantas. No que isso o atingiria? O senhor está esquecendo nossas convenções. Mas agora estou sofrendo demais. sem recuar diante de sua ameaça –. daria tudo para que aquela mulher o erguesse com um beijo na testa. – Eu a amo. Há anos. num arrebatamento louco. Flavie.. eu a amo! Ela. Onde a senhora esteve esta manhã? A voz tremente do marido. deixara de pensar no desfile de cortesãos que vinham cumprimentá-lo. Aconteceu nem sei como. mesmo que eu tivesse um amante. Esperava quebrantá-la no dia em que pusesse meu poder a seus pés.. Aquele homem que pusera a fé na força.. – Escute – continuou – o que fiz. de todos os meus esforços. A senhora tem um amante. a senhora está saindo dos braços do senhor des Fondettes. Veja onde estou hoje. . onde me agradou estar. Mas.. o senhor não poderia me censurar. Eu me dizia que precisava subir ao máximo a fim de merecê-la. alguém pode entrar. E. – Senhora – começou –. Essas coisas deixavam de existir. desarmado diante de uma mulher. as mãos estendidas. colocando em seu grito uma paixão contida há muito tempo. Nantas encarou-a. caiu a seus pés. Ele deixara de ouvir o ouro que ressoava em seus escritórios. – Ora – respondeu ela num tom frio –. o olhar perdido. mas isso diz respeito ao senhor. é uma tarefa que já foi executada.um gesto para convidá-lo a se apressar. esquecia que naquele momento o imperador talvez fosse chamá-lo ao poder. conquistada sua situação elevada. Ele tinha tudo e só queria Flavie. caía aniquilado. Disse com tranquilidade: – Levante-se. Mas o infeliz a seguia arrastando-se de joelhos. Por um instante. – A senhora deve lembrar-se do que eu lhe disse. avançou como se fosse estapeá-la. senhor. amo-a como um louco. – Justamente é o que não vai mais me convir a partir de agora – continuou Nantas empalidecendo muito. E aos poucos a paixão tomou-me por inteiro. nunca mais vi o senhor des Fondettes. que sustentava que a vontade é a única alavanca capaz de erguer o mundo. realizado seu sonho de fortuna. lembrava-me de nossa primeira conversa. – O senhor está enganado – disse ela.. eu sei. entre nós tornaram-se necessárias certas explicações. nada teria. achava essa paixão indigna de mim. em seguida. é verdade. Ela estragava seu triunfo. a brutalidade de sua pergunta muito a surpreenderam. bem ereta. Ah. – Oh.. imploro! Ela ainda não se pronunciara. eu trabalhava para satisfazer meu orgulho. fiz pela senhora. Depois a senhora tornou-se o único objetivo de todos os meus pensamentos. Continuou por muito tempo.. gaguejando: – Infeliz. Se Flavie se recusasse... Não conquistei seu perdão? Não me despreze mais. como lutei.. O sorriso de Flavie foi de um desdém soberano. devo confessála à senhora. Flavie.. A princípio. senhor. afastou-se. Todas as suas crenças desabavam. que não tolerarei que abuse da liberdade que lhe concedo a ponto de desonrar meu nome.. porque ele tocara a ponta de seu vestido. a senhora não contava. abalado por soluços. Prometo-lhe coisas tão grandes que saberei muito bem dobrá-la.. Até seu pai perdia tempo acusando-a! Por mais um instante ela suportou o interrogatório. Talvez esperasse se não tivesse ciúmes do senhor des Fondettes. se condenava certos empreendimentos que considerava imprudentes. Oh. que ainda tratava sua filha casada com a mesma severidade de dez anos antes. Este era um tormento que o transtornava. Muito envelhecido. meu pai. levantou-se e pegou-a pelos punhos. caía naquele drama de que não suspeitava. o recusava! Ele apertava-lhe os braços. Não . espere. aprovava as relações cerimoniosas dos dois cônjuges. o erro de um único membro basta para macular todos os outros. Flavie quis sair. sem conseguir pensar. ele cujos mínimos desejos eram ordens. tinha de reconhecer sua força de vontade e sua inteligência viva. se ele era atingido pela atividade pouco escrupulosa do financista. deixe-me ter a esperança de que um dia a senhora vai me amar! – Nunca! – ela pronunciou com energia. o barão permaneceu de pé à porta diante daquela cena de violência. conduzir a França como bem quisesse. Depois. Entrementes. deixe esse homem desempenhar seu papel. repetia. Diga-lhe que uma mulher deve respeitar o nome do marido mesmo quando ela não o ama e o pensamento de sua própria honra não a detém. Uma mulher enfrentá-lo assim. Ele porém. como ele também estava se arrebatando por vê-la muda e provocante. Então a jovem teve um gesto de impaciência.. e esse desejo jamais seria satisfeito.Ele recusou. ele só desejava uma coisa. tão forte. toda branca e rígida em sua vontade. e não conseguia obter o amor de sua mulher! Ele. esmagado. fez-se de muito humilde: – Estou vendo que a senhora continua a me desprezar. O senhor não o conhece. fez-lhe mais súplicas. Nantas soltou Flavie e exclamou: – Senhor. Era uma surpresa dolorosa para ele. Quando Nantas acusou Flavie de ter um amante. a voz rouca: – Eu quero. avançou com seus passos de velho solene. E. fraca como uma criança. em uma família. quando o mundo estava a seus pés! Ele podia tudo. – Minha filha. – E eu não – dizia Flavie. Seu genro e ele eram de duas gerações diferentes. o barão. Nem um rubor subira-lhe às faces. querendo poupá-lo da vergonha de uma explicação. e o senhor está vendo que ela está me enfrentando! Flavie virara a cabeça com desdém. provocar uma revolução nos Estados. por que não se defende? Seu marido estaria dizendo a verdade? Será que você reservou essa última dor à minha velhice? É uma afronta também a mim. E. A discussão continuava quando o barão Danvilliers abriu a porta. de repente. – Eu juro-lhe que ela está saindo da casa do amante – repetia Nantas –. porém. pois. presa de um acesso de fúria.. tão poderoso. Muito bem. acabou dizendo: – Ah. eu quero.. porque uma criatura.. como ele permanecesse no chão. a sua filha está voltando da casa de seu amante. Arrumava os punhos que a brutalidade do marido amassara. Ao vê-lo. Porém. não dê seu amor a ninguém. seu pai falava com ela.. achando que aquilo era apenas uma distinção de conveniência. Perdi a cabeça. O ancião acreditava na união do casal. A senhora tem de me perdoar se fui brutal há pouco. e suas lágrimas quentes apagavam a carta que o nomeava ministro. Ambos atravessaram o cômodo sem que Nantas fizesse um único gesto para detê-los. o ruído do ouro aumentara. Perdoe-me por tê-lo enganado. Flavie endireitara-se tremendo. À noite levava seus secretários para lá e cumpria seus .. Nantas escondia o rosto com as mãos. – Ele é seu marido – retomou o velho. o velho só pronunciou: – Adeus. a conselho de seu pai. Nantas decidira não deixar sua mansão. – E hoje – continuou a jovem mulher –. Nantas ficou só. A porta tornara a se fechar. à porta. pelo menos seria uma desculpa. Queria pouparlhe uma grande dor. porém.. não ficarei aqui nem mais um minuto. Nas caixas ao lado. hoje ele quer que eu o ame. senhor. Os esposos.. Com certeza mais um de seus truques. – Ouça. parecia estar se entorpecendo com um trabalho sobre-humano. foi dar o braço à filha. Afinal.. Olhe para ele. Não sou feliz.. impulsionando todo um mundo. Ajoelhou-se e chorou.. O barão voltou-se para Nantas que. leve-me embora. no apogeu do poder. E. ele abriua maquinalmente e percorreu-a com os olhos. silencioso... mas pertenço de fato a esse homem?. ele jamais me tocou. Esse homem nem mesmo é um sedutor... que era a negação de toda a sua vida: – Não sou feliz. E ele.. confirme que estou dizendo a verdade. Em seguida.. Ele chorava. toda escrita à mão pelo imperador. A realização de todas as suas ambições não o tocava mais. vou contar-lhe tudo. Flavie aceitara voltar ao domicílio conjugal. – O pai de seu filho. não dirigiam a palavra um ao outro a não ser quando tinham de desempenhar o papel de marido e mulher diante das pessoas.me obrigue a falar. vendeu-se por dinheiro. Agora que sabe de tudo. lívido. nem com a ponta dos dedos. esmagado. meu pai. Ele foi violento comigo há pouco. os olhos estupidamente fixados na carta do imperador. pois. Jamais o amei. Esse homem simplesmente vendeu-se e aceitou encobrir o erro de um outro. se ele me amasse. Como Germain acabara de entrar e depor uma carta sobre a escrivaninha. – Não. era a hora em que a casa Nantas roncava. e. recuara. ele vendeu-se. Ele mal a compreendeu.. por respeito pelo senhor. A carta. soltou esse lamento de criança. a cabeça caída na escrivaninha. chamava-o ao ministério das finanças em termos muito lisonjeiros.. meu pai – continuou Flavie com mais ênfase –. 4 Nantas era ministro das finanças há um ano e meio. no meio daquele labor colossal que era obra sua. No dia seguinte à cena de violência que ocorrera em seu gabinete.. tivera uma conversa com o barão Danvilliers.. olhando transtornado o vazio ao seu redor. comprei-o a fim de que ele mentisse para o senhor. O barão empertigou-se. não é o pai de meu filho. senhorita. Roinville. À sua passagem. Ele prometeu recompensá-la pelos serviços. perguntando-lhe por quem a tomava. Foi então que quis ter junto dela uma pessoa cuja dedicação compraria. . ela fingiu revoltar-se. Sejamos breves. Há algumas semanas observo nela uma tristeza e pensei na senhora para conseguir informações. tendo como único intuito tentar o impossível. – Muito bem – ele continuou –. Quando às vezes se sentia desencorajado. na manhã em que a chamou a seu gabinete e lhe propôs com clareza mantê-lo a par das menores ações de sua mulher. permanecia insensível aos elogios. mas a raiva o transtornava quando pensava que ela podia estar dando-se a um outro. No entanto. com a ideia de acumular suas obras. – Ora. pois é a vontade da vida que fez a humanidade. porém. Por um tempo. Será que finalmente a esposa fora tocada? Será que ela perdoara sua antiga infâmia para só ver o desenvolvimento de sua inteligência? E ele continuava não surpreendendo qualquer emoção no rosto mudo daquela mulher e dizia-se. pois fizera o cálculo de que precisava de mais cerca de vinte mil francos para comprar em sua terra... Toda a crença em sua força voltava-lhe. ela era capaz de se mostrar com o senhor des Fondettes. não sou digno o suficiente dela. estou com muita pressa. como forçara a fortuna. Não conseguir ser amado por Flavie era um suplício. Por outro lado. Uma voz assoprava-lhe inspirações elevadas e fecundas. A senhorita Chuin porém não queria ouvir mais nada se ele não esclarecesse suas pretensões. trata-se. que tanto admirara quando era jovem. que elas se tornam feias ou deixam de ser de acordo com a forma com que são apresentadas. de uma boa ação. a solteirona planejara aposentar-se com os vinte mil francos que Nantas lhe dera no dia seguinte ao seu casamento. tornando ao trabalho: “Vamos. onde ardia uma chama intensa. com olheiras escuras. não admitia outra alavanca nesse mundo. Ele pretendia forçar a felicidade. Ele fingia portanto pouco se preocupar com a mulher. Ele. fechava-se para que ninguém suspeitasse das fraquezas de sua carne. Haviam mantido a senhorita Chuin na casa. zelaremos por ela. enquanto agonizava de angústia mesmo quando ela saía por pouco tempo. por favor. Porém. Esperava portanto outra oportunidade. a governanta sabia demais para que pudessem se livrar dela. Foi a época de sua vida em que realizou seus maiores feitos. estão me esperando. Agora era o ciúme que o devorava. Temo que minha mulher esteja me escondendo alguns pesares. – Sou devotada à senhora. Para afirmar sua liberdade. Nantas não tinha por que se incomodar com a solteirona cujas caretas de devoção não conseguiam mais enganá-lo.. decerto ela se dissera que a casa se tornara adequada para pescar em águas turvas.. farei tudo pela sua honra e pela do senhor. seguiria sua mulher pessoalmente pelas ruas. erguia-se um murmúrio de simpatia e admiração. Se não temesse o ridículo. impaciente –. senhorita – disse ele. O barão estava acostumado à sua presença. Toda vez que subia na carreira. consultava o rosto de Flavie. a casa do tabelião.deveres em casa. Parecia trabalhar sem esperança de recompensa. sem parar”. Só era possível adivinhar seus combates por seus olhos fundos. A partir de amanhã. – O senhor pode contar comigo – disse então numa efusão maternal. A princípio a governanta zangou-se. tenho de subir mais. Seus princípios eram de que as coisas não são feias por si mesmas. Três meses se passaram. A princípio teve a ideia de se vender à mulher. obrigado – balbuciou Nantas. Dez mil francos não lhe bastavam. mostrando-se penalizada. ele estava envolvido em uma tarefa colossal. Nantas ficava mais tranquilo. Passava muitas noites em claro. De manhã. O senhor des Fondettes. E estabeleceu seu plano: servir ao mesmo tempo o marido e o amante. falou em voz alta: . enquanto a solteirona às vezes piscava o olho repetindo que talvez logo tivesse novidades. Aquela expulsão brusca a surpreendeu e encantou. rejeitado. fingiu sentimentos jurando que se mataria se ela não o ajudasse. Tornou a marcar um encontro com ela. foi hábil a ponto de obrigá-lo a fixar uma soma: ele dar-lhe-ia dez mil francos se ela lhe fornecesse uma prova formal do bom ou mau comportamento da senhora. o negócio foi concluído: daria dez mil francos. a partir de então sem esperança. Quando via a senhorita Chuin. Por isso a senhorita Chuin já estava perdendo as esperanças quando um dia encontrou o senhor des Fondettes. incendiado pela lembrança do minuto em que a tivera nos braços. depois de ter se vendido ao marido. fazia-lhe perguntas curtas. A verdade era que a senhorita Chuin refletira bastante. – Esta noite ele estará no quarto da senhora. Mas só coletara até então fatos sem importância. Nantas levantara-se. Até tinha marcado um encontro. e deparara com uma daquelas honestidades tanto mais sólidas porque baseadas no orgulho. esta era a combinação genial. Ao final de oito dias. precisava de vinte mil para comprar a casa do tabelião. – O que a senhora soube? – perguntou ele. ela mencionou o nome do senhor des Fondettes. dizendo-se que os vícios dos patrões são a fortuna dos criados. ela a espionara por conta própria. conseguiram precisar as coisas. ela esperara um longo interrogatório e até mesmo preparara suas respostas para não se atrapalhar. Mas conhecia a senhora. tinha medo de desfalecer diante dela. empalidecendo. Fez uma reverência e foi embora. Dispensou-a com um gesto. fizera modificações importantes no sistema financeiro. De seu erro. Justamente tudo se encaixava. Flavie conservava um rancor de todos os homens. A partir do momento em que ficou sozinho. Sabia que seria muito atacado na Câmara e precisava preparar uma quantidade considerável de documentos. antes mesmo de ser encarregada da tarefa. Mas a governanta a princípio nada precisou. daria sua fortuna para possuir de novo aquela mulher que lhe pertencera. Aos poucos. iria escondê-lo no quarto de Flavie. uma noite. Há muito tempo. furioso de impaciência. Este fez-lhe tantas perguntas sobre sua patroa que a governanta compreendeu de repente que o antigo amante desejava Flavie com loucura. – Aos fatos. aos fatos – repetia Nantas. Ela sabia de algo? A senhora visitara muita gente? Permanecera particularmente em alguma casa? A senhorita Chuin mantinha um diário detalhado. a senhorita Chuin foi falar com Nantas. e ela.Depois. Com certeza a senhora estava se relacionando com alguém. Foi ele quem primeiro sondou a senhorita Chuin. Nantas atormentou-se menos. A partir daquele momento. Finalmente. – Muito bem. temia ser expulsa à primeira frase. após muito desperdício de sensibilidade e de escrúpulos. levantou a cabeça instintivamente. no fundo daquela escuridão e daquele silêncio. E levou as mãos à cabeça como se a tivesse ouvido estalar. que cedeu diante de sua grande inteligência. uma chama incendiou-lhe os olhos. À tarde.. Enquanto respondia ao barão. Aquele encontro marcado no domicílio conjugal parecia-lhe monstruoso de impudicícia. Foi-lhe porém penoso abandonar a poltrona: lamentou ter de pousar a pena. Ele não podia deixar-se ultrajar daquele modo. venceu a si mesmo e tornou ao trabalho. em seu quarto. atrás dele. e uma volúpia mal perceptível atravessou seu rosto por um instante. De repente. Agora era frequente ela encará-lo daquele modo. ao voltar para casa. Foi a maior vitória que já obtivera sobre si mesmo. porém. a fúria fazia-o sonhar com assassinato. Nantas trabalhou em seu gabinete. Jamais seu marido apresentara-se . – Quem está aí? – Abra – respondeu Nantas. Deitada no sofá. – Senhor. Depois. Aos poucos envolvera-se. O projeto deveria estar concluído no dia seguinte. Por três vezes tornou a sentar-se diante da escrivaninha e por três vezes a revolta de todo o seu corpo tornou a colocá-lo de pé. Flavie dispensara sua camareira cedo. Até a meianoite. por várias vezes acreditou surpreender os olhos da mulher fixos nos seus. valorizou-se bastante. pegara um livro. Alguém batera à porta. enquanto. Ele não aprovava todas as ideias do genro em matéria de finanças. Nantas achou que ela temia ter sido traída. Mas precisou prometer-lhe modificar toda uma parte do plano. Finalmente. o barão Danvilliers mencionou precisamente o projeto do orçamento que tanto estardalhaço provocava.. Como este fizesse algumas objeções. algo o empurrava. Ela ergueu-se sobressaltada. Nantas submeteu ao imperador o projeto definitivo do orçamento. lembrou-se. fez um esforço para parecer nem estar pensando naquele problema: conversou muito. muito notáveis. Quando o pêndulo deu meia-noite. a cada instante. passarei a noite modificando-o – prometeu. ao jantar. daquele mecanismo financeiro que construíra lentamente. Um grande silêncio reinava na mansão. uma necessidade de subir de imediato aos aposentos de sua mulher para chamá-la de prostituta. um calor enrubesceu-lhe o rosto. E ele subiu aos aposentos da mulher. Por isso. Seu rosto suavizara-se mais. No entanto. Seus punhos de lutador fechavam-se. E. Mas achava-as muito abertas. depois terei até o raiar do dia para terminar a tarefa”. Ela ficou tão surpresa que abriu maquinalmente. pensou: “Vou matá-los à meia-noite. permaneceu na saleta diante de seu dormitório. ela simplesmente o escutava e parecia tentar ler além de seu rosto. ele as discutiu com perfeita lucidez. Flavie continuava olhando para ele. os olhos perdidos.. o livro caía-lhe das mãos e ela sonhava. Até a meia-noite. À noite. acabou por convencer o sogro. jurando que os estrangularia à noite. tinha de terminar um trabalho. fragmento por fragmento através de um sem número de obstáculos. dar alguns passos para obedecer a uma vontade antiga que não mais residia dentro dele. Seu olhar não se enternecia. mais nada existia além daquela criação.– Esta noite. Naquela noite. um sorriso pálido por ele passava de vez em quando.. o adultério estava ali. Queria ficar sozinha. Mas agora era ela quem insistia. sem parar para discutir.. Então. guardava a porta. E ela própria entrou no quarto. a voz rouca. – Senhora – disse ele –. Finalmente compreendeu. Quando Flavie percebeu como ele estava transtornado. eles permaneceram imóveis. daria muito para que o marido se zangasse. . Por isso entrara sem reservas. De fato. Como um louco. – Não. juro-lhe! Em seguida. as mãos à sua frente. Nantas entrou transtornado. ele dissera-lhe que era bobagem. enquanto Nantas permanecia no limiar. Ao chegar diante da cama.daquela maneira em seus aposentos. sem dizer uma palavra. Mas.. sua paixão estúpida tornava-o odioso. olhos nos olhos.. juro pela minha vida. o senhor des Fondettes sentia-se ridículo. de um salto. que o espreitava no patamar. Ele. Depois. Flavie foi tomada por tamanho estupor que gritou. perdida –. – O senhor tinha razão. acalmou-se. apavorada: – É verdade – balbuciou. pareceu até lamentar aquele primeiro movimento que acabara de levá-la a se defender. esse homem estava aí. Com um gesto. o pescoço estendido. Por que não permanecera trabalhado em seu gabinete? O sangue refluía de suas faces. e o senhor des Fondettes apareceu escondido atrás delas. como ele desse um passo à frente: – Muito bem! Suponhamos que haja um homem! No que isso lhe diz respeito? Não sou uma mulher livre? Ele recuou diante da frase que o atingia como um tapa. Não estava observando o trato. Estou em meus aposentos e proíbo-lhe que entre! Tremendo. Entrementes. enquanto a doçura enternecia seus olhos. constatou com clareza que ela estava em posição de superioridade e que ele estava fazendo uma cena de criança doentia e sem lógica. uma sombra de sofrimento indizível empalideceu seu rosto. Eu não sabia. Não se dignando nem mesmo a desmenti-lo. Flavie não respondeu de imediato. – Sou mais forte do que a senhora. há um homem. peço-lhe perdão – disse a Nantas. tanto o seu pensamento estava longe. ele já caminhava na direção do quarto. – O senhor está louco – murmurou. afastou-se da porta. num esforço de vontade. – Veja o senhor mesmo – disse simplesmente. – Saia daí – murmurou. ele repetia: – Há um homem. há um homem escondido em seu quarto. a jovem colocou-se diante da porta gritando: – O senhor não vai entrar. que não queria ver. entrarei de qualquer jeito. uma lâmpada na mão. parecendo ainda mais alta. voltara a sentir raiva enquanto subia. tentando recuperar seu tom de voz frio. A senhorita Chuin.. acabara de cochichar-lhe no ouvido que o senhor des Fondettes estava lá há duas horas. é verdade. não quero. Mas Nantas permanecia calado. Só ficara muito pálido. Flavie era livre. Por um instante. ia jogar-se sobre ela para passar. Parecia um bobo. ela dava de ombros. o senhor não vai entrar. ergueu as cortinas. Sentiu muito frio nos ombros. disse em voz alta como que para se comprometer formalmente diante de si mesmo: – Chega. Se ainda estivesse hesitante. Deixava tudo em ordem. teve de engolir mais uma amargura. A partir daquele momento. no meio do grande silêncio. lavou-se com muita água. que a comprara do sogro. caso o imperador levantasse novas objeções. Sem hesitação. proibira que se alugasse a estreita mansarda onde durante dois meses se debatera contra a miséria quando de sua chegada a Paris. deixou a chave na porta. Por capricho. chamou sucessivamente vários empregados para dar-lhes ordens. era naquela mansarda que resolvera morrer. lá quisera triunfar. acabou. Quando voltou a seu gabinete. De manhã. Ele pagou-a e teve de aguentar sua intimidade. as folhas empilhavam-se. podia dispor de si mesmo sem que o acusassem de egoísmo e de covardia. a cama. Nantas continuava escrevendo com a mesma calma.Quando tornou o olhar do senhor des Fondettes para Flavie. Uma a uma. Desde que possuía uma grande fortuna. só escutou o barulhinho da pena estalando no papel. Ali voltava a ser o que fora em outros tempos. Chegara a hora. ele concluiu a frase que começara. tratava-o um pouco como um aluno que passou de ano. não partiria como alguém que fora levado à demência pela bancarrota. na pressa. Subiu correndo e. Após examinar a arma. a senhora é livre. Ela mostrou-se maternal. pronunciando apenas essa frase: – Senhora. Nada mudara no quarto. quando Flavie. quando ia sair do gabinete com o revólver. Então inclinou-se e olhou pelo buraco da fechadura. a . Duas horas depois. Quando aparecia um obstáculo. inclinou-se diante da última. conversou com ele: o secretário deveria levar imediatamente o projeto de orçamento às Tulherias e fornecer algumas explicações. E deu as costas. sentou-se diante de sua escrivaninha e tornou calmamente à sua tarefa. Quando seu secretário chegou. Lá sofrera. que expulsara o senhor des Fondettes. 5 A casa ao lado do jardim da mansão agora pertencia a Nantas. A senhorita Chuin apresentou-se para receber os dez mil francos prometidos. O papel de parede ainda tinha os mesmos rasgões. desculpe-me. vou me matar daqui a pouco. Por isso. Algo nele se quebrara. sentira por várias vezes a necessidade subir ao seu antigo quarto para ali se fechar durante algumas horas. Em seguida. caminhou direto para a gaveta onde escondia um revólver. Nantas considerou que já fizera o suficiente. gostava de refletir naquele lugar e ali tomara as grandes decisões de sua vida. só o mecanismo dos músculos e dos ossos ainda funcionava. foi embora. Enfim pertencia a si mesmo. Nantas só terminou seu trabalho às oito horas. Porém. Soaram nove horas. seu rosto exprimia a paz e a satisfação do trabalho enquanto um raio da lâmpada iluminava o punho do revólver ao seu lado. Temendo adormecer de cansaço. aquela cumplicidade vergonhosa o decidiria ao suicídio. desceu descalça para ouvir à porta do gabinete. com método. diante da necessidade do suicídio. Ergueu a lâmpada que baixara. Ergueu a arma. quisera rebentar a cabeça. que sempre se mostrava segura e pronta. O revólver estava sobre a mesa manca. ao alcance de suas mãos. Por um momento respirou aquele ar que lhe lembrava as lutas de outrora. Devaneava e dizia a si mesmo que se encontrava no mesmo ponto que em outros tempos. Ao longe. o Sena. neste dia encontraria a alavanca para levantar o mundo. os cais. tudo desabara o tempo todo a seus pés. ele só tinha a morte que não enganava. tinha certeza de que ninguém viria e de que ele se mataria à vontade. parecia com a punição de um estudante gazeteiro sob o qual se quebra um galho e que perece pelo seu pecado. por mais que procurasse. A única coisa sólida que conhecia era ela. elevava-se. E ele lamentou ter vivido dez anos a mais. Paris iniciava seu labor de cidade gigante. então era pobre demais para comprar uma pistola. pois a força. Finalmente. a única frase que poderia trazê-lo de volta à vida: – Eu o amo! – gritou agarrada a seu pescoço. apenas a morte permanecia uma certeza. Com um gesto desviou o tiro. e Flavie entrou. confundia-se até a distância do Père-Lachaise. com a mesma vontade de suicídio. Nantas encostou o cano na têmpora. A manhã estava magnífica. não conseguira lhe dar Flavie. tratando pela primeira vez Nantas com familiaridade. ele metera-se tolamente a amar Flavie.mesa e a cadeira continuavam ali com seu cheiro de pobreza antiga. Quantas coisas realizaria se Flavie o compreendesse! No dia em que ela o abraçasse dizendo-lhe “Eu o amo”. soluçando. Os dois olharam-se. Nantas pegara o revólver sobre a mesa e o armava devagar. Para quê esse desperdício de vontade. todo um canto da margem direita em que a torrente das casas balançava. . tão estrangulada que não conseguia falar. arrancando essa confissão de seu orgulho. Era miserável. Assim. Agora ele deixara de ter pressa. só dispunha do pavimento da rua. Pela janela completamente aberta. e o monumento que construíra fendia-se. E seu último pensamento era um grande desprezo pela força. a bala indo alojar-se no teto. as árvores da mansão. de todo o seu ser domado. trazido de volta para o mesmo lugar. Um outro dia. pronunciou a frase que ele esperava. que deveria dar-lhe tudo. Uma última lástima amoleceu-o por um segundo naquele momento supremo. os homens superiores acabavam tão bobamente quanto os imbecis. mas a morte era da mesma forma o fim. A porta porém abriu-se com violência. desabava como um castelo de cartas derrubado pelo sopro de uma criança. para quê tanta força produzida já que decididamente a vontade e a força não eram tudo? Uma paixão bastara para destruí-lo. Em seguida aproximou-se da janela e contemplou a mesma perspectiva de Paris. naquele lugar. A sua experiência de vida de alcançar a fortuna e o poder parecia-lhe pueril. – Amo-o porque você é forte. entrava o sol que despertava a juventude da mansarda. na existência. A vida era tola. Ela estava tão sem fôlego. Éramos dez. Tia Agathe fazia bolos para nossas meninas no domingo. contando todos. E que alegria entre dois bocados! Sentia orgulho e alegria nas veias quando as crianças estendiam as mãos para mim gritando: – Vovô. Eu era avô e bisavô. a segunda. parecia uma santa. meu irmão Pierre. minha irmã Agathe. ainda robusto. Aimée. os cabelos louros caindo pelo pescoço. um de dois anos. Eu decidira construir mais um andar na casa quando Aimée se casou com Cyprien. Há muito tempo as colheitas não se anunciavam tão boas. À noite. enorme e alegre. é tão bom viver e morrer onde se cresceu! O mês de maio foi magnífico esse ano. Quando nos sentávamos à mesa. Quando as famílias se entendem. o sol era nosso irmão. de modo que a casa acabaria tocando no céu se continuássemos a cada casal novo que se formasse. Um pedaço grande.A INUNDAÇÃO 1 Meu nome é Louis Roubieu. no nosso terreno. que viera morar conosco após a morte de seu marido. meu irmão caçula Pierre. Nela brotava a felicidade. uma verdadeira donzela. e no mês passado eu ainda era o fazendeiro mais rico da comuna. sua mulher Rose. deveria casar-se com Gaspard Rabuteau. e suas três filhas. a terceira. uma fileira em que as cabeças diminuíam até o bebê de dez meses. ex-sargento. o outro de dez meses. um rapagão com o qual tinha dois filhos. Éramos mais ou menos doze na fazenda nessa felicidade. a montante do Garonne. Preferiríamos construir uma cidade atrás da fazenda. contava histórias de seu regimento. a . Nossos prados à beira do Garonne estendiam-se num verde ainda tenro. cujas risadas eram ouvidas do outro lado da aldeia. as mãos cruzadas no avental. Não queríamos nos deixar. tão loura. Nossa casa parecia abençoada. queremos pão!.. que já comia sua sopa como um homem. à esquerda. que levava as crianças para o trabalho. a primeira casada com Cyprien Bouisson. Justamente naquele dia eu fizera uma passeio com meu filho Jacques. Pierre inventava brincadeiras. as crianças fechavam o círculo por ordem de idade. Durante quatorze anos lutei com a terra para comer seu pão. uma líder. Véronique e Marie. um solteirão. hein! Vovô! Belos dias! Nossa fazenda na labuta cantava por todas as janelas. Afinal veio a abastança. e não me lembro de más colheitas. Tenho setenta anos e nasci na aldeia de Saint-Jory. tão branca. a algumas léguas de Toulouse. finalmente. Em seguida eram os cânticos que Marie sabia. Como ouvíamos as colheres batendo nos pratos! A ninhada comia muito bem. Saímos por volta das três horas. minha irmã Agathe ficava à minha direita. e dizia rindo que seria necessário erguer mais outro depois do casamento de Véronique e Gaspard. que parecia ter nascido na cidade.. Havia eu. Em seguida vinha toda a ninhada: meu filho Jacques. que acabara de ficar noiva. cânticos que entoava com a voz de uma criança de coro. Rose chamou-nos para um canto e anunciou-nos que Gaspard. era um rapaz alto de vinte anos.. Quando voltamos. meu pai. isso irá trazer-lhes felicidade. Tia Agathe rolava sua massa enorme. As amoreiras deram-se maravilhosamente bem ali. pai Roubieu – respondeu ele. Quando tivéssemos o dinheiro necessário. – Que belo dia! – exclamei. conhecido em toda a região por sua força prodigiosa. batendo em meu ombro. a geada parava bem à beira de nossos campos. .relva tinha três pés de altura. E Jacques ria com sua risada gostosa. as vinhas. As meninas contemplavam o bichinho. prometendo uma vindima maravilhosa. eu devia ter conquistado a amizade de algum santo ou do próprio bom Deus lá em cima. – Veja. meu filho – continuei. só mais vinte dias de espera. achava que merecia aquela felicidade. – Então – comecei –. vacas. Minha pobre esposa falecida chamava-se Félicité. Entrementes. – Não precisa corar. sem contar os cavalos. 10 de julho. o Leão do Sul. meu pai. Rose. um coração de ouro. E aquilo acabou por me parecer justo. Então. dirigiu-nos grandes gestos gritando: – Venham logo! Era uma de nossas vacas que acabara de ter um bezerrinho. as colheitas do ano permitiriam que realizássemos esse sonho. as faces muito vermelhas. havíamos percorrido as terras que possuíamos do outro lado da aldeia. estabelecíamos planos. para marcarmos a data do grande dia? – Isso mesmo. de longe. – Hoje à noite beberemos uma garrafa de vinho licoroso. não nos faltará mais pão nem vinho. Gaspard. O senhor conheceu o bom Deus para que agora ele faça chover dinheiro em suas terras? Muitas vezes brincávamos entre nós com a miséria passada. floridas. você está vindo. Se as vinhas dos vizinhos apanhavam alguma doença. Estamos em 23 de junho. Ela convidara-o para jantar. Conversávamos alegremente. Ele estava no fundo do pátio ajudando nossos criados a estenderem a roupa da faxina do trimestre. ótimo moço. Fomos também visitar nosso trigal e nosso vinhedo. Jacques tinha razão. campos comprados um a um à medida que a fortuna aumentava: o trigal estava alto. Além disso. ele vencera Martial. Há pouco tempo tivéramos de aumentar os estábulos onde havia quase cem cabeças de gado. até tímido demais. principalmente carneiros. Se cumprissem suas promessas. Jacques voltou-se para mim e disse: – Fale. Quando geava. meu rapaz. marcamos para o dia de Sainte-Félicité. e a plantação para produzir vime já revelava brotos de um metro. Depois de ele entrar na sala de jantar em que estávamos. o noivo de Véronique. Havia também amendoeiras em plena produção. – Se você quiser. havia como que um muro de proteção em torno das nossas.. Como eu nunca fizera mal a ninguém. Quando nos aproximávamos da casa. e que corava quando Véronique o encarava tranquilamente. chegara para marcar a data do casamento. E o nascimento daquele animal parecia uma bênção a mais. Todos estavam eufóricos. Pedi que Rose o chamasse. em uma festa em Toulouse. compraríamos alguns terrenos que ligariam nossas terras umas às outras e seríamos proprietários de todo um canto da comuna. pois toda a sorte da região parecia recair sobre nós. o filho mais velho de um fazendeiro de Moranges. Você vai ver. O Garonne estava muito cheio desde a véspera. com a mão. todos para a mesa! Estou morrendo de fome! Naquela noite fomos onze à mesa. Confessou-nos que teria ficado doente se a recusássemos. mostrei-lhe o céu. e contudo. mas tínhamos confiança nele. Aquele menino grande de punhos terríveis amava Véronique com toda a sua alma. o dia de Saint-Félicité. Eram sete horas. Em seguida cantamos. Aos poucos. Adiante subiam. Cyprien e Aimée. e em uma noite se acalma.. e ele ficava contemplando-a. permaneciam mais graves. meu menino: vamos rir de novo desta vez. e todos falavam ao mesmo tempo. Gaspard conhecia algumas canções de amor no dialeto da região. úmidos de sua velha ternura. Ah. esquecia seu prato. Brindamos à boa sorte de Gaspard e Véronique. não tínhamos porque acreditar que ele era um mau vizinho. você fica para o jantar. tanto eu estava acostumado ao seu troar. Felizmente. que já eram casados há vinte e cinco. De fato nos dias anteriores chovera sessenta horas sem parar. sempre sabendo fazer rir. Prestava-nos serviços tão bons! Seu lençol de água era tão largo e suave! Além disso. Lá do alto caía uma alegria lenta que conquistava todo o horizonte. E deu em mim e em Jacques um tapa na mão que derrubaria um boi. de uma profunda pureza. um lençol azul imenso.. Finalmente pedimos um cântico a Marie. Jamais vira a aldeia adormecer em uma paz tão suave. não é?. trocavam olhares. mas ela parecia-me a própria voz do silêncio. mais inocente que um cordeiro. chamando-a de mãe. enquanto não transbordasse. que fazia cócegas em nossos ouvidos. contínua. os ruídos dos rebanhos voltando aos estábulos. tinha uma voz de flauta doce. acham que podem provocar alguma desgraça. volta para sua casa. arriscou algumas brincadeiras. no qual o sol poente esvoaçava como uma poeira dourada. Colocaram Gaspard perto de Véronique. Que sopa boa comemos naquela noite! A tia Agathe. Como Gaspard se aproximasse de mim. Vamos. acreditava reviver com esses dois namorados cuja felicidade trazia para nossa mesa um pedaço do paraíso. Eu trouxera duas garrafas de vinho licoroso da adega. – Então – perguntei –. ela levantou-se. sorriam. estava tão comovido por sentir que ela lhe pertencia que por vezes grandes lágrimas lhe subiam aos olhos. Olhe que tempo maravilhoso! E. ter muitos filhos e montes de dinheiro. mesmo quando o teto está prestes a cair. em seguida vozes de crianças na curva da estrada diante de nossa casa. o sol começava a se pôr. E o bom Pierre quis contar seus amores com uma donzela de Lyon. Em seguida beijou as faces de Rose. eu fora até a janela. como se estivesse furioso. muito fina. suavizados pela distância. na nossa casa boa sorte é nunca brigar. Quanto a mim. eu lhe disse: – Nada de novo em sua casa? – Não – respondeu. muito discretos. – Ah! – exclamei. já estávamos na sobremesa. e. pai Roubieu.. Enquanto isso. – Não vai acontecer nada. Eu ouvia o riso de uma vizinha. desvanecia uma cor de rosa.. casados há apenas três anos.combinado? – Isso mesmo. Jacques e Rose. dando de ombros. o . – Só falam das grandes chuvas dos últimos dias. que azul! O céu era apenas azul. Sobre as telhas. Todos os anos é a mesma coisa: o rio se faz de importante. A voz grossa do Garonne roncava. os camponeses não abandonam com facilidade sua toca. na grande serenidade do campo. sacundido babas brancas. da larga estrada diante de nós saíram dois homens e três mulheres. um grito de angústia e de morte: – O Garonne! O Garonne! 2 Corremos para o pátio. Mas eu ainda estava falando quando nos escapou uma exclamação. chovendo lá de cima. entre os troncos dos álamos. a aldeia adormecia mais um pouco. e eu pensava que toda a nossa felicidade. os dois homens e as três mulheres continuavam a correr. Escutavamolas sorrindo quando. Não estávamos vendo nada. loucos de terror. as boas colheitas. ressoou um grito terrível. rolando. Nossas meninas tagarelavam. olhavam para trás. atingiram três álamos. Eram eles que gritavam desesperados. chegavam a nós na própria pureza da luz. Uma cabana de tábuas foi engolida. No entanto eles ainda corriam. não – eu disse. – As folhas nem estão se mexendo. Uma bênção alargava-se sobre nós com o adeus da noite. Ouviam o grande galope alcançar o deles. Por nossa vez soltamos o grito desesperado: – O Garonne! O Garonne! No caminho. As águas porém pareciam perseguir principalmente os fugitivos. Entrementes eu voltara para o meio da sala. As águas chegavam-lhes aos joelhos. Uma vaga enorme lançou-se sobre a mulher que . Às vezes se viravam. enlameando a maré com suas passadas largas. o noivado de Véronique.céu embranquecia. no meio de grandes tufos de relva. De fato a linha baixa do horizonte dormia na calma. o rosto aterrorizado. Atrás dos fugitivos. vovô? – Não. abalando o chão com o galope surdo de sua multidão. No cotovelo da estrada. um muro caiu. quebrando-se com o trovejar de um batalhão de ataque. as charretes desatreladas foram embora como pedaços de palha. como se estivessem sendo perseguidos por um bando de lobos. uma delas carregava uma criança nos braços. ondas empurrando ondas. Agora as ondas chegavam em uma só linha. Surgiam de todos os lados. a família feliz. E o grito continuava ressoando: – O Garonne! O Garonne! De repente. Saint-Jory encontra-se no fundo de uma dobra de terreno num nível inferior ao do Garonne em mais ou menos quinhentos metros. muito inclinado naquele lugar. caíram bruscamente em um lençol imenso e cortaram-lhes qualquer retirada. – O senhor está vendo alguma coisa. cuja folhagem alta despencou e desapareceu. não gritando mais. uma debandada de massas de água amontoando-se sem fim. Cortinas de álamos altos que cortam as pradarias escondem o rio por completo. de repente. acabáramos de ver aparecer como que uma matilha de animais cinzentos com manchas amarelas correndo. galopando desenfreados pela terra dura. Em seu primeiro choque. – E então? O que está acontecendo com eles? – perguntou Cyprien. Era a noite de um belo dia. Cyprien e Gaspard. – De qualquer forma é ruim para as colheitas – murmurou Cyprien a meia voz. O senhor lembra. Eu achava inútil assustar nosso pessoal. que arrastara uma mesa para o meio do cômodo. Até um pé de altura. A tia Agathe falava de esquentar o vinho que ela trouxera para cima para dar coragem a todos. e ela ria para combater o pavor que sentia aumentar ao seu redor. cortando. a água subiu assim no pátio. tiveram a boa ideia de ir pegar duas lâmpadas. Mas não era fácil enganar nossas meninas. perguntava-me a meia voz: – Vovô. É bem possível. Eu a via subir. meu rapaz – disse. achando que sua luz alegraria um pouco o quarto já escuro onde todos nos tínhamos refugiado. conversava. em 55. mas afirmava que ela parara. de uma tristeza profunda sob o céu pálido. Em nosso pátio a água logo atingiu um metro. Debruçado à janela. não. antes de subir. por minha vez. na mesma janela. – Estão com medo. A cada instante paravam de jogar. jogou ela própria fingindo entusiasmo. Daqui a pouco veremos. A casa era construída sobre um outeiro acima da estrada. Fora. – A não ser que os caminhos estejam livres daqui a algumas horas. subam. meu pai.. Começou a partida. vendo os olhos de súplica de nossas meninas. as mãos febris. Jacques e Rose. refugiamo-nos logo no segundo andar. Uma delas se virava. Não estávamos muito assustados. Eu insistia em só subir por último. Então esforcei-me por demonstrar grande liberdade de espírito. – Depressa! Depressa! Para dentro de casa. – Você será obrigado a dormir aqui. embaralhando. As meninas subiram antes. não vai ser nada – repeti. Aquela mulher digna. Ela é sólida.carregava a criança. distribuindo e falando de tal forma que quase abafava o ruído das águas. sem responder. Eu estava diante da outra janela com meu irmão. Aimée deitara seus dois filhos em sua cama. Eram oito e meia. pensava principalmente em distrair as crianças.. Salvar o gado era impossível se o desastre aumentasse. ainda era dia. cujos olhos às vezes procuravam os meus.. olhavam. Mandei que as acendessem. estão se matando no estábulo. não. voltando-me para Gaspard. – Não fiquem aí molhando as pernas. sentada. mas de um sufocamento lento e invencível. Depois de ter se lançado de assalto sobre a aldeia. Ficou à cabeceira. o rio já dominara até as ruelas mais estreitas. As criadas... ainda está subindo? . A tia Agathe. o rosto bem pálido. Não temos nada a temer. – E os animais? – perguntaram. – Ah! – dizia Jacques para tranquilizar a todos. A água invadia o pátio com suavidade fazendo um barulhinho. informava sobre os progressos da inundação. – Não.. chegava até a fingir que estava baixando. os ouvidos em pé. Tudo desapareceu. Por prudência. Véronique e Marie a se sentarem à mesa. um dia branco. – Não. Ele olhou-me. depois foi embora. e vi em seguida seu olhar fixar-se em Véronique com uma angústia inexprimível.. Não se tratava mais de uma carga de ondas galopantes. – Não vai ser nada. Colocou-lhes as cartas nas mãos. O buraco no fundo do qual Saint-Jory foi construída transformava-se em lago. elas permaneciam todas pálidas.. Seu bom humor conservava uma valentia soberba. – Subam de uma vez – gritei a nossas duas criadas que chafurdavam no meio do pátio. Tia Agathe obrigou Aimée. em companhia de Véronique e de Marie. queria organizar um jogo de cartas. as águas obstinadas porém pegaram-no pela garupa e vimo-lo. era a ruína! As colheitas perdidas. – Meu Deus! Meu Deus! – disse Aimée. apenas o ronco daquele mar ampliado ao infinito. cuja bola de luz recaía sobre a mesa. O crepúsculo caíra. apertando-lhe o braço. jogando para fora o pranto e os soluços que havíamos retido até então. empinava. gritou-me: – Louis. temos de tomar cuidado. não. Lembrava-me de nossas noitadas de inverno. girando no meio dos redemoinhos. Então demos nossos primeiros gritos. Eu fiz com que se calasse. Falava de nosso passeio da tarde. A água continuava a subir. Eu mostrava o punho ao horizonte.A água subia numa velocidade apavorante. os punhos nas têmporas. nada fizéramos contra ele. Passaram em torrentes amarelas. o gado afogado. nada além dos balidos e relinchos dos animais. eretas. mugidos de rebanhos transtornados. cheio de um calor bom e de afeição. como se temessem falar em voz alta. Não há perigo. a sorte mudara em algumas horas! Deus não era justo. em bandos. empelotadas. resfolegava fazendo um ruído de forja. Meu coração nunca ficou tão apertado. Os carneiros eram levados como folhas mortas. abalada por um grande arrepio. os cabelos arrepiados pelo vento do medo. abandonar-se. Ao longe arrastavam-se as brumas. que a vigiava. Tudo aquilo então estava mentindo? A felicidade mentia. Todos os homens haviam se postado diante das janelas para esconder o espetáculo aterrorizante. e ele nos tomava tudo. Tratávamos de sorrir virados para dentro do quarto. diante das lâmpadas calmas. Vamos ter de revelar a verdade. – Louis – disse meu irmão Pierre –. respondia: – Não. que continuava subindo. As vacas e os cavalos lutavam. O sol estava mentindo pondo-se tão calmo e suave no meio da grande serenidade da tarde. arrastadas pela corrente. Todas haviam se levantado e não foi possível evitar que corressem às janelas. Era o mesmo aconchego adormecido. Ali ficaram. Eu brincava. mudas. As mãos estendidas em direção a nossos queridos animais que se iam. – Meu Deus! Meu Deus! – repetiam as mulheres a meia voz. nós os lamentávamos sem nos ouvir uns aos outros. Principalmente nosso grande cavalo cinzento não queria morrer. enquanto a paz reinava ali. daquelas pradarias. E nem um ruído humano. Em nossos estábulos. Mas não era mais possível esconder o perigo. Os animais furiosos acabavam de arrombar as portas dos estábulos. os animais estavam se matando. . De repente soaram balidos. quando nos reuníamos em torno daquela mesa. estendia o pescoço. Pierre. caminhavam e depois perdiam o pé. Tudo se confundia. a água atingiu a janela. era um fim de dia de medo apagando-se em uma noite de morte. joguem tranquilamente. ouvia às costas o rugido do rio desenfreado. a água está a três pés da janela. Eles subiram-nos à garganta contra a nossa vontade. daqueles vinhedos que encontráramos cheios de promessas. daqueles trigais. Ah. derrotado. que se ergueu. e os cavalos soltavam relinchos roucos que são ouvidos de tão longe quando estão em perigo de morte. E. Um estalo terrível cortou-lhes a palavra. com a doçura do serão. Precisávamos gritar. Uma claridade turva flutuava acima do lençol cheio de limo. O canto da granja sob o quarto delas acaba de desabar. – O pessoal de Saintin tem barcos. Elas haviam compreendido. Era a morte que entrava na casa. E senti aquele frio da morte que já me aflorara passar sobre nossas mulheres e nossas queridas meninas. Rose ergueu a cabeça e olhou em torno de si perguntando: – E as criadas. Pedi-lhe que nada dissesse. Vão passar por aqui.Aquela advertência arrancou-nos da crise de desespero. No entanto. Subia-se até ele por uma lucarna acima da qual se encontrava uma espécie de plataforma. que elas haviam usado uma escada jogada como ponte para alcançar a construção ao lado. sempre a meia voz. Então. nem mesmo pensamos em apagar as lâmpadas. eu interrogava os quatro cantos do horizonte. Ele me contou. – Não vão deixar de nos mandar socorro – dizia eu com coragem. 3 Felizmente o telhado era grande. ali! Não é uma lanterna na água? Mas ninguém me respondia. Precipitamo-nos para o celeiro. dando de ombros: – O dinheiro nada significa. Os homens iam e vinham sobre as telhas até as grandes chaminés que se erguiam dos dois lados da construção.. continuava rondando o teto como se estivesse procurando uma saída. enquanto Gaspard. com um marulhar insistente.. ele me olhou de maneira estranha e disse baixinho: – Estão mortas. Ela dirigiu-se então a mim. meu pai – retorquiu Jacques. Marie levantou-se ereta. que subira cada degrau da escada. A água. Já havia um pé de água no cômodo. não conseguia mentir. As mulheres sentaram-se. – Afinal. subimos. Aimée . o senhor tem razão. As paredes são sólidas. as mulheres amontoadas. nada teremos a lamentar. onde estão as criadas? Desviei os olhos. muito colados pela necessidade que temos no perigo de nos sentirmos próximos dos outros. Jacques e Cyprien perscrutavam a distância. – E não corremos qualquer perigo. Voltei a mim e disse. já entrava pela porta. Foi ali que todo o nosso mundo se refugiou.. o rosto inexpressivo.. Vamos para o telhado. Apoiado na lucarna por onde saíramos. por nossa vez. Quando. Estaremos prontos para voltar ao trabalho. deu um enorme suspiro. Cyprien desaparecera. Vejam. presa de uma crise de choro. Sem saber muito bem o que estava fazendo. – É isso mesmo. tiritando. As cartas permaneceram sobre a mesa. os olhos fixos nos meus. suave. como percebesse a ausência de nossas duas criadas e quisesse esperá-las. Muito frio passara pela minha nuca. Enquanto estivermos todos aqui. mudas. e sua inclinação. escondiam o rosto para não ver mais.. A nossos pés. febril. É provável que as pobres moças tivessem ido buscar suas economias em suas arcas. cerrando os punhos. onde estão? Por que não sobem? Evitei responder. depois caiu. Pierre acendera o cachimbo e fumava com tanta fúria que a cada tragada cuspia pedacinhos do sifão. Só nos restava aquele refúgio. Chamei-o e vi-o voltar dos cômodos vizinhos. o rosto transtornado.. De vez em quando eu esquecia o perigo. deixamos de estar protegidos pela inclinação do terreno. amarela. todo branco. Uma loucura. Os álamos caíam com um estalo de morte. vamos tentar alguma coisa. erguendo a cabeça. Jacques repetia: – Não podemos continuar aqui. eu vira o mar assim e permanecera diante dele boquiaberto de admiração. suplico-lhe. Nossa fazenda.mantinha seus dois filhos apertados nas saias. Perdia sua tranquilidade de lençol adormecido. pois os tetos vizinhos se achavam vazios e ouvíamos vozes que com certeza vinham do campanário. Uma noite. A água estava a apenas um metro do telhado. Deixei-o ir. Pai. em menos de uma hora. – A água está subindo. disse junto com ele: – Isso. Tínhamos de tentar o impossível. E o lençol imenso aumentava ainda mais sob essa suavidade do céu. Gritou: – Onde ele está? Não quero que ele me deixe. a água está subindo – repetia meu irmão Pierre. Era um céu sem lua. Com um gancho de ferro fixado em uma chaminé. A própria tia Agathe. tonéis abertos. – De qualquer jeito vou ver – disse Cyprien. Balbuciei. vamos tentar alguma coisa. Dilacerado pelos soluços das mulheres. – Voltarei se for impraticável. que por sua vez se apoiava na edificação vizinha. Não se via mais a terra. – A casa dos Raimbeau é alta demais. E não sabíamos o quê. Pierre falava em jangada. Temos de tentar alguma coisa. balbuciando padre-nossos e ave-marias. de um azul tão puro que enchia o espaço de uma luz azul. ao nosso redor. a primeira da aldeia. o espetáculo adquiria uma grandeza soberana. Mas quantos perigos para chegar até lá! – Impossível – disse Pierre. Acima das águas. carregando destroços. muito pálida. que continuava quebrando entre os dentes o sifão do cachimbo que deixara se apagar. a igreja permanecia de pé com seu pequeno campanário quadrado. de uma fosforescência que acendia pequenas chamas na crista de cada onda. Se não for. Precisaríamos de escadas. Muita gente já devia estar refugiada ali. atravessaremos todos carregando as mulheres. Estávamos a sete casas dela. deixara de se mexer. que caíra por completo. ele acabara de subir para a casa ao lado. a água tornou-se ameaçadora. quebrando-se contra a casa. fazia grandes sinais da cruz. Ele tinha razão. Formavam-se correntes. viu que ele não estava mais ali. A uma certa altura. como se tivesse claridade própria. A noite. . escondia-os como que para defendê-los. Cyprien finalmente disse: – Se pelo menos pudéssemos alcançar a igreja. Estamos juntos. quando sua mulher Aimée. conservava a limpidez de uma noite de verão. Entrementes. pedaços de madeira. as casas desabavam como caçambas de pedregulhos jogadas à beira de alguma estrada. Talvez pelos telhados conseguíssemos de fato alcançar o presbitério de onde seria fácil entrar na igreja. Ao longe ouviam-se agora os choques retumbantes de assaltos contra os muros. vamos morrer juntos. Então. Parecia que o crepúsculo prosseguia. estava encostada numa edificação mais alta. a planície devia ter sido invadida. o rosto entre as mãos. tanto o horizonte permanecia claro. tufos de relva. Gaspard oferecia pôr Véronique nas costas e levá-la a nado. perto de Marselha. Véronique. mas um céu crivado de estrelas. uma lua redonda. e. que era para a salvação de todos. com toda a força: – Voltem! Voltem! E todos. repetia: – Vou com você. Ele. Ao final de cinco minutos. – Ele vai tornar a subir – dizia Pierre. gritavam-lhes também para voltar. A casa dos Raimbeau acabara de desabar. mais baixa que a primeira. o lençol tornou a seu nível com o buraco da casa engolida. livre no céu. Vou com você. No desabamento distinguíamos apenas uma tempestade. espere-me. Um terror repentino apoderou-se de mim. as mãos na boca. ajudá-la a subir. afirmando-lhe que voltaria. eriçando fora da água a carcaça de forros despedaçados. Em seguida voltou a calma. permanecia de pé no meio das telhas. que choravam. Pierre. Comecei a gritar. De repente. que tivera de aceitar esperá-lo. algo vivo tentando esforços sobre-humanos. ela balançava a cabeça. – Ele está vivo! – gritei. – Coloque-a em segurança. Lançamos um grito de terror quando vimos Cyprien desaparecer. Foi então que começou a terrível desgraça. Nossas vozes os detiveram por um instante. um jorro de ondas sob os destroços do telhado. cujo teto devia ser muito inclinado.Ao vê-lo no topo da casa vizinha. E dizia: – Cyprien. Qual o problema? Vou com você. Ademais. . mas o rugido das águas impediu que eu ouvisse sua resposta. o ar perdido. A lua erguia-se. como se nós mesmos estivéssemos salvos.. Ela pegara no colo as crianças. apertando as crianças no peito. correu pelas telhas sem largar as crianças. quero morrer com você. acreditei ver um corpo se mexendo. Ele teve de pegar as crianças. Não perdemos um único detalhe da catástrofe. acompanhava Cyprien. como se tivesse crescido. ouviu-se um estrondo. Ali. – Ah. Aimée. a garganta apertada. entre as vigas. Cyprien subiu pelo tubo da chaminé com uma agilidade de gato. Haviam descido para uma outra casa. Vou com você. Batíamos as mãos de alegria. fazia-lhe súplicas. Agora se encontravam em um cotovelo formado pela rua diante da casa Raimbeau. uma estrutura de catedral semidestruída. pois se arrastavam de joelhos ao longo do cume. Nós a enxergávamos com nitidez. que atravessava o telhado. – Ele está tentando agarrar a viga à esquerda. ele está vivo!. Logo deixamos de enxergá-los. Conseguimos acompanhá-los do cimo da casa. Havia ali um amontoado de vigas encavaladas. Por um momento hesitaram. Mas. a princípio destinada a ser uma fábrica. Insistiu. acima daquele lençol branco que a lua está iluminando! Um riso nervoso abalava-nos. Depois. Deus seja louvado.. – Isso mesmo. olhem! – explicava Gaspard. Mas depois continuaram a avançar. Gaspard. Acreditei vê-la estremecer sob os ataques da água. Em seguida. debruçado. recebia a corrente da rua em plena fachada. A estrutura da casa dos Raimbeau. cuja face amarela iluminava o lago imenso com um clarão vívido de lâmpada. e a cada passo ele se voltava para ampará-la. uma construção alta cujo telhado superava o das casas vizinhas em pelo menos três metros. reapareceram em uma terceira. E. Caminhavam devagar. toda escura contra o céu claro. volte logo! – gritei. Percebi que ele agitava a mão. Jacques. não era nada sólida. E não o largava mais. E soltava um uivo contínuo. Contudo lutou. pendurou-se novamente. Agora atingia as telhas. quis tornar a se enganchar nas vigas. inerte. Aimée continuava de pé com os dois filhos. desabou. A água rugia. tornou a cair. Logo. Com uma força extraordinária. Então o frio nos congelou. No telhado. Foi uma agonia horrorosa. uivava mais alto na noite. Nós mesmos caíamos de joelhos. Cusparadas de espuma molhavam nossos pés. – Não podemos deixá-lo morrer assim – disse Jacques transtornado. com os filhos apertados contra si. Ele devia sentir seu frescor no topo do crânio. Outras fecharam-lhe os olhos. que subia com paciência. Aimée. A princípio. as mulheres haviam enfiado o rosto entre suas mãos postas. os olhos fixos nele sob ela. Com a queda da casa. Foi um assalto de fato. a garganta apertada de ansiedade. dez. a alguns centímetros da água. sem conseguir desviar os olhos do horrível espetáculo. Então a água iniciou seu ataque. afastou-se da água. batendo no muro com golpes mais fortes. manteve o corpo em uma posição oblíqua. – Temos de ir até lá. balbuciando súplicas. Uma primeira onda molhou-lhe a testa. como se o telhado. com regularidade. apertávamo-las a ponto de moê-las. imóvel diante de nós. agarrada às telhas. lançou as mãos ao seu redor para ver se não encontrava nada em que se agarrar. Quando voltei a mim. O telhado não passava de uma ilha estreita que emergia do imenso lençol. aceitando a morte.Nossa risada porém cessou. balançava e precipitava-o contra a casa como um aríete. A torrente enorme parecia nos transportar. Acabáramos de compreender a terrível situação de Cyprien. Maquinalmente demo-nos as mãos. E todos tínhamos de fato uma sensação de balanço. O caminho havia sido cortado. Assistia à morte do marido. doze vigas atacaram-nos assim ao mesmo tempo por todos os lados. quando olhávamos para o campanário da igreja. sem conseguir se soltar. a vertigem cessava. – Poderíamos soltá-lo. Assim que um destroço ou uma viga passava ao alcance da corrente. carregado. – Estamos andando – murmurava Rose. – Talvez consigamos descer pelas vigas – observou Pierre. chorando. os braços estendidos. E ele permanecia pendurado. a alguns metros dela. A morte demorou a vir. encontrávamo-nos no mesmo lugar no meio das ondas. ainda de pé. a cabeça para baixo. Em seguida. recuava para lançar de novo a arma. Cyprien tentou se endireitar. Até então. As casas à esquerda e à direita deviam ter desabado. . seus pés haviam ficado presos entre duas vigas. E já se dirigiam para os telhados vizinhos quando a segunda casa. por sua vez. um uivo de cão. O cansaço porém quebrantava-o. a água subira ainda mais. O mar estendia-se. Não trocamos mais nenhuma palavra. A nossos pés. tivesse se transformado em jangada. No telhado da casa ao lado. Era sacudida por um tremor convulsivo. 4 Não sei quanto tempo permanecemos no estupor daquela crise. Mas. louco de horror. Seus cabelos mal mergulhavam na água. mas os escombros que a barravam agora faziam-na refluir. a corrente seguira a rua. Vimos a cabeça desaparecer lentamente. ela o pegava. Jacques e Pierre manobravam a vara longa de maneira a também afastar os destroços. E a água conservava sua obstinação tranquila. Continuávamos a ouvir vozes do lado da igreja. que as águas haviam arrancado inteiro e que flutuava como uma jangada. O combate era impossível. Pegamos o jovem pela cintura. e ela própria. olhava para todos os lados e ainda tentava sorrir quando encontrava meus olhos. A água agora batia nas telhas. Gaspard dava-lhe golpes de sabre como se estivesse num corpo a corpo com ela. Gaspard. Conseguiu apanhar uma viga. num último impulso. sem um único ferimento. extenuados. quando as vigas batiam na vertical. Não quero morrer! Rose abraçava-as. Ele tornara a pegar uma vara. cuja massa nadava com suavidade em direção à casa.. a voz dilacerada. que possuía barcos. quando dos ataques mais severos. feito de tábuas sólidas. tentava deter uma longa vara que passava. achávamos que era o fim. Marie e Véronique haviam se jogado nos braços uma da outra. espreitava um destroço enorme. Eu amaldiçoava a idade que me deixava sem forças. Gaspard esperava os pedaços de madeira que a corrente transformara em aríetes. preto. e detinha-os com rudeza a curta distância das paredes. Repetiam. Então Jacques e Pierre caíram no teto. tranquilizá-las. A luta inútil durou quase uma hora. Dizia: – Cuidado!. esta por sua vez atacou-nos. Às vezes. nem fazia o sinal da cruz. Pierre ajudou-o. tão fraco quanto uma criança. chamou-nos. sempre a mesma frase. Quando aquele telhado chegou a seu alcance. como sentisse que estava sendo arrastado. Ajudem-me. uma frase de pavor que ainda ouço o tempo todo em meus ouvidos: – Não quero morrer!. Mantendo sua viga fixa. um duelo. continuava a rondar pelo teto. sonora. começaram a soltar injúrias. – Temos de nos defender – exclamava. tiritando. ele próprio veio abordar nosso teto com tanta força que por um instante até tivemos medo de que . seguramos o rapaz com firmeza. furava-a com a ponta de suas pretensas armas como se ela fosse um peito. invencível. no entanto. e o silêncio ampliava-se de novo. o lençol amarelo desdobrava sua imensidão nua. Às vezes o choque era tão violento que ele caía. O pessoal de Saintin. a partir do momento em que o destroço entrou na corrente.. Ao seu lado. por um momento duas lanternas haviam passado ao longe. Gaspard arriscara-se até a beira do telhado. Não mais rezava. De repente. Aos poucos foram perdendo a cabeça. deixou sua viga ser arrancada pela corrente. três homens contra um rio. devia ter sido surpreendido antes de nós.. tirou-a da água com seus braços fortes de lutador. gritou para que o ajudássemos. Não se podia esperar qualquer socorro. enquanto Gaspard. por sua vez. erguia o rosto e gritava involuntariamente: – Não quero morrer! Só tia Agathe nada dizia. que as paredes estavam se abrindo e entregando-nos ao rio por suas brechas abertas.. Jacques. ele deteve-o com sua vara. A defesa porém organizava-se. Em seguida. segurem-me firme. Apatetada.Ouvíamos o gemido surdo da casa cheia de água. Tentava consolá-las. Era um grande pedaço de telhado de granja. a bater na água e a insultá-la. e. suas divisórias já estalando. vamos tentar. mas. vovô – disse-me Gaspard. não percamos tempo. Era uma manobra das mais perigosas. pois a cada minuto eu as via lançadas e arrastadas pela água furiosa. desse modo conseguiu levar-nos para fora da corrente. Mas parecia que a jangada estava colada no teto. cujo uivo de lamento não cessava. dizendo-nos para pegar as varas que ele preparara e que nos serviriam de remos. todos gritaram: – Não. Percorria a embarcação em todos os sentidos para se certificar de sua solidez. meus pés estão secos. Subindo de volta ao teto. E contudo. Gaspard foi o último a abandonar o telhado. mulheres! Um barco de verdade. Íamos expor oito existências. A água conhecia-o. Aimée continuava ali. Não chorem mais. Achávamos que estávamos salvos e continuávamos a pertencer ao rio. jamais tivera de me entregar a um combate assim. respondeu com mais risadas. Finalmente. A cada tentativa. pesando sobre as varas com energia redobrada. Fizemos mais muitos esforços. Estaremos dentro dele como em casa. Ela estava um pouco inclinada de um lado. – Não se aflija. Porém. Ele próprio segurava um longuíssima que usava com grande habilidade. Eu estava transtornado. Naquele momento eu estava olhando para o lado da igreja. ele fazia uma légua no Garonne a nado. algumas remadas permitiram-nos alcançar o largo. Gaspard teve de carregar Véronique e Marie para o meio da jangada. No entanto. Até caiu na água. estamos salvos. Para isso era preciso atravessar a rua onde reinava a corrente terrível contra a qual acabáramos de lutar. apoiamos todas as nossas varas nas telhas para nos afastar. mas era realmente bastante sólida para carregar-nos a todos.se despedaçasse. não tive força de resistir ao chamado lúgubre. pois o choque a cada vez poderia arrebentar as tábuas sobre as quais estávamos.. Pierre e Jacques haviam subido na jangada. Porém Gaspard lembrou-se da promessa que me fizera de ir recolher nossa pobre Aimée. É melhor morrer aqui! Gaspard parara de rir. Rose e tia Agathe deslizaram sozinhas pelas telhas e foram se colocar junto das moças. Vejam.. Pegou as vigas que flutuavam. prometolhe. quando tornou a saltar sobre a jangada. As mulheres haviam se ajoelhado. – Vamos pegá-la quando passarmos. E ele nos carregará a todos. A uma ordem que nos deu. Gaspard saltara com ousadia sobre aquela jangada que o acaso nos enviava. Eu também saltei nela. ele achou dever consolidá-lo. dizia com alegria: – Vovô. Deixávamos que ele nos comandasse. ao grito que nos escapou. Então de novo experimentamos o sentimento de nossa impotência. sacudiu-se gritando: – Vamos. amarrou-as com as cordas que Pierre trouxera para alguma eventualidade quando abandonou os quartos embaixo. Finalmente Pierre teve a ideia de subir na inclinação das telhas e puxarnos para a esquerda com uma corda. . Apesar de todos os nossos esforços. Agora estava encostada em uma chaminé e mantinha as crianças no ar na extremidade de seus braços. Eu até lamentava que as mulheres não estivessem mais sobre o telhado. enquanto Pierre e Jacques a mantinham à beira do teto. e ele ria. Consultou-me com o olhar. onde as fez sentar-se. quando falei de tornar a nosso refúgio. embarquem. não conseguíamos desgrudá-la. a corrente levava-nos de volta à casa com violência. a água já lhe chegava até a cintura. se hesitei por um momento. suas buscas foram inúteis. levava-nos de volta à nossa casa. seus dentes batiam. olhei para o teto a que Aimée estava agarrada alguns minutos antes. Aimée parara de gritar. que conseguiríamos evitar que a morte as levasse. sim – disse a Gaspard. as tábuas despregadas rodaram em turbilhão. Quando tornaram a subir no teto. a cabeça para trás. mantê-las quase de pé para que a torrente não lhes molhasse as pernas. o lençol fechou-se sob o clarão adormecido da lua. Depois tudo ruiu. sabiam que iam morrer. esgotados: – E tia Agathe! – gritei. mergulhou de novo. Uma das chaminés acabara de ser arrastada. olhando. gritar de novo que não queriam morrer. Achamos que seu corpo arrastado pela corrente havia entrado na casa sob nós por uma janela aberta. vi tia Agathe de bruços na água. assim que desembocamos na rua. Grandes lágrimas rolavam de seus olhos. Não sei o que aconteceu então. sustentada por suas saias. tirou Marie. surpreendi-me por ver de repente Gaspard no lugar em que meu irmão desaparecera. Pelas poucas palavras que me disseram.– Sim. todos fomos jogados para fora da embarcação. Balançamos como uma folha. no torpor em que me encontrava. o jovem carregava Véronique nos braços. Depois tornou a se jogar. Erguendo-me. A jangada partiuse. enquanto caía. com tanta rapidez que nosso grito se concluiu no choque apavorante da jangada com as telhas. A água continuava subindo. uma angústia lançava-as uma no pescoço . 5 Agora éramos apenas cinco no telhado. E. Foi uma vertigem de alguns segundos. Tia Agathe não voltara à superfície. não podemos ir embora sem ela. Tentávamos acalmá-las como se acalmam as crianças. A água mal nos deixava uma faixa estreita livre ao longo da cumeeira. sem se debater. escapou-nos um grito. A corrente que tornava a nos pegar. Vi apenas seus dois braços rígidos que ela erguia para manter seus filhos fora da água. e ela submergia. davam-se indicações que eu não ouvia. a face de uma brancura de cera. Lembro-me de que. que achei que estivesse morta. Rose agarrara-se ao cadáver do marido que a levara embora. Assim que a depôs ao meu lado. dizendo-lhes que não morreriam. Finalmente as moças voltaram a si. Pierre tornara a mergulhar. Uma dor viva fez-me abrir os olhos. arrastando-nos de novo. – É impossível. compreendi que a cabeça de Jacques fora quebrada por um choque com uma viga. E toda vez que a palavra “morrer” caía como um dobre. Foi preciso erguer Véronique e Marie desamaiadas. Fiquei deitado. estúpido. dessa feita. Elas porém não acreditavam mais em nós. Porém. Ambos falavam-se. Era Pierre que me puxava pelos cabelos ao longo das telhas. tremendo. Pierre juntara-se a ele. Ele baixou a cabeça sem uma palavra e começou a usar todas as paredes que haviam permanecido de pé como apoio para sua vara. e nossa angústia aumentou ao vê-las ensopadas. No entanto. – E Jacques! E Rose! Eles abanaram a cabeça. passamos por cima de nossos estábulos. tão rija e imóvel. Navegamos ao longo da casa vizinha. – Ah! Estou vendo! – gritou Gaspard bruscamente. lá embaixo. um murmúrio de pessoas abrigadas. Porém. era sustentada apenas por algum muro mais espesso que a arrastaria por inteiro quando desabasse. Pierre tampouco. movia-se. Era de fato um barco? Ainda hoje não saberia dizer. reconhecido nosso erro. um ponto distante. Há alguns minutos meu irmão Pierre tornara a enfiar o cachimbo na boca num gesto maquinal. o cenho franzino. Parecia uma batida suave. a embarcação girava lentamente. Nem mesmo ouvíamos mais as casas desmoronarem como charretes de pedregulhos que se descarregam de repente. – Pierre! Pierre! – gritei. o que mais me fazia tremer era sentir o telhado cedendo sob nosso peso. a cada segundo. decidiu desceu do telhado. Quando acreditamos vê-lo desaparecer. cada vez mais nítida. Era mesmo um barco. Mas Gaspard insistia. relva. daquele ruído que não conseguíamos descobrir de onde vinha. manchado de sombras escuras.. A casa talvez se mantivesse de pé a noite toda. exceto por alguns fragmentos das muralhas. A aldeia destruída desaparecera ao nosso redor. por sua vez precipitou-se. Louis. os próprios caibros pareceram enfraquecer. – Olhem. Então acabamos também por avistá-lo. E após ter jogado primeiro o cachimbo. tonéis vazios provocavam falsas alegrias em nós.. Ah. agitávamos nossos lenços até que. E insultamos o barco. As remadas chegaram-nos mais nítidas. esperávamos ser engolidos pela queda da casa. Eu nada vi. Mais tarde. Por um momento acreditamos surpreender à esquerda um ruído de remos. um barco grande! E ele designou a nós. cimos de árvores. Navegava devagar parecendo girar em torno de nós sem aproximar-se. Sempre escura e muda. Apenas o campanário da igreja erguia-se intacto. Estávamos abandonados. grunhindo algumas frases surdas. Com certeza imergeriam se nós cinco continuássemos amontoados num espaço tão apertado. Em seguida. sobre caibros ainda sólidos. Vai sobrar mais espaço para vocês. Ela achava-se minada. Aquele perigo crescente que o cercava e contra o qual sua coragem nada podia começava a impacientá-lo bastante. Torcia seu bigode de veterano. um ar de raiva desdenhosa. restos de muros desabados. acrescentando: – Boa noite. Estávamos refugiados à esquerda. tornávamos a recair na ansiedade que continuava a atingir nossos ouvidos. carregou consigo nossa última esperança. não aguento mais! . Destroços. e como todos nos endireitamos para interrogar o espaço! Segurávamos a respiração. Era o fim. o chamamos de covarde. Está demorando demais para mim. só que as telhas se dobravam açoitadas e esburacadas pelas vigas. A partir de então. o braço estendido. cadenciada.da outra. Ele cuspira duas ou três vezes na água. E nada víamos. Ele voltou-se e me disse com calma: – Adeus. dali continuavam a vir vozes. Erguemos os braços com fúria. como continuássemos a imergir. mas nenhuma dessas sombras. demos gritos de despedaçar as cordas vocais. com medo de compreender. O lençol amarelo estendia-se. um naufrágio em pleno oceano a mil léguas das terras. que música de esperança. A distância roncava o fluxo enorme das águas. Lembro-me de que naquele momento agimos como loucos. aquela noite horrível já cheia de agonias e lágrimas. prestes a atingir seu nível mais alto. A torrente de novo se transformara. Minha boca permaneceu escancarada: um novo choque os separara. ele já percorrera um terço da distância. as mãos unidas. o espaço ainda seco diminuía. Fiquei em silêncio. estou morrendo com essa espera. estou me sentindo em condições. seus membros atingiram a água. relaxadas e preguiçosas. com certeza se abandonou. No entanto. naquele momento em que se sentia fraquejar como uma criança. Quis dissuadi-lo. sob nossos pés. A partir daquele momento. Pode acreditar. Os dois jovens desapareceram. sufocada. Um tremor me abalava à medida que se aproximavam da igreja.. permaneci bestificado. no entanto prosseguia. O senhor vai ver! E acrescentou que preferia tentar salvar a si e a Véronique. fez recomendações a Véronique: ela não devia se debater. Mas ele insistia. estava vendo algumas vigas que os estavam alcançando obliquamente. vou salvá-la. Ademais. esmagando os dedos. Vou encontrar um barco. sustentando Véronique por uma corda que lhe amarrara sob os braços. vou salvá-la – repetia. Em seguida vi Gaspard reaparecer sozinho. encontrara Véronique. nadando com uma força sobrehumana. juro-lhe. Meu único instinto era o de um animal . De repente. os destroços passavam à direita da aldeia flutuando devagar como se as águas. O choque foi terrível. Ela deu um grande grito. devia se abandonar sem um único movimento e principalmente não ter medo. – Prefiro assim – gritou-me Gaspard. Há um instante eu o via.. o coração partido por nossa ruína e pela morte de todos os nossos. vovô.. Nadava mal. ela esmagava-o ainda mais. Mas. as águas tornaram a fechar-se. não querendo mais sobreviver a eles. e assim a transportava.Não tornou a aparecer. atraí Marie para junto de meu peito. a meia voz. era um murmúrio de água correndo. após ter feito o sinal da cruz. Aos poucos. o peso esmagador fazia-o afundar. Estava falando de Véronique. a ouvir a casa se esmigalhar a nossos pés. Gaspard achou que eu estava censurando seu egoísmo de apaixonado e balbuciou: – Vou voltar para pegar Marie. vou organizar um socorro qualquer. ondinhas acariciantes que brincavam e se empurravam. Meus braços são fortes. meio jogada sobre seu ombro direito. A noite ia acabar. – Eu a amo. que pôs nas costas. Finalmente tornou. Ficou só de calças. depressa. Não posso mais ficar. Ele mergulhou duas vezes.. desmaiou. como não mais dispunha de corda para segurá-la. Ele carregava a moça com a corda que enrolara em torno do próprio pescoço.. Na água branca distinguia os menores movimentos de Gaspard. Gaspard tirou os sapatos e o paletó. embora de hábito absolutamente não fosse devoto. em seguida. Deixe-me ir.. Por momentos. – Eu consigo. A cada frase. Duas horas da manhã soaram na igreja. – Agora posso responder por ela. E. quando bateu em algum muro escondido sob a água. De repente quis gritar. Finalmente. a corda devia ter se rompido. Imaginem com que angústia acompanhei-os com os olhos. E como eu lhe fizesse perguntas: – Escute vovô. o ar perdido. Jamais teria força para carregar a moça até a igreja. escorregou pelo teto. repousassem. Eu deixara de duvidar. continuava avançando. minha neta respondia que sim. Quando a água avançava. quando acreditou estar pronta para partir. os velhos no meio. virando-me. como um animal que não quer morrer. A água subira mais. O tempo estava bonito. a recompensa viva de toda a minha vida! Já que tudo isso morreu. sem conseguir saber quem ria tão perto de mim. os olhos claros. Depois torceu seus belos cabelos louros. Não tenho mais filhos. sem qualquer sobressalto. as moças casadouras. teria dito: “Não aguento mais. Em seguida. teria feito o mesmo que Pierre. pegar um pouco de água com as mãos em concha e lavar o rosto. Eu comecei a rir com ela. de pé em suas roupas molhadas. minha casa está destruída. entrou na água que a recobriu com doçura. Ela continuava a embelezar-se. as belas crianças e as belas vinhas. prendeu-os atrás da cabeça. a alegria de minha velhice. Deixei-a apressar-se. como estava suave e bonita naquela hora matinal! Vi-a abaixar-se. Era ela quem estava rindo. Oh. Fui eu. por que . Uma única chaminé permanecia de pé. 6 Por que ainda estou vivo? Disseram-me que o pessoal de Saintin chegou por volta das seis horas com barcos e que me encontraram deitado sobre uma chaminé. o rosto feliz. abanando a cabeça com ternura. boa noite!” e teria me jogado no Garonne para ir embora pelo caminho que todos seguiram.pensando em preservar sua vida. quem insistiu em viver. uma enorme aurora clara. e acho que me agarrei a ela com todas as forças. Amanhecia. quando estávamos à mesa. os casais jovens e mais velhos. tanto ela parecia encantada com a pureza daquele amanhecer de primavera. sem compreender. Olhava com um ar feliz o lugar onde ela acabara de desaparecer. quando todos trabalhávamos e voltávamos inflados do orgulho de nossa riqueza! Oh. O terror a fizera enlouquecer. rude e seca. Em seguida. um buraco negro. E continuava a rir com sua risada infantil. como se respondesse a uma voz que a chamava e que só ela escutava: – Estou indo! Estou indo! Tornou a seu cântico. E eu estou vivo. nada. nada. não me lembro de mais nada. eu recuava. os grandes dias da colheita e da vindima. à noite. A risada continuava. as crianças de colo. e era uma graça do céu. e aquela alegria me cercava e aquecia! Oh. os mais jovens uns ao lado dos outros. as belas moças e os belos trigos. e. As águas foram cruéis a ponto de não me levar após ter levado todos os meus. encontrei Marie. meu Deus. parecia que acreditava estar em seu quartinho no domingo quando os sinos ressoavam com alegria. conquistado por sua loucura. muito fresco e calmo. tal como uma erva daninha. Naquele estupor. o velho. o vazio. cantou um de seus cânticos com sua fina voz de cristal. Eu não parara de sorrir. desmaiado. Mas logo parou. ouvi por muito tempo uma risada. como à beira de um lago cujo lençol desperta antes de o sol se erguer. a pobre criatura. desceu pelo teto. Estava sozinho no telhado. enraizada nos pedregulhos! Se eu fosse corajoso. enquanto eu não sentia mais minha desgraça. Depois. meus campos devastados. Todos os outros se foram. gritou. Ah. Decerto estava fazendo sua toalete. a boca colada na boca. A única coisa que me resta são eles. aterrorizada pelo temor do tifo. entre aqueles retratos lamentáveis. basta um cantinho para morrer. Os noivos haviam permanecido ligados um ao outro por um abraço apaixonado. Decidi arriscar a viagem. essa imagem pavorosa. Eu.o Senhor quer que eu viva? Não há consolo. os braços rígidos. encontrei os de Gaspard e de Véronique. Que desastre terrível! Quase duas mil casas desabadas. Gostaria de encontrar os corpos dos meus para enterrá-los em nosso cemitério sob uma laje onde eu fosse me juntar a eles. o luto por toda parte. Disseram-me que de fato haviam encontrado muitos corpos. Olho para eles e choro. as ruas cheias de comboios fúnebres. porém. e dormiam juntos sob a terra. um bairro destruído. uma última vontade. haviam trocado na morte seu beijo de núpcias. e eles me esmagavam. Quando não se tem filhos. caminhava sem nada ver em meio às ruínas. enterrado na lama. E. Só tenho uma vontade. Vou dar meus campos às pessoas da aldeia que ainda têm seus filhos. eu tinha meus mortos. Não quero ajuda. todas as pontes carregadas. essas duas belas crianças infladas pela água. dramas atrozes. . Ainda se estreitavam com tal força. desfiguradas. vinte mil miseráveis seminus morrendo de fome. a cidade empesteada pelos cadáveres. Haviam contudo tido o cuidado de fotografar os desconhecidos. setecentos mortos. que ainda conservam em seus rostos lívidos o heroísmo de sua ternura. as esmolas incapazes de curar as feridas. Por isso haviam-nos fotografado juntos. Contaram que haviam pescado em Toulouse muitos cadáveres arrastados pelo rio. Eles vão ter coragem de tirar os destroços da terra e cultivá-la de novo. Eu tinha minhas ruínas. que teria sido necessário quebrar-lhes os membros para separá-los. Já estavam enterrados em longas fileiras em um canto do cemitério. Conseguiu escapar para a Inglaterra. uma carta aberta ao presidente da República francesa. Quando o sórdido romance autobiográfico La Confession de Claude foi publicado. Zola trabalhou na editora Hachette e escreveu colunas literárias. Antes de se dedicar unicamente à ficção. De acordo com algumas especulações – inclusive do filho de Zola. Dreyfus – após o perdão presidencial – foi solto. que chegou a vinte volumes. além de peças e novelas. mas ele fracassou no exame de conclusão da escola. Thérèse Raquin (1867). filho de François Zola. Em 1908. escreveu uma série de histórias curtas e ensaios. editada na primeira página do jornal L’Aurore. crônicas e crítica de arte para jornais. publicado em 1864. não escondia sua antipatia por Napoleão III. O resultado foi uma combinação de precisão histórica. Zola arriscou a carreira – e a vida – ao publicar J’accuse. que teve dois filhos. A mãe de Zola queria que o filho estudasse Direito. mostrando o mundo dos camponeses e trabalhadores. os seus inimigos teriam bloqueado a chaminé do seu apartamento para matá-lo. de quem se tornaria grande amigo. Em função disso. Em 29 de setembro de 1902. Depois do primeiro romance de sucesso. na qual defendia a inocência de Alfred Dreyfus e criticava a postura antissemita e autoritária do alto escalão do exército francês. Em 1885. em 1870. Nessa época conheceu Manet. Pissarro. no sul da França. retratando uma greve dos trabalhadores das minas de carvão. Jacques-Émile –. e começou a escrever sob a influência do romantismo. Zola foi condenado à prisão e expulso da Legião da Honra em 1898. outro famoso trabalho do autor.ÉMILE ZOLA (1840-1902) ÉM ILE ZOLA nasceu em 10 de abril de 1840. Em 1843. o autor atraiu a atenção da polícia e da opinião pública. Um dos seus primeiros livros foi Les contes à Ninon. seu pai morreu. Em 1858. O livro foi atacado pela direita como sendo um chamado para a revolução. Jeanne Rozerot. em 1865. Les quatre Evangiles. ele se mudou com a mãe para Paris. Flaubert e os irmãos Goncourt e. um engenheiro italiano. foi deixada inacabada. e da francesa Émilie Aubert. Zola morreu asfixiado por monóxido de carbono enquanto dormia. O tratado Le roman expérimental (1880) manifestou a crença do autor na ciência e na aceitação do determinismo científico. casou-se com Alexandrine Meley. uma descrição profunda do alcoolismo e da pobreza na classe trabalhadora parisiense. onde passou a juventude. Zola começou a longa série chamada Les Rougon Macquart (1871-1893). riqueza dramática e um retrato acurado dos personagens. Zola publicou uma de suas principais obras. onde permaneceu até 1899. Nesse mesmo ano. Nana (1880). leva o leitor ao mundo da exploração sexual. deixando a família em dificuldades financeiras. onde o futuro escritor conheceu Paul Cézanne. Germinal. Nos textos sobre política. uma história social de uma família no Segundo Império. . mas somente em 1906 o Estado reconheceu a injustiça cometida. tetralogia iniciada com Fécondité (1899). a família se mudou para Aix-en-Provence. A publicação de L’Assommoir (1877). os seus restos mortais foram transferidos para o Panteão de Paris. sob misteriosas circunstâncias. mas foi com a amante. fez de Zola um dos mais conhecidos escritores na França. Quando Zola tinha sete anos. em Paris. Durante os anos de formação. 3 CDU 840-32 Catalogação elaborada por Izabel A. Título. – Porto Alegre: L&PM. Ficção francesa-novelas. CRB 10/329.Texto de acordo com a nova ortografia.br Fale conosco: info@lpm. I. Série.br www.5777 – Fax: 51. II.2435-8 1. 1997 Todos os direitos desta edição reservados a L&PM Editores Rua Comendador Coruja.com.220-180 Porto Alegre – RS – Brasil / Fone: 51.5380 Pedidos & Depto. (Coleção L&PM POCKET. Merlo.com. loja 9 – Floresta – 90.br .com. A Morte de Olivier Bécaille e outras novelas / Émile Zola. Capa: Ivan Pinheiro Machado sobre tela Le désespéré de Gustave Courbet Revisão: Delza Menin e Ruiz Renato Faillace Z86m Zola. v. Émile. Comercial: [email protected]. tradução de Marina Appenzeller. 1840-1902. 2011. © L&PM Editores. 314. 73) ISBN 978.85.3225. CDD 843.3221.
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