A Morte de Danton Ensino Basico e Secundario

March 19, 2018 | Author: Lucio Martins | Category: Existence Of God, Baruch Spinoza, Maximilien Robespierre, René Descartes, God


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A MORTE DE DANTONDE GEORG BÜCHNER DOSSIÊ PEDAGÓGICO ÍNDICE Ficha técnica 2 Distribui Distribui ção 3 O Espetáculo 4 Representações de A Morte de Danton Georg Büchner Georg Büchner: cronologia 5 6 9 12 24 34 42 54 59 A Morte de Danton Os Últimos Sobressaltos Cronograma da Revolução Francesa Súmula da Revolução Francesa até à Morte de Danton Danton, Robespierre e a Revolução Danton Sugestão de Atividades 63 Equipa Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E. 65 1 15 MAR – 22 ABR SALA GARRETT 4ª a sáb. 21h | dom. 16h FICHA TÉCNICA de GEORG BÜCHNER tradução MARIA ADÉLIA e JORGE SILVA MELO com MIGUEL BORGES PEDRO GIL SYLVIE ROCHA JOÃO MEIRELES MARIA JOÃO PINHO RITA BRÜTT AFONSO LAGARTO ALEXANDRA VIVEIROS AMÉRICO SILVA ANTÓNIO SIMÃO ELMANO SANCHO ESTÊVÃO ANTUNES GUSTAVO VARGAS HUGO SAMORA JOANA BARROS JOÃO DE BRITO JOÃO DELGADO JOSÉ NEVES LUÍS MOREIRA MAFALDA JARA MARCO TRINDADE MIRRÓ PEREIRA NUNO BERNARDO NUNO PARDAL PEDRO LUZINDRO PEDRO MENDES RICARDO NEVESNEVES RÚBEN GOMES RUI REBELO TIAGO MATIAS TIAGO NOGUEIRA VÂNIA RODRIGUES e estagiários da ESTC BERNARDO NABAIS DAMIÃO VIEIRA DANIEL VIANA DIOGO TORMENTA FILIPE VELEZ ISAC GRAÇA IVO SILVA JOÃO PEDRO MAMEDE JOÃO VENTURA PEDRO LOUREIRO RAFAEL GOMES RICARDO TEIXEIRA encenação JORGE SILVA MELO cenografia e figurinos RITA LOPES ALVES luz PEDRO DOMINGOS direção musical RUI REBELO som ANDRÉ PIRES assistência de encenação LEONOR CABRAL JOANA BARROS co produção TEATRO NACIONAL D. MARIA II GUIMARÃES 2012 - CAPITAL EUROPEIA DA CULTURA ARTISTAS UNIDOS M/ 12 2 LIONÊS MIRRÓ PEREIRA DAMA DAS CARTAS MAFALDA JARA MULHER DA VIELA DEPUTADOS. CARRASCO . PRISIONEIROS. CARROCEIROS. CARCEREIROS. JOÃO PEDRO MAMEDE. DUMAS NUNO PARDAL CHAUMETTE ESTÊVÃO ANTUNES SOLDADO.DISTRIBUIÇÃO MIGUEL BORGES GEORGES DANTON PEDRO LUZINDRO LEGENDRE. DILLON. HERMANN ANTÓNIO SIMÃO SIMON. PRISIONEIRO. IVO SILVA. DEPUTADO. MERCIER RÚBEN GOMES THOMAS PAYNE PEDRO GIL ROBESPIERRE ELMANO SANCHO SAINT-JUST GUSTAVO VARGAS BARRÈRE RICA RDO NEVESNEVES COLLOT D´HERBOIS. DEPUTADO. CARCEREIRO MARCO TRINDADE CIDADÃO. RAFAEL GOMES. PRISIONEIRO. PEDRO LOUREIRO. AMAR PEDRO MENDES PARIS. FILIPE VELEZ. CIDADÃOS. ISAC GRAÇA. TIAGO NOGUEIRA CANTOR AMBULANTE. CARCEREIRO. DIOGO TORMENTA. FABRE D´EGLANTINE JOÃO MEIRELES CAMILLE DESMOULINS TIAGO MATIAS HÉRAULT-SÉCHELLES AMÉRICO SILVA LACROIX JOSÉ NEVES PHILIPPEAU JOÃO DELGADO RAPAZ DO LENÇO. PRISIONEIRO. CARRASCO AFON SO LAGARTO CIDADÃO. CARROCEIRO 3 HUGO SAMORA FOUQUIER TINVILLE. POPULARES: PELO ELENCO E ESTAGIÁRIOS DA ESTC (BERNARDO NABAIS. TRANSEUNTE. DAMIÃO VIEIRA. RICA RDO TEIXEIRA). DANIEL VIANA. BILLAUD VARENNES. CIDADÃO. CARROCEIRO VÂNIA RODRIGUES MULHER DE SIMON JOÃO DE BRITO TRANSEUNTE. CIDADÃO NUNO BERNARDO CIDADÃO LUÍS MOREIRA CIDADÃO. DEPUTADO. LAFLOTTE RITA BRÜTT JULIE SYLVIE ROC HA MARION MARIA JOÃO PINHO LUCILE ALEXANDRA VIVEIROS ROSALIE JOANA BARROS ADELAIDE RUI REBELO MENDIGO. JOÃO VENTURA. é nela que a herança de Shakespeare é ultrapassada e o seu sopro histórico absorvido. E a mim sempre me interessaram os escritos de juventude. é a peça sangrenta de um rapaz olhando a morte.em que às cenas de multidão se sucedem as insónias mais íntimas. que ainda sangram. E A Morte de Danton é esse texto: as convulsões da História vistas por um rapaz. que ainda não encontraram o equilíbrio formal. Peça desequilibrada. é desejo profundo de quem começou a dirigir espetáculos nos velhos anos 70 daquele outro século. insólita. em que a História é vista como um pesadelo noturno. desarrumada. sanguinário também. Do jovem Brecht à jovem Sarah Kane. desalinhada . Porque é na Morte de Danton que se lançam todas as questões do teatro que depois nos viria a interessar.O ESPETÁCULO Pretender fazer A Morte de Danton. premonitória. do jovem Harrower ao jovem Fosse ou ao José Maria Vieira Mendes – tenho-me encontrado sistematicamente entre aqueles que afinam ainda a voz. Jorge Silva Melo Fotografia de ensaios © Jorge Gonçalves 4 . o enigmático texto de Georg Büchner. peça de um negro pessimismo. perplexo perante a morte. Carlos Pessoa. Ana Marques. numa tradução de Maria Adélia Silva Melo (aqui revista). e. Alice Luís. a peça conhece várias versões. Fora do mundo germânico. Jean François Sivadier (Rennes. no National Theatre. Carlos Avilez). Thomas Oestermaier na Schaubúhne (2001) ou a de Georges Lavaudant no Odéon (2002). Carlos Freixo (Lacroix). Londres. com encenação de Carlos Avilez. A Morte de Danton estreou. Pedro Oliveira. Anna Paula (Marion). Em Portugal. 2010). Filomena Gonçalves (Julie). em 1939. António Pedro Cerdeira. tendo nessa altura sido realizado um filme com Fritz Kortner. 1968). João Vasco (Robespierre) e António Marques (Georges Danton). Marcantonio Del-Carlo. em 1989. Max Reinhardt virá a estrear A Morte de Danton em 1916 e posteriormente em 1921 e 1929. Fernanda Neves (Lucile). Bruno Bayen (Théâtre de la Cité Internationale. A descoberta deve-se aos naturalistas (nomeadamente Gerhard Hauptmann e. Klaus Michael Grüber nos Amandiers em Nanterre (1989). TEC. Santos Manuel (Simon). 2005) ou ainda Michael Grandage (numa versão bastante livre de Howard Brenton. Sérgio Silva (Camille Desmoulins). Georges Wilson no TNP (Paris. Também Gustav Gründgens dirige a peça. Diogo Infante. mais recentemente. depois. com direção de Ferenc Fricsay. A peça deu origem a uma ópera de Gottfried von Einem estreada em Salzburgo em 1947. a de Giorgio Strehler em Milão. F. João Vasco (Robespierre).REPRESENTAÇÕES DE A MORTE DE DANTON A obra teatral de Georg Büchner não foi representada a não ser postumamente. cenografia de João Quintão e interpretação de: António Marques (Danton). em A Morte de Danton (enc. 1989 © César Cardoso 5 . as de Alexander Lang no Deutchses Theater de Berlim (1981). 1948). Paulo B (Saint Just). aos expressionistas. nomeadamente a encenação de Jean Vilar (Avignon. 1971). aos 23 anos. emergindo de uma época particularmente problemática e dramática na história dos movimentos democráticos no ocidente. que se volta contra o poder exercido pelos seus correligionários (nomeadamente Robespierre) e tenta parar as medidas atrozes que trazem tanto sofrimento ao povo. consolidar o seu poder e chacinar inúmeros milhares de homens. após sofrer de uma das “febres” generalizadas do seu tempo. aos 18 anos. influenciou um espectro incrivelmente largo de práticas teatrais. onde continuou a sua formação na Universidade. traça a queda do espírito democrático. A sua pesquisa para a peça começou no final de 1834 e completou a primeira versão em 5 semanas já em 1835. uma pequena cidade perto de Darmstadt. muito após a morte de Büchner. Apesar de. No final. desde a sua redescoberta por Gerhardt Hauptmann nos finais do século XIX. Isto levou a que trocasse a Alemanha por Zurique. Danton é levado à guilhotina. Georg. mulheres e crianças franceses. que tem lugar depois da decapitação de Luís XVI e Maria Antonieta. na Alemanha. A peça só estreou em 1902. Os assuntos em A Morte de Danton são subtis e caracterizados com mestria. De génio científico brilhante. com 21 anos. A Morte de Danton confronta-nos com os problemas mais graves da ideologia e da crença. Morreu a 19 de fevereiro de 1837. Dois anos mais tarde. A ação. a 17 de outubro de 1813. um poderoso e carismático orador e líder das forças antimonárquicas pós-revolucionárias. nasceu em Goddelau. A Morte de Danton é a primeira peça escrita por Büchner. e envolveu-se profundamente nas lutas políticas do seu tempo. o seu trabalho ter tido pouco impacto. a sua atenção virou-se para a história e a filosofia. Büchner escreveu algumas das peças mais influentes da história do teatro ocidental: A Morte de Danton (1835). a era da Revolução Francesa e do Terror. a partir das alturas do idealismo até às profundezas do desejo vingativo e sanguinário. provavelmente tifo.GEORG BÜCHNER STANLEY KAUFFMANN Filho de um médico ilustre. Robespierre impede-o e usa o Tribunal para condenar à Danton e toda a oposição à morte. decidiu começar a estudar medicina em 1831. Leôncio e Lena (1836) e o inacabado Woyzeck (1837). na altura. A peça acompanha a história de George Danton. 6 . contudo. influenciado pelo pai. do existencialismo do século vinte. A peça poderia igualmente chamar-se Danton a Morrer. A Morte de Danton é a primeira peça a começar depois do seu clímax. manifestando-se com impaciência. desprezando a prática teatral corrente. que põe a nu o idealismo narcótico da ação pública. 7 . Assim. o assunto está estabelecido na sua mente. já que a peça que é precursora. politicamente rebelde. a intenção dramática inconvencional de Büchner forçou-o a prescindir das estruturas clássicas dos seus adorados Shakespeare e Goethe e a moldar a sua peça de uma maneira tão inovadora e explorativa como o seu pensamento”.“Büchner. de uma corrente de cenários que agora associamos ao cinema e que parecia estar. no entanto. (. desde o primeiro momento da peça. de um ritmo de progresso. A estrutura tradicional teria sido limitadora. queria claramente que a forma da sua peça se ajustasse às suas visões radicais das personagens. na posse de Büchner. (…) “A peça depende de um andamento. filosoficamente.. O destino do protagonista – a sua execução pelo grupo de Robespierre – já está mais que decidido antes de a peça começar. e que explode com as injunções aristotelianas. Ele vai morrer.) Büchner. Ele tenta defender-se devido à pressão dos seus amigos. da política e da história.. antecipadamente. apaixonadamente humano. que vivemos num mundo imerso em cinema.) Ao longo da peça... Estas vidas já tinham estado a acontecer durante algum tempo: nós apenas nos juntamos a elas. A cena um não começa com o estabelecimento de tempo ou espaço – estes vão-se infiltrando à medida que avançamos – mas com o sentido da nossa entrada num cenário de vidas em progresso. in Büchner: A Revelation. Stanley Kauffmann. cenas longas e curtas. ao cinema – era rudimentar num teatro que ainda não tinha. (.ultrapassou-a: respondeu a uma estética que ainda não existia..) A peça ainda nem tem um minuto e já nós estamos completamente imersos nela. (.) A ideia da fusão de cenas através de mudanças de luzes e focos.. usado aqui com um propósito excecional. ativas e introspetivas quase se atropelam umas às outras (. Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves 8 .. Consideremos alguns pormenores. conseguimos reconhecer o processo. algo muito familiar ao teatro de hoje – e. A peça não começa. claro. a iluminação elétrica”. nem tinha sequer concebido.. Nós. Hoffman 9 . Caroline. capital do Grão-Ducado de Hessen- Darmstadt. Hesse. todas exceto uma – a mais velha das duas raparigas – se distinguiram nas suas variadas áreas. 1825 Depois de receber instrução primária em casa com a mãe e também numa escola privada local. particularmente Ludwig. o segundo mais novo. mais tarde entrou ao serviço do grão-duque e conquistou por fim o título de Obermedizinalrat.GEORG BÜCHNER: CRONOLOGIA 1813 18 de outubro: Karl Georg Büchner nasce em Goddelau. o primeiro filho de Ernst Karl Büchner e da sua mulher. Georg Büchner. gravura de Aimbach a partir de retrato de A. Ernst Büchner era médico. Büchner começa os estudos secundários no Ludwig-GeorgGymnasium em Darmstadt. 1816 A família muda-se para Darmstadt. O casal teve mais cinco crianças. que popularizou a filosofia materialista). que se tornou muito mais famoso que Georg no século XIX graças ao seu livro Kraft und Stoff. (Dando seguimento a uma tradição de muitas gerações. Fins de novembro: ataque de meningite. núcleo revolucionário que incluía tanto trabalhadores como membros da classe média. Junho: A Morte de Danton é publicada em edição expurgada. em Woyzeck. tendo lido excertos na Sociedade de História Natural de Estrasburgo. funda uma segunda secção em Darmstadt. Fins de março: escreve uma primeira versão daquilo que viria a ser O Mensageiro de Hesse e funda a secção de Giessen da sua Sociedade dos Direitos Humanos. 1810-1880). 1834 Entre fins de fevereiro e inícios de março: sofre sérias crises de doença que afetam o seu equilíbrio físico e mental. afinal. Setembro: Büchner abandona Giessen definitivamente e volta à segurança relativa da casa familiar em Darmstadt. e começa um noivado secreto com a sua filha Minna (Louise Wilhelmine. Pietro Aretino. Inícios de março: foge para Estrasburgo (rapidamente seguido.1831 outubro: tendo deixado a escola em março. A meio de março (ou talvez mais cedo): a carta “hediondo fatalismo” para Minna. Wilbrand. no qual Büchner trabalha alternadamente em Leôncio e Lena. e assim ingressa em outubro na Universidade de Giessen. 1836 31 de março: após agitados meses de trabalho. neste período foi também provavelmente chamado a depor. em abril. Aloja-se em casa de um pastor protestante viúvo. na província do Alto Hesse. Johan Jakob Jaeglé. Büchner escapa à prisão pela sua posição social e familiar. 1833 Regulamentações governamentais obrigam Büchner a prosseguir os estudos no Grão-Ducado. num projeto de várias conferências filosóficas e na “Lição Experimental” de Zurique. em abril e princípios de maio. Entre junho e outubro: outro intenso período de trabalho. por uma nota de captura). B. Büchner completa a tese em Biologia. 1835 Entre fins de janeiro e fins de fevereiro: Büchner termina A Morte de Danton “em cinco semanas no máximo”. Agosto: Carl Minnigerode é preso com grandes quantidades de recentes cópias impressas de O Mensageiro de Hesse. o grande químico Justus von Liebig e J. Büchner torna-se aluno na Faculdade de Medicina da Universidade de Estrasburgo. terá também possivelmente planeado. redigido e terminado uma outra peça (de que não ficou rasto). 10 . um dos expoentes máximos da Naturphilosophie). Outubro: Lenz está provavelmente concluída. (Entre os seus professores. 1837 2 de fevereiro: Büchner adoece. tendo por base a Memória sobre o sistema nervoso do barbo. é-lhe diagnosticada febre tifoide. continua a trabalhar em Woyzeck. Büchner viaja para Zurique com o objetivo de se tornar um Privatdozent na Faculdade de Filosofia da Universidade (que incluía Anatomia Comparada). Büchner morre a 19 de fevereiro. Minna Jaeglé chega de Estrasburgo. 19 de outubro: após o seu vigésimo terceiro aniversário. Fotografia de ensaios © Jorge Gonçalves 11 . nas semanas seguintes dá o seu primeiro curso.Setembro: Büchner doutora-se pela nova Universidade de Zurique. “Anatomia comparada dos peixes e anfíbios”. 5 de novembro: apresenta a sua “Lição experimental” e é formalmente aceite no cargo. A 17 de fevereiro. celebrado no dia anterior. Gunter Grass da sua força “incendiária”. as suas peças foram chegando aos palcos: Leôncio e Lena em 1895. de entre os quais o mais novo viveu até ao século 12 . Se ele tivesse chegado aos setenta anos (como o seu pai e quatro dos seus irmãos. De repente Georg Büchner era um clássico. Mas apesar de existir acordo universal em relação ao poder e imediaticidade da voz de Büchner. Isto é pouco surpreendente. Uma a uma. tendo em conta variados fatores que transformam Büchner num foco natural de controvérsia. para Christa Wolf. a sua “experiência fundamental” na literatura germânica. começaram a responder à sua voz e a reconhecer a sua modernidade surpreendente. Quando morreu em 1837. periférico e frequentemente dúbio. têm havido pequenas disputas acerca do que essa voz realmente diz. Meio século depois ele não era certamente mais conhecido: apesar de a maioria dos seus escritos terem aparecido. temos a "pequenez" de escala e a interrupção precoce da sua produção. Wolf Biermann foi mais longe.A MORTE DE DANTON Georg Büchner é possivelmente o mais extraordinário fenómeno da literatura moderna alemã. Começando pelo mais óbvio. descrevendo-o simplesmente como “o maior escritor” da Alemanha (“unser grofter Dichter”). Woyzeck em 1903 (e a ópera de Alban Berg. de uma forma ou de outra. Outros escritores. As edições começaram a seguir-se. Mais tarde. O gotejar inicial de monografias e teses transformou-se num rio. Nenhum outro escritor é tão entusiasticamente saudado pelos seus sucessores contemporâneos: Heinrich Boll falou da sua “singular relevância”. com apenas vinte e três anos (vítima de uma epidemia de tifos). e depois numa cheia. a perceção alterou-se. ele era – e é –. uma presença viva. Mais nenhum escritor alemão antes de Brecht tinha apreendido tão vivamente a imaginação moderna – ou é representado com mais frequência tanto na Alemanha como no estrangeiro. Mas mais importante que isso. mas como um pedaço obscuro da história. Wozzeck. “a prosa germânica começa com o Lenz de Büchner” – que constitui o seu “ideal absoluto”. Ele chocou completamente com a consciência do seu próprio século. pelo final do século. tinham causado pouco impacto. em 1925). ele era mencionado na maioria dos manuais literários e enciclopédias. A Morte de Danton em 1902. era praticamente desconhecido fora dos seus círculos – o que não é surpreendente tendo em conta que apenas uma obra tinha sido publicada com o seu nome (uma versão expurgada de A Morte de Danton). em particular. incompletos e muitas vezes elegíveis. ou então em versões impressas que foram por variadas vezes mutiladas. expurgadas. eles sobreviveram – se de todo – apenas em manuscritos rasurados. mais de um século e meio após a sua morte. Parece dificilmente credível. Tendo em conta a forma como tudo aconteceu. truncadas.XX). não existe ainda uma edição Histórico-Crítica definitiva da obra de Büchner. mas mesmo hoje em dia. sendo também quase inteiramente póstumas e não autorizadas. Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves 13 . os seus escritos mais prematuros não teriam sido apenas finalizados e publicados. contextualizados como parte de uma muito maior obra. mas também. provavelmente. Mas a mais explosiva de todas é talvez a questão política. etc. há outro elemento muito mais fundamental no trabalho de Büchner que encoraja a controvérsia.se de alguma forma apenas sob formas cortadas cuidadosamente extraídas e possivelmente inofensivas). que é a própria natureza da sua escrita – a linguagem. negados. desde uns num extremo que encontram um revolucionarismo militante destemido em qualquer fase da sua escrita. é profundamente nãoe mesmo anticlássica. semelhante ao agnóstico e ao ateu. Pela imagem oscilante que a sua escrita projeta. Uma e outra vez. E no processo serviu para trair a visão de inúmeros críticos. e ao ressurgimento e emancipação da viciosamente explorada massa popular. desafiados. àqueles no extremo oposto defendendo que a sua experiência desagradável o tinha impulsionado para um "niilismo absoluto".não apenas forçando-o ao exílio no estrangeiro). À parte da escassez e incerteza do estado dos textos. um revolucionário dedicado que – embora tenha entrado no panorama como propagandista militante e ativista apenas durante um curto período de tempo – manteve-se notavelmente comprometido durante o resto da sua vida à violenta subversão daquilo a que assistiu enquanto membro da incapaz classe dirigente.Depois. A religião é também um tema persistentemente irritante. com a sua imagem da duplamente "pretty lady" que oferece o seu coração ao marido e a cona aos amantes. que tinha sequencialmente contribuído para a sua completa despolitização. Este é um homem que foi indiscutivelmente o pensador esquerdista mais radical da sua época em terras germânicas. Mas tem havido uma particularmente feroz controvérsia sobre a dedução das políticas dos seus escritos (quase todos eles nascidos após o fiasco de O Mensageiro de Hesse. (Os dois extremos são hoje bastante desacreditados). Tanto na linguagem como 14 . parasita e ilegítima. Tendo em conta a escassez e caráter duvidoso das evidências diretas. modos e estruturas que ele usa para expressar as suas preocupações. para começar: a partir das primeiras linhas de A Morte de Danton. assim como conscientemente longínqua das convenções e expectativas prevalecentes na sua época. como as cartas de Büchner (a maioria das quais sobreviveram . e da natureza inflamatória das questões lá contidas. como reminiscências de amigos e conhecidos. há também a natureza provocatória dos seus temas e preocupações. As interpretações nesta área têm diferido de forma muito radical. Deus e os espíritos são invocados pelas suas personagens. os deuses. O sexo. há uma considerável margem para argumentos até relativos às suas atividades precisas e posicionamento nas macro e micro realidades políticas da época. para serem desprezados. que afetou profundamente o decorrer da sua vida . registos de tribunal. e também das evidências indiretas. as "obscenidades" de Büchner garantem-lhe o título de "enfant terrible". ficheiros de polícia. rogados – servindo assim como um desafio constante ao crente. Mas isto também o torna especialmente difícil de interpretar. representando aquilo a que se tem chamado a "lei da descontinuidade". mistério e paradoxo. ele não oferece desenvolvimentos fixos e constantes.no humor. no máximo um estado transitório. Em vez de uma revelação que se dá a um ritmo claramente medido. Reside aqui o ponto alto da sua espetacular modernidade: aquilo que ele já faz nos anos 30 do século XIX irá parecer chocantemente original quando praticado pelos pintores. Em particular. no enredo ou nas personagens. resolvida ou unificada. nada que indique qualquer coisa cíclica. ou em aglomerações díspares e combinações que criam uma ideia constante de polivalência. Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves 15 . compositores e escritores mais avant-guardes do início do século XX. coloca o problema da perspetiva: sendo tão díspares e discretos. A totalidade (“wholeness”) – quando aparece – é sempre falsa: uma pretensão. uma ilusão. os elementos do seu trabalho mudam de aspeto e de importância aparente de forma muito radical quando encarados de diferentes pontos de vista. os seus trabalhos progridem através de uma sucessão de convulsões caleidoscópicas. São sempre partículas que tecem grandes e discretos elementos que ele salienta num isolamento surpreendente. No início de Lenz encontramos a mesma imagem essencial durante as loucas viagens do protagonista pelos Vosges: “Sentia 16 . mas quase sempre uma totalidade que é pungentemente elusiva: isto foi mas já não é. mais vistosos serão eles na sua invocação do todo – um padrão surgiu nas primeiras páginas do seu trabalho. Uma e outra vez. não posso abarcá-la toda?”. mas nunca num início. como já foi sugerido. Há uma consistência e unidade subjacentes em Büchner. um revolucionário Jacobino programático. Mas quantas mais reentrâncias existirem nos fragmentos desses mosaicos. ou vai ser mas ainda não é. O seu trabalho começa. é o que ele diz (…). a sua escrita é como um género de "happening". vemos uma complexidade magnífica – mas uma complexidade semelhante a uma fuga barroca com a sua rica mas contida elaboração de lúcidos temas préestabelecidos. É pena que a natureza tenha desmembrado a beleza (…) e depois dispersado os elementos pelos corpos mais diversos”. quando uma sua personagem em A Morte de Danton usava os seguintes termos para definir a busca do protagonista por entre as tartes do Palais Royal: “Anda à procura dos bocados da Vénus de Médicis (…). até definidora. uma busca constante. Minutos mais tarde o tema ecoa e é intensificado na resposta terna de Danton a Marion com o seu duplo enfoque na “totalidade” e na respetiva impossibilidade de alcance: “Porque é que não posso absorver a tua beleza. Em vez disso.É escusado dizer que a descontinuidade sistemática de Büchner não é um acidente – e não é certamente. mas só podem ser encontradas dentro e através das multiplicidades do seu trabalho – e não apesar delas. um fatalista programático. Ele nunca se preocupa com o atingir de conclusões ou soluções. do seu trabalho. em qualquer área da sua existência – a sua política. um cristão programático. a sua estética. ou como o fixar definitivo de uma posição. uma promulgação dinâmica do próprio processo de argumentação e conflito. Muitos críticos caíram nesta tentação. mas só pode ser possuído parcial ou transitoriamente. a sua ciência. daí a persistente deturpação de Büchner como sendo variavelmente um pessimista programático e niilista. mas nunca a uma conclusão. uma marca de imaturidade – mas uma característica central. faz um mosaico. Isto consegue facilmente provocar-nos alegria mas perplexidade – e deixar-nos propensos ao entendimento de alguns elementos discretos e particulares como a soma do todo. ou – a mais pungente de todas – isto é no presente. Se olharmos para um exemplo do classicismo germânico como Maria Stuart de Schiller. A abordagem de Georg Büchner é fundamentalmente diferente. da colisão e interação de possibilidades contrárias. a sua escrita poética – encontramos um sentido ardente de totalidade. Ajuda se identificarmos qual é certamente o paradoxo dos paradoxos em Georg Büchner: o seu modo disjuntivo com a sua insistência implacável nos fragmentos e partículas é sempre a expressão de uma radiante visão da totalidade. ele chega a um fim. Büchner é assim forçado a ser um fazedor de mosaicos. Apenas isto é já suficientemente surpreendente. irrompendo contra mim. ele declara. ou – acima de tudo – as palavras 17 . as cores separadas do arco-íris. Mas aqui. ou as palavras climáticas de Leôncio (logo a seguir ao seu “Mais é impossível”): “Do caos nasce a criação. É possivelmente apenas contra este fundo que apreciamos verdadeiramente a ânsia por beleza atribuída a Danton quando este contempla Marion. Sumarizando a história recente da anatomia comparada. Em Leôncio e Lena é a totalidade do amor que é fragmentada. por toda a sua suprema complexidade. a ênfase nos fragmentos implica uma crença na totalidade. estendia-se na terra. tão radiante de beleza”. uma “lei primordial” que molda e forma o “mundo orgânico inteiro”. de provar a hipótese segundo a qual o crânio. no qual “as formas mais elevadas e mais puras” são desenvolvidas pela natureza de acordo com “o plano mais simples”. ele é agora muito mais explícito. mas mais surpreendente ainda é a proposta de Büchner segundo a qual essa “lei primordial” assumida é nenhuma outra que não a “lei da beleza”. tendo a 5 de novembro 1836 apresentado competentemente a sua “Lição Experimental” (um requerimento obrigatório para a confirmação de posições como esta). Nas últimas linhas da sua Memória ele deu a entender a sua visão do mundo natural enquanto um grande todo harmonioso no qual mesmo as mais complexas entidades derivam de um “tipo primitivo”. E assim. A sua tese de Estrasburgo sobre a anatomia do barbo. ele tinha acabado de embarcar numa promissora carreira na nova Universidade de Zurique. na “Lição” e na Memória. tão viva e nova. No coração da natureza. A frase final da Memória ecoa especialmente na “Lição”. Memória sobre o sistema nervoso do barbo. salienta que “tudo estava a lutar na direção de uma certa unidade. mas onde ele se conteve na Memória a citar a Natureza como o agente deste processo. concedeu-lhe não apenas o doutoramento em Zurique mas também a oferta de um cargo de docência como Privatdozent. se teriam desenvolvido originalmente a partir das estruturas relativamente simples das vértebras). receber todas as coisas. tem de haver uma “lei fundamental”. A centralidade desta visão de Büchner da totalidade torna-se clara mesmo quando percebemos que também está presente no coração do seu trabalho enquanto “cientista-filósofo”. em direção à investigação de todas as formas desde o tipo mais simples e primordial” (e isto era a essência da sua tentativa. como sempre. Quando morreu em fevereiro de 1837. No prefácio da “Lição Experimental” ele expande-se neste tema. cavava uma passagem no universo”. quando Büchner fala das “formas mais elevadas e puras” como sendo produzidas a partir dos “mais simples contornos e padrões”. cérebro e nervos cranianos.dever atrair a si a tempestade. despedaçada nas notas separadas da escala musical. é precisamente a experiência de Leôncio de um amor que inspira a totalidade do ser que é celebrada no intenso mas efémero clímax da peça: “Todo o meu ser está neste mesmo momento… Mais é impossível”. que produz necessariamente “harmonia”de entre todas as suas manifestações. A angústia rouca tão comum na escrita de Büchner não nega ou desmente esta crença na beleza fundamental e na ordem: deriva inteiramente dela. pode parecer perfeitamente desconcertante. eternamente mutável e novamente revelada”. mas por outro as visões de desespero tão frequente e eloquentemente projetadas nos seus trabalhos poéticos – o isolamento aterrador do anti-herói no final de Lenz. Apenas uma coisa permanece: uma beleza infinita que passa de uma forma a outra. o famoso grito de Danton “O mundo é caos. Mas o paradoxo é mesmo esse – um paradoxo.concedidas a Lenz no decorrer da mais famosa declaração de Büchner sobre uma posição estética: “As imagens mais bonitas. os medos de Leôncio. unem-se. Ainda que não consideremos esta perspetiva tradicional (entretanto caída em desaprovação). Fotografia de ensaio © Jorge Gonçalves 18 .B. A solicitação de Büchner na “Lição Experimental” por uma ordem abrangente de rica simplicidade. impulsionada pela beleza e harmoniosa nas suas ações.Benn). com a possível exceção de Schopenhauer” (M. vinda de um homem que durante décadas foi quase universalmente representado como um pessimista ou niilista supremo. não é uma contradição. ou da criança no “anticonto-defadas” de Woyzeck. de que todas as imagens do nosso eu e do mundo possam ser meros delírios que mascam uma realidade de puro vácuo. as harmonias mais ressonantes. Os exemplos poderiam ser multiplicados. insignificância devido a Messias”. deparamo-nos ainda com um paradoxo estridente subjacente aos próprios textos: por um lado a bela ordem e a harmonia tão calmamente propostas na “Lição Experimental”. dissolvem-se. como dono de uma “forma extrema de pessimismo” que é “mais profunda e obscura que qualquer outra na anterior história do pensamento alemão. Há um ouvido interior que ouve o clamor e a discórdia. ecoando em contínuo. ainda mais ruidosamente discordante. o vento em expansão ressoa à semelhança do seu melodioso passo”. e eu ouvi a mesma velha melodia no órgão a tralala e vi os pequenos dentes e os cilindros a zumbir na caixa do órgão – eu amaldiçoei o concerto. Minna Jaeglé. À semelhança de tantos outros escritores prévios pertencentes ao período febril que começa no Sturm und Drang. por contraste. que pobres músicos gritantes somos nós – será possível que os nossos gritos de agonia na estante apenas existam para ressoar através de brechas entre as nuvens e. entre os homens. Encontramos precisamente este contraste numa das mais pungentes cartas de Büchner à sua amada noiva. Os “cadáveres” falavam e moviam-se. a fé e a visão subjacentes a elas são largamente fundamentadas num Zeitgeist que estava já desatualizado quando Büchner o abarcou. até ao momento em que o ar primaveril o libertou e lhe deu vida outra vez. quando toda a maquinaria começou a trabalhar com membros que se sacudiam e vozes dissonantes a chiar. e os transforma numa torrente de harmonia. ele tinha sido há muito trespassado por um género de rigor. por uma impressão de estar já morto. onde “Um único tom ressonante vindo de uma centena de cotovias estoura através do melancólico ar de verão. ele continua. em que nos aturdimos. E é esta mesma trágica antífona que Büchner usa nove meses depois para iniciar o grande clímax de ópera em A Morte de Danton: PHILLIPPEAU: Meus amigos. o vento e as cotovias e a sua melodia libertadora. enquanto tudo à sua volta se assemelhava a cadáveres com olhos de vidro e bochechas de cera. não temos de nos erguer muito acima da terra para perder de vista todo este vacilar. É assim o vibrante e bonito presente de Büchner. todas estas incertezas e encher os olhos de uns grandes contornos divinos. conta a Minna. passando pelo classicismo de Weimar e culminando no romantismo alemão. a caixa.A este respeito ele é inesperadamente antiquado: considerando que Lenz e as três peças são magnificamente modernistas na sua articulação. a melodia – oh. uma raspagem mecânica e mortífera. escrita em março de 1834 quando este recuperava de um período de severa doença – e severa crise pessoal. Ele tinha “acabado de voltar do exterior”. morram como um suspiro melódico em ouvidos celestiais? . um pesado pedaço de nuvem vagueia pela terra.Uma antífona enervante: na natureza. ele foi abençoado e amaldiçoado com uma visão idealista da totalidade e harmonia essenciais – mas num tempo em que a realidade prevalecente era. 19 . e com esta descrição Büchner lança-se num dos seus característicos e emocionantes compassos de desespero: Então. gritos tortuosos extraídos talvez por qualquer divindade distante para sua excitação privada. Mas. as suas reivindicações pela verdade apenas um conjunto de ficções arbitrariamente construídas por e na mente lógica. Este domínio primário do Ser é não apenas independente dos processos do pensamento racionalista mas também – de acordo com o entendimento radical de Büchner – inteiramente inacessível a ele. Isto 20 . todo o edifício do racionalismo Cartesiano parece subitamente falso. continuando: “A filosofia a priori ainda habita um desolador e árido deserto. tão longe da “corrente de harmonias”. existe uma longa distância a separá-la da vida verde e fresca. o Ser autêntico e a sua inacessibilidade à racionalização. dessa “harmonia necessária” supostamente inscrita na natureza pela lei primordial da beleza? A imagem de deuses sádicos que forçam em nós a discordância para seu bel-prazer é mais um florescer retórico que uma afirmação séria. Büchner defende que ainda nunca se teria provado ser possível "colmatar o fosso entre [o dogmatismo dos filósofos racionalistas] e a vida natural tal como a apreendemos diretamente". Büchner sugere que a lógica racionalista não pode sequer lidar adequadamente com os abismos especificamente filosóficos sobre os quais afinal foi inteiramente construída. Büchner parece encontrar as razões verdadeiras entranhadas na própria humanidade – e mais particularmente na influência indevida da Mente e dos sistemas artificiais. distante da realidade vivida. um aspirante a académico que queria acima de tudo ensinar filosofia na Universidade de Zurique. O que importa é o nosso Ser. um intelectual voraz. Esta ideia da existência de um abismo absoluto entre o racionalismo e a Vida em todo o seu vigor e exuberância diretamente apreensíveis é exatamente o que dá alma às críticas fundamentais de Büchner a Descartes e ao seu cogito ergo sum. Outro paradoxo ainda é o facto deste homem. assim como uma espontânea e natural "consciência de que o eu existe". um herdeiro do Iluminismo. Tiramos deles estes acordes terríveis só para subirem cada vez mais alto e se perderem envolvidos num suspiro de volúpia nos ouvidos celestiais? Surge assim a questão: porque nos transformámos nós em tão “pobres músicos”. diretamente intuída. Tanto o desprezo como os seus fundamentos estão muito claros no prefácio à "Lição Experimental". um dedicado investigador científico. Tendo em conta a primazia desta “não-mediação”. A característica definidora do Ser é a sua imediaticidade: concede-nos verdades e conhecimentos "imediatos" (ou "não-mediados"). e é altamente questionável se algum dia preencherá essa lacuna". Indo ainda mais longe. e especialmente das suas manifestações na filosofia racionalista. Numa passagem crucial do seu longo e complexo comentário à filosofia de Descartes. o pensamento não é mais que uma "atividade secundária". tenha sido no entanto tão profundamente suspeito e desdenhoso da razão humana.DANTON: Mas nós somos os pobres músicos e os nossos corpos são os instrumentos. ele distingue categoricamente entre "ser" e "pensar". para ser uma "ponte" entre o eu e o mundo.aplica-se com força particular às supostas provas de Deus. uma "escada" para fugir ao "túmulo da filosofia". uma corda para escalar o "abismo da dúvida"." Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves 21 . um dispositivo especialmente maquinado para "preencher o abismo" entre pensamento e conhecimento. / As nossas emoções? Elas conhecem a dor. tem de admitir a existência Dele. nada nos convence a aceitar essa lógica por si só. Assim. o Deus de Descartes é para Büchner um puro mecanismo de expediente. Mas o que é que nos prova ao construirmos esta definição? / A nossa mente? / Ela conhece a imperfeição. na verdade ela é contrariada pela experiência primária da nossa mente e das as nossas emoções: "Assim que alguém entra na definição de Deus. Num outro momento ele defende que enquanto a lógica da prova de Deus de Descartes pode ser convincente nos seus próprios termos. maioritariamente deve celebrá-lo negativamente pela sua ausência – através da lamúria rapsódica ou sardónica da 22 . destacadamente próxima da mais revolucionária e influente teoria biológica do século XIX: A Origem das Espécies. dentes e cilindros". o ser humano é "l'homme machine". Isto é particularmente claro dentro da área da biologia de Büchner. de acordo com o seu princípio único de “a melhor aptidão possível para cada intenção”. e na "Lição Experimental" usa exatamente o mesmo tipo de vocabulário para atacar o funcionalismo frio e redutivo daquilo a que ele chama de escola "teleológica" em fisiologia e anatomia. o tratado de Descartes sobre a psicologia.Mas porque interessariam estas questões? Porque não poderá o racionalismo ser deixado aos seus próprios dispositivos no seu deserto de abstrações? Reside aqui um problema crucial para Büchner: apesar do quão remota possa estar a sistematização cartesiana da "vida verde e fresca" como nós diretamente a apreendemos. partindo de uma matriz de simplicidade essencial. de Charles Darwin. as suas construções falsas – e outras de tipo similar – são ameaçadoras de prevalecer. mas sugiro que é também a crença no coração de toda a produção de Büchner. Isto torna-se graficamente claro quando nos apercebemos que a visão deles de um organismo vivo era a de "uma máquina complexa provida de dispositivos funcionais que a permitem sobreviver durante certo período de tempo". Sob a enfraquecida mão de Descartes. nobre. Estava a lutar uma batalha perdida: os "teleologistas" estavam em sintonia perfeita com uma era cada vez mais conduzida pelo funcionalismo de qualquer tipo. O problema é que ele pode celebrar isso positivamente pela sua presença gloriosa apenas por raras e fugazes ocasiões. Para Büchner. Esta é a crença encerrada no centro da "Lição Experimental". bela. inspirada e harmoniosa. o corpo vivo é reduzido a mera máquina composta por porcas e parafusos. existe por sua própria causa". Esta é possivelmente a sua crítica mais crucial aos "teleologistas" que. Na sua escrita poética. Apesar de tudo. assim como na sua filosofia científica ele mantém sagrada a plenitude da Vida natural e “não-mediada” e a sua rica manifestação no ser de cada indivíduo. Ele realça que em De homine. de "aparatos" mecânicos. e a sua asserção segundo a qual as criaturas mais adaptáveis e melhor equipadas seriam as que sobrevivem na "luta da vida" – de facto um grito longínquo da crença inspiradora de Büchner (presente na sua Naturphilosophie) numa lei primordial de beleza que produz uma riqueza perfeita. são ameaçadoras de condicionar a nossa compreensão e forma de lidar com o mundo. ele mantém-se fiel à sua crença antiquada – e particularmente ao seu entendimento do valor absoluto do individual. em contraste – e esta é indiscutivelmente a declaração mais ontologicamente poderosa de toda a sua obra – "Tudo o que existe. sublime. uma colagem "artificial" de "parafusos. entendem o individual "apenas enquanto algo que deve atingir um propósito para além dele próprio". protagonistas paralisados ou excitados pelo facto de saberem e verem muito para além daquilo que seria bom para eles. Daí o escárnio ao racionalismo na figura do Rei Peter (Leôncio e Lena). recusa. ao cientismo consumado no maníaco “Doutor-Professor” (Woyzeck). quase por definição – cujas mentes são demasiado ativas. Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves 23 . supressão. Simultaneamente ele também se fixa repetidamente nos protagonistas – todos eles homens. A sua vitalidade e multiplicidade podem apenas ser verdadeiramente apreciadas dentro das suas palavras – e o propósito desta edição é deixá-las falar por elas mesmas em todo o seu vigor e profundidade admiráveis. às ambições jacobinas para reestruturação da humanidade (A Morte de Danton). ao moralismo no Capitão (Woyzeck).sua perda. expõe publicamente de forma inflexível qualquer tentativa de subordinar a vida aos sistemas – especialmente sistemas intelectuais. Particularmente. Georg Büchner é um dos mais elusivos e desafiantes escritores. ao reducionismo chocante nas artes contemporâneas (A Morte de Danton). na melhor apenas parte da história. Mas todas estas reflexões são na pior das hipóteses enganadoras. A neurastenia tenta ocupar o teu lugar. em vez de uma ação que se desenrola. a voz saía aos guinchos e eu ouvia a eterna cantilena do realejo. diz Laflotte. Sofrer é um pensamento insuportável: “Não tenho medo da morte. Esta presença constante da morte encontra um eco na correspondência de Büchner quando tem de sair de Estrasburgo e regressar a Hesse: é assaltado por interrogações sobre o sentido da vida. cuja caixa deixava à mostra os pequenos rolos a girar e as pequenas 24 . gostaria que fôssemos mudos. Todos os seres me revelavam um rosto doentio. fastidioso (…). e são evocados através das mais diversas expressões e metáforas: a morte seria uma “doença que faz perder a memória”.OS ÚLTIMOS SOBRESSALTOS DA VIDA JEAN-LOUIS BESSON Em 1835. os ambientes mais mesquinhos. Tudo é “pequeno e acanhado. os últimos sobressaltos e os últimos estertores que precedem a morte”. olhos vítreos. quando a crise atinge o paroxismo. e quando depois todo esse mecanismo começava a exprimir-se. A natureza e os homens. esmagador. entrego-me a ela o dia inteiro”. O que o rodeia em Darmstadt parece-lhe “medonho. se intensifica e enfraquece. Passado um mês. Em fevereiro de 1834 acrescenta numa carta à noiva: “Estou só como se estivesse no túmulo (…). da dor sim”. diz Danton a Lacroix. “A melhor morte é um ataque de apoplexia. gritamos uns com os outros como se fôssemos surdos. O sofrimento e a morte ocupam um lugar preponderante no drama. ela é chamada “a dona Putrefação”. a ponto de se ter falado de uma profunda depressão. pelos quais não consigo sentir o menor interesse”. Karl Kutzov notava já que Büchner tinha escrito “em vez de um drama. afirma ainda: “A sensação de estar morto não me largava. o deserto em todas as cabeças e em todos os corações”. refugia-se no trabalho e “lança-se com todas as forças na filosofia”. ou preferias adoecer primeiro?”. quando as articulações estalavam. faces macilentas. e sente-se “completamente só”. os meus amigos abandonam-me. assim só poderíamos olhar-nos. e nestes últimos tempos mal posso olhar para alguém sem que me venham as lágrimas aos olhos (…). “o grande manto debaixo do qual se apagam todos os corações e todos os olhos se fecham”. ela “é o único pecado e o sofrimento o único vício”. Camille. pois a sua essência eterna é contrária à ideia de Criação. Depois de ter tentado demonstrar que Deus não pode existir. a questão do sofrimento é debatida sob a forma de uma discussão filosófica entre diferentes presos. e depois de ter perguntado se uma causa perfeita podia criar algo de imperfeito. Lacroix. a melodia. mas em muitos pontos separado das apostas desta última. e… ah! pobres músicos esganiçados que nós somos. 25 . e daí o grande desfasamento entre esfera pública e esfera privada. os detidos trocam opiniões sobre a não-existência de Deus. Podemos negar o mal. Como se Büchner tivesse querido mostrar que o sofrimento profundo do ser era exacerbado pela sua ação na História. só assim se poderá provar a existência de Deus. irem morrer como um sopro melodioso em ouvidos celestes? Seríamos nós. Na peça. no ventre ardente do touro de Perillos. O facto de esse discurso estar repartido entre os dois campos tende a provar que as coisas não são bem assim. Robespierre. Existe na peça um desfasamento entre a distância que Büchner toma em relação às suas personagens no campo da ação política e a empatia que sente quando se trata do fundo íntimo do ser. a caixa. A questão das orientações políticas e a da experiência existencial cruzam-se. o sentimento revolta-se contra isso. a vítima cujo grito de morte soa como a explosão de alegria do deus touro a arder nas chamas?” Não é difícil detetar aqui certos motivos de A Morte de Danton. Ora ele coloca-os indiferentemente em qualquer campo: Danton. será possível que os nossos gemidos no cadafalso estejam lá apenas para passar através das nuvens e. influenciando-se mutuamente. ressoando ao longe. mas não a dor. Liderados por Payne. Espinosa tentou-o. Büchner recordou-se ou inspirou-se nos seus negros pensamentos. Só a razão pode provar a existência de Deus. mesmo que a peça tenha sido escrita mais tarde. Payne faz um desmentido da Teodiceia. como se se tratasse de um sentimento geral e não apenas de características individuais. e atribuiu às suas personagens angústias e pensamentos profundos que se assemelham aos seus. e até o traidor Laflotte são afetados. depois de se ter lançado numa refutação vulgar do panteísmo de Spinoza. Repara. Isto explica em parte as dificuldades de interpretação quando misturamos os dois níveis e pensamos que Büchner estaria politicamente próximo deste ou daquele porque lhe coloca na boca um discurso que poderia fazer ele próprio. tendo em conta a presença do mal na terra: “Acabai com a imperfeição.agulhas a saltitar… eu maldizia esse concerto. O mundo das experiências privadas das personagens em A Morte de Danton ultrapassa o espaço espiritual e afetivo da ação. mas estão longe de se misturar totalmente. mesmo que estas meditações sejam mais frequentes entre os partidários de Danton. retomando mesmo as imagens do pobre músico e do touro. não deixará de preocupar Büchner.” Para Espinosa. Mas como o entendimento não pode demonstrar tudo. isso significa que aquilo que ele pode demonstrar não poderia chamar-se Deus. Deus e as outras coisas. pois só desejo a calma.” A argumentação prossegue. a calma…” Robespierre. é porque não é todopoderoso. Payne inverte o argumento: segundo ele. Como é que um Deus perfeitamente bom e todo-poderoso poderia tolerar o sofrimento? Se não pode impedi-lo. fazer dessa essência o absolutamente perfeito. O mais leve estremecimento da dor. reconhece que somos forçados a “chegar a qualquer coisa que só pode ser pensada como sendo”. como os romanos se divertem com o flamejar das cores dos peixes agonizantes. desenvolvendo o que Büchner aborda nas suas notas sobre Espinosa. Büchner tinha já encontrado este argumento em Epicuro. incluindo o bem e o mal. Ao comentar a afirmação XI da Ética. porque é que eu sofro? Aqui nasce o rochedo do ateísmo. Só a dor seria então a prova da não-existência de Deus. Só o facto de Deus ser pensado permite pressupor que ele existe. Esta questão do sofrimento. Porque. eu salvaria. e. o que a torna incontestável. o sentimento? Ele conhece a dor. se o mal é um conceito abstrato que pode ser negado. mesmo que seja num átomo. se não quer impedi-lo. apresentada aqui como “o rochedo do ateísmo”. o entendimento permitiria demonstrar a existência de Deus. se fosse todopoderoso. deleitando-se mesmo com ela. a dor é sentida fisicamente.Anaxágoras. nem o entendimento nem o sentimento podem demonstrar a existência de Deus. mas objeta: “O que é que nos dá o direito de. O entendimento pode tudo afirmar e tudo negar. destrói de alto abaixo a criação. Deus?: O entendimento? Ele conhece o imperfeito. é porque não é perfeitamente bom. Encontramos ainda vestígios em Lenz onde o poeta declara ao pastor Oberlin: “Mas eu. se fosse assim e não pudesse suportar o sofrimento. Danton e Marat 26 . por essa razão. é como se tirasse a máscara. que pouco 27 . já decidimos”. Até aqui. a decisão de Robespierre de condenar à guilhotina os partidários de Danton não o acalma. em vão procuramos em A Morte de Danton ou na obra de Büchner uma ilustração das teses de Espinosa ou de Epicuro.Apesar da importância da “conversa dos filósofos”. mas porque se sente pessoalmente atacado quando é tratado por “Messias sanguinário. A frase de Camille ficou-lhe na memória. Contudo. Robespierre. não pelos argumentos políticos expostos. mergulha na incerteza “não sei qual dos dois dentro de mim mente”. e sem dúvida revela também o seu medo de lhe ser sacrificado. que fica só após a discussão com Danton. A diferença entre Danton e Robespierre é que este último prossegue o combate. ou que se criou um fosso entre o pensamento e o ato: “não seremos nós sonâmbulos. utilizava a primeira pessoa do plural para falar da sua ação. Apenas a leitura do Vieux Cordelier (o jornal de Camille Desmoulins) põe fim aos escrúpulos de Robespierre. o Incorruptível identificara-se com a Revolução: no seu discurso no Clube dos Jacobinos. pois Cristo “tinha a volúpia da dor”. que não dominam os seus atos. entre os dois ladrões Couthon e Collot no seu Gólgota onde sacrifica e não é sacrificado”. Este aspeto da personagem não está nas fontes. Mas a comparação é insustentável. é a prova da sua hesitação em se identificar com uma República terrorista. isto é. Todavia. constata ele. por seu turno. A resposta de Robespierre “Que tencionais fazer?”. como Danton. quando tocam no seu ponto fraco. e leva-o a comparar-se a Cristo: imagina-se a resgatar a humanidade e a assumir os pecados do mundo. como as palavras de Danton na noite que precede a sua prisão. Esta declaração é como que um eco das palavras de Danton. Agora. Pensamentos e desejos “insuspeitáveis” que o homem público refreia “ganham forma e relevo e deslizam na silenciosa morada do sonho”. só que mais nítidas. censura-o Saint-Just. A chegada de Saint-Just vem arrancá-lo aos seus pensamentos sombrios. Os adversários políticos revelam-se semelhantes na sua identidade profunda. Essa hesitação transparece ainda quando Saint-Just cita o nome de Camille entre as futuras vítimas. “Queres hesitar ainda mais tempo?”. Esta passagem cria um jogo de espelhos entre Danton e Robespierre. é uma criação de Büchner. Ambos têm a sensação de que algo lhes escapa. torna-se um ‘romântico’. estoico. mais completas?”. mais exatas. Robespierre. Como observa Gérard Raulet: “O republicano clássico. relançando-o no coração da ação política. o tema da criatura sofredora num mundo abandonado pelos deuses é retomado na peça sob inúmeras variações. para o qual a vida é um sonho e o homem uma marioneta”. na qual o “vocês” se opõe ao “nós” do discurso aos jacobinos. “agiremos sem ti. não serão as nossa ações como as do sonho. Mas aquele que até aqui parecia decidido a ir até ao fim do terror surge irresoluto. Opõe assim o gosto de viver e o desejo de prazer a essa máquina de morte que é o Terror. a prostituta aos pés de Danton). desenvolve argumentos semelhantes aos deles.e eu estou só. É como que o eco da cena que precede a execução.está tudo vazio e deserto . Se a morte está inscrita no título da peça. Contudo. os dois últimos atos são dedicados ao sofrimento de ter que morrer. Marion está sentada aos pés de Danton. o que lhe confere indiretamente uma função de comentário. Deixá-lo-á apenas numa solidão terrível: “Todos se afastam de mim . No início. mas antes um jogo de espelhos: nos dois casos cria-se uma relação íntima. O diálogo entre Danton e Marion apresenta uma variação sobre o tema do epicurismo. considerado frio e intratável. mostrando-o capaz de pensamentos íntimos e de interrogações sobre si mesmo. Essa situação evoca “Danton sentado num banco ao pé de Julie” na primeira cena. problemático que seja. Marion mantém com o mundo uma relação elementar e não oferece nenhuma resistência aos sentimentos: na primavera deixa-se invadir por uma “atmosfera 28 . o amor à vida. que não redime a humanidade com o seu próprio sangue mas com o sangue dos outros. entrando pouco depois. continua consumido pela dúvida: “nós todos suamos sangue no jardim das Oliveiras. nos dois últimos atos. Paralelamente. as suas angústias e dúvidas ganham corpo quando as construções abstratas se esboroam e o indivíduo se encontra face a si próprio. mas não há quem redima o outro com as suas chagas”. Se dá mostras de ceticismo em relação às possibilidades de realização do programa da República epicurista exposto por Camille e Phillipeau no primeiro ato. Depois de ter decidido sacrificar Danton e os seus partidários. Robespierre.antes afirmara que Cristo era o mais requintado dos epicuristas: o filho de Deus conseguira transcender a sua dor e transformá-la em volúpia oferecendo-a para a salvação dos homens. Essa imagem é relativizada. compara as duas personagens aos dois cães que acaba de ver na rua e que estavam “um a tentar montar o outro”. Dar ao indivíduo a possibilidade de afirmar a sua natureza parece-lhe ser a tarefa que agora compete à Revolução. O sacrifício de Robespierre não redimirá a humanidade.” O sofrimento do ser humano. e cria não tanto uma hierarquia entre as duas mulheres (Danton aos pés da esposa. tem apenas “o tormento do carrasco”. A terna harmonia de um instante reduzida à sua banalidade trivial. e. e até mesmo ridicularizada por Lacroix que. Danton mostra uma certa indiferença perante a sua execução e a sua prisão. tal como a morte de Camille não redimirá Robespierre. não deixa de aplicar a si próprio a moral hedonista de que os seus amigos são arautos (Büchner mostra-o mais como um debochado do que como um fino epicurista). antecipa as queixas dos detidos na prisão. prevalece sobre o desgosto de viver. face a Robespierre. Esta passagem humaniza a personagem do Incorruptível. mas antes em função da intensidade com que ela é vivida”. o contrário da retórica revolucionária. entre prazer dos sentidos e espiritualidade que se emancipa tanto da dicotomia tradicional da mulher “enquanto objeto de adoração divina e enquanto objeto sexual”.que era só minha”. nem impor nada. é só através dos meus sentimentos que estabeleço contacto com as coisas”. O discurso de Marion não é apenas um momento de intimidade na peça: dando a entender a verdade profunda de um ser. O crítico Reinhold Grimm saúda nesta personagem o arquétipo da sensualidade pagã. ela opõe-se à virtude como qualquer coisa (sim) de mais virtuoso ainda – de verdadeiro. Uma ansiedade irreprimível. e incrivelmente rígida e fria pelo outro. que ignora o antagonismo cristão entre eros e amor. nem demonstrar nada. uma vontade de agarrar as coisas. e o seu discurso é de uma extrema simplicidade.” Fotografia de ensaio © Jorge Gonçalves 29 . e não é por acaso. Marion diz que “Sou sempre esta. Como observou Jean-Christophe Bailly. sem pathos. um ardor. “Marion é uma mulher. Igual a si mesma. É essa voz verdadeira que a revolução não é capaz de ter. sem floreados. como da oposição burguesa “entre a prostituta e a esposa”. A sua vida “não é pautada por conceitos como o vício ou a virtude. apenas escuta a natureza. que não compreende. contrasta com os discursos revolucionários que pretendem falar em nome do povo. Talvez pareça incrível que Büchner nos fale já da guerra entre uma ordem do desejo e uma ordem do dever. Alheia aos constrangimentos e às obrigações da vida familiar. que nos fale da rutura que a incompatibilidade de espírito entre essas duas ordens provoca. É sem dúvida também por isso que as palavras lhe saem naturalmente da boca: não quer provar nada. uma torrente. A vida extremamente calorosa por um lado. e considera-se “muito sensível. mas tão-só contactar. é o ser humano confrontado com as falhas da Criação. o contrário de uma figura heroica: a 30 . por muito positiva que possa parecer. para Danton. e o céu torcia-se todo. ela é a única personagem na peça que mantém uma relação com o mundo de acordo com a perceção que tem dele. é feita de uma só peça. ou para a esconjurar. Porque havemos de rasgar os corpos uns dos outros? À procura de quê?”. mais se tornam caducas as tentativas de dar um sentido a essa morte. nem sei dizer o quê.” O mundo torna-se uma farsa e não vale a pena ninguém dar-se ao trabalho de o melhorar. há qualquer coisa errada. que o condenam. fazendo-lhe entrever uma outra verdade. quando a morte se torna mais presente e parece evidente que o julgamento perante o tribunal revolucionário não passa de um simulacro. a consciência do inimigo. como um meteoro num universo que não parece feito para ela. No segundo ato. O mundo e os humanos que o habitam são de tal forma imperfeitos que não merecem ser levados a sério: “Deviam rir bem alto à janela e no túmulo. como uma libertação. e a imagem não é idílica. Marion continua a ser.Mas em Büchner nenhuma personagem. resta o indivíduo consumido pela angústia. Aqui já não é o homem político que fala. Enquanto no primeiro ato Danton se declarava pronto a agir – Não podemos perder nem um instante. primeiro. Mas não vamos encontrar isso que nos falta remexendo nas entranhas uns dos outros. ela só adquiriu essa liberdade de vida à custa da morte do primeiro amante e da sua mãe. Também ela deixa cadáveres atrás de si. mas. como se o discurso de Marion tivesse abalado as suas últimas veleidades. Surge apenas numa cena. pelo contrário. A transição é brutal. o tom volta a mudar. A partir desse momento. e depois o sentimento de culpa. A curta intervenção de Danton na cena “uma digressão” inscreve-se na continuidade dessa reflexão. que “não vale o trabalho que temos para a manter. e Lacroix censura-lhe as suas hesitações. o drama da Revolução transforma-se num questionamento metafísico sobre o lugar e o papel do homem no universo: “Houve um erro quando fomos criados. uma cortesã que deve pedir ao seu interlocutor que a escute “por uma vez”. apresentam a Danton a morte já não como um sofrimento. por outro lado. Quanto mais o tempo urge. As pessoas deviam deter-se na rua “para rirem na cara umas das outras”. Mesmo assim. Por um lado. bem como aos companheiros. Mas a partir do terceiro ato. e a terra morria de tanto se rir. e não é motivada pela psicologia nem pela ação. Ela parece mais suportável do que a vida. e que ignora o sofrimento. Temos de nos mostrar ao povo!” – parece agora apático. As cenas da prisão giram em torno deste mesmo tema. Quando a morte se aproxima. a história abrir as catacumbas. não é?”. atónitos”. um dia. A imagem é desprovida de complacência. estes evocam de forma coral um mundo abandonado pelo divino. Todavia. paradoxal. o despotismo sufocará com o fedor dos nossos cadáveres”. e o argumento cai por si. ou a amizade entre Camille e Danton – o calor humano. convém notar que o mundo aqui posto em causa não tem um caráter absoluto. Danton. Não é o mundo em si que desaba. “Gritaste bem alto. para tentar compreender o que pode passar-se no mais profundo do ser nos últimos instantes. apresentando múltiplas variações. o medo de sofrer e a imagem da putrefação apoderam-se dos espíritos. levou a crítica a ver em A Morte de Danton uma peça que advoga o niilismo. mesmo que por vezes regresse a ele para se interessar pela criatura que sofre. mas uma certa conceção que 31 . quer se trate do sentimento de morrer por uma causa justa. uma a uma. cada vez com mais insistência. quando Danton tenta colocar o curso da História do seu lado “Quando. os outros permanecem surdos aos seus argumentos. Büchner abandona aqui o terreno político. “Poderás tu impedir que as nossas cabeças se beijem no fundo do cesto?” diz Danton ao carrasco. Esta conceção de um universo de onde os valores desertaram. não consegues lamber o suor da morte do teu rosto”. quando os prisioneiros querem ver-se como vítimas da sua tentativa de salvar inocentes. última escapatória. é progressivamente eliminado tudo o que possa desviar da realidade concreta da execução iminente. Só o amor entre Lucile e Camille. No momento em que a carroça vem buscar os condenados para os conduzir à guilhotina. do desprezo pela morte por uma questão de bravata. é como um Olimpo que se extingue e onde aparecem. Camille logo lhe responde que nem por isso conseguirá “por mais que deites a língua de fora. as figuras dos deuses pálidos. a sensação da lâmina a cair. e sentido como um caos medonho. frases que pouco interessam àqueles que vão morrer. da crença num Além. Assim. entre Danton e Julie. é horrível. pois só concebem a divindade como insensível ao sofrimento terrestre. ou da convicção de estar a agir no sentido da História. Finalmente. assim. insolente. Resta também. Hérault responde-lhe que ele está a construir “frases para a posteridade”. não conseguem convencer-se disso. a loucura de Lucile no final: último refúgio. a compreensão da dor do outro nas cenas de prisão – parecem poder dar ainda um sentido à existência. Quando Phillipeau evoca a possibilidade de encontrar a paz em Deus. contra um mundo insensato.presença da guilhotina. e se sente o fedor que lhe sai da boca. Quando Danton quer ironizar. Se te tivesses preocupado mais cedo com a tua vida seria agora diferente. A noite que cai adquire o valor de crepúsculo dos deuses: “As nuvens cobrem o crepúsculo. Mas o desaparecimento dos valores aviva o sofrimento que. exacerbada pela proximidade da morte: já que não se sabe por que se morre. mais vale convencer-se de que o mundo que se deixa não tem sentido. Büchner substitui a morte carregada de sentido e de futuro para a humanidade por uma representação concreta da dor física no momento da decapitação. Ingrid Oesterle destacou os sinais. dedicara um artigo aos debates da época sobre a decapitação na guilhotina. no último instante. quem é que diz que não? Dizem que é um segundo. De modo absolutamente voluntário. permanece a única realidade tangível. Execução de Robespierre e os seus apoiantes a 28 de julho de 1794. Num artigo publicado em 1992. em A Morte de Danton. É ao desabar desse universo que os revolucionários de 1794 assistem. contrariamente a todas as regras da arte dramática em vigor na época. O mais marcante é esta observação de Laflotte: “Pode doer. Ela é a figuração concreta dessa morte mecânica. submetidos que estão ainda ao “ter que”. a crença numa morte instantânea e sem dor fora posta em causa perante observações feitas sobre os condenados. em Le Nouveau Paris. inventada para tornar a execução “humana”. ele imagina a guilhotina erguida no palco. Mercier relata que 32 .até aí se faz dele: um universo ordenado. mais vale desvalorizar o que se perde para assim diminuir a perda. Não é por acaso que. concebido para os homens e regido por um princípio supremo. Mercier. Surge então neles uma sensação de vazio. das leituras de Büchner sobre os efeitos físicos da lâmina da guilhotina sobre os condenados. mas a dor tem uma medida de tempo mais apurada: distingue décimos de segundo”. mas que não suprime a dor moral e física. na inconsciência e no esquecimento. Não que o sofrimento de morrer nunca tivesse sido descrito. lançando um olhar compassivo sobre o sujeito de análise.” Uma sobrevivência de alguns instantes. O autor já não é um juiz no tribunal das instituições políticas e morais. no teatro. só a morte. era. e que. Éditions Circé. ao tirar a vida. Le Théâtre de Georg Büchner: un jeu de masques. verosímil. Jean-Louis Besson. Estes detalhes mórbidos dão uma imagem da morte totalmente diferente daquela que até então se conhecia no teatro. dá o repouso. imediatamente após a execução. mas ele não constituía a realidade última. Büchner rompe com toda a estetização da morte. transforma radicalmente a imagem do homem. que não é alheio aos seus estudos de biologia (não esqueçamos que mais tarde ele irá estudar precisamente os nervos do crânio!). 2001. O ser moral e consciente dos seus atos dá lugar à criatura que sofre na carne. É a essa eventualidade que Laflotte se refere aqui.testemunhas julgaram ter visto “nos movimentos convulsivos dos músculos do rosto. mas um clínico no seu laboratório. É por isso que Danton diz que “a guilhotina é o melhor médico”: uma vez passados os últimos instantes. pois. (trad. com a rigidez do corpo. Lança sobre o indivíduo que sofre um olhar quase médico. os sinais de uma dor aguda e um vestígio de sensibilidade que ainda não se extinguiu. Morrer continua a ser um tormento. O fim de A Morte de Danton anuncia Woyzeck. ela. Manuela Torres) Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves 33 . acompanhada de sofrimento horrível após a decapitação. presa numa tormenta que a arrasta e contra a qual luta em vão. proporciona a única cura absoluta. Belfort. expondo ideias democráticas. liberais.CRONOGRAMA DA REVOLUÇÃO FRANCESA LISA SPIRLING Acontecimentos que conduziram à ação da peça: O Iluminismo levou a que muitos escritores europeus criticassem a monarquia. 1775 – Início da Guerra de independência dos Estados Unidos da América (1775– 1783) 1778 – A França declara guerra à Grã-Bretanha em solidariedade com as colónias Americanas. 1774 – Coroação de Luís XVI em Reims. 34 . A guerra subsequente agrava a já existente dívida financeira. nacionalistas e socialistas. 28 maio. 14 julho. 17 junho. Os Estados Gerais são convocados pela primeira vez desde 1614. O Terceiro Estado (Tiers Etat) começa a reunir por iniciativa própria. Tomada da Bastilha. como instituição transitória entre os Estados Gerais e a Assembleia Nacional Constituinte. A Assembleia Nacional existiu de 17 de junho a 9 de julho de 1789. De Launay (o governador). O sucesso dos colonos americanos contra o poder europeu faz crescer as ambições daqueles que desejam uma reforma em França. conhecido por “serment au Jeu de Paume” (juramento do jogo da pela). são massacrados. A votação decorrerá por Estado e não por cabeça. 20 junho. combinados com o fracasso francês na adoção da batata como alimento dominante contribuem para a fome e má nutrição generalizadas. Foulon (o secretário de Estado) e de Flesselles (então o equivalente ao Prefeito de Paris). 35 . O Terceiro Estado/Assembleia Nacional é impedido de reunir nos locais apropriados.1783 – A erupção vulcânica do Laki na Islândia e o arrefecimento do clima provocado pela Pequena Idade do Gelo. Encaram o rei Luís XVI como aquele que lhes fecha as portas e decidem-se por um voto declarativo. apelidando-se de “communes” (comunas). que não se dissolve até a Constituição estar estabelecida. entre outros. 1789 – 5 maio. O Tratado de Paris termina com a guerra. O Terceiro Estado declara-se Assembleia Nacional. 27 agosto. Poder crescente dos Clubes (incluindo o dos Cordeliers e o dos Jacobinos). A Nobreza é abolida pela Assembleia Nacional. revolta campesina contra o feudalismo e grande número de revoltas e distúrbios urbanos. julho. Supressão dos votos monásticos e ordens religiosas. 19 maio. O início do Grande Medo. Antigas Províncias da França são substituídas por novos Departamentos administrativos. Muitos membros da aristocracia fogem de Paris e tornam-se emigrantes. A Assembleia adota a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. 36 . A Constituição Civil do Clero obriga os seus membros a um juramento de lealdade para com o Estado. 1790 – janeiro. A Assembleia Nacional renuncia ao envolvimento em guerras de conquista. Reorganização de Paris.17 julho. 16 agosto. provocando divisões entre os sacerdotes que aceitam o juramento e aqueles que o renunciam. Os “parlements” são abolidos. Luís XVI aceita o cocar tricolor. maio. 12 junho. 13 janeiro. A Assembleia Nacional declara o rei inviolável e ele é restabelecido. Motins alimentares em Paris. A guilhotina é adotada como instrumento oficial de execução.1791 – 30 janeiro. A Áustria e a Prússia começam a invadir o território francês. O cocar tricolor torna-se peça obrigatória na vestimenta masculina. Luís XVI aceita formalmente a Constituição. Dia dos Punhais. A França invade os Países Baixos Austríacos (Bélgica). 37 . 1 outubro. Morte de Mirabeau – primeira pessoa a ser enterrada no Panteão. 28 fevereiro. 20 março. Dissolução da Assembleia Nacional Constitutiva. a Guarda Nacional mata 50 pessoas. A França declara guerra à Áustria. 28 abril. 30 setembro. Manifestação antimonárquica no Campo de Marte (Champ de Mars). 13-14 setembro. 15 julho. formalmente a Igreja de Saint-Geneviève. A Marselhesa é cantada por voluntários de Marseilles na sua chegada a Paris. A Assembleia Legislativa foi a legislatura de França desde outubro de 1791 até setembro de 1792 e constituiuconstituiu-se como o centro do debate político e do poder legislativo. 20 abril. Lafayette ordena a prisão de 400 aristocratas armados no Palácio das Tulherias. Mirabeau é eleito Presidente da Assembleia. 30 julho. 17 julho. julho. inexperientes e radicais. 2 abril. A Assembleia Legislativa reúne – muitos deputados jovens. 1792 – janeiro – março. 3 dezembro. Luís XVI é levado a julgamento. Revoltas monárquicas em Brittany. 16 agosto. 19 setembro. A Comuna Revolucionária toma posse do Hôtel de Ville. Luís XVI de França é preso e levado. aparece perante a Convenção Nacional (11 e 23 dezembro). Conquista de Verdun pelos exércitos de Brunswick. encabeçados pelo Duque de Brunswick. juntamente com a sua família. Dissolução da Assembleia Legislativa. A Guarda Suíça é massacrada. 3-7 setembro. Tomada do Palácio das Tulherias. 19 agosto. 21 setembro. Os massacres de setembro (Jornadas de setembro) de prisioneiros em prisões de Paris. La Vendée e Dauphiné. França é invadida pelos exércitos da Coligação. Lafayette foge para a Áustria. Robespierre defende que “Luís deve morrer para que o país possa viver”. 22 agosto. 38 . Georges Danton torna-se Ministro da Justiça. 10-13 agosto. A Convenção Nacional é composta pelas assembleias legislativa e constitucional. A Comuna de Paris apresenta uma petição à Assembleia Legislativa ordenando a criação de um tribunal revolucionário e convocando uma Convenção Nacional. Abolição da monarquia e proclamação da Primeira República Francesa.9 agosto. Deteve poder executivo em França desde 20 de setembro setembro de 1792 até 26 de outubro de 1795. 3 setembro. 11 março. O Tribunal Revolucionário foi instituído pela Convenção Nacional e era destinado ao julgamento de infratores políticos. 7 março. 6 abril. A Junta de Salvação Pública foi criada em abril de 1793 e reestruturada reestrut urada em julho de 1793. a Junta centralizava denúncias. Prisão dos deputados girondinos da Convenção Nacional pelos jacobinos. 2 junho. 13 julho. é guilhotinado. É estabelecida a Junta de Salvação Pública.1793 – 21 janeiro. formalmente conhecido por Luís XVI. 13 de julho de 1793. Surto de rebelião contra a Revolução: guerra em Vendée. O cidadão Louis Capet. Os jacobinos controlam a Junta de Salvação Pública. transformandotransformando -se no verdadeiro governo executivo. Marat assassinado. Assassínio de Jean-Paul Marat por Charlotte Corday. Um gabinete de guerra na sua essência. supervisionava julgamentos e comandava execuções. 30 maio. Pintura de Jacques-Louis David 39 . O Tribunal Revolucionário é estabelecido em Paris. Uma revolta rebenta em Lyon. 10 junho. Primeira edição de Le Vieux Cordelier de Desmoulins. A lei dos 14 Frimaire (Lei do governo revolucionário) é aprovada. o poder passa a estar centralizado na Junta de Salvação Pública. 16 outubro. 31 outubro. Robespierre é eleito para a Junta de Salvação Pública. Estabelecimento de forças paramilitares dos “sans-culottes” – exércitos revolucionários.27 julho. 28 julho. Uma lei anticlerical é aceite. Maria Antonieta é guilhotinada. denotando o dia 22 de setembro de 1792 como o início do ano 1. dezembro. 4 dezembro. A Constituição é colocada em espera. 29 setembro. Decreta-se que o governo deve ser “revolucionário até à paz”. 40 . É introduzido um novo calendário. Os 21 deputados girondinos são guilhotinados. 5 setembro. que é renomeada como o Templo da Razão. 24 outubro. Início do “Reino do Terror”. 21 outubro. 22 setembro. 10 novembro. Celebração da Deusa da Razão na catedral de Notre-Dame. 10 outubro. 9 setembro. A Madame Roland é guilhotinada como parte da purga dos girondinos. os sacerdotes e apoiantes são suscetíveis vítimas de assassínio “à vista”. fixando os limites dos preços de muitos produtos e serviços. 8 novembro. A Convenção estabelece o “maximum”. A Convenção proscreve 21 deputados girondinos como inimigos da França. Julgamento dos 21 deputados girondinos pelo Tribunal Revolucionário. Hébert e os seus apoiantes são presos. política mundial queimada. Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves 41 . Período de tempo abrangido pela ação da peça “A Morte de Danton”. 1794 – fevereiro – “Pacificação” final em Vendée – assassínios em massa. Hébert e os líderes dos Cordeliers são guilhotinados. 25 março – 5 abril. 24 março.23 dezembro. 19 março. Forças antirrepublicanas em Vendée são finalmente derrotadas e 6000 prisioneiros executados. 42 . dar melhores condições de vida ao povo. Pintura de Eugène Delacroix. em resumo. fazer ascender a uma posição social diferente a nova burguesia. democrática A Liberdade guiando o povo. uma revolução burguesa e democrática.SÚMULA DA REVOLUÇÃO FRANCESA ATÉ À MORTE DE DANTON ● A Revolução Francesa (denominação que engloba revoluções parciais e sucessivas) teve por finalidades derrubar o despotismo real. É. o sistema feudal ainda em vigor. o pensamento. antevia imensas perspetivas. Igual crise sofria o comércio que. no entanto. perante a orgânica feudal feudal. era a fórmula medieval. profissões liberais. etc. LA BRUYERE. MABLY.. eram os que mais dolorosamente sofriam o regime feudal. VOLTAIRE. ROBINET. a nobreza (Segundo (Segundo Estado) e o resto da população (Terceiro Estado). devido à organização feudalista em que se apoiava. representando a maioria da população. ● O Terceiro Estado representava mais de 90 operários. cuja doutrina se baseava nos “direitos naturais” e combatia o 43 da população e compreendia todos os que não eram nobres nem religiosos.● A situação geral da França antes de 1789 tornara-se caótica. NEMOURS. operária O regime feudal entravava. . a indústria. o atraso técnico era enorme. as artes. SAINT-SIMON. HELVETIUS. ● No fim do século XVIII. MONTESQUIEU. a divisão provincial da França que estabelecia barreiras alfandegárias internas. se bem que longe do florescimento industrial inglês contemporâneo. Na agricultura. económico Os camponeses. apoiado numa gigantesca máquina burocrática e num acervo de regulamentações e leis anacrónicas. A extrema miséria do camponês (a grande massa da população). MORELLY. burgueses.). etc. Por outro lado. entre os mais antigos e MESLIER. reduziam o poder de compra. TURGOT. surgiu em França o fisiocratismo (QUESNAY. o progresso industrial. MARAT. porém. poder sem limites. camponeses. sucedendo-se a criação de vários complexos industriais e o aparecimento da classe operária. ● No campo económico. D’ALEMBERT (os enciclopedistas). Estado) “O clero serve o rei pela oração. isto é. etc. tipicamente feudais. a nobreza pelas armas. o teatro. LESAGE. a regulamentação absolutista governamental. assumiram o comando mental das reivindicações. PERRAULT. eudal ● O rei era o máximo poder. A grande força do capital continhacontinha -se. a literatura. DIDEROT. reivindicações Nomes como os de VAUBAN. BEAUMARCHAIS. ROUSSEAU (o filho do relojoeiro de Genebra de que se fala na peça). o povo pelos bens”. ● Na organização social mantinha-se a velha distinção: o clero (Primeiro Estado). a burguesia endinheirada era a classe mais poderosa do ponto de vista económico. ● Como consequência desta situação já em si revolucionária. ganhava notável desenvolvimento. iam fundindo no cadinho do pensamento toda a envolvência revolucionária de que a França estava possuída. A Assembleia é dissolvida e o rei consente na marcação da reunião dos Estados Gerais para 1789. Rebentam revoltas camponesas e operárias por toda a França. sendo as “Cartas Polacas” e “As cadeiras da escravidão” duas obras suas com êxito e profundamente influenciadas por Rousseau e Montesquieu. Este. BARNAVE e outros. A 17 de junho o Terceiro Estado proclamaproclama. votação A nobreza e o clero pretendem a votação por Estados o que lhes daria a maioria. enquanto o Terceiro Estado deseja a votação por cabeça. a iniciativa particular. na corte grassava a maior corrupção. É o célebre juramento do jogo da pela. o esgotamento do tesouro. Nela estala um conflito entre o monarca e a nobreza devido a uma proposta de alteração fiscal que iria atingir a última.feudalismo como seu violador – o feudalismo atentava contra a liberdade pessoal. aterrorizados por esta decisão. Depois de várias intervenções favoráveis ao Terceiro Estado em que se destacaram LE CHAPELIER. a impossibilidade de contrair novos empréstimos. título de um jornal que editava) é o nome principal da teorização pré-revolucionária. o abade SIEYÉS proclama que o Terceiro Estado irá proceder ele próprio à verificação dos poderes dos deputados de todos os Estados e ameaça aqueles que não compareçam de serem excluídos dos trabalhos. amparado pelo povo. o povo dá mostras de impaciência. dirige-se a uma sala em Paris. bancarrota ● O Rei convoca a Assembleia dos Notáveis em 1787. a propriedade privada. que lhes traria o domínio da Assembleia. No dia 20. ● Simultaneamente ao crescimento da miséria popular. ● Mais do que nunca. pela A 23 de junho. O escândalo do “caso do colar”. o rei declara nulas todas as decisões da Assembleia 44 . Muitos membros do baixo clero juntam-se-lhe. em Versalhes. do qual é representante. ● MARAT (o Amigo do Povo. a dívida pública que atingia a cifra de cinco biliões. Entretanto. levaram o Estado à quase bancarrota. Nacional ● O alto clero. 1789 adivinhava-se um ano de fome e crise.se Assembleia Nacional. contra-atacam. Realizam-se as eleições para os Estados Gerais. a nobreza e o rei. Gerais que abrem a 5 de maio de 1789. A discussão deste assunto arrasta-se durante um mês. onde se jogava a pela e aí se processa o juramento de que o Terceiro Estado não se deixará amedrontar com qualquer decisão régia. O conde de MIRABEAU assume a defesa da posição do Terceiro Estado. o rei manda fechar as salas de Versalhes e impossibilita assim a reunião do Terceiro Estado. No dia seguinte irá discutir-se a forma da verificação de poderes dos deputados o que imediatamente porá o problema da forma de votação. LAFAYETTE e MIRABEAU são os principais chefes do Terceiro Estado. burguesa. mas as decisões tomadas em nada modificaram a situação. também chamada o Clube dos Jacobinos por as suas reuniões se efetuarem na biblioteca dos monges daquela ordem eclesiástica. Em grande parte das cidades francesas as autoridades administrativas de então são destituídas e substituídas por membros eleitos pelo povo. O clube dos Jacobinos que. Nos campos. ● O poder passa praticamente para as mãos da alta burguesia (aristocracia burguesa). ● Sucedendo ao clube Bretão. o Terceiro Estado agindo ainda em bloco. marcha contra a Bastilha. Constituinte ● Em Paris e na província levantava-se uma forte onda revolucionária. na Assembleia Constituinte os Estados dividem-se em duas posições: a direita (nobres e clero) e a esquerda (o Terceiro Estado). após duro combate. a fortaleza-prisão de Paris onde se encontrava grande parte do exército e. surge a Sociedade dos Amigos da Constituição. Em toda a parte. Entretanto. Nacional o exército da Revolução cujo comando é entregue ao marquês de LAFAYETTE. A 16 de agosto vota-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. fundado a quando da Assembleia Nacional. depois do 14 de julho. conquista a sua posse. se proclama Assembleia Constituinte. no início. invadido O rei apressa-se a sancionar as decisões da Assembleia e muda para as Tulherias. os camponeses pegavam em armas e rebelavam-se contra os antigos senhores feudais. alarmada com a crescente revolta dos camponeses. agrupava todos os 45 . A Assembleia. Constitui-se a Guarda Nacional. ● A tomada da Bastilha marca o início da constatação do povo da sua enorme força e arrasta todo o povo de França. mas os membros desta não acatam a decisão real. BARNAVE.Nacional. Principia aqui a viragem política de LAFAYETTE. ● Entretanto. na corte. MARAT adverte o povo da ameaça que o rei prepara e incita-o a marchar sobre Versalhes. pertencentes à alta burguesia. se bem que representasse um notável progresso na queda do feudalismo. resolve a 4 de agosto preocupar-se com o problema agrário. o rei concentrava em Paris e Versalhes o Exército e anunciava o despedimento de NECKER do Ministério – o povo viu nestas duas atitudes o princípio do ataque das forças contrarrevolucionárias. A 6 dá-se o reencontro entre o povo e as tropas reais e o palácio de Versalhes é invadido. a 9 de julho. o rei opunha o seu veto às decisões da Assembleia e garantia-se do apoio do Exército. A 14 de julho. as autoridades locais são burguesas. Entretanto. O rei teve de reconhecer o novo órgão que. Chega também a Guarda Nacional mas LAFAYETTE hesita. A 5 de Outubro o povo marcha para Versalhes. Chefiava essa oposição ROBESPIERRE (o advogado de Arras). tornados bens nacionais. em dezembro de 1789. ● Em setembro de 1791.. encontrado forte oposição dentro do próprio corpo de deputados. no entanto. a venda dos bens do clero. SOCIAL cujos chefes FAUCHET e BONNEVILLE punham em dúvida o princípio da propriedade privada. que proclama que o poder vinha da Nação e reconhecia o rei como chefe do poder executivo. divide os cidadãos franceses em ativos e passivos. à burguesia. a reorganização administrativa da França que termina com o parcelamento feudal. irá desempenhar no prosseguimento da Revolução um papel fundamental. a Assembleia decretou a emissão de obrigações especiais – os assinados. uma lei autorizando o uso da força contra os futuros levantamentos populares. etc. a reforma da igreja que passa a depender do governo e não do Papa. decreta. o rei promulga a Constituição. MARAT insurge-se mas é obrigado a esconderse. LAFAYETTE a ROBESPIERRE. DANTON e MARAT. desde MIRABEAU. ou Sociedade dos amigos dos direitos do Homem e do Cidadão. passivos cabendo aos primeiros o direito a voto e a serem elegíveis. etc. o dos CORDELIERS (reunia na igreja com esse nome). a nacionalização dos bens do clero. fundamentalmente). A Assembleia. Nos Jacobinos começavam as divergências. por possuírem determinados bens de fortuna (a burguesia. ● A série de leis antidemocráticas da Assembleia tinha. assinados A partir de certa altura os assinados (assignats) de tal maneira se multiplicaram que passaram a circular como moeda a par da tradicional. ● A Assembleia Constituinte que devia a sua permanência ao movimento popular de 5 de Outubro. ● Para pagamento da compra dos bens do clero. A maioria da população passava a ser formada por cidadãos passivos. Esta venda dos bens nacionais aproveitou. ● Outra decisão importante da Assembleia é a chamada lei de LE CHAPELIER que proibia os operários de se constituírem em grupos ou sociedades e interditava as greves. que se distinguiam pela sua oposição às leis da Assembleia e pelo seu espírito republicano. barreiras alfandegárias e privilégios senhoriais. Lá encontravamse DANTON. ROBERT. Fundara-se um novo clube.revolucionários. 46 . MOMORO. evidentemente. CAMILO DESMOULINS. MARAT. porém. Outras decisões da Assembleia são a abolição da nobreza hereditária e dos títulos. a única que dispunha de dinheiro para os comprar. Outro clube que adquiriu grande projeção foi o CÍRCULO SOCIAL. Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves 47 . chefe dos primeiros. A Assembleia Constituinte refreia os ímpetos populares e pretende demorar a resolução do problema do rei. O rei é capturado em Varennes e regressa a Paris prisioneiro. Por ordem da Assembleia Constituinte a Guarda Nacional comandada por LAFAYETTE carrega sobre o povo desarmado e assassina algumas dezenas. A 21 de junho de 1791 o povo sabe da fuga do rei e da rainha. CONDORCET e outros pedem o castigo do rei e a implantação da República. LE CHAPELIER e SIEYÉS. pretendem travátravá-la. contrarrevolução na qual o rei secretamente colabora.● Cresciam. Em setembro. Fala-se de um plano para a intervenção dos estrangeiros em França. sob o comando do duque de ARTOIS. grandes discordâncias entre os os revolucionários. ● Há muito que começara a emigração dos nobres. a alta burguesia e as restantes classes. continuam e constituem o setor jacobino da direita. acima de tudo. la ● A 17 de julho de 1791 reúnem-se no Campo de Marte milhares de parisienses para discutirem a sorte do rei e da monarquia. Entretanto MIRABEAU morre. O clube dos Cordeliers pede à Assembleia a abolição da monarquia. comerciante e industrial e da burguesia fundiária e os 48 . ● Com a constituição da Assembleia Legislativa pelos elementos da burguesia e pelos intelectuais burgueses nasce uma nova etapa da Revolução. O povo aguarda os resultados. nobres Em Coblença. Uma parte do Terceiro Estado pegava em armas contra outra. abalai essa abóbada e todo o edifício desabará”. Para Pa ra os membros da alta burguesia a revolução está a ir longe de mais. LAFAYETTE. direita em vez de ser preenchida pelos membros da nobreza e do clero passa a sê-lo pelos “feuillants” partidários acérrimos da Constituição. a Assembleia Constituinte deixa de existir. DANTON. do outro os opositores – ou seja. preparam a contrarrevolução. o que significava que a alta burguesia. O clube dos Cordeliers e o Círculo Social com CAMILO DESMOULINS. MIRABEAU. É o chamado morticínio do Campo de Marte que imediatamente adquire grande importância política. A esquerda era constituída pelos Jacobinos agora divididos em duas fações: os brissotinos brissotinos (chefiados por BRISSOT e também chamados Girondinos por a maior parte pertencer ao departamento da Gironda) que representavam os interesses da burguesia provinciana. MARAT denuncia-o. entra em conversações secretas com a corte e trai a Revolução. revolucionários De um lado os constitucionalistas. Os partidos da Assembleia não eram já os mesmos na Constituinte. A direita. futuro chefe dos Girondinos. pretendia fazer escorar a revolução nas medidas antidemocráticas que a Constituinte decretara. assim. com a promulgação da Constituição. BAILLY. Como afirmou um dos deputados da Assembleia a “propriedade privada é a abóbada deste grande edifício que abrange 24 milhões de almas. sendo apoiado por BRISSOT. CHAUMETTE. montanheses (por se sentarem nos lugares mais altos da Assembleia) chefiados por ROBESPIERRE que representavam a esquerda. Nela se distinguiam ainda CHABOT e COUTHON. Mas, o maior número de deputados da Assembleia situavase ao centro e por isso se denominavam ironicamente o “pântano pântano” planície”. pântano ou a “planície planície ● Enquanto a situação económica se ia agravando e se registavam vários motins, especialmente devido à falta dos principais produtos de subsistência, na corte continuava a maquinar-se, com o conluio da nobreza, clero e alta burguesia a contrarrevolução. Os “feuillants” eram agora partidários da reação. Cada vez mais forte, sentia-se a ameaça dos exércitos de Coblença e a intervenção do estrangeiro. Por outro lado, os girondinos faziam uma propaganda de guerra chegando Brissot a sugerir que a França tomasse a iniciativa do ataque contra o despotismo estrangeiro. Embora as massas populares se deixassem sugestionar por esta chamada às armas, os jacobinos faziam constantes apelos no sentido de atrasar a guerra com o estrangeiro pois à Revolução convinha ganhar tempo e solidificar a sua posição. Nos Girondinos a intenção era convencer o povo que a Pátria estava em perigo e assim desviar a sua atenção dos problemas internos essenciais. Ao rei, convencido de que a França revolucionária perderia a guerra exterior se a ela se aventurasse, a atitude dos Girondinos interessava. Assim, apesar dos insistentes alertas que Robespierre lançava, o rei, em março de 1792, formou um ministério girondino. BRISSOT e DUMORIEZ tomaram conta do governo. A 20 de abril de 1792 a França declarou guerra à Boémia e à Hungria que é o mesmo que dizer-se à Áustria visto o rei daqueles territórios ser o Imperador da Áustria. A guerra, apesar de desejada pelos girondinos, era uma guerra defensiva e não de ataque. ataque O povo acolheu com entusiasmo a defesa da Pátria e armou-se. Mas, ajudados pela contrarrevolução interna, a França revolucionária foi vencida pelos exércitos estrangeiros nas primeiras batalhas travadas junto das fronteiras. ● A indignação do povo francês subiu ao rubro e as advertências de MARAT e ROBESPIERRE foram finalmente ouvidas. De novo, MARAT é alvo de perseguições por parte, agora, dos girondinos. E a separação entre as duas fações dos jacobinos avizinha-se. Mas ROBESPIERRE, MARAT e DANTON exortavam o povo à guerra, já que uma vez começada havia que vencê-la. Entretanto, o rei, convicto de que as forças externas e internas iriam vencer as hostilidades demitiu o ministério girondino e chamou de novo ao poder os “feuillants” “feuilla nts”. nts” Os girondinos forçaram o povo a manifestar-se contra o rei o que aconteceu em 20 de julho, oito dias depois da queda do seu ministério. ROBESPIERRE e os jacobinos não apoiaram esta manifestação. 49 Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves 50 ● As tropas inimigas conquistavam terreno rapidamente devido sobretudo às inúmeras traições dos oficiais e generais franceses. MARAT, ROBESPIERRE e DANTON chefiavam o movimento popular. Os girondinos pretendiam acalmar o povo. A 3 de agosto é divulgado em Paris o manifesto de BRUNSWICK, general ao serviço da Prússia, que demonstrava as traições internas da França, e segundo o qual a invasão se destinava a restaurar o poder absoluto do rei em França. Este manifesto provocou no povo francês uma enorme agitação. Na madrugada de 10 de agosto o povo, comandado pela Comuna, invade as Tulherias e derruba o rei. A Comuna Revolucionária fica senhora da situação. O rei é preso no Palácio do Luxemburgo. A Assembleia nomeia novo governo girondino girondino do qual faz parte apenas, como jacobino, DANTON. DANTON A Comuna Revolucionária que, dirigida pelos jacobinos da Montanha, encabeçara o 10 de agosto é, agora, a par da Assembleia Nacional, o órgão da Revolução. À sua frente, além de DANTON estão os jacobinos ROBESPIERRE, MARAT, CHAUMETTE, etc. Os girondinos procuram travar a ascendência da Comuna mas nada podem fazer pois DANTON está entre eles. A luta entre a Comuna e a Assembleia Legislativa era, noutro plano, a luta entre girondinos e jacobinos. jacobinos ● A 2 de setembro Verdun é tomada pelos exércitos de BRUNSWICK. O caminho de Paris estava livre para os invasores. É nesta altura que a Comuna toma a seu cargo de maneira extraordinária a defesa da França e organiza o contra-ataque. Enquanto os girondinos propõem a retirada da Assembleia de Paris, DANTON, indignado, profere a frase que ficou na história e a que a peça de Buchner se refere: “Para vencermos, senhores, precisamos de audácia, mais audácia, sempre audácia – e a França será salva!”. Encorajado pelos jacobinos e em especial por DANTON o povo lança-se à rua e vence os exércitos invasores em Valmy. A França estava salva, realmente. São as célebres jornadas de setembro. setembro ● A 21 de setembro, no dia seguinte à vitória de Valmy, por proposta de COLLOT D’HERBOIS a Convenção decreta a abolição da Monarquia e proclama a República. República Na Convenção, a nova Assembleia, as direitas já não são constituídas pelos “feuillants” mas sim pelos pelos girondinos. girondinos Nas esquerdas os homens da Montanha – os jacobinos BOBESPIERRE, DANTON, MARAT, DESMOULINS, COLLOT, BILLAUD-VARENNES. Ainda aqui, porém, a maioria pertencia ao centro, o pântano, a planície. CHAUMETTE é eleito procurador da Comuna e HERBET seu substituto. Finalmente, no clube dos jacobinos dá-se a cisão. Os girondinos saem e advogavam o perdão do rei. Mas os jacobinos decretam a sua morte, por traição à Pátria. Em 21 de janeiro de 1793 Luís XVI é guilhotinado. guilhotinado ● Em consequência da guerra a situação económica do país piora e as lutas de classes agravam-se. A situação miserável do povo dá lugar ao aparecimento de 51 ● Mas a Junta de Salvação Salvação Pública dirigida por DANTON não conseguiu ter a país. atribuía os bens comunais aos camponeses e distribuía a terra em partes iguais para cada habitante. foi obrigado a exilar-se junto do inimigo. VARLET. BILLAUD-VARENNES. A Convenção. favoreceram-nos enquanto estes foram úteis na sua luta contra os girondinos (porém entre os jacobinos havia uma extrema esquerda – CHAUMETTE. ● A Inglaterra. encaminhando o seu exército para a tomada de Paris após sucessivas derrotas – falhada a tentativa.uma nova fação extremista. BARÈRE. Os jacobinos. assim como a Espanha e a Holanda intervieram na guerra contra a França. dos sans culottes que haviam sido a base das insurreições de maio e junho continuava por resolver devido à fraqueza da Junta de DANTON. cuja independência estava ainda mais ameaçada que em 1792. estabelece o maximum do trigo. Promulga-se em 1793 a energia suficiente para resolver os problemas do país Constituição que tem o nome desse ano e foi considerada uma das mais democráticas de sempre. furiosos chefiados por ROUX. etc. A esta Junta virá a chamar-se “a a Grande” Grande pela firmeza.. 52 . os girondinos tentavam acusar os jacobinos de várias traições. ● A 10 de Junho DANTON e a sua Junta são afastados do poder pela Convenção. também defendido por ROBESPIERRE. CARNOT D’HERBOIS. MARAT. de inspiração jacobina. No entanto. etc. DANTON O exército é reorganizado. Os girondinos foram os primeiros a combater os “furiosos”. SAINT-JUST. que pretendiam a abolição da aristocracia e a concessão de regalias ao povo. A lei agrária de 10 de Junho. ROBESPIERRE será o cérebro máximo desta Junta. MARAT é libertado da acusação e levado em triunfo pelo povo que em 31 de maio e 2 de junho se amotina e pede o castigo dos girondinos. PACHE. Estes motins marcam a queda definitiva dos girondinos e a chegada ao poder dos jacobinos que mais tarde governarão em ditadura. Da nova Junta irão fazer parte ROBESPIERRE. SAINT-JUST. os “furiosos furiosos”. O problema do povo. CHALIER – que mais sinceramente os incitava). entre outros. Os jacobinos tomam a seu cargo a defesa do país. com PITT no governo. ROBESPIERRE e SAINT-JUST são as figuras dominantes desta época. energia e disposição postas na luta. a atriz CLAIRE LACOMBE. Entretanto. A principal reivindicação dos “furiosos” era o limite dos preços dos géneros (maximum). Em março de 1793. Os “furiosos” e ROUX fazem de novo as suas reivindicações mas apresentam-nas como combate à política dos jacobinos e como crítica à nova Constituição – daí terem caído em desgraça. COUTHON. NomeiaNomeia -se então a primeira Junta de Salvação Pública cujo c ujo elemento mais influente é DANTON. satisfazendo os “furiosos”. embora não os apoiassem claramente. DUMOURIEZ que gozava da confiança dos girondinos trai a Revolução. que iam desde a abolição do tribunal revolucionário e respetiva substituição por tribunais populares improvisados. Tinham ficado de fora homens como COLLOT. que irão tomar conta da Revolução: executarão ROBESPIERRE e darão àquela definitivamente um caminho burguês. A 16 de abril DANTON e os seus seus amigos são executados.● A nova Junta liquidará. etc. etc. executados A 13 de junho é executado CHAUMETTE. HERBERT e os jacobinos de esquerda. os “furiosos”. criavacriava -se uma uma nova burguesia especuladora. no campo das reformas e da luta contra o estrangeiro. sucessivamente. CHABOT e FABRE tinham adquirido grandes fortunas por processos nem sempre honestos. TALLIEN. Mas ROBESPIERRE não dominara completamente os hebertistas e os dantonistas.) tornaramtornaram-se adeptos da moderação. THURIOT. especuladora Contra ela ROBESPIERRE irá lançar o seu fogo assim como o fará contra os hebertistas que se situavam no pólo oposto a DANTON na medida em que levavam ao extremo as reformas que preconizavam. moderação Pediram o abrandamento da ditadura revolucionária. à perseguição da Igreja. o fim do terror. LEGENDRE. ● Entretanto. a sua caminhada. A partir de outubro de 1793 DANTON e os seus amigos (CAMILO DESMOULINS. a ditadura jacobina prosseguia. etc. DELAUNAY. Apesar disso continuava a gozar de grande prestígio. FABRE D’EGLANTINE. e embora fazendo parte da Montanha ele estivera sempre mais próximo da Planície. 53 . vitoriosa. A ditadura jacobina afastará pelo terror todos os que considerou inimigos da Revolução Revolução. ao culto da “santa guilhotina”. a criação de uma comissão de clemência. Para este o tempo das audácias passara. ção Assim aconteceu com DANTON. DESMOULINS e PHILIPPEAU são presos. presos DANTON estivera até ao fim convencido que os membros da Junta e da Convenção não ousariam tocar-lhe. Em 30 de março de 1794 HEBERT e alguns dos seus partidários são executados e seis dias depois DANTON. os dantonistas e os hebertistas. e quando o aconselharam a fugir este declarou: “acaso se leva a pátria agarrada à sola dos sapatos?”. CARRIER. com o regresso ao poder da alta burguesia e culminando na Constituição antidemocrática de 1795. que se havia retirado para usufruir dos prazeres de uma vida calma. Embora atacando ROBESPIERRE faziam também incidir os seus ataques sobre os ultrarrevolucionários. LEGENDRE. Marat e Robespierre 54 . partindo-se tantas vezes. homem viril e amante da sua mulher embora mulherengo. guardam oportunidades de traição com as quais os inimigos podem apenas sonhar. Amizades intensas que terminam muito mal são histórias centrais da Revolução. Tendo em conta que as políticas revolucionárias desenvolvem-se em inesperadas e muitas vezes violentas direções. ROBESPIERRE E A REVOLUÇÃO RUTH SCURR Em A Morte de Danton. afinal. Os amigos. e tendo a França caído simultaneamente em guerra civil e estrangeira. Buchner apresenta-nos um retrato brilhante de Robespierre. a confiança. como um gatuno de sangue frio. uniam os revolucionários quando estes começaram a trabalhar por uma melhor e mais justa França em 1789. Danton. tornaram-se frágeis. A peça atribui uma mistura de motivos pessoais e políticos a ambos os revolucionários e captura o drama da sua irremediavelmente deformada amizade. mesmo aquelas que tiveram o seu início nos dias de escola. hipócrita e fanático – a antítese de Danton.DANTON. a partilha de ideais. as velhas amizades. A amizade. Robespierre a 28 de julho do mesmo ano. alguém rosnou quando Robespierre caiu do poder. 55 . ativos no clube dos Jacobinos. ele tinha-se oferecido ao povo e conseguia imaginar morrer por ele. ele não conseguiu nunca admitir que poderia ter estado errado: “Quem diz que alguém inocente pereceu?”. continuamente comprometido com a ideia do bem comum. A expiação – por toda a sua carga religiosa – estava para além do repertório de Robespierre. assim como politicamente radicais e nenhum deles tinha sido famoso à guarda do ancien régime. a retórica do martírio era mais o seu estilo. não teria expiado por isso? Não teria sido ostracizado?”. “Covardes – porque não o defenderam?” Outra das amizades de Robespierre. perguntou com gelada confiança. ele adquiriu a alcunha de “O incorruptível”.Quando eles se conheceram no início da Revolução em 1789. Danton foi guilhotinado a 5 de abril de 1794. Como Danton. mas ao contrário de Danton. que cresceu órfão pelo Terror e frequentou a antiga escola do seu pai e padrinho. À parte das suas fisionomias – Robespierre perto das proporções corretas. temendo que as forças da Contrarrevolução triunfassem com a invasão estrangeira. lutaram juntos para derrubar a monarquia. e de se ter juntado a Danton no pedido por clemência e fim da mortandade em dezembro de 1793. Robespierre não poderia ter dito estas palavras. “É o sangue de Danton que vos está a chocar!”. Ele podia falar de si mesmo tão frequentemente porque se identificava completamente com a Revolução. Era óbvio que Robespierre gostava realmente de Camille. Depois de Camille ter publicado Le Vieux Cordelier. respondeu ele. Robespierre esteve presente no casamento de Camille com Lucile Duplessis em 1790. nenhum suborno. prazer ou dor conseguiriam afastá-lo daquilo que ele acreditava ser do melhor interesse para o povo e para a Revolução. estabilizar a república e projetar as instituições do Terror. Robespierre tinha 31 anos e Danton 30. previsivelmente ou prolongadamente sobre si mesmo na Revolução. e foi padrinho do seu filho Horace. mas orgulhava-se da sua imparcialidade e incorruptibilidade. suplicou: “Se eu tivesse sido levado pelo entusiasmo nos primeiros dias da nossa regeneração. Robespierre foi persuadido para se movimentar contra ele. era acompanhado por jacobinos e outros que acreditavam nesta coincidência entre a pessoa de Robespierre e a Revolução. “Danton! – É então Danton que vos pesa?”. Danton um pouco maior – os dois homens foram descobrindo ter cada vez mais em comum: dedicados ao povo. Mais ninguém falou tão insistentemente. Peculiarmente. eram ambos advogados. recua até aos seus dias de escola parisiense em Louis-le-Grand. Nenhuma amizade. com o poeta e jornalista Camille Desmoulins. Numa das raras ocasiões em que Danton falou sobre si mesmo em público. Ainda assim mais ninguém poderia ser convocado a colocar de parte os seus sentimentos pessoais como Robespierre. Robespierre. prestam respeito ao talento individual mas destroem a tentativa quase vitoriosa. virtude em português. segurando o texto sem emoção numa mão que não tremia. Três anos depois Saint-Just era o aliado político mais próximo do Incorruptível. Camille Desmoulins e os seus associados. Saint-Just foi a única pessoa que se atreveu a subir em corrida a escada exterior que conduzia até aos quartos privados de Robespierre. Nas circunstâncias em que este se encontrava. O discurso de Saint-Just baseava-se numa série de notas apressadas que Robespierre tinha anotado para ele: notas que ainda existem.Antes de se conhecerem. quando Danton gracejou: “A virtude é o que eu faço todas as noites na cama com a minha mulher”. Para além da poderosa coincidência das suas opiniões sobre o julgamento e execução de Luís XVI. Por amor a um homem vão sacrificar toda a nova liberdade que estavam a dar para todo o mundo”. sobre a importância da virtude e o seu papel nas políticas revolucionárias. na manhã de 21 de março de 1794. tendo em conta o seu contexto de vida desde 1789 – todo esse derramamento de sangue. Saint-Just. como era frequente. Na Convenção. Os dois homens falavam muito e com frequência. Terminou devastadoramente: “As palavras que dissemos nunca serão esquecidas na terra”. 56 . destinado a ser mais um amigo dramático de Robespierre. tinha escrito isto no seu caderno para futura referência. enquanto usava a outra para enfatizar os mais importantes tópicos com um gesto cortante que relembrava a sua audiência da guilhotina. dizia ele com 20 anos. mas sim o deputado da república e da humanidade. todos os sonhos destruídos. Uma das notas incriminatórias de Robespierre era relativa à memória de uma conversa na qual este falava. escreveu-lhe em 1790: “Eu não te conheço. “Se salvarem Danton salvam uma personalidade – alguém que conheceram e admiraram. Não és apenas o deputado de uma província. Saint-Just tinha sobre ele o fascínio de um pecador reformado – “Eu agi mal. Saint-Just leu um relatório contra Danton. bonito e transgressor. Manteve-se rígido na tribuna.” Saint-Just era nove anos mais novo que Robespierre: selvagem. Talvez Danton não o tivesse dito como uma piada. e que mostram para além de qualquer dúvida a profundidade da cumplicidade do Incorruptível nos ataques aos seus antigos amigos. A Convenção sentou-se num silêncio atordoado. pouco agradado. eles partilhavam uma obsessão pela “vertu”. mas serei capaz de fazer melhor”. na Rue Saint-Honoré (qualquer outra pessoa se aproximou de forma mais indireta através da casa do seu senhorio). a esquiva luta revolucionária ainda tão longe da vitória – o amor da intimidade sexual poderia na verdade parecer-lhe o melhor que há a esperar para os seres humanos. O vínculo entre eles era tão improvável como importante para a Revolução. mas tu és um grande homem. Danton e Camille Desmoulins tinham 34 anos quando morreram. e Robespierre tinha 36 anos. Havia mau génio e um toque de maldade neste documento. até Saint-Just poderia ver que apenas partes dele poderiam ser incorporadas no relatório oficial. Em A Morte de Danton os revolucionários jogam um jogo perdido contra a mortalidade e cada um deles sabe disso. Ruth Scurr. que este não teria contribuído para o crescer que provocou o final da monarquia em 10 de agosto de 1792. junho 2010 Fotografia de ensaio © Jorge Gonçalves 57 . Lucile Desmoulins tinha 23. entre todas as pessoas. e por outro lado na noite em questão teve de ser arrastado da cama para comparecer à reunião da sua Secção. O génio dramático Buchner morreu de tifo com 23 anos e também o sabia: “Nós não temos muita dor. a censurá-lo com covardia física? Ele também se queixou do corpo gordo de Danton. Danton tinha sancionado assassínio nos degraus do Hôtel de Ville. Danton e Camille tinham saído com as suas armas. Como podemos reclamar?”. cinzas. Robespierre seguiu Danton na guilhotina. Ele nunca participou em qualquer violência revolucionária. No entanto ninguém arrastou Robespierre da sua cama nessa noite. Saint-Just tinha 26. antes de mais porque teria partido de Paris para visitar a sua mãe em Arcis. temos muito pouca. Nós somos morte. Como se atrevia Robespierre. Porque através da dor chegamos a Deus.Quando se virou contra ele. sobrevivendo-lhe por pouco mais que quatro meses. pó. Robespierre afirmou que a reputação patriota de Danton era injustificável. do facto de ele ser amoroso e indolente. tinha estado na primeira linha na guerra estrangeira e visto sangue a correr livremente. É detido nessa mesma noite. pois ter atacado uns e não os outros teria sido alienar fatalmente os Terroristas da linha dura presentes nos dois comités. Segundo uma versão convincente da noite da detenção. É um diálogo de surdos. 58 . irmã de Marat. Exige que Danton sacrifique os corruptos para se salvar a si próprio. No dia 29 de março. Danton tenta persuadir Robespierre de que a sua amizade foi intencionalmente destruída por Collot e Billaud. Danton e alguns dos seus amigos mais próximos. Danton vê Robespierre numa conversa tão amistosa com Camille Desmoulins que baixa a guarda e vai-se embora para casa. incluindo Desmoulins. acede. convencido de que não lhe restam alternativas. Philippeau e (num dia diferente) Hérault de Séchelles são por sua vez detidos. avisa Danton e insta-o a apresentar-se na Convenção para denunciar o Comité. Lacroix. Albertine. Ele começa por demonstrar alguma relutância – fazê-lo significará a proscrição de Robespierre – mas depois. Ao chegar à assembleia.DANTON SIMON SCHAMA Uma semana depois. que semearam a discórdia entre eles para se exonerarem dos excessos terroristas. Mas Robespierre não está a ouvir. há um último encontro entre os gigantes. A morte dos hébertistas implicara sempre o fim dos Indulgents. é má rês. Quando o presidente do tribunal lhe garante que isso é “apenas uma formalidade”. o belga Simon –. Mas Danton é acusado de toda a espécie de perfídias: de conspirar para colocar o duque de Orleães no trono. Vadier e Amar olharam para ele como se não estivesse bom da cabeça. Saint-Just ficou incaracteristicamente colérico mas os polícias da Segurança Geral impuseram o seu método. incluindo Brissot. de salvar pessoas. o tribunal enche-se com uma multidão enorme – Danton tem um número de seguidores formidável. de se rir sempre que é mencionada a palavra “virtude”. Danton está efetivamente decidido a explorar a vantagem que tem sobre os juízes em termos de volume. o presidente. corrigida para a sua forma final por Robespierre. depois logo se denunciaria. os dois comités consideraram em sessão conjunta a tática a utilizar. a culpa da vigarice se cole ao seu principal adversário. após o que poderiam prender Danton e os amigos.Os caçadores sabiam que não ia ser fácil. Fouquier-Tinville tentou conter o interesse popular até ao último minuto antes de anunciar o julgamento mas vê-se a braços com um tribunal tumultuoso que ofende profundamente a sua noção de procedimentos ordeiros. Herman. Face à ofensa aos seus poderes de persuação. A acusação contra Danton. Michel Lepeletier. Danton comenta: “A nossa presença aqui é apenas uma formalidade”. havia que prender Danton. Primeiro. Na noite de 25 de março. ele invoca a memória do seu melhor amigo. insiste em ser acusado com o amigo. velho camarada de Danton. Saint-Just levou a acusação – da qual injustamente se orgulhava – e disse que a leria na Convenção no dia seguinte. Até o número dos réus parece não bater certo: Westermann. incluindo toda uma gama de estrangeiros diversos – os irmãos Frey. dá testemunho dos recursos de poder viril que a cultura republicana 59 . revelando o sentido assustadoramente poderoso que Danton tem do teatro público. Sucedem-se as interrupções e as confusões. para não falar da comparação negativa da sua virilidade com a de Danton. O Comité espera obviamente que enquadrando Danton e Desmoulins nos vigaristas da fraude da Companhia das Índias. o dinamarquês Friedrichsen. As acusações contra Hérault de Séchelles são ainda mais capciosas. ciente de que uma voz sonora e profunda. Acusado de ser um aristocrata. embora não disponham da mínima prova que o ligue ao esquema. o espanhol Guzmán. dos massacres de setembro. Em suma. um ci-devant de linhagem ainda mais ilustre. é – mesmo pelos padrões do Tribunal Revolucionário – um documento incrivelmente fraco. Ao não conseguir interromper uma das tiradas tonitruantes de Danton. No dia 2 de abril. Qualquer outra tática seria potencialmente desastrosa. além de fazer os seus interrogadores parecerem ridículos. pergunta-lhe: “Não ouviste a sineta?” Danton replica: “A voz de um homem que está a defender a vida e a honra tem de se impor ao som do vosso sininho”. Danton será um leão ferido cujos rugidos beligerantes poderão ecoar por toda a cidade de Paris. Hébert fora uma fuinha (mas com dentes afiados). minha Lucile… a morte que me vai libertar do espetáculo de tantos crimes é uma desgraça? Adeus. os dantonistas estão encarcerados no Luxemburgo. transformando o seu fim em algo tão importante e memorável como o de um herói homérico. no princípio da defesa. mantendo-se de pé. em particular. É exatamente isto que o tribunal teme. e não está disposto a deixar Danton dirigir o julgamento. minha alma. Não sobreviveu nenhum registo completo dos trabalhos mas ao que parece Danton falou quase o dia inteiro e com um efeito tremendo. Durante o seu período de detenção e julgamento. o jorro de um homem completamente desfeito pela tristeza e pelo remorso. exige ele. e numa veia mais estoico-romântica: “O meu domicílio será em breve no esquecimento. ma poule. adeus. Danton diz a Lucile que ao vê-la e à mãe dela se atirou desesperado contra as grades. uma rapariga de apenas dezasseis anos. caído nas profundezas de uma espécie de fantasmagoria romântica e que deseja renunciar a toda a sua vida pública para poder ter uma vida privada de paz. apesar do meu tormento acredito na existência de um Deus. o único dos colegas de Danton que se negou a assinar o mandato de detenção. minha vida. Na sua última carta. Trovejar é ser patriótico. da qual continua muito apaixonado. ele conta dormir no seio da glória. Danton declara: “Povo. e aqueles que os lá veem recordarão Danton e Phillippeaux afetando uma espécie de alegria forçada. dirigindo-se mais ao público do que aos juízes ou ao júri. Ela visita-o sempre que pode. o meu sangue lavará as minhas falhas. escrita antes da execução. a minha voz será ouvida por vós e em toda a França”. vejo os 60 . No dia seguinte. Desdenha da sua exigência de convocar uma longa lista de testemunhas. no entanto. vejo-te de novo. Lulu. Minha Lucile. É uma carta espantosa. Nunca pediu perdão e vê-lo-eis subir para o patíbulo com a sua serenidade habitual e a calma de uma consciência limpa. um patriota dos anais de Roma. “Será que os cobardes que me estão a caluniar se atrevem a atacar-me cara a cara?”. É talvez a menos miserável de todas as prisões do Terror. Danton. o que causa ao marido um intenso prazer mas também um terrível tormento emocional. Louise. sacudindo as acusações como se estivesse a sacudir insetos do casaco. julgar-me-eis depois de me ouvires. Lucile. Durante os últimos dois dias. Danton parece querer elevar a miséria moral da ocasião ao nível da retórica trágica. voltarei a ver-te um dia. parece resignado a separar-se da sua segunda mulher. Camille Desmoulins. minha divindade na terra… Sinto as margens do rio da vida ficar para trás.associa à virtude. com o meu nome no Panteão… Eis a minha cabeça para responder por tudo”. à distância prescrita. Amanhã. incluindo membros do Comité de Salvação Pública como o próprio Robespierre e Robert Lindet. cai no mais profundo desalento ao ter de se separar de Lucile. o tribunal ficou a conhecer Danton. Ao saber que perdeu um último recurso. terá dito Danton. Ele e Hérault de Séchelles. governada por homens que não fazem a mínima ideia do que é governar. Vou morrer… Lutador até ao fim. com a camisa manchada com o sangue dos seus melhores amigos. tentam abraçar-se mas são bruscamente separados pelo carrasco. que dirá que o ouviu através da parede. Sanson. Civilização Editora. 2001. Hérault. “Se eu pudesse deixar os tomates ao Robespierre e as pernas ao Couthon. comportam-se com grande dignidade e compostura. Mas o seu último comentário é o melhor. se apresenta na Convenção e diz que os detidos estão a fomentar uma insurreição contra o tribunal e que a mulher de Desmoulins está envolvida numa conspiração para assassinar membros do Comité de Salvação Pública. Desmoulins e os outros vão ao encontro da morte. ele lamenta-se por deixar a República em tão mau estado. Danton continua a exigir o direito de convocar testemunhas. Danton resigna-se. Foi. Danton diz a Sanson: “Não te esqueças de mostrar a minha cabeça ao povo. A sua insistência é tão veemente e o público é-lhe tão simpático que Saint-Just.meus braços à tua volta. Ao colocar-se à frente da prancha. Observados por uma enorme multidão praticamente silenciosa. Porto. Danton. o prodígio do Parlamento tornado jacobino regicida. a minha cabeça cortada apoiada em ti. Olha que vale a pena”. temendo o colapso do julgamento. o Comité talvez durasse mais algum tempo”. No dia 5 de abril. Na prisão. Danton está decidido a mostrar afeto e amizade. Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves 61 . segundo Riouffe. São afirmações absurdas mas dão ao Comité a autoridade suficiente para regressar ao tribunal e instruir Fouquier a empregar o seu habitual “atalho” de perguntar ao júri se já foi suficientemente “iluminado”. Cidadãos – Uma Crónica da Revolução Francesa. as minhas mãos atadas a abraçarem-te. “Não impedirão as nossas cabeças de se encontrarem no cesto”. Simon Schama. 62 . discutindo em aula o papel da guilhotina na Revolução Francesa e a pena de morte por decapitação. "Terror".SUGESTÃO DE ATIVIDADES TAREFAS A DESENVOLVER COM OS ALUNOS ESCREVER Solicitar aos alunos um pequeno texto onde articulem as seguintes palavras: “Absolutismo". “Danton”. "Revolução Francesa". ANALISAR Analisar com os alunos a seguinte gravura. LER Ler e analisar com os alunos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. visionar com os alunos o filme Danton. 34-41). Pedir aos alunos breves biografias de algumas das principais personagens da Revolução Francesa e interpretadas no espetáculo A Morte de Danton. tais como: Georges Danton. 63 . Robespierre. Saint-Just. VISIONAR Após a assistência ao espetáculo A Morte de Danton. sugerir aos alunos que escolham uma data específica e que escrevam um pequeno texto. Camille Desmoulins. Billaud Varennes.INVESTIGAR A partir da cronologia da Revolução Francesa (pp. que define os direitos individuais e coletivos dos homens como universais. sobre esse momento da História. entre outras. Legendre. Hérault-Séchelles. e discutir em aula o perfil da personagem Danton em ambos os casos. Collot d´Herbois. Thomas Payne. de Adrzej Wajda (1982). um documento culminante da Revolução Francesa. a partir da sua investigação. PEDRO COSTA. ALBERTINA PATRÍCIO manutenção geral CARLOS HENRIQUES. SÉRGIO HENRIQUES manutenção técnica MANUEL BEITO. NUNO FERREIRA receção DELFINA PINTO. LUÍS LOPES. MIGUEL CARRETO adereços VIRGÍNIA RICO motorista CARLOS LUÍS direção de comunicação e imagem RAQUEL GUIMARÃES. MARGARIDA KOL* direção administrativa e financeira CARLOS SILVA. FELICIANO BRANCO. MANUELA SÁ PEREIRA. ISABEL INÁCIO. MARCO RIBEIRO. LÚCIA MARIA. NUNO COSTA. PEDRO ALVES som / audiovisual RUI DÂMASO. ISABEL CAMPOS. ISABEL ESTEVENS controlo de gestão MARGARIDA GUERREIRO tesouraria IVONE PAIVA E PONA recursos humanos ANTÓNIO MONTEIRO. ANTÓNIO PIGNATELLI. VÍTOR SILVA informática NUNO VIANA técnicas de limpeza ANA PAULA COSTA. CARLOS MARTINS. SOCORRO SILVA vigilância GRUPO 8* direção de relações externas e frente de casa ANA ASCENSÃO. JORGE AGUIAR. SANDRA SIMÕES secretariado CONCEIÇÃO LUCAS motorista RICARDO COSTA atores JOÃO GROSSO. ERIC DA COSTA. LUÍS SOUTA. PAULA MORA direção de produção CARLA RUIZ. RICARDO CABAÇA * prestações de serviços 64 .E. CARLOS FREITAS. DEOLINDA MENDES. DANIEL VARELA. RUI CARVALHEIRA iluminação JOÃO DE ALMEIDA. MARIA II. E. CARLA TORRES. PAULA MARTINS. LURDES FONSECA. FERNANDA LIMA bilheteira RUI JORGE.P. direção artística JOÃO MOTA conselho de administração CARLOS VARGAS. MADALENA DOMINGUES direção de manutenção SUSANA COSTA. PAULA LEAL assistência de sala COMPLET’ARTE* direção de documentação e património CRISTINA FARIA. RAUL REBELO. RITA CARPINHA* livraria MARIA SOUSA biblioteca | arquivo ANA CATARINA PEREIRA. MARIA AMÉLIA MATTA. EULÁLIA RIBEIRO.EQUIPA TEATRO NACIONAL D. RITA FORJAZ direção de cena ANDRÉ PATO. JOÃO COELHO guarda-roupa GRAÇA CUNHA direção técnica JOSÉ CARLOS NASCIMENTO. VERA AZEVEDO maquinaria e mecânica de cena VÍTOR GAMEIRO. LUZIA MESQUITA. PATRÍCIA ANDRÉ pontos CRISTINA VIDAL. JOSÉ NEVES. PAULO BRITO. PEDRO LEITE auxiliar de camarim PAULA MIRANDA. MANUEL GUICHO. CARLA CEREJO. TIAGO MANSILHA assessoria de imprensa JOÃO PEDRO AMARAL produção de conteúdos MARGARIDA GIL DOS REIS* design gráfico JOÃO NUNO REPRESAS*. MANUEL COELHO.
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