A memória como desafio para a história do tempo presente: notas sobre narrativas e traumas Eduardo Meinberg de Albuquerque MaranhãoFilho1 Resumo: Ao abrir sua caixa de ferramentas, o historiador do tempo presente tem ao seu dispor rico instrumental, com especial relevo para a identificação e a análise das questões da memória e da narrativa. Proponho aqui um diálogo sintético entre autores que se debruçaram sobre a memória e a história, bem como sobre a experiência traumática, procurando proporcionar apontamentos iniciais em relação à importância do lembrar e do narrar ao historiador do presente e do imediato e tangenciando a questão da memória como um desafio a este historiador. Palavras-chave: História do Tempo Presente - memória – narrativa The memory as a challenge to the present time’s history: notes on narrative and trauma Abstract: Opening his toolbox, the historian of present time has at its disposal a rich instrumental, with particular emphasis on the identification and analysis of issues of memory and narrative. I propose here a synthetic dialogue between authors that focused on memory and history, as well as the traumatic experience, seeking to provide initial notes about the importance of remembering and narrating to the historian of the present and the immediate and touching the question of memory as a challenge to this historian. Keywords: Present Time‟s History – memory – narrative 1 Doutorando em História Social – USP, mestre em História do Tempo Presente – UDESC, especialista em Marketing e Comunicação Social - Cásper Líbero, bacharel e licenciado em História – USP. Pesquisador do Núcleo de Estudos em História Oral - USP. Contato:
[email protected]. De volta para o passado. Talvez esta expressão defina um pouco o tempo permeado por esta memorymania, este momento de potente valorização da memória em que vivemos. Como sugeriu Andreas Huyssen, nossas práticas atuais sobre a memória circulam pela restauração historicizante dos centros urbanos, cidades-museus, explosão das modas retrô e objetos reprô, comércio da nostalgia e automusealização através das vídeo-cams. Este transbordamento da memória se justificaria pelo “desejo de nos ancorar em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fraturamento do espaço vivido” (HUYSSEN, 2000, p. 20).2 A linha de força em se identificar estas práticas da memória está em possibilitar que entendamos melhor a nós mesmos como pessoas inseridas numa espessura de tempo que demanda este enraizamento. Mas o historiador do presente e do imediato, por ser agente contemporâneo destas temporalidades, tem desafio importante pela frente: como relatar o que observa, vê e escuta sem se „contaminar‟ com as fontes e comprometer irremediavelmente seu trabalho? Antes de apontar para possíveis respostas, gostaria de sublinhar algumas das discussões sobre a memória e a história, tangenciando a questão das narrativas histórica e de memória e a questão do trauma. A memória como mecanismo capaz de ancorar o indivíduo psiquica e socialmente pode ser identificada quando Ecléa Bosi narra: Outro dia, caminhando pelo Viaduto do Chá, observava como tudo havia mudado em volta, ou quase tudo. O Teatro Municipal, repintado de cores vivas, ostentava sua qualidade de vestígio destacado do conjunto urbano. Nesse momento descobri, sob meus pés, as pedras do calçamento, as mesmas que pisei na infância. Senti um grande conforto. Percebi com satisfação a relação familiar dos colegiais, dos namorados, dos vendedores ambulantes com as esculturas trágicas daópera que habitam o jardim do teatro (BOSI, 2009, p. 444). Ecléa oferece aqui um mapeamento da subjetividade e afetividade transbordantes da memória, onde lembrar funciona como mecanismo de amparo e estabilidade. 2 Publiquei na edição 7 (2009) de História Agora – Revista de História do Tempo Presente uma resenha intitulada „Passados presentes. Da sedução pela memória à análise de nós mesmos ‟, onde esboço algumas das ideias contidas em Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia; de Andreas Huyssen. tendo sua forma pura na imagem presente em sonhos e devaneios: o que fez Bergson foi dar à memória estatuto espiritual diverso da percepção. como também empurra. mas “os quadros sociais da memória”.‟ ” (BOSI. Para este. o passado não só vem à tona das águas presentes. Como contempla Bosi. e a pura exterioridade (a matéria). a rigor. 46). p. 2009. ocupando o espaço todo da consciência. religião. escola e profissão. é porque no tempo presente seus pares o fazem lembrar: “o maior número de nossas lembranças nos vem . falta. “as lembranças estariam na cola das percepções atuais. p. „como a sombra junto ao corpo‟. mas à dependência da pessoa com seu meio e grupos de referência. nem das relações entre os sujeitos e as coisas lembradas. 2009.Muitos autores fizeram mergulhos nos estudos da memória. que se propõe a estudar não a memória. o que para Bosi atribuiría à memória uma “função decisiva no processo psicológico total: a memória permite a relação do corpo presente com o passado e. latente e penetrante. se o indivíduo recorda. Para Halbwachs. Mas esta lacuna é de algum modo preenchida pela teoria psicossocial de Maurice Halbwachs. um tratamento da memória como fenômeno social” (BOSI. 47). misturando-se com as percepções imediatas. interfere no processo „atual‟ das representações. ou do souvenir (de sous-venir: trazer à tona o submerso) de Bergson sugere que o afloramento do passado combina-se com o processo corporal e presente da percepção. ao mesmo tempo. o passado aflora na consciência na forma de imagens-lembrança. como a família. „desloca‟ estas últimas. onde as relações não se adstringem ao cosmo individual (com seu espírito e matéria). 54). defrontam-se a subjetividade pura (o espírito). 2009. oculta e invasora (BOSI. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa. para quem através da memória.” Deste modo. classe social. como lembra Bosi. p. A rica fenomenologia da lembrança. A memória seria o „lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas. onde reside a percepção. Para Bergson. não há em Bergson a “tematização dos sujeitos -quelembram. como estão ausentes os nexos interpessoais. dentre eles o filósofo Henri Bergson. onde se situa a memória. racional e político. Não é necessário que outros homens estejam lá. Para Halbwachs. espontâneo e desinteressado. que se distinguam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem (HALBWACHS. nossos amigos. a memória individual tem como lastro a coletiva. a História desconfia da memória pois esta não se baliza nos supostos . tal como para Beatriz Sarlo. Como é conhecido. 34) Para ele. a disciplina histórica não se instala comodamente no anacronismo”. subjetividade e narrativa. é sempre anacrônica. Para ele a memória. aos quadros sociais que o indivíduo compartilha no presente. levando à manipulação da narração desta memória. 2007. Sobre a discussão entre memória e História. quando cessa a tradição. que por sua vez se amarra à tradição popular. pp. em realidade. memória coletiva de cada sociedade. a memória é algo natural. a memória individual se condiciona à coletiva. e para ele. A História é narrativa de fatos mortos. enquanto “para as narrações testemunhais o presente da enunciação é a própria condição da rememoração – sentem-se confortáveis no presente porque é a atualidade que possibilita sua difusão” (SARLO. enquanto a História é processo interessado. e o esquecimento só ocorre quando a pessoa se desvincula de determinada comunidade. quando a memória social e coletiva se decompõe. ou outros homens. revelador do presente. nossas lembranças permanecem coletivas. termos opostos inclusive na criação da expressão “memória histórica”. para quem “inscrita na confluência de temporalidades de sua escrita e de seu objeto.quando nossos pais. é que se inicia a História. 1990. introdução). mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos. 1990. evocada só quando não há mais tradição nem memória. e com objetos que só nós vimos. A memória coletiva não se confunde com a História. É porque. no-las provocam” (HALBWACHS. nunca estamos sós. p. e elas nos são lembradas pelos outros. 57-59). guardando do passado apenas o que pode ser útil enquanto elo entre este e o presente. Para Halbwachs. Sarlo contempla que enquanto a primeira não confia numa matriz que não coloca em primeiro plano a rememoração. laicizante. na imagem. Já para Pierre Nora. um elo vivido no eterno presente. e também “vulnerável a todos os usos e manipulações. A memória emerge de um grupo que ela une. sensível a todas as transferências. a memória não se acomoda a detalhes que a confortam. no espaço. A história. p. A história só se liga às continuidades temporais. pertence a todos e a ninguém. A história. ao contrário. susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações” (NORA. os grupos de memória povoam suas lembranças e reverberam as tradições. porque operação intelectual e laicizante. globais ou flutuantes. ela se alimenta de lembranças vagas. às evoluções e às relações das coisas. no gesto. a história liberta. por natureza. A memória é um fenômeno sempre atual. particulares ou simbólicas. plural e individualizada. de justiça. demanda análise e discurso crítico. aberta à “dialética da lembrança e do esquecimento. p. alternar a análise entre a “mirada interior”.metodológicos historiográficos e não contextualiza o rememorado na espessura da duração. conduzida por grupos vivos. 1993. telescópicas. que há tantas memórias quantos grupos existem. de subjetividade)” (SARLO. e a torna sempre prosaica. coletiva. o que lhe dá uma vocação para o universal. 1993. Porque é afetiva e mágica. que ao . Um caminho é o de afastar-se do “dilema paralisante” sobre o caráter coletivo ou individual da memória. o que quer dizer. censura ou projeções. Para ele. em permanente evolução. 9). 2007. no objeto. é importante que o plano afetivo (e até criativo) da memória seja levado em conta pelo que anota as narrativas de memória. Mas pode-se avaliar isto: até que ponto a História contada e apropriada não adquire sentido de sacralidade? De toda maneira. a história. a memória coloca a lembrança em um plano sagrado. e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida. ou como diria Paul Ricoeur. A memória se enraíza no concreto. centrada na subjetividade e afetividade do que lembra e narra e a “mirada exterior”. Nora aponta que a memória se reveste da aura sagrada da verdade narrativa. enquanto a História dessacraliza a memória por ser uma atividade crítica e problematizadora: A história é reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. 9). uma representação do passado. A memória instala a lembrança no sagrado. que ela é. possuindo lado afetivo. enquanto a História dessacralizaria a memória. como Halbwachs o fez. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo (NORA. devidamente acompanhado do exercício crítico historiográfico. inconsciente de suas deformações sucessivas”. múltipla e desacelerada. p. “nem sempre a história consegue acreditar na memória. Como ela conta. cenas. 9). de percepção do novo?” (BOSI. 56). como entender a surpresa. Para Bosi. que parece ser a mais distante possível do coletivo (e assim a mais próxima da memória pura de Bergson) não fugiria às determinações do tempo presente. fomentada pela subjetividade e memória. O que existe para Ricoeur é a atribuição múltipla da fenomenologia da memória com um compartilhamento: a memória tem um caráter individual que pode se associar ao da coletividade. refazer as experiências do vivido com as imagens e ideias do presente. Como considera Bosi. há no discurso uma hegemonia do presente sobre o passado. pois não somos os mesmos daquela época: temos novas percepções sobre o mundo e novos juízos de valor. por mais nítida que pareça uma memória sobre a infância ou adolescência.3 Assim. até a lembrança do sonho. 2009. devendo-se duvidar da sobrevivência do passado “tal como foi”: a lembrança é uma imagem que se constrói pelos materiais disponíveis na atualidade. Para Halbwachs. se o sonho tivesse imergido à mente do sonhador em um coral simultâneo de vozes. Desta maneira. não se valida a inferência bergsoniana de uma memória intacta e total: esta só existiria caso a pessoa tivesse intacto todo um sistema de representações. percorreria as alamedas dos quadros sociais da memória perscrutando nelas suas (re)construções. no conjunto de representações que povoam nossa consciência presente.exemplo de Halbwachs. mas sim reconstruir. com a formação de dois tipos de inteligibilidade (narrativa e explicativa ou causal). repensar. para quem seria “inevitável a marca do presente no ato de narrar o passado”. em Halbwachs mostra a evanescência das categorias “diurnas” que as secundam. que comporta sempre um momento de separação. Para Sarlo. contemplando que “os tempos verbais do passado não 3 Para Bosi. . imaginários. Ela cita Paul Ricoeur. se em Bergson o sonho é ilustrado como exemplo da liberdade pura da memória. ela não tem mais o mesmo sentido ou imagem que experimentamos anteriormente. p. E a (re)construção do passado não se opera somente através dos quadros sociais da memória: ela também se identifica na narrativa que o indivíduo faz sobre suas experiências. para Halbwachs a memória não é sonho. hábitos e relações com suas experiências anteriores. recordar não é reviver o acontecido. de estranhamento. Ela ilustra com o sonho em que um ente falecido aparece vivo: “se o sonho tivesse borrado completamente a dimensão do tempo histórico (dimensão social). passadas e presentes. é trabalho. Aproveito e aprofundo algumas destas discussões.ficam livres de uma „experiência fenomenológica‟ do tempo presente da enunciação” (SARLO. possibilitando maior proximidade com o narrado e o ocorrido. “sem essa realidade. melhor dizendo. bem como sobre possíveis metodologias para a História do Tempo Presente. muitas vezes reformulando ou dando novos significados àquilo que escuta. para restablecer una verdad incompleta o deformada. é desejável que os escritos retornem ao entrevistado para sua correção e autorização de uso. 1991. da UERJ. embora estando ele próprio inserido num espaço e num tempo” (GINZBURG. por lo que el autor de la autobiografía se impone la tarea de presentar el mísmo su historia (GUSDORF. Para o autor. 217). describen el personaje exterior. por muy bien intencionados que sean. descontínuo. especialmente a do Presente. se equivocan siempre. publicado em 2009 na Revista Intellèctus. 12). Certeau notou que havia um “discurso sobre câmaras de gás. 216). A elaboração da narrativa histórica também é notada por Georges Gusdorf. p. para quem o historiador “escreve. vol. y no la persona. Carlo Ginzburg lembra do comentário de Michel de Certeau. lembrando que ainda há muito a ser pensado sobre as relações entre memória e História. y es precisamente para aclarar los malentendidos. ou mesmo dum autobiógrafo. 2007. la apariencia que ellos ven. 49). Nadie mejor que el propio interesado puede hace justicia a sí mismo. la qual se les escapa. aquém disso. mas que além ou. 2007. 2007. p. p. Mas daí podemos pensar duas coisas: no caso da entrevista de história oral. como se faz para distinguir entre romance e história?” (GINZBURG. também não tem suporte no acontecido com todos seus detalhes: ele mesmo faz suas seleções e recortes de acordo com o caráter involuntário. outra coisa é que a „verdade‟ deste entrevistado. para quem Los otros. fragmentário e criativo da memória. continuarei a chamar de realidade”. 4 Expus anteriormente algumas das ideias de Sarlo (e de outros autores utilizados aqui) em „Grandezas metodológicas para uma História do Tempo Presente a partir de Beatriz Sarlo e seu Tempo Passado‟. A pessoa que conta a história de outra provavelmente não saiba do ocorrido tão bem quanto a que narra. ano 8. que tudo devia passar por dizê-lo. havia algo de irredutível.4 A (re)construção do vivido também imerge da narrativa do próprio historiador. I. . que na falta de melhor. p. produz um espaço e um tempo. Sua própria narração é assim deformada e incompleta. 2007. “Croce havia mencionado a distância. ao interrogar a testemunha constrói sua fonte. Sarlo identifica como construção do passado o que ela chama de “imposição da memória”. durabilidade e inspiração” e o relato “de como tornamos o mundo conhecido de nós mesmos e como nos tornamos conhecidos do mundo” (POSTMAN. Mais que isto: por residirem em tempo imediato às entrevistas. cria cosmovisões e fabrica mundos. do seu fim. sendo “narrativa de poder. e de nada mais” (GINZBURG. do seu momento. 1999. trazendo à superfície memórias e narrativas que provavelmente teriam esbarrado nos crivos do tabu. p. sublinhada por Tolstói em Guerra e Paz. a linguagem.E Robert Frank lembra a contemplação de Jacques Ozouf: a narrativa é fonte provocada pelo historiador oral que. estas pessoas se situam no presente. mirando para a distinção entre acontecimento real. que servem de base para os relatos dos historiadores” (GINZBURG. do trauma e do interdito. perguntas e metáforas. 2002. por exemplo – e as lembranças fragmentárias e distorcidas deste. p. A batalha. Croce recorda que “um documento é um fato. através do uso de definições. bem como seus processos de rememoração (e esquecimento) e narrativa. 109). 228). através da duração que separa o momento rememorado do momento do relato” (FRANK. Já Neil Postman aponta para a potência do discurso na construção da narrativa histórica sobre o passado. 229). Para ele. Todo depoimento dá testemunho de si mesmo. p. notando também que “a memória não é somente construção mas reconstrução. 170). Por estarem vivas. da sua origem. um outro fato (uma infinidade de outros fatos)” e que “o homem que age é um fato e o homem que conta é outro fato. possuem novo arcabouço de informações sobre . entre um acontecimento real – uma batalha. 2007. Como ilustra Ginzburg. Um processo de rememoração e narrativa mais “espontâneo” e supostamente mais próximo do vivido teria de desencadeado através da pressão exercida por Lanzmann. que pressiona psicologicamente sobreviventes dos campos e aldeões poloneses a lembrarem de suas experiências traumáticas. p. Para Croce. memória sobre o acontecido e narrativa sobre o mesmo. ilustrando com o filme Shoah. o fato e o discurso sobre este se associam mas não são a mesma coisa. de Claude Lanzmann. é possível pensar que estas imagens do passado. podem auxiliar a trazer de volta o acontecido. 2007. rememorado e narrado). Sobre o indizível da „zona cinzenta‟. estes assumindo “a primeira pessoa dos que seriam os verdadeiros testemunhos: os mortos” (SARLO. Aqui percebe-se a aplicação da reconstrução do passado através dos quadros sociais da memória. p.os acontecimentos. como propusera Halbwachs. E ao mesmo tempo. a ponto de rivalizar com as outras necessidades elementares”. não havendo “indizível do lado da emissão da . também anotando a urgência que o sobrevivente tem em narrar. por estarem mortos. 35). p. o testemunho dos „sobreviventes‟ ” seria sempre incompleto. Annette Wieviorka entende que as pessoas não teriam dimensão da extensão da tragédia. como sobrevivente dos campos. Ginzburg sublinha que “a memória e a destruição da memória são elementos recorrentes na história” e que para Levi a necessidade de contar e de fazer os outros participarem havia adquirido “antes da libertação e depois. na necessidade de narrar como “dever para com todos aqueles que conheceram a função última do campo de concentração: a morte”. se via forçado a competir com os seus. o caráter de um impulso imediato e violento. O interesse contemporâneo pelas narrativas de sobreviventes de campos de concentração sublinha uma questão que se mostra rica e relevante: a importância em se rememorar e se narrar os traumas do tempo presente. o que se corrobora no próprio sentido da palavra testemunha em latim (superstes): „sobrevivente‟ (GINZBURG. Aqui se aponta para o interdito: até que ponto o que sobrevive se constrange a contar uma experiência traumática como esta? Ultrapassando a experiência traumática em seus três eixos (acontecido. Levi se vê. contaminado pelos dados veiculados pelas mídias e conhecendo mais sobre os fatos ocorridos do que no tempo vivido. como na proposição do ídeo-motor de Bergson. Sarlo se vale de Primo Levi ao entender a memória como matéria-prima dos sentimentos humanos e da indignação: as narrativas de Levi mostram o lado oculto e imoral da guerra e a completitude do desastre bélico através da figura do „afogado‟ na „zona cinzenta‟. transmitidas e aprendidas. Para Levi. 2007. que para sobreviver. tornando-se espécie de cúmplice destas mortes. 230). além de representar demandas sociais por respostas. indizível ou não. 114)”. p. espécie de catarse de traumas e libertação contra a alienação e massificação midiática que encobririam a verdade. Para ele. mas antes má recepção da parte da sociedade do momento. pessoal ou nacional. 1999. Loftus argumenta ser difícil estabelecer a veracidade de lembranças traumáticas justamente pela dificuldade de se dissociar lembranças verdadeiras de falsas. Pesquisadores de áreas como a psicologia podem ajudar a pensar na importância das informações do presente na rememoração. pois. o narrador pode também redimir ou retirar de si possíveis culpas. portanto. a memória assume uma função de desculpabilização e. para ela. “porque não compreendia o inimaginável. de mitificação. Os instrumentos conceptuais que permitiriam a apreensão do fenômeno do genocídio não existiam (FRANK. ao fornecer às testemunhas de um acontecimento informações novas. cujo relevo estaria em permitir a identificação destas possíveis falhas na recepção da mensagem. 1999. para a autora. dando a si mesmo aspecto mais “inocente”. também se identificam como mecanismo de “healing social” ou cura identitária. suas lembranças com freqüência se transformavam. revelaria a incompreensão da população em relação ao que ocorria em Auschwitz.112). Para a mesma. Esta sociedade. Para ela. a falsidade só é comprovada quando os fatos contradizem as lembranças. Como nota Frank. Mas ao se exercer as escolhas típicas do lembrar. Frank relata que quando surgia numa conversa uma pessoa muito magra. o trabalho crítico do historiador não se faz. não estava pronta em 1945 para entender. essa face oculta. sugeridos por Halbwachs. Para Frank. Sarlo salienta que a memória social. se perguntava: “como está magro. porém fictícias. A escolha em se inquirir sobre Buchenwald e não Auschwitz. Elizabeth Loftus conduziu experiências feitas com pacientes sugeridos a crer em lembranças de supostos maus-tratos na infância e comentou que. e mesmo de mistificação”. da mesma maneira segundo as diferentes questões de memória (FRANK. recorrendo a análises estatísticas . o símbolo do horror seria Buchenwald e não Auschwitz. Entretanto. mas não revelada nos documentos escritos só pode ser identificada nos depoimentos orais. “em seu mecanismo de reconstrução. você esteve em Buchenwald?”. apontando aos quadros sociais da memória.mensagem. p. 93). Já a fundação criada em 1992 denuncia os excessos dos psicoterapeutas que erram ao ver a produção da memória póstraumática como representação autêntica da verdade histórica (TOPALOFF. 92). Aqui se aponta para a questão da „verdade‟ que encobre a narrativa da memória. p. p. além de considerá-las mais nítidas. Michel Topaloff contempla a polêmica a respeito do uso das narrativas de memória pelos psicólogos estadunidenses. 2007.comparativas. as “falsas lembranças são elaboradas pela combinação de lembranças verdadeiras e de sugestões vindas de outras pessoas” (LOFTUS. nas psicoterapias. de modo geral. e tanto a psicologia como a psicanálise podem dotar o historiador de espinha teórica mais consistente neste sentido. Há uma oposição de ideias entre os proponentes do Movimento das Lembranças Recuperadas (Recovery Movement) e os da Fundação da Síndrome das Lembranças Falsas (False Memory Syndrome Foundation): os primeiros se apóiam na ocorrência. sublinhando desafio ao historiador da proximidade. A autora ainda indaga: não se conhecem ainda os mecanismos exatos da elaboração das falsas memórias. fazer juízo de valor e criticar a construção da memória e da narrativa do trauma? Uma possível alternativa está em conhecer melhor os mecanismos psíquicos de processamento da memória e da narrativa. Nesse caso. 2007. pode se criar um efeito de inflação da imaginação. Quais são as características das lembranças induzidas? Essas falsas recordações seriam duráveis? Todos somos “sugestionáveis” ou existem predisposições físicas ou emocionais? Os estudos alertam: os profissionais precisam saber que correm o risco de influenciar seus pacientes e deveriam limitar o uso da imaginação no ressurgimento de lembranças supostamente perdidas (LOFTUS. Como identificar. Ainda segundo ela. onde se misturaria a proposição de determinado evento a acontecimentos reais. p. 92). 2007. a pesquisadora diz que. de „lembranças‟ traumáticas até então recalcadas. o fato de imaginar um acontecimento o tornaria “mais familiar. e a familiaridade é então falsamente associada às lembranças de infância”. as lembranças verdadeiras diferem das falsas pois os participantes usam de um número de palavras superior para descrever as lembranças quando verdadeiras. Assim. . Agnès Chaveau e Philippe Tétart explicam que essa produção histórica tem como raízes o “aumento e a aceleração da comunicação. onde “de um lado. morais. mas também adota um foco próximo dos atores e acredita descobrir uma verdade na reconstituição de suas vidas” (SARLO. p. Por outro lado. p. e neste sentido. Assim. uma linha de história para o mercado não se limitaria “apenas à narração de uma gesta que os historiadores teriam ocultado ou ignorado. destacando os pormenores cotidianos articulados numa poética do detalhe e do concreto”. 10). pp. De modo assemelhado. a história social e cultural deslocou seu estudo para as margens das sociedades modernas. encerrando o caso mais monstruoso de nossa história”. a elevação do nível de estudo e a força dos engajamentos ideológicos. a memória tem o dever de reconstituir o passado recente com seus traumas. Como é possível que seres humanos imputem tanta dor a outros? A questão da demanda social em obter esclarecimentos a respeito de traumas coletivos é provavelmente o maior fator de emergência da História do Tempo Presente. fenômenos como o holocausto são vistos também como necessidade jurídica: “é evidente que o campo da memória é um campo de conflitos entre os que mantêm a lembrança dos crimes de Estado e os que propõem passar para a outra etapa. E mais que um dever de estado. TÉTART. especialmente em relação aos regimes autoritários vividos a partir dos 1960 na América Latina e a partir dos nazi-fascismos. a renovação progressiva da imprensa e da edição.A experiência de rememorar e contar pode ser relevante ao que sofreu diretamente o trauma. modificando a noção de sujeito e a hierarquia dos fatos. 1999. Para Sarlo. no desabrochar da História do Presente estariam o impacto de geração e o fenômeno da demanda social. a memória seria . mas há também o aspecto coletivo do trauma: há uma sociedade ávida em compreender a extensão do inimaginável. 2007. Além disto. tanto por sua emergência em narrar quanto em um possível processo de superação deste. Sarlo alerta para que “as operações com a história entraram no mercado simbólico do capitalismo tardio” (SARLO. dos anos 5060” (CHAVEAU. 2007.17). 1112). não se pode nem se deve dizer. ela está procurando gestionar o dizível e o indizível. as repetições (SARLO.um campo de conflitos para os que afirmam ser o terrorismo de Estado um capítulo que deve permanecer juridicamente aberto. . dizendo o que é proibido através da simulação do senso comum. determinando o que. de processos de resistência à dominação. produzindo sentidos que não lhe são proibidos. as que recebem a opressão uniformizadora e destruidora das memórias oficiais e anseiam por adentrar no espaço público: as memórias em conflito. 76-79). Para ela. a censura afeta a identidade do sujeito. a começar pela escola. A memória como caso de estado e conquista social é polêmica. Orlandi identificou que há modos diferentes de fazer significar os sentidos interditos. Para Pollack. relembrando-as. interditos (ORLANDI. Ele dá atenção às memórias subterrâneas ou dissidentes. e que o que aconteceu durante a ditadura militar deve ser ensinado. o sentido dado por Eni Orlandi é que as palavras são proibidas para interditarem a inscrição do sujeito em formações discursivas determinadas. 2007. 2007. pois este só pode se ocupar do que lhe é permitido. do consenso e do estereótipo. e lembrar e esquecer emergem de lugares de disputas. pp. p. Analisando canções de Chico e de Paulinho da Viola. se articulam e rearticulam através de sujeitos individuais e coletivos. sendo “campo de conflitos” e relembrando as “memórias em confronto” do sociólogo austríaco Michel Pollack. Este samba. do dizível. 20). caracterizado pela bifurcação de sentidos e deslocamento da interdição. envolvendo interesses dos que querem saber e reivindicar justiça e dos que a querem esconder ou deformar. É um campo de conflitos também para os que sustentam que o „nunca mais‟ não é uma conclusão que deixa para trás o passado. discutido. Assim. mas uma decisão de evitar. como nos casos de recusa à censura promovidos pelo samba-duplex de Chico Buarque. Ao comentar sobre a censura do lado da opressão. havendo assim um enquadramento social da memória. faz outros sentidos significarem. divulgado. a palavra silenciada (não-dita) e interditada é substituída fazendo com que o silêncio signifique. Mas a mesma linguagem cria possibilidades do interdito encontrado submerso vir à tona. quando a pessoa silencia ou se esquece (ao contrário da ideia de Halbwachs de que o esquecimento é desapego à comunidade). ela/Mandela). metáforas. dever do estado e necessidade jurídica. cantar em línguas estrangeiras como espanhol para falar de Cuba. como em “diz que tá dura”. usar formas discursivas como a carta. 2007. referências à fauna ou flora do Brasil. Assim. onde silenciando um dos termos (o segundo) se encaminharia ao não-dito. Bárbara).Dentre estas maneiras. como em Fantasia („Canta mais/preparando a tinta/enfeitando a praça‟) e em Chorinho („A praça fica cada dia mais vazia‟). está cantar o amor para cantar “outra coisa”. mas sim aos policiais e suas filhas. jogo com o significante através da construção de anagramas. indicando o exílio quando vinda de fora (Meu Caro Amigo) e a repressão quando de dentro. a resistência operária. francês e italiano sugerindo o exílio ou em português luso (como em Revolução de Abril). política e moral”. como „preste atenção‟. p. E estes sentidos são significados para além do alcance do compositor e intérprete. como em Cálice (74/78). cuja memória se constitui em “bem e direito comum. como anuncia Orlandi ao comentar que a frase „Você não gosta de mim mas sua filha gosta‟. que ao prendê-lo. a metáfora se referindo a fatos históricos. e ainda a referência a autores que falavam sobre revoluções. construções com uso de proparoxítonas. Sarlo entende que não se deve questionar nem “o núcleo de verdade do . como em Passaredo com sua referência ao bico calado. em Cobra de Vidro. que sugere ditadura. com o discurso romântico encobrindo a crítica política. “Chico já não decide: ele mesmo faz parte dos sentidos que inaugurou” (ORLANDI. pediam autógrafos para suas filhas. onde se relaciona os sentidos à história da censura de uma música à outra. relação intertextual. em que boi significa subversivo: „É fora da lei/é fora do ar/segura esse boi/é proibido voar‟. por mais que haja uma intenção em significar. me chame/Pra tomar um mé‟). como Orwell e Brecht. cantar mulheres com seus sentidos políticos (Ana de Amsterdam. há múltiplas possibilidades de recepção que resignificam o que o portador do discurso imaginou transmitir. repetição de expressões. como em Linha de Montagem („Samba samba São Bernardo/Sanca São Caetano/Santa Santo André? Dia-a-dia Diadema/Quando for. Retornando aos testemunhos do Holocausto e regimes totalitários. cantar lendas nacionais como em Cobra de Vidro (73). jogo com o significante através da rima (ura/ditadura. Para ela. que remete ao “cale-se”. 123). Estes deslocamentos de sentido são apontados por construções linguísticas como a substituição. não foi oferecida por Chico à filha de Geisel. para quem deve haver um equilíbrio entre fontes vivas. p. pondo em primeiro plano argumentos morais apoiados no respeito ao sujeito que suportou os fatos sobre os quais fala (SARLO. é importante crer nestes testemunhos como forma de implantação e confirmação do exercício democrático e para a preservação dos direitos sociais. em que o valor dos mesmos seja “estabelecido através de uma série de cotejos”. porém. Ela entende que o testemunho. ou de uma série “que inclua pelo menos dois documentos” (GINZBURG. massa documental escrita abrangente e materiais como os áudio-visuais. fontes sonoras como discursos e . nem o seu discurso”. p. exige não ser submetido às regras que se aplicam a outros discursos de intenção referencial. por sua auto-representação como verdade de um sujeito que relata sua experiência. Ginzburg alerta que a análise de testemunhos deve ser feita através da prática historiográfica convencional. p. 38). a crítica da verdade da voz e de sua ligação com uma verdade da experiência que afloraria no testemunho é necessária”. 2007. A importância de comparar as narrativas com outras fontes e documentos é sublinhada por Sarlo. p. Assim. Para Sarlo. Para ela. 214). Sarlo advoga que se deve acreditar em sua verdade referencial como sinal de respeito ao que atravessa traumas como o da experiência nos campos de concentração: o testemunho exige que seus leitores ou ouvintes contemporâneos aceitem sua veracidade referencial. “a crítica do sujeito e de sua verdade. fazendo com que tanto a narrativa quanto o narrador sejam protegidos de indagações e questionamentos. Em outros casos. 2007. 2007. mas nem sempre traz em si mesmo as provas pelas quais se pode comprovar sua veracidade. Para ela. “todo testemunho quer ser acreditado. 38). De modo similar. elas devem vir de fora”. quando não a do sofrimento. alegando a verdade da experiência.acontecimento vivido. que é justamente a que deve ser examinada (SARLO. 2007. 38). sendo preciso “submeter os testemunhos às regras que se aplicam a outros discursos – a crítica das fontes” (SARLO. ela recomenda que se proceda de acordo com os critérios usuais à historiografia. deve–se perceber que o mesmo pode ocorrer por esforço consciente. de mitos. embargos. o historiador tem muito o que fazer para corrigir e desmistificar” (FRANK. esconder algo. a memória “é insubstituível em muitos casos. a ocultação e o esquecimento costumam ser os mesmos: trauma. p. a pessoa escolhe não falar sobre algo perguntado. analisando os erros e mitos veiculados por ela. vontades conscientes e inconscientes.5 Frank aconselha a passar a memória no crivo da crítica. graças às testemunhas que interroga. sabe ainda fazer-nos chorar. Na ocultação. de vez em quando.fonogramas. mas também inconsciente. atos falhos. mas ela é também geradora de erros. insegurança e indizível. mas escondida a nossos próprios olhares. para melhor dizer. É graças a tal esquecimento que podemos. quando todas as nossas lágrimas parecem ter secado. de mitologia e. 2007. 112). reencontrar o ser que já fomos. a melhor. falseamentos. 1999. visuais como quadros e fotos e mistas como filmes e documentários são ricas e podem dizer mais que as memórias e narrativas testemunhais. poder fazer a arqueologia da memória coletiva” (FRANK. cobrir a fonte de luz e esclarecimento. sobre fragmento da memória. Os motivos que operariam o silêncio. num cheiro de quarto fechado. coletiva ou oficial. A ocultação pode ser feita pela memória individual. Para ela. há o claro e consciente desejo de ocultar. e sim uma forma de se chegar mais próximo de uma “verdade”. lembrando da involuntariedade da memória. ou no de um primeiro fogaréu. em toda parte onde encontramos de nós mesmos o que nossa inteligência rejeitara. entre traumas. Convém também reconhecer possíveis causas do embargo ou falseamento. Frank aconselha que se estude os silêncios. por julgá-lo inútil. 107). colocar-nos face a face às coisas como o era 5 Tendo a memória como objeto. No esquecimento. diferenciando os mesmos: no silêncio. dando indícios da manipulação da memória e do discurso narrativo. A análise do historiador deve identificar no discurso falhas. tabus. selecionando e hierarquizando as informações e as colocando no horizonte histórico. medo. colocando-os em perspectiva histórica. a última reserva do passado. Fora de nós? Em nós. . aquela que. tabu social. ausências. Para este. identificar através de documentos escritos não é um vetor reificante da subjetividade. que não resulta da submissão a uma perspectiva memorialística oral limitada. esquecimentos e ocultações. num esquecimento mais ou menos prolongado. Frank demonstra certa desconfiança em relação à memória como fonte para a História. p. evidentemente. como demonstrou Marcel Proust: está numa brisa chuvosa. ainda que seja “uma grande sorte para o historiador do presente. assinalando suas fraquezas. E no caso de um trabalho com história oral. a melhor parte de nossa memória está em nós. não é o que o indivíduo tem de mais seu. descontínua e fragmentária. ao contrário. 493). Para Frank. 84). pois.essa criatura. a memória pode servir ao pesquisador não apenas como fonte. no presente se têm as lembranças colocadas em narrativa. suas luzes e suas sombras. Mas haveria a alternativa de se lutar contra esse processo de criação de idéias e modismos. 1999. p. pertencem ao presente todas suas possíveis etapas: elaboração do projeto. para quem a memória é desorganizada. recebida e consumida. mas como objeto de análise. essencialmente fabricada. A ideologia fornece uma grade de análise de mundo que se ampara num principio de inteligibilidade. é ele quem amava a pessoa que agora nos é indiferente (PROUST. Outra forma de construção da narrativa histórica está na força dos interesses políticos no presente e como o passado recente pode ser utilizado para fins políticos. interpretação e colocação na espessura da duração temporal. transcrição. para o historiador. e segundo Jean-François Sirinelli num sentido de história. e submerge no presente. histórias e subjetividades. 2007. retorno ao entrevistado e publicação.6 Isto aponta para outro dos desafios que se impõem ao historiador do hodierno que trabalha com memória e narrativa: identificar nos discursos coletados a reverberação destes 6 Essas ideologias construiriam então memórias. a subjetividade é movida e construída pela mídia e inserida no capitalismo. para Guattari. com suas verdades e mentiras. porque não somos mais nós mas ele. essa subjetividade é de natureza industrial. Para Proust. Para o autor. Assim. p. seus problemas e suas certezas. tomada globalmente. estão num “processo de singularização”. de difusão e de recepção através da contra-cultura. 112). p. 2002. principalmente o capitalismo. segundo ele. Essa subjetividade. Para Guattari. um objeto de estudo” (FRANK. . o historiador deve forçosamente fazer a “interferência – para recusá-las ou fazê-las suas – entre as ideologias que impregnam uma sociedade e as suas preocupações científicas” (SIRINELLI. as subjetividades que lutam contra essas modelizações é que devem ser percebidas e estimuladas. a partir da criação do desejo e do instinto de compra. modelada. A este respeito também se refere Felix Guattari. sofrer de novo. certezas e contradições: “a memória é também. textualização e transcriação. armam tipos de “maquinarias” para construir subjetividades. maquínica. ao ser confrontado “com essa questão da existência – ou não – de um tal sentido da história”. e deste modo. análise. entrevista. estudada a partir de suas pausas. que comenta que os sistemas político-econômicos. de uma necessidade de consumo. do embargo. principalmente inspiradas pelas aulas de Teoria e Metodologia da História do Tempo Presente assistidas durante o mestrado em História do Tempo Presente da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). a interesses políticos e ideológicos (nossos e do narrador). Quando o narrador esbarra em memórias que não atravessam as fronteiras do silêncio. a quem dediquei aquele artigo e dedico também este. alguns destes aspectos transbordam e outros emergem. como devemos agir? Como tratar a vida privada do que colabora com sua experiência? Deslizar entre o autorizado e o não-autorizado é desafio ao estabelecimento de uma conduta ética ao pesquisador do presente. onde trago algumas ideias sobre a questão. Ainda um pouco mais: é necessário que o pesquisador admita sua subjetividade e se perceba como indivíduo interessado e muitas vezes coadjuvante do acontecimento estudado: isto pode auxiliar a adquirir o recuo necessário em relação ao seu objeto de pesquisa. intitulado „ Anotações sobre uma História do Tempo Presente‟. edição do Boletim do Tempo Presente (UFRJ). Através das conversas com os narradores. atentos às leituras descontínuas.interesses. fragmentárias e afetivas e aceitando nelas a veracidade que alaga a subjetividade da memória e da narrativa. Estas aulas foram ministradas com generosidade pela professora Maria Tereza Santos Cunha. não como verdade a ser posta e imposta. Publiquei artigo na 28ª. Mas não somos nem memorialistas nem cronistas: somos analistas críticos das fontes e das 7 Muito há a se falar sobre as possíveis metodologias para uma História do Tempo Presente. Dar voz às memórias e narrativas de experiências traumáticas desafia o investigador do recente ao requisitar dele sensibilidade e exercício crítico: é saber escutar e respeitar os relatos da maneira como são contados. Em seu estudo. trazendo riquezas inesperadas.7 Considerações finais A memória é construto importante para a metodologia da História do Tempo Presente. ao indizível e ao silenciamento. mas como fundante no equacionamento de indagações sobre fatos que procuramos compreender. aos traumas e inquietações. devemos atentar à resignificação e reconstrução da lembrança e da narrativa. . do trauma. interpretação e crítica -. Como se diz. o que nos constitui como espécies de disciplinadores de memórias e narrativas alheias. Ao dar voz a estas memórias fragmentárias. organizam-se os sentimentos. recorte. „quem conta um conto. mas ao que já imaginamos saber antes de perguntar: é preciso assim. não induzir respostas. o contador o faz no presente. e escutar para se surpreender.memórias. seleção. esquecer e narrar são fundadores. mas por mais que abramos nossa caixa de ferramentas e nos utilizemos com consistência do que dispomos . e os interesses deste se moldam a partir de suas inquietações e curiosidades. É relevante que se identifique as vozes silenciosas dos violentadores. o historiador do hodierno deve atentar ao tracejamento do contorno das narrativas e identificar continuidades e rupturas. que nascidas em qualquer tempo reverberam no hoje. na qual relembrar. como o tempo da análise do pesquisador. Uma pesquisa de história oral. Devemos lembrar aos outros o que a névoa do tempo esfumaçou. tendo em mente que a interdição do discurso também inunda o silêncio dos perpetradores do trauma. mas também duvidar do que é lembrado e narrado. expressas nas perguntas que fazemos. hierarquização. mas admitir sua própria subjetividade. processando reaprendizado em relação ao vivido e reconfigurando o passado através das novas informações que possui e da experiência de vida adquirida até o momento da contação. o que pode legar um tipo de recuo: este distanciamento se dá não em relação à fonte viva e proteiforme que enseja diferentes graus de interação. é por excelência imbricada com o presente: o tempo da lembrança e da contação é o do agora.análise. A atenção à narrativa é fundamental: ao evocar a memória e contar. nossa pesquisa é atravessada por nossas escolhas e interesses. É atentar para as zonas cinzentas: o indizível dos que sofreram traumas. Ao relatar. O ofício do pesquisador deve-se pautar no exercício crítico de constituição da memória e da narrativa. é deixar falar. seletivas e interessadas em (re)contar. aumenta um ponto‟. incitando reinterpretações sobre o acontecido. o que aponta para a . estas áreas apontam para o efeito terapêutico que tem no narrar. mas também pelo condutor da entrevista: boa parcela da história se conserva. 2005. Henri. TÉTART. 1999. Tradução: Rosa Freire D‟Aguiar e Eduardo Brandão. 2009. Além disto. O fio e os rastros. Memória e sociedade. Questões para as Fontes do Presente. Micropolítica: cartografias do desejo. Verdadeiro. falso. contextualizações e o auxílio de fontes escritas e audiovisuais podem se fazer mister. Para preencher estes espaços. P. Questões para a história do presente. Lembranças de velhos. 1990. São Paulo: Companhia das Letras. Matéria e memória. GUATTARI. GINZBURG.. São Paulo: Companhia das Letras. 2007.). São Paulo: Martins Fontes. S. Carlo. Petrópolis: Vozes.reinvenção do acontecido pelo narrador. cujo vazio cheio de significados é matéria-prima ao que estuda a história viva. 15ª edição. Ecléa. mas outra parte é reinterpretação da narrativa. Referências bibliográficas BERGSON. É bem possível que experiências traumáticas sejam melhor elaboradas na psiquê através das narrativas de memória e que áreas fronteiriças como a psicologia e a psicanálise dotem o historiador de maior grade de inteligibilidade em relação ao que escuta. Felix. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. e daí o exercício da sensibilidade ao silêncio e ao segredo: atentar a eles é aprender sobre o outro. fictício. ROLNIK. BOSI. e às vezes no escutar. Robert. Ainda que lembrar seja importante e o saber “não ocupe espaço”. (Orgs. In: CHAVEAU. Bauru/SP: EDUSC. . A. o esquecimento e o segredo contribuem para um amparo psíquico e emocional. novas conversas. FRANK. e apreender o que as lacunas significam faz da memória a dialética do indizível. O fim da educação. 2002. . Tradução: José Laurenio de Melo. As falsas lembranças. Jean-François. Revista Viver – Mente e Cérebro. POSTMAN. Duetto Editorial. Andreas. Tempo passado. 2007. Bauru/SP: EDUSC. In: La autobiografía y sus problemas teóricos. Em busca do tempo perdido. A. Georges. Ed. A memória coletiva. Redefinindo o valor da escola. São Paulo. monumentos. Condiciones y límites de la autobiografia. n. Pierre. 93-94. P. 1991. Vol. HUYSSEN. TOPALOFF. LOFTUS. In: CHAVEAU.. São Paulo: Companhia das Letras.). 2ª. mídia. 07-28. ORLANDI. Campinas. PROUST. Tradução de Sergio Alcides. Edição Especial Memória. Duetto Editorial . 2007. HALBWACHS. p. Elizabeth. Maurice. Fantasia e realidade. 2000. São Paulo.GUSDORF. Seleção de Heloisa Buarque de Hollanda. Ideologia. Editora Revista dos Tribunais. Revista Viver – Mente e Cérebro. 1999. Marcel. In: Projeto História. As formas do silêncio. Eni Puccinelli. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Vértice. Madrid. Neil. Rio de Janeiro: Ediouro. Beatriz. 2007. 10. pp. Seduzidos pela memória: arquitetura. diciembre. (Orgs. SARLO. 2002. Michel. Rio de Janeiro: Aeroplano. dezembro de 1993. tempo e História. A sombra das raparigas em flor. p. P. NORA. 84. SIRINELLI. SP: Editora da UNICAMP. Graphia. Suplementos Anthropos 29. TÉTART. São Paulo: PUC. No movimento dos sentidos. Edição Especial Memória. Questões para a história do presente. 90-92. Rio de Janeiro. 1990. Entre memória e História: a problemática dos lugares. 2. 2007.