DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." José Geraldo Vieira A LADEIRA DA MEMÓRIA Editora Descaminhos São Paulo 2015 Copy right ©2015 by José Geraldo Vieira Vieira, José Geraldo A Ladeira da Memória São Paulo, Editora Descaminhos, 2015 Capa Marcio Scavone Edição e apresentação André Caramuru Aubert Produção editorial Clélia Aubert Revisão Douglas Batalha Leda Botton Todos os direitos reservados à Editora Descaminhos São Paulo - SP, Brasil Telefone: +55 11 3062-9057 E-mail:
[email protected] entre tantas qualidades contidas nestas páginas. O tempo. como A Mulher que Fugiu de Sodoma (1933). apareceu. seja na transfiguração . em 1952. os diálogos com a arte contemporânea. em 2003. quando afirma que “o seu refinamento vai mais fundo e chega mais longe enquanto molda criaturas extremamente instáveis e nervosas. com seus dramas e suas cicatrizes. do art nouveau. as questões éticas assombrando os protagonistas. não resolvido. é a reflexão a respeito da passagem do tempo. de longe. é sensível na construção de sua obra. talvez. onde há lugar para vigorosos lances existenciais”. aliás. Esse “tempo”. E ainda que outros livros de José Geraldo. nas décadas de 60 e 70. este talvez seja um de seus romances mais intimistas e tensos. em situar A Ladeira entre as mais refinadas realizações romanescas do Autor. na bela introdução que escreveu para a edição da Planeta: “Porque. é o aspecto mais destacado por Francisco Foot Hardman. É mais ou menos nessa linha que vai Alfredo Bosi. eu não hesitaria. tanto num plano mais amplo (histórico. quanto nos níveis individual e pessoal. A Ladeira. tenham causado mais barulho entre a crítica. A começar pelo lançamento no início de 1950. e as marcas que ele deixa. Anos depois. pela editora Planeta. conduzido pelo arrebatador caso de amor. até que finalmente. são aqui tão presentes que o próprio título do livro já os apresenta. mas seria precipitado classificar como ‘mundano’ um romance como A Ladeira da Memória. uma derradeira e muito bem-cuidada edição. ou até mesmo urbano). que o repõe em linhagem clássica.1 Outro aspecto da obra de José Geraldo Vieira. seguida por uma reimpressão. pela Coleção Saraiva. Além disso. as inúmeras referências autobiográficas. hoje. pela coleção Jabuti. O livro traz todas as marcas registradas do estilo de José Geraldo Vieira: o cosmopolitismo. e que neste romance atinge. planetário. nas seções de literatura dos jornais de suas respectivas épocas. A herança da belle époque. A Quadragésima Porta (1943) e O Albatroz (1952). o romance mais lido e reeditado de José Geraldo Vieira. da mesma editora. incapazes de situar e de resolver os seus conflitos fora dos quadros culturais da literatura e da arte. com uma impressionante tiragem de 45 mil exemplares (nada menos que a maior edição de um romance brasileiro até aquela data). seu ápice. surgiram reedições pela Martins e pelo Círculo do Livro. a memória. seja no modo do lirismo elegíaco da viagem-lembrança de seu narrador. entre Jorge e Renata. mais de um crítico considerou ser este A Ladeira da Memória um dos mais tocantes dramas amorosos da literatura brasileira do século XX. o amor e o tempo A Ladeira da Memória foi. e. José Geraldo Vieira não se acanhava em fazer grandes mudanças em seus textos: reescrevia capítulos. a saudade). acrescentava outros. a beleza e as dores resultantes do tempo (a espera. Se esses dois elementos estão presentes. André Caramuru Aubert.transbordante das paisagens pela angústia do autoexílio e das ausências. nós nos baseamos. em A Ladeira da Memória. nos vemos envolvidos por uma narrativa na qual se impõem dois elementos profundamente relacionados entre si: por um lado. de diferentes formas. de uma relação amorosa. ou não. a transformação de pessoas e espaços físicos. todos os dramas derivados da realização. Como sempre acontecia quando seus livros eram reeditados. Para a presente edição. ele chegou mesmo a alterar o desfecho. suprimia parágrafos. março de 2015 . No caso de A Ladeira da Memória. na última versão do Autor. aqui eles alcançam ao seu grau mais elevado. que o aproxima das altas criações da modernidade. como parecia ser a abordagem mais correta. por outro. a memória.” 2 Resumindo. em todos os livros de José Geraldo Vieira. PRIMEIRO CADERNO Viagem ao rés da noite Tio Rangel perscruta a minha alma A ladeira da memória Bodas de ouro . .. Além de obrigar-me a adquirir coleções de charutos e a oferecê-los às visitas. Percebo que vai travar conversa outra vez. e prosseguiu: — Nunca fumei. que decerto quer que entendamos que apenas ela é que viaja deveras pelas duas metades da Terra. cruzo as pernas. depois olha para fora através da vidraça fazendo da minha testa alça de mira. Automaticamente perscrutamos a treva. acha que.. pois se não fumo! Trata-se. Anuí logo e tirei um cigarro. Até nisso minha mulher exerce — pensa que exerce! — influência sobre mim e exorbita dessa autoridade que eu. e oscilamos de comum acordo nossas cabeças. Daqui deste trem assistimos da noite ao que dela se oferece intato. por cortesia. ela exige de mim esta e outras extravagâncias sem nexo.. — Esta escuridão. tolero! Sim. com o queixo preso entre o polegar e o indicador — atitude antiquíssima. Ele.. se não fumo. da escuridão e da velocidade está a exigir dele um exerciciozinho verbal. de fato. e então percebo que os olhos dessa criatura compreensiva se fixam no quadrantezinho do relógio que emergiu de sob a manga do meu sobretudo. Contumélias!. enquanto isso por duas ou três vezes estudando o meu feitio. viajo rente à janela do vagão D do trem noturno. O hábito de trazer fósforos comigo provém de exigências de Maria Clara. I Taciturno e absorto. em excursão circular. embora já esteja atrás mas não cesse de vir ainda e sempre de diante. . Volto-me para ele. Mas não era isso que eu queria dizer. muito embora esteja bem junto de meu velho tio-avô — um desembargador aposentado —. que nos parece delimitada apenas porque lhe estamos no centro. no último banco do lado direito. a olhar para fora. Meu tio agradece calado mas atento. a noite não é isto só. complementarmente deva estar munido sempre de fósforos. até que diz não sei se para mim ou se para ele mesmo. porque uma fusão de analogias decorrentes do relógio. toda gente fuma. é mero fragmento sucessivo da treva que banha esta metade do mundo.. de me fazer ver que. tentou procurar fósforos com que me servir. dos tempos ainda de quando juiz: — Não. em última análise. logo. E. e por fim se acomoda. Estendo-lhe cortesmente o antebraço para que veja melhor. Em dado momento aproximo o punho a fim de ver as horas. Tamanha nos vai acompanhando. adoto atitude dócil e respeitosa. Torna a ajeitar-se. já que dentro do vagão a luz a corrói. para que não cuidem que tal virtude ou defeito é miserabilidade de velho. caímos. nos povoa um céu que de dia é monótono. lhe citei umas considerações de diferentes poetas mundiais definindo a noite.. abaixei o vidro. achando aquilo decerto eventual sofisma contra um homem de leis. cega e inumana. realidade opaca. ia soerguer outra vez a vidraça mas meu tio me pediu que a deixasse aberta. ora nos recolhe e acalca para dentro dos nossos seres. e tive que segurar bem meu companheiro de banco. Oscilei a cabeça. ficando voltados lá para fora. Tanto que. anda muito certinha desde milênios. indiferente e cega. De fato. abanou a fumaça com um gesto.. Já a noite. Para que fui fazer isto? Meu tio . mas não desumana. anda agora a ler ciência e filosofia. sentindo-a. explicando: — Não está frio. Prendi então o toco do cigarro entre os dentes. Nisto. Na grande viagem ela também oscila um pouco na “bitola” por causa de folgas e apertos a que os sábios chamam mutações e precessões.. apoiando-se agora em autoridades). — Ah! A noite! Vai atravessando estas bandas. a locomotiva engasgou na velocidade. instante e sucessão. E ora nos expande quase infinitamente para fora de nós e da terra. joguei fora o cigarro.” — Inumana. e seu chapéu rolou para o chão. visto nos ser propícia. preservando o que recebeu do dia. tal qual um andarilho que tropeçasse.. todavia. nos livra de restrições visuais.. para estabelecer uma reciprocidade. Parou um pouco de falar. E. como a ilustrar os dois exemplos opostos citados.. Ele se deu por satisfeito. Pensei comigo: “Meu tio deixou de ler os clássicos. na verdade. Sim. continuando: — Não sei se me faço entender. se alguém reclamar... ela é indiferente e cega. O vagão deu forte solavanco. Isto é. e acrescentou: — Sendo treva. meu tio desembargador quase caiu. Jorge! Pelo contrário: propícia até. inumana mas não desumana e nem mesmo neutra. nos facilita a comunicação com distância que o azul nos veda.... para a noite. ergui-me. Pusemo-nos a conversar com mais naturalidade (o acesso de erudição de meu tio ainda não amainara).. meu tio se reacomodou. já o trem criara ímpeto de novo. Encarou-me com autoridade. não imóvel nunca mas sempre conteúdo e medida. certinha relativamente. desmesurada e compacta. já que em sua idealidade e transcendência é reposteiro para os que dormem e túnel para quantos buscam na vigília uma escuridão maior. fechamos. passagem opaca. Se queremos andar. segundo Wundt e Dietze (meu tio voltara à carga. íamos num embalo. olhou para os passageiros que dormiam e para mim tão cheio de antigas insônias. como a dar-lhe razão. guardadora fiel da contingência legal do tempo horário. Sem se perturbar e sem se dar por aplaudido. Tratou de agarrá-lo. a ver meu desânimo. vive às voltas com um sentimento irremissível. rematando mais ou menos assim o meu intento: — Trata-se de uma ideia que me veio depois que lhe escrevi a última carta. talvez eu me possa certificar então do sentido do verso desse mesmo poeta que o senhor citou ainda agora: “O fim é já não haver o que esperar”. pois sempre que lhe faço perguntas não por . já que apenas os previdentes e cautelosos acabam usufruindo num leito as prerrogativas de saberem na quinta-feira o que farão no sábado. Se até essa fazenda já não existe mais. não se abre com ninguém. for uma tapera. Por último. principiava agora a querer abordar “certo assunto” desde que saíramos do Rio. Vive traduzindo dia e noite para editoras. afastado até mesmo dos seus romances programados. engenheiro de altos-fornos. — Há quanto tempo esteve você nessa fazenda? Disse-lhe. O fato de ter vivido no interior estes anos não significa que haja descansado. Ainda por cima é um solitário. meu tio queria fazer tempo enquanto não atingia Volta Redonda onde ia visitar o filho. e tendo coincidido essa viagem com a minha resolução de ir aplacar os nervos numa fazenda entre Resende e Itatiaia. Ante a data tão distante e antiga. e sim de averiguar em que estado ela estaria. valeu-se da sua experiência de vida e considerou: — Desde muito você já devia ter feito isso. — Que enigma o aconselhou ir a essa fazenda? Escusado dizer-lhe que vivo preocupado com o seu feitio. passou o braço por meu ombro. franziu as sobrancelhas. Não tendo conseguido leito no Cruzeiro. como acontece a todos os passageiros do mundo em todos os trens noturnos. hediondamente. Coçou o queixo. Muito pelo contrário: safou-se do bulício das cidades mas se entranhou no torvelinho de si mesmo. pretextando que eu tinha de tolerar a lenga-lenga dum velho a fim de não acabarmos dormindo ambos de boca aberta. ou um grande parque moderno agrícola. visto haver resolvido a viagem já de tarde. — Ahn! Está querendo agravar o seu péssimo estado de alma. indagou: — Informou-se ao menos se tal fazenda ainda existe? Expliquei-lhe que não se tratava de ir ficar uns dias numa fazenda.enveredou logo para o assunto que desde o começo da viagem vinha premeditando: — Nenhuma dessas definições serve para o seu caso especialíssimo? Atenha-se ao que dela disse o poeta — que você tanto ama — quando a cognominou de “a domadora hipnótica das coisas que se agitam muito”! Na verdade. abandonou a profissão liberal para cair num artesanato de escritor estipendiado. ou arquivar um passado? Hein?! Olhe bem para mim. compondo artigos e ensaios para jornais e revistas. e responda! Mediu-me. puxou-me com efusão de bondade. Jorge. só vindo você a saber dessa morte meses depois. Vejamos: ela morreu. se resolvi viajar hoje e neste trem. Mas Germana ficou ciente de tudo. Será que ao menos não conseguirei dar-lhe um conselho viável? Observou minha fisionomia. instara para eu ir passar o fim de semana em Volta Redonda. não nego que você por diversas vezes se tenha aberto comigo. visto estar ausente no interior de São Paulo para onde fora por injunções inerentes a essa paixão recíproca. Não decidi absolutamente por causa de Volta Redonda e sim de você. você soube nem mais nem menos. — A que se resume o seu caso? No seu entender é tamanho que não é passível de resumo. como a verificar se malograria ainda desta vez. acabou embrenhando-se no interior. Sucedeu. antes o exacerbou. é quase uma consulta.. como você se esquivasse a quaisquer desafogos e comunicações. Foi pois para a Alta Paulista. Foi quando você. e ia solucionar o seu impasse. Eu. praticamente boa.. aquele telefonema do Lauro. Quer saber duma coisa? Menti-lhe hoje quando lhe disse que Roberto. disse comigo: “Bem. irmos depois juntos até à Exprinter e contentarmo-nos com assentos numerados já que não restava leito em noturno nenhum. desde 1940. ele anda a insistir comigo e se trata positivamente duma pessoa capacitada para mostrar-me o que seja deveras Volta Redonda. quando descobriu que essa criatura estava tuberculosa e com o “passado” permanentemente à cabeceira. filhos.curiosidade mas para apor a minha experiência humana. aqui estamos juntos algumas horas. sendo pais. que você fora retirar dinheiro a fim de passar uns dias numa fazenda para lá um pouco de Resende. todavia escondemos dela a nossa alma atulhada de tantos mistérios que. Quando eu soube. porém. Morreu-lhe determinada mulher. deixando-o em tal desespero que. Ainda bem que seus pais não perceberam a causa secreta.. o Jorge está construindo o seu farol lá nesse litoral de desvalimento!” Em meados de 42 você veio ao Rio e gostei de ver que cobrara certo ânimo. Hoje. A sua última carta. na verdade somos estrangeiros até dentro do lar! Isolou-se você do mundo. em conversa pelo telefone. foi porque você me disse. porém. que você emendava acolá o seu livro. De fato. A tal criatura estava bem melhor. mais de quatro anos depois disso. você ergue a cabeça de dentro do seu marasmo e em seus olhos só vejo atarantamento. que na sua vida significou um ápice de emoção e de beleza. no banco Boa Vista. ao voltar em fins de 43. A cara com que me comunicou sua decisão foi suficiente para eu inventar logo aquela “coincidência”. irmãos. Abraçou-me com o braço direito. retirou-o logo. como era natural. num estado . nos deixou bastante apreensivos. A família é isso: todos nos queremos um bem louco.. por exemplo. que ela havia morrido em novembro. Mas lamento que tais provas de confiança tenham redundado em mera verificação dum estado onde minhas considerações têm sido de efeito nulo. prosseguiu: — . quanto mais de solução. porém. Tal morte não redundou em epílogo do seu caso. que. escrevera à editora — com a qual você já tinha um contrato. Internou-se em meados de 1943. acompanhamos ambos o avanço aliado Europa adentro — com a ajuda nossa na Itália. destituição de Mussolini. natação? Mas... Que diabo! Pois se até eu. seu paspalhão! — e remetera o livro que.. ao invés de extrair dessa angústia uma sublimação. o desembarque de você no aeroporto voltando à vida donde fora escorraçado simbolicamente em Dunquerque! . Badoglio. teria por si só e através dum descortino — que é a onisciência dos romancistas — que acabar chegando à conclusão lúcida de que ao longo do litoral da finitude há um promontório com um farol. solicitado pela fama do livro. Fica você no Rio uma temporada. em mapas. como agiu você? Rasgou. — Porque essa grande criatura sonegara da sua mala o original do romance. à beira do Araguaia. desta época do mundo. é o que lhe estou dizendo! — e me alegrei todo ao ver seu interesse despertar. Isolou-se você ainda mais de tudo. armistício italiano. mas ainda com muita névoa. já que existe a. Para começar desandou você a brigar com a sua irmã Germana.. continuou: — Ainda assim. Se mudara! Senão. outro livro em que trabalhara desde 1937 até meados de 1942. leio. Ora muito bem! Mudara o mundo para melhor. derrota alemã fragorosa em Estalingrado. senhor. E. por entre as sobrancelhas franzidas. sim. desembarque na Sicília. disposto a cumprir o postulado de Eckhart: “Despojar-se do todo o QUÊ”.. marasmado. e só apareceu no Rio em junho de 1944! Bem. porque sendo um cronista-mor.. os aliados desembarcavam na Normandia. sem escrever a ninguém. por exemplo. a abdicação do reizinho bigodudo. ocupação de Trípoli. seca”.. vejamos: Conferência de Casablanca.miserando. — Tratei logo de estudá-lo. Orel.. como é que um sujeito que se abalança a nauta nesta hora atual não haveria de saber que há que arrecadar não a nau já naufragada. Sim. saíra com êxito ainda em 1944. “Tempo bom. de envolvimento obstinado e cauteloso. do atentado a Hitler. a queda de Roma. lembrando-me. eu consigo entusiasmá-lo até com o boato que depois foi confirmação. e juntos. a epopeia de Nettuno. a Conferência de Brazzaville. cumpre não esquecer. Depois? Que houve depois? Aquela série de vitórias espetaculares.. durante meses na selva. nós em Monte Castello. depois voltou para Hacrera. por quê? Sorri. me contou tudo.. entendo — e aprovo — Camus. mas o corpo. nem sei direito. prognóstico. disse eu. Dei-lhe então uma senha para comportar-se nessa descida aos infernos: fazer do seu desespero uma autêntica superação em prol mesmo de sentimento tão belo e trágico. Salerno. Conferência de Teerã. da realidade dos seus. e você desembarcava no aeroporto de Santos Dumont! Olhou-me de alto a baixo. louvado Deus. Deu-me um tapa no joelho. analisei-o logo para o. que sou velho. a libertação de Sebastopol. confiei em você. por lá ficou. ou queimou. Não tardou que você andasse por São Paulo. todo um letreiro denso de cartazes! Parecia que se estava forrando a . bambochatas. em Okinawa. Em setembro. a bomba atômica sobre Hiroxima. o povo. casas. para muito breve. na carta em que tratava do meu livro pacientemente relido. E depois. paredes. andaimes. bufou. — Salvava e salvará. reagiu reflexamente. a seguir o general Patton na França e o general Clark na Itália. pelos pés. fazia roupa em bons alfaiates. — E quanta coisa se renovando depressa. os ianques repetem acolá no Oriente. ouvia música. Já não lhe dissera eu. dips. tomava banho de mar. apareceu mais frequentemente no Rio. em Paris. meu galhardo. acompanhava Germana a passeios. rapaz! Morre Roosevelt. teatros. concertos até ela se casar. Foi. confinado num porão. empertigou-se. — Pois então. — Eleições marcadas.. a Rússia recuperando suas cidades. endeusamentos. que sua literatura o salvava? Ante o meu feitio de dúvida.. muito antes.. a escrever mais outro livro. acuado como um chacal. para escarmento macabro aos aventureiros. neste século! Em agosto. com o olhar distante. Hein?!. tio Rangel. Esfregou as mãos. o senhor confirmava que seus vaticínios estavam realizados... muralhas. Aquela capa pendendo dos ombros! Aquelas olheiras. Tio Rangel soprou para fora todo o ar residual do peito. a capitulação japonesa. quase mensalmente saindo de Hacrera. tantas vezes. Estamos já recapitulando 1945. homem! tinha feito aos nazistas nas praças públicas?! Deu um grunhido. menos de uma semana depois Hitler. livros sobre arte.. Pouco depois Mussolini é dependurado numa trave. arruaças? Lembra-se. Jorge? Sorri. o arrojo da banda de cá. irrompia em casa de sua mãe com telas. ou não foi? — De fato. — Acompanhei-o ao aeroporto vaticinando-lhe insurreição. como um desafogo. Já a última fotografia que vi dele no cinema me confrangeu o coração.. — Eu. atolando-me no barro das ilhas do Oriente! E você. Muros. Passou a frequentar a casa de minha filha em São Paulo. com o coração na boca. por tudo quanto era bairro. como uma primavera! A liberdade voltando qual rajada de ar novo! Lembra-se você dos nossos passeios pela cidade. não sei se tosse ou brado gaulês.. monumentos. Et coetera! Enquanto isso os Bálcãs libertados. Roosevelt reeleito! Que susto a estuporada tentativa de ofensiva alemã nas Ardenas! Fiquei que nem um leão! Cai Budapeste. esbofando-me. se abate! Maus ventos espalhem suas cinzas! Ah! Livrou-se o mundo de espécimes que parecia incrível pudessem proliferar no Ocidente. deu em colaborar em jornais. rapaz?! Leclerc não entrou em Paris não para libertá-la mas sim para ver o que o povo. presentes. quando aqui depois também nós saímos de contrafações ditatoriais. que neste mundo não havia mais nenhuma criatura que captasse o seu S. você se está debatendo (porque é leal e nobre. resignados. Imagina que quem se aproxima da catacumba. seu caso de consciência é cuidar que seria um sacrílego. sensível e magnânimo) num grave problema de consciência. Antes pasma em ver surgir-lhe na vida ser tão idêntico e tão diferente. foi feliz com certa criatura. liberdade de presos políticos. como esses infantes da Espanha e da Rússia. Será possível. Mas o hausto do mundo em novo solstício vernal tinha que arejar almas da categoria da sua. em todas as perplexidades solitárias. tonificar seu coração.O. por quê? Escrúpulo puro. sentenciou com seu vozeirão de magistrado: — Essa outra criatura. Uma nova criatura procuraria entrar em sua vida. Jorge. que não se pode existir sozinho. não tem o direito de calçá-las. inteligente como é. tão gêmeo e tão antípoda da que deixou as sandálias e a candeia. não intenta. partidos. no período ardente de sua paixão. pássaros tontos. embora cuide ser por motivo de saudade.. chega diante do altar revirado onde jaz ainda o vaso de ouro. Não é esse o escrúpulo de você. Passei as mãos pelos cabelos e tio Rangel enfezou-se: — Cuidava você. sempre. Cuida que quem. enchê-lo e assim reanimar quem está ali no chão. aguardando resposta. Sabe você muito bem — pelas características que me deu da alma dessa nova criatura. como turíbulo a um ser tão extraordinário! Mas lhe garanto — eu conheço sua alma — que você vai por mero escrúpulo. sorri. Eu vou a Volta Redonda.S. mesmo voluntariamente.? Jorge.. Somos gregários. sempre. Seu livro lhe forneceria uma boia atirada. Agora. há um instinto reflexo de socorro. pela inteligência e intuição que a fizeram abeirar-se e guardar mistério e recato — que tal ser. experimentado como ficou. Nós coexistimos. vinda do oásis. Calou-se. em todo sofrimento. estirou o corpo.. Não lhe nego a saudade. trazendo os mesmos anelos de solidariedade. — Bem. se anuísse à aproximação de tal catecúmena. Meteu-se você a estiolar-se lá na Alta Paulista. então. o mesmo ímpeto. E vai. meu caro Jorge! Não é mesmo? Como me olhasse muito. embora nos cuidemos.cidade! Giz e piche! Tabuletas. regresso de exilados! Dizia-me você que em São Paulo era a mesma coisa. E há sempre “escutas” capazes de captar essa ânsia. . nomes. tangidos pelos bombardeios e fuligens. comícios. prêmio autêntico de Deus. ao deparar com a candeia votiva largada no degrau. curiosamente. volta à Constituição. O tempo passou. um ingrato. nenhuma aventura. Apenas quer com ele correr à fonte próxima. ao dar com as sandálias da outra. não tem o direito de acendê-la. Seu escrúpulo. painéis. que você tenha ficado um desajustado.. Tenha-a sempre. Mas voltemos a você. Resumindo: você sabe. Quer roubar o vaso sacrossanto? Não. e será pouca. enquanto vivo for. vindo do deserto e se abeirando da cisterna. o mesmo entusiasmo. que já não veem o ninho. Aqui estamos neste trem. retratos. Você vai a uma fazenda onde. complacentemente. ou atingi o âmago . são idênticos em essência. a morte acabou sendo isso. que é isso? Os pilotos se revezando no castelo da proa! Como um ex-moribundo no deserto. Cabe aqui uma palavra demasiado erudita. mar adentro para salvá-lo. vê uma gruta a livrá-lo do sol e do vento. o quê?: como o suicida em movimentos de desespero. hediondamente. ou prisioneira. você faz perigar quem avança mais. mas a única que serve: “hipóstase”. que essa criatura se assina. Está reparando bem? Estamos ainda em Homero! Em plena glória do Egeu! E tanto isso é verdade. ainda com os olhos fulgurados por os haver. Está zonza porque ambas essas criaturas. Ou. já que vivo está e não sabe? Compreendo o que se passa na sua alma. a de Ogígia. como o adolescente que se perdeu na travessia e que o mar levou à deriva. Olhou-me esbugalhadamente. Calipso! Que criatura magnífica. como dois fenômenos aparentemente opostos em ação. rapaz! Caído na duna sente duas mãos o segurarem pelos ombros. É. vê você a recém-chegada apanhar a candeia e principiar a enchê-la com o óleo que trouxe no odre. — Pois lhe digo que em verdade você comete um erro afastando-se para o largo. Quer permanecer morto sem saber. e foge para o litoral. — Conhece aquele vocativo de Novalis? “És tu. Pois Jorge. que “morte também é quando alguém vive e não o sabe”. aporta você a uma ilha. na sua correspondência. você está vivo. com a fisionomia em reação de pasmo. misericordiosamente. Que deseja essa que você cuida intrusa? Calçar-se para adivinhar assim qual o percurso por onde levar você que precisa urgentemente de oásis. e sim trechos de cartas recentes. tangido pela solidão e tão longe indo que chegava a uma ilha. Ora. quando lá dentro está o bálsamo. confluem no portal da sua perplexidade. nem ouvem mais o sussurro das fontes? Olhei-o muito.o pomar florido. que nos cures de nosso sofrer?” Para a outra. sensível e conhecedora do mistério eficaz dos símbolos! Encolheu-se em atitude de expectativa. fora da terra incendiada. ao recobrar ânimo. a morta e a nascida. Trata-se de quem não o considerava náufrago mas sim. volvido para a luz da porta. Quer ela acender a lâmpada para quê? Para poder soerguê-lo. egresso do mundo e de Deus. ó morte. pois acabará acontecendo. quando na verdade um continua o outro. você reabre os olhos e vê uma criatura apanhar as sandálias que a outra deixara no rebordo da cisterna. Uma indo e outra chegando. lá da treva. no seu período “negro”. a sombra. ou não é isso? Por que essa carranca? Esse recuo para a vidraça? Escandalizei-o. — Mar adentro. Mas você mesmo me disse. a que morreu. mudou para outra variante de assédio. pois a estrada passa lá em cima e você caiu cá embaixo. pois aquelas palavras não eram propriamente dele. pediu: — Fale-me dessa criatura! É livre. Como catecúmeno na catacumba por onde se arrastou após o martírio incompleto. como a outra? Vendo-me calado. por quê? Já não se trata de você. centro da cidade. batida de luz e de sombra ali no vagão. processo aliás mais lógico. de personagens. completa. se incorporaram a criaturas suas. Sua cabeça venerável de velho Plotino estava estupenda. Reparando no meu ar dubitativo. primeiro. Ora. Acorreram para você e. que já que você criou tudo isso e tudo isso encontra representação real em suas vidas. já agora sabem a quem consultar. segundo. como o autor e elas — certas leitoras —. anelos e dramas com as almas. Isto é. no sentido de compreensão. amou e morreu. numa atmosfera idêntica. vamos adiante: todos os personagens essenciais dum romancista são de certo modo ele próprio. A primeira que assim lhe surgiu da vida para o romance foi tão real e humana que nasceu. senhor! Com uma confiança estribada! No seu caso. a verônica. Mas. como ser humano. para criar outras. Sentiu você o vácuo insuportável. porque como criador você perdurou ao passo que ela. avenida Niemey er. satisfeito e ofegante. Daí. Paineiras. e eu concordo. Copacabana. lhe advêm em consequência da sua literatura. Barra da Tijuca. mas. bem mais do que as criaturas. por exemplo. problemas. Digo mais: se essas criaturas até então não achavam a quem confiar certos estados de alma. a eternidade. para o mundo. Andou você estes últimos anos extraviado no Limbo para onde descera. Paquetá. acabou se extinguindo. lagoa Rodrigo de Freitas. são dum mesmo clã específico. sempre com a máscara. Você resolveu descer à condição de criatura também. Todos os problemas. muito mais do que mera analogia.da questão? Reacomodou-se no banco. como se me houvesse provado um axioma. Elas averiguam que a similitude de suas almas. viveu. disse-me você em sua carta. Certas leitoras vão além dos personagens e enredos: atingem o autor. Estabelece-se então uma afinidade global. é claro que as criaturas nascem e morrem e que o criador continua. Nisto é que ela foi exata.. anelos e dramas que escreve (ou descreve) são catarse. anelos e dramas dos personagens dos seus livros. problemas. sensibilidade. cinemas. com ausência de nitidez de rosto. Petrópolis. já que o outro lado de lá. consciência. a consequência: tais leitoras se cuidam também personagens e criaturas suas. o carisma que originam representa atração. E isso com uma confiança estribada em documentação exata: o livro. para a vida. isto é. o criador vindo como remissão eventual. calçadas. Consegue mesmo ressuscitá-la. nos é insonoro . Em vão você sempre que vem ao Rio a procura nos sítios onde outrora se viam. espírito. reiterou: — Sim. Ora. sendo os seus romances de pauta lírica. Querem o criador. Conseguiu afinal emergir cá para fora. já ficou provado pelo menos duas vezes que certas criaturas se sentiram irmãs de determinadas personagens suas quanto a índoles e problemas. é um simulacro da Paixão.. incrível. — Estes casos. atraídas por uma afinidade rigorosa. tanto os personagens. Mas sua descida não pode representar uma submissão total ao status de criatura. as coloca. o palco e a ribalta. seus sentidos. Malogrou você em querer seguir as pegadas de quem ultrapassou a fronteira. Não limite tamanha criatura a esquemas e diagramas. Mas a sua função de romancista diz respeito ao tempo. muito embora perante o mundo você parecesse um indivíduo normal. como aquele mendigo que quando íamos entrando hoje no banco Boa Vista nos saudou e agradeceu nossa esmola dizendo: “Bem-vindos sejam a esta nossa casa. A percepção analógica — no caso a saudade daquela primeira criatura — tem que ser sempre um processo apenas mental. Logo. sua alma. Valha-se duma outra espécie de sabedoria: a imanência obtida poeticamente. Você não disporá duma garantia de reencontro num outro plano. o mundo onde você está.. é problemática quanto à realidade e à consequência. Resta perante seus olhos. Seguiu com o olhar a passagem de pessoas que desciam numa estação e me aconselhou: — Deixe dessa incongruência de visitar os locais onde antigamente vocês se encontravam.. restringindo-se a um passado. sensato. mundo? Lembra-me você o indivíduo que já não considera templo uma antiga nave só pelo fato dum governo laico a haver transformado em museu. você se subordinar ainda. Por que não considerar mais isto aqui vida. Compreendo que um golpe como o que recebeu prostrasse durante muito tempo um homem da sua sensibilidade.. Largue de vez essa ânsia pericial de procura de testemunhos. indícios e provas cronológicas. Jorge.” Olhando a estaçãozinha que o trem deixava. quantas vezes queira. Voltar. onde você ficou. De verdadeiro só ficou você como parte desta simetria que se chama amor. a criatura que já não existe. a uma saudade de homem por uma mulher. Use e empregue os seus atributos evocando com sucessivos heterônimos a que já não tem nome humano e sim atende a vocativos como os que nas litanias são reconhecimento simultâneo de beleza e virtude. Por isso temi durante muito tempo por sua integridade. Aqui no mundo pode você evocar. transubstanciar. Não estou absolutamente . ela não volta. A percepção real só é possível no cérebro através dos sentidos.. Mas se neste seu caso que se desarticulou em 42 e explodiu em 43. se desarticulou o binômio. perorou: — O mais estará errado. Só pela poesia poderá você fazer sobreviver sem equívoco nem mistificação aquela que cruzou um dia a fronteira estranha. pois nisso imita o autor indo de dia ver o teatro vazio e escuro. já que nada lhe prova que o destino ambivalente daqui de baixo possa ser continuado no além. Ora. essa lógica o porá sempre na situação de vítima também.e imperscrutável. o Estar-Aqui é um desvalimento e só os romancistas é que tiram dessa averiguação um sentido que não é o das carpideiras. Morrer você também. sentimento recíproco por excelência. para a hipótese de recuperação e prosseguimento alhures. que redundará? Redundará a verificação lancinante dum fato irremissível. os bastidores e cenários dum espetáculo que certas noites foi empolgante. Transfigure este mundo através do otimismo. agora e sempre. . perguntou: — Qual será então o recurso válido? Contentar-se com o que lhe foi outorgado a prazo fixo mas com efeito permanente. agora. veja a que ficou reduzido o desvão do passado.negando esse outro plano nem mesmo esse reencontro. Você caiu estatelado. Mudou e melhorou muito. Jorge. Para tanto urge que você suba a ladeira da memória. Essa lhe será dada por você mesmo. categoria esta de locomoção possível mesmo entre escombros. Evidentemente o estado de sua alma. outra criatura do seu mundo de romance e de criação recolherá da beira da cisterna e de cima do patamar. e resolva reinserir- se na existência autêntica. mesmo porque você há de sempre insistir em recuperar essa criatura através da lógica dum passado. Decerto todas estas reflexões que lhe estou fazendo já lhe têm acudido como ato de vigília desde que você começou a sentir a impossibilidade duma opção sua. Não lhe ofereço uma solução. a lâmpada da criatura que sumiu na catacumba. procurando não mais uma promulgação na pauta da realidade e sim na da transfiguração. Qual. então. As sandálias da criatura que se foi pelo deserto. por felicidade. levantar-se. Abrindo desmesuradamente os braços. já que a sua é impossível? Antes de mais nada. não somente tem pernas de homem como asas já que é romancista. Mas. O romancista salvará o homem. não é o mesmo de 42 e de 43. mas sim estou esclarecendo que não depende de você nem de nenhum recurso esotérico a continuação do amor acolá com as mesmas características daqui. Pelo menos tal encontro pode não ser dentro de atribuições como as que aqui decorreram de critérios morfológicos e vivenciais. a opção a aceitar. Quanto ao largo do Piques.. que também foi chamado do Riachuelo. Não. tomei um tilbury para ir até o largo dos Curros.. Meu pai. a rua Formosa. passei diante do El Dorado e do Politeama. ficou algum tempo assim enquanto limpava o rosto com o lenço. desci para o Piques. hoje rua Quirino de Andrade. fui ver meu compadre Valério em sua casa no largo da Memória. estive dando um dedo de prosa no largo do Rosário diante da igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. elimine da sua visão a moderna avenida 9 de Julho. Nós. Ora muito bem: tem você diante dos olhos essa confluência de ladeiras e de becos descendo dum anfiteatro para uma baixada cortada pelo Anhangabaú. II Sorriu. o atual parque e a atual avenida Anhangabaú. saía de casa. Conhece bem a cidade de São Paulo? — Assim. viúva do barão de Itapetininga.” . fechou os olhos. assim. que era então dona de toda uma imensa chácara por ali. quando eu era menino. andava. desci. para ele desciam as ladeiras de São Francisco e do Ouvidor. e a ladeira da Memória. não sabe?). botei umas cartas no correio no largo do Tesouro. os velhos — e lembre-se que estou com mais de setenta anos —. Transporte-se a um São Paulo de seus bisavós. o Piques? — Sei onde é. Veja um vale do Anhangabaú antigo. do outro lado. imagine um Piques rodeado de casas baixas marginando as chácaras do conde de Prates. atravessei o centro. O centro e alguns bairros. dizia: “Estive na rua do Príncipe. — Já ouviu falar num trecho antiquíssimo. hoje Santo Antônio. Ao largo do Bexiga iam ter a rua do Bexiga. era composta de duas partes: o largo do Bexiga. do barão de Ramalho e do Martinico. cada vez tendemos mais a explicar nossos pensamentos por meio de mapas ou desenhos. e a de Santo Amaro. ao percebermos que de nada valem anexins e máximas. a ladeira do Piques. — A baixada do Piques. não me refiro ao apóstolo. e o largo do Piques. De bem antes não do atual e sim do anterior que tantos aborrecimentos causou à baronesa de Tatuí.. Dirá você: “E a que vem isso?” Tenha um pouco de paciência. coisa de sessenta anos antes. hoje praça da Bandeira. comprei cigarros na rua do Jogo de Bola. depois. voltava.. depois subi a ladeira do Acu. bem como a travessa que depois viria a chamar-se rua do Ouvidor. sotoposto ao pequenino largo da Memória. de antes do viaduto do Chá. de lá fui tratar dum negócio com um caixeiro-viajante no largo da Forca. por onde se alcançava a rua Nova de São José (a Líbero Badaró de hoje. a rua Santo Antônio. depois me perguntou com um tom ameno de palestra: — Conhece bem São Paulo?. Meu tio Rangel. me confessou: “Já passei por lá várias vezes. primeiro na outra residência de meus sogros. tratou de confluir com as mãos e os pensamentos para o centro mesmo daquela espécie de apólogo. Posto o quê. para casar-me na Aparecida. depois sucessivamente nas de minha filha e de meu filho. depois subi a avenida São João. acabarei. quando já estávamos no passeio de Xavier de Toledo. tendo- o eu feito por imposição e extravagância de Maria Clara? É evidente que. Nunca mais voltara ao tal sobrado da ladeira da Memória. sou um ser vivo. perto do City Bank. não sei quantos anos depois podia dizer a mesma coisa. subi a ladeira da Memória para rever a ex-casa do meu sogro. tomei um táxi e fui à praça da República. que quanto mais se veste segundo os últimos figurinos mais parece baronesa ou embaixatriz. e mesmo depois. durante o chá no Mappin. E todavia não me considero um fantasma. . minha mulher. ainda se voltou. Isto é. cheguei até a Liberdade para encaminhar um negócio. empregando outra nomenclatura. por minha vez. Depois. diante do antigo sobrado imperial (uma aberração encravada entre prédios medonhos mas não antigos. porque das inúmeras vezes em que de então em diante estive em São Paulo. ontem de tarde com o Lauro e hoje de manhã com a Rafaela. fui a uma companhia de seguros.Ora. passei diante do prédio da Recebedoria de Rendas Federais. Pois não é que nas antevésperas das nossas bodas de ouro. me obrigou a passar com ela pela ladeira da Memória. toda emocionada. voltou-se mais para mim. o antigo fazendeiro coronel Valério. mais de cinquenta anos depois da suposição anterior. só existentes à direita de quem sobe). muito bem. quase todo demolido já. por ocasião das minhas bodas de ouro festivamente terminei ali o meu dia. e aquilo acolá. da II Grande Guerra. meu caro Jorge. desci. no Rio de Janeiro. consegui escapar ileso. atravessei aquele pandemônio cheio de automóveis e ônibus. entrou com o empregado do carro- restaurante uma golfada de ar frio. contemporâneo do avião. atravessei a praça da Sé. que absolutamente não era itinerário obrigatório. passei pela rua Senador Feijó. com aquele seu feitio de prelado. há alguns anos passados. no Jardim América. Eu.” Ajeitou o chapéu. permanecia nos Campos Elísios. minha mulher parou.” O mesmíssimo percurso. estive em conversa com uns amigos na praça Antônio Prado. podia dizer: “Estive na rua Quintino Bocaiúva. na rua Anchieta. eu saí dum sobrado da ladeira da Memória. rumei para o largo São Francisco. — Há cinquenta e poucos anos. De lá segui para a lua de mel no hotel das Paineiras. do rádio. Ultimamente. e a seguir em Higienópolis e nas Perdizes. a observar e a fazer comentários. cidade onde viria a ser juiz e depois desembargador. Sim. desci. A porta de trás do vagão se abriu. achou melhor que fechássemos a vidraça. aquele chão de níveis tão diferentes perdurará como base de coisas sempre e sempre renovadas e renováveis. E durante o chá me falou dos aspectos que eu mal notara: que no vão da antiga cocheira. criou coragem e indagou se queríamos alguma coisa. me ia embora de noite. então aguçam seus caprichos demoniacamente! Mentira dela. estava transformado em cortiço. me puxou não para a porta que dá para a praça Ramos de Azevedo e sim para a saída em Xavier de Toledo. Após uma pausa para melhor efeito. e como! Disse-me então que combinara com o Lauro pegar-nos de automóvel embaixo. com menos dois anos do que eu. todo um raquitismo oriental de mesuras e zumbaias. as mãos juntas. se estávamos procurando alguém. observou-nos. deixei que minha mulher matasse as saudades da escada. Ainda vi o anúncio do tal cerzidor relâmpago. e isso com enternecimentos que me enfezaram. elétrico. que “elétrico” nesse caso queria dizer rapidíssimo. havia agora um pintor de cartazes. perguntou- me: — E quer saber do pior? Maria Clara. queimada e depois urdida de novo. de porta imensa de duas folhas. retrogradava miraculosamente para os primeiros tempos da República. comendo torta. estudante de direito. concomitantemente. O velho desembargador bateu-me no ombro com vivacidade. explicou: — São capazes de tudo. para a imensa sala de visitas. o casarão que o pai vendera antes de mudar para os Campos Elísios. . Daí a dois minutos falava nas nossas bodas de ouro. hoje uma anciã. a formidável sala de jantar. me engalfinhou. um “cerzidor elétrico”. me puxou para dentro da entrada do casarão onde noiváramos. Cuidei que houvesse máquinas elétricas para cerzir. Fez ar de reação. Ah! As mulheres! Em se tratando do ridículo dos maridos. cascata e peixes vermelhos). assim como. um japonês da oficinazinha de cerzidor apareceu com um riso melífluo. na esquina da rua Formosa. — Tomei o chá meio emburrado porque detesto os acessos românticos de Maria Clara. Então.. antes da entrada. ainda havia pouco. por exemplo. isto é. do outro lado. quando descemos do elevador. perfeita. o jardim interno (com lago. o piano de cauda. E. Se reagi. me assustara fazendo menção de quase entrar no sobrado da ladeira e tivera a curiosidade de olhar por uma das janelinhas do porão onde. pelo jeito. mas Maria Clara riu da minha ingenuidade. Nisto o homem da camisa listrada apareceu com ar intrigado.. Afinal ela. parado no escuro saguão. O que desejava era “romance” aos sessenta e nove anos! De súbito. e me arrastava outra vez para a ladeira da Memória. as cortinas das janelas. apareceu logo um sujeito de camisa riscada. como não nos visse subir nem sair. do tempo em que descia comigo de mão dada quando eu. explicou. a cor do papel das paredes de cada aposento. Tal símbolo de paciência me serviu de disciplina e resignação. com pedacinhos de casimira puída. veio para a porta e. “relâmpago”! Que. em resposta à sua curiosidade. como uma serpente. E disse. Eu já tô ansim de sodade. Beim qui eu disse pro Lula qui ele devia tê avisado onte memo o doutô Danilo qui a milionária tava rondando a casa desde já hoje. submissa. O prazo tá correndo.. e me voltei para sair. disse logo o nipônico com timbre de ventríloquo. então é o encarregado disto aqui. tudo tudo mema coisa!”. Procurei arrastar minha mulher para fora. muito atenta e apreensiva. madama. parou diante de nós. Mas enfiou dois dedos na boca. porém Maria Clara não redarguiu nada e indagou do “gerente” (de zelador o cabeça-chata passara para encarregado e fora promovido a gerente) se aquilo era casa de cômodos. eta terra danada pra fazê frio! Experimentemo a lavoura.. voltado lá para cima.. o tal Lula se despejou pelas escadas abaixo e se perfilou todo. reproduzindo a cena. — Minha mulher placidamente o olhou. “As citação foro trinta e trêis. insensível e resistente ao aperto de minha mão em seu braço. dizendo que o Lauro devia estar esperando com o automóvel na esquina da rua Formosa. e soltou um assovio de arrebentar tímpanos de paquiderme. O encarregado é o Lula Canindé”. Maria Clara quase lhe deu parabéns. disse com timbre de matrona em excursão pela Cidade Baixa.. desde já onte. “Calu. espiando para baixo. comentou a mulher ninando o filho com um movimento gingado.. tropical. depois vinhemos para São Paulo. não era. disse ao cafuzo que não queríamos nada. perguntando: “Vossuria manda arguma coisa?!” Era notável a voz de tio Rangel. Claro que com aquele assovio-senha. Então Maria Clara fez uma carícia na criança “enchendo de açúcar a boca da . — A essa altura havia já umas oito caras no andar de cima. Não pude deixar de rir. quando minha mulher perguntou ao japonês: “Conserta gabardine também?!” “Tudo.. Botum os probes na rua di cerlto pra alevantá arranha-céu”. lá nas Alagoas. tudo! Casimira. — Travei Maria Clara pelo braço. ele disse ansim pra nóis que fiquemo firme que tem inda um tempão e que vai entrá de peito no jogo”. não é?. “Esta é minha mulherr! Nóis casemos no Canindé. o mesmo fazendo estentoricamente meu tio Rangel. mas a cabroeira de cambembes daqui vai pruns córenta e oito. Depois se voltou para o homem de camisa listrada. idade de Jesuis. sarja.” Nisto desceu uns degraus a mulher que estava amamentando uma criança sonolenta e parou. vem cá!” Ela obedeceu. Eu já entreguei p’rele os papé do oficiá de justiça. Num hai jeito de sê menas gente..” “E agora nóis tá tencionando vortá pras Alagoas.. Imagine você. complementarmente: “Não. flanela. para o segundo lance da escada. O nordestino sungou o cinto e disse com desenvoltura: “Se vossurias tão querendo quarqué coisa é mió se adirigi ao doutô Danilo.”. “zelador” num cortiço! Não. té que o coroné Florêncio cabô arranjando eu tomá conta disto aqui. na Bahia: “Ah! Muito bem. perguntou se ele era o zelador.” “Às suas ordes!” Nisto vi o tal da camisa de meia subir e explicar para uma mulher que amamentava um marmanjo de bem uns três anos: “Di cerlto são os propriatário qui tão despejando nóis! Vinhero dá uma espiada de curiosidade. coiemo algodão. que nunca mais. e de adega. A contar-me essa historiada para quê? Que ilação tinha isto com as considerações de um quarto de hora antes? Decerto estava tentando distrair o taciturno do sobrinho Jorge. Para ser franco. achando-se em São Paulo agora. tornara a entrar ali dentro. pro doutô juiz e pra senhora dele. o corrimão do nosso noivado.mãe”. olhou para fora. — Maria Clara foi abrindo a bolsa. Bom tio Rangel. conforme compreendi.. vestida que nem uma Dorothy qualquer adamascada dos Estados do sul antes da Guerra de Secessão da América do Norte. já passara com esta umas seis vezes por ali. que ontem de manhã não quisera incomodar ninguém. — Então. gente. seu marido (“aqui o doutor juiz”). cruzou as pernas.. olhava enternecida para as bandeiras das portas do corredor que no andar de cima ligava a sala de visitas com a sala de jantar.. Ah! A escada. desta vez não para observar a noite e dizer altas reflexões sobre ela e sim para ver em que estação paramos. tomara coragem. Vinhero vê a casa!” Uma espécie de coro abafado sussurrou com pasmo: “O juiz!” E tive que subir... seu predileto. Este aqui é o do meio. havia cinquenta anos exatos. só dorme mamando o leite destinado ao mais menó. que estes já a haviam vendido há cerca de trinta e oito anos (não sei como não citou o número da escritura de venda e compra e o nome dos proprietários). o alagoano recuou. o homem da camisa de meia recuou. É um porqueira sovina como ele só.. — E minha mulher. dando dinheiro. múmia ressuscitada... o cheiro pior era o pituim do alagoano. Eu. de seus pais. Tenho mais dois. Três ano. ou melhor. tive que assistir às explicações de minha mulher que contou ao casal que aquela casa fora de seus avós. por estar comigo. Algo assim como exalação de crosta de goiamum. entrando nos paços hipostilos dum passado de ruínas cheirando a mofo. que. de rato. de peixe. Um sobrinho da minha idade. pois minha mulher é voluntariosa e eu prefiro sofrer a perceberem qualquer embaraço que me desoriente. e o Lula exclamou alto. o grupo lá de cima se dobrou mais. querendo sempre entrar para matar saudades. um mais grande. pedindo trânsito: “Abre passage. outro mais menó. Jorge. uçá e caranguejo secando em canoa parada ao sol num mangual tanto das Alagoas como das cercanias de Iguape. e perguntando: “Como é que ele se chama? Quantos anos tem?” “Migué. todavia. abrindo as mãos. Apois pruquê é que vossurias tão querendo botá a gente ansim pra fora?” Riu. Bandeiras de porta com vidros . com aqueles cheiros de saturação das casas de cômodos a que se refere o autor duma novela boêmia parisiense: cheiro de queijo. e que hoje não tivera coragem porque estava só com a filha. pediu-me uma nota. Fez uma cara muito feia. puxando a Calu para o vão da escada. receei uma descompostura não dela mas das “massas” representadas ali pelo Lula e por toda a sua “cabroeira de cambembes”. os degraus. e que então agora. foscos. tradutô. garrafas. vai espaiá tudo na porta do banco da rua Alvis Pentiado. Pedro Aleijado? Homessa. um home qui chegou de Minas e tá desempregado ainda pruquê é malandro memo. É verdade qui tu é vagabundo. Moço tão dereito! Mas tô de oio! Quem sabe si ele é sonso? Aqui o Monetti e o Rodovalho. Dona sentada dentro fingindo qui lê revista ou se pintando. fogareiros. fique à vontade. O Lula. O Cabeça de Carneiro. os espelhos de molduras douradas. as alfaias. ora essa! Dois estudantes. as cornijas com cortinas de veludo. chefe de protocolo. azuis. O Lula bateu na porta.. latas. o Ozório. dando tempo.. Virge! Aquilo ali é a mánica de escrevê. Pedro Aleijado (tá qui o carrinho- cadeira dele. hum! tá fechado. berrou: “Atenção! A otoridade! O doutô juiz! Veste essa camisa. Depois eu me lembro. bacias. Nova lei do inquilinato..” . Num tá de plantão hoje.. caixas.. Ah! O Donato! Ele garra a livraiada toda quando sai. os bronzes. capas de revistas grudadas feito quadros. Num é memo. mas o medo de vaias. licença. O. Ué. apôis se componham. Óiem só quanto dicionário. Vendem brochura na rua. e surgiu como num pesadelo a antiga sala de visitas do coronel Valério. É o quarto do Joel Borges. pandeiros. Aqui. Ouro da gente qui vai pro estrangeiro e pros tubarão do câmbio negro. e o Arruda. Pra sê franco. o lustre. dorme di dia! É o doutô juiz! Gente. onde qui tu tá. “João da Silva. se o carrinho tá qui como é que ele num tá?). cabides. e um terceiro. com as três sacadas. os móveis de jacarandá. então?” Minha mulher investiu mas logo recuou como puxada por uma espécie de mola. à vontade... seu sem-vergonha! Isso é modo. Seu Damião. só qué sabê de gafieira. o nome do inquilino e a profissão. Fiquei horrorizado com aqueles oito cubículos que pareciam bem mais cenários de cinema francês. Maria Clara entrou. abriu-a. bem encarnado. no centro. Fiquei hirto. o. Tive que segui-la não sei se por instinto de defesa ou por coação.. ganzás. Só chegam depois das sete. e que pendiam de fios cheios de moscas. num parece.. não se assuste. nossa! quem é qui mora memo aqui. mas dividida com tabiques formando creio que oito cômodos que minha mulher revistou como uma generala prestando muita atenção em catres. licença. engraxate ali no barbeiro de Xavier de Toledo. as porcelanas. de Sorocaba. é o Giovanhoni. panelas. O Lula fechou a porta. diabo? Aqui. Amílcar. rádios. dizia. tornou por fim a escancarar a porta. roupas e corpos humanos. violões. o piano de cauda. hein? À vontade. ao passar. Em pouco o Lula acendia luzes mortiças e inúteis pois ainda estava claro. e rifa di automove. só num sai quando tá chovendo. aprumou-se. de Pederneiras.. É umas visita minha. Credo! Como esse chão tá di ponta de cigarro! Aqui mora dona Mercedes!” E baixinho: “Trabaia em naite clube. as pratas. revisô de jorná. Eleutério. Dizem qui é comunista. Uma praga esse negócio de rifa de automove.. fez sinal que esperássemos. da puliça. vendedô de biete de loteria.. condutô do ônibus 17 da Aclimação. seu doutô juiz? Aqui. Não ampla. os tapetes. Enveredou logo para o salão da frente. por exemplo. baús. como se me voltasse de súbito não o aplomb de juiz. sapatos. o T’arrenego. do caminhão da prefeitura de lavá a rua. quantu mais que o Belinha tá atrasado nos alugué. Ali a cadeira onde papai cochilava. Posso acendê. atropeladamente: “O Casusa. sobrinhos. que trabaia com judeu de prestação.” O empregado do carro-restaurante tornou a passar. Ali o sofá onde sentávamos. E de fronte é o Rolão. tio Rangel pediu água mineral. e é onde mora o Belinha. daí a pouco meu velho tio prosseguia. A estas hora tão jantando cachorro-quente com mustarda ali na Sete de Abril. serventes do Hospitá das Clínicas. fiz menção de descer.” Começou a contar nos dedos e a citar os nomes.. Saí da antiga sala de visita. Calu?” Estava deitando o rebento na cama entre os outros dois. que lava pratos. bebemos. ainda num vortaro. um portugueis que veio de Santos e que foi arreprovado no exame pra motorneiro. operário. dizendo-me: “Ali o piano. São doze vagas como nóis usa dizê. primos. Aqui. o Samuel. fazedô de chave Yale. que vende modinha no largo da Misericórdia. fomos servidos.. encadernadô. permetendo hoje. Vevem brigando. mas já ela acompanhava o nordestino para o outro corredor transversal ao primeiro. forom vê o museu do Ipiranga. Cheiro de emplastro. evidentemente estava agora armando uma verdadeira novela tipo Heinrichplatz e rue Maubeuge. onde decerto era o quarto das moças (quem sabe se não foi o quarto da senhora?) mora uma famia inteira de polaco fugido da Oropa: marido. o Tartaruga. o Brito. ao sabor do Doeblin e Van der Mersch para ver se me arrancava da taciturnidade. — Paramos diante duma escada que dava para o sótão. — Que memória a sua. amanhã. E a voz solícita do Lula: “Aqui.. criançada e a sogra do home. o Januário. Vossurias adesculpem eu não acendê pra mostrá os pequenos porque se eles acordam vai sê um fuzuê. Lá no fundo. mas eu num sou bobo não.. mas minha mulher atravancou o portal.. eu com a Calu e a fiarada. cunhada. outro quarto em cima da oficina do pintô de anúncio. tio Rangel! — Memória e imaginação. Num vamo subi não porque inté cheira a carniça. “Lá em cima tem três cômodos com doze camas. Junto da escada. onde outrora dormia a criadagem em três mansardas. com uma zinha. o Justino. o Nelson. o Liberato e o Tavares.” Meu tio Rangel era famoso por causa do dom invejável da memória que o fazia saber de cor alguns sermões do Padre Vieira e umas quatro peças de Gil Vicente. ele diz que é casado. que vende enceradeira Lux. Saíro hoje cedo. o Fuganti. de urina e de xarope. mul-hérrr. e o Juca Perebento. “Aquele é o Jeférsão e esta aqui é a Teresinha Marlene.” Puxei-a disfarçadamente. uma véia que já anda implicando com a Calu. No foro suas citações de memória eram célebres. Só tô esperando escândalo pra sapecá os dois na rua. . um mulato que veve do hospitá pra qui e daqui pro hospitá. varredô de escritório.. Nesta outra porta mora o Meia-Noite. mas. Já chega o que eu aguento de noite. funcionário da Recebedoria. lixeiro. falas. lembrando ali um inglês exilado em pleno sortilégio africano. espécie de rei Lear ou Édipo. tal qual. imensa balaustrada e duas estátuas de mármore mutiladíssimas. um imenso sujeito cuja cara estava rodeada por um esplendor de cãs e de barbas. No mais. Minha mulher. risadas e prole. contorcendo-se todo como um Laocoonte a livrar-se de filhos e de serpentes. franziu muito as sobrancelhas. um moreno e um sardento. seguiu-a com desdém um sujeito cheirando a brilhantina. Vi ladrilhos portugueses. uma aparição. Pelas caras que apareceram me considerei em Angola ou no Congo. gaforinhas. sem camisa. bolsa a tiracolo e sapatos Anabela. Haja espalhar níqueis pelos garotinhos de imensas barrigas e de grandes olhos. meu caro Jorge. Dois lances de madeira pintada a óleo dividiam a sala em duas metades com um corredorzinho pelo centro até à antiga varanda. Passou por nós uma pretinha de tailleur.” “Como?” “O Purma!” Então emergiu uma cabeça de sujeito mais incrível do que um dos irmãos Marx (do cinema) e corrigiu: “Pullman!”. Cordas esticadas entre as pilastras. — Voltamos para o corredor. O Lula e minha mulher embarafustaram para a antiga sala de jantar. como quando nas audiências algum promotor comprometia um “texto explícito”. Cada um desses dois lances era dividido por sua vez em cubículos feito quartinhos de balneário popular. com voz e gestos de Sarah Bernhardt. pois um rádio gritava histericamente um boogie-woogie.. “Isto aqui é o Purma. pés. Calças de brim com o cós tão baixo que seu umbigo delimitava um ventre de ascite. Minha mulher quase chorou. Só a tal cara tipo “irmão Marx” era loura. um fantasma como os das novelas escocesas. decerto. jogando cartas no patamar da escada que dava para a área — o antigo jardim interno. beiçarias. até alcançarmos a varanda. Do outro lado uma mesa de pinho sobre a qual moscas formavam mapas sonoros com zumbidos frenéticos. Recuei não de medo mas somente por causa do seu cheiro. Negrinhos simpáticos nos cercaram como se fossem bailar. Velhas cozinhando. um albino.. disse com empostação fanhosa: “A cascata! Ainda tem a cascata. todos os espécimes do livro de Nina Rodrigues quanto à cor. um mulato. Cinco sujeitos cosmopolitas na cor. como um poço delimita um deserto. Sim! Avultou e cresceu para nós. e que mostrou aspectos tão tétricos como este aqui. com o paletó de linho lhe dando quase até aos joelhos e com umas calças afuniladas cujo cós lhe apertava o coração. Uma pia atulhada de panelas e pratos. vindo de perto dum dos fogões.. e reentrou para a sua cabina. Um cheiro somado de todos os bichos dos parques zoológicos do mundo. . Já estava escurecendo e por isso o encarregado acendeu a luz elétrica. o lago com os peixinhos vermelhos.” Meu tio alargou o colarinho com um gesto de dispneia.. — E nisto. feito megeras mexendo filtros. Só que definitivos. Uma torneira deixando escapar água embora estivesse amarrada com arames. Dois fogões acesos. um ruivo. uma luz pior e mais fraca do que a deste vagão. Roupas estendidas. Olhei as horas. porque se a achei ridícula e desfrutável naquele ambiente medonho me pareceu que o antigo prático do porto de Vitória. os homens que jogavam cartas. descendo como uma adolescente de braços abertos para o lago e exclamando: “A cascata! A cascata com os peixinhos vermelhos!” Enrubesci até à raiz dos cabelos. latas vazias de tinta a óleo. caísse lá dentro. Tábuas. O antigo jardim. arrancou de cima dum tanque uma lanterna. Mas o Lula. agora o lago virou depósito do pintô de anúncio”. Desprendi-me do sortilégio do velho marinheiro. como pressuroso já correra certa vez para o grande lago existente atrás do palácio de Versalhes temendo que minha mulher. no entusiasmo de touriste. o Lula. tornou a cobrir-se. vassouras velhas. era agora. banquetas. continuou: . Lula. A noite caía. outrora belo como um átrio com águas sussurrantes. “Felipe. penteou com os dedos a cabeleira sedosa e branca. apertei- lho com aquele jeito (tão conhecido dela) de quando estou “seriamente zangado”. Minha mulher. se arremessou escadas abaixo. como num fim de tragédia de Ésquilo. uma área lúgubre. o cimento embaixo rachou. vergada por curiosidade e para poder ver bem. Olhei para meu tio desembargador. a que deixasse de “dar espetáculos”. Lula parou debaixo da escada onde havia um vão parecendo canil abobadado. cavaletes. Ele.E o velho se apresentou não com humildade e sim como um guia complacente resfolegante. as velhas megeras dos fogões. dizia: “O encanamento entupiu faz muito tempo decerto. Enfiou lá para dentro o braço com a lanterna. azulejos. estátuas e cascata artificial. pórtico. enquanto eu com o olhar hipnotizava e era hipnotizado pelo tal Felipe. ou uma cubata no coração negro da Guiné. tudo ia reagir violentamente contra aquela invasão “imperialista” em seus domínios. uma tralha confusa entupia o antigo tanque semicircular. tirou o chapéu. acendeu-a e iluminou o ex-jardim para que minha mulher me envergonhasse ainda mais com suas efusões espinoteadas. com a lanterna suspensa. intimei-a com um olhar mudo mas incisivo a que nos fôssemos embora. como um marujo clareando uma eclusa. deblaterava. com sua voz vincada por mímica e gestos. sob a noite (que caíra com um chilrear infernal de pardais dali de perto diante da rua Sete de Abril nas árvores em volta do obelisco e no trecho de Xavier de Toledo). Pareceu-me uma água-forte reproduzindo uma cena de intocáveis na Índia macróbia. lonas enroladas. — Desci pressuroso para a “cascata”. De fato. Antes de subirmos. ex-prático do porto de Vitória! Hoje um rebotalho confinado neste porão de barcaça adernada!” Minha mulher fugiu para o jardim. passei por entre os jogadores ouvindo-lhes as apostas vibrantes: “Boto na dama de copas a fortuna do Matarazzo!” “Dobro! A fortuna do Matarazzo e mais a do Aga Cão!!” Riu. flores. Dois vultos sentados diante um do outro. certo de haver chegado o clímax da sua história. agarrei Maria Clara pelo braço. com o busto enrolado numa manta. os gorotirés. imóvel. A sua vida. desde 1903. Duas múmias desenroladas? Dois séculos face a face? Lula repetiu. completamente voltado para mim. O Ataú”. tomara parte voluntária e grátis na construção da nova igreja no largo do Paissandu — onde. era uma coisa viva. dalgum remanescente de navio negreiro ou de quilombo. — “O Indalécio e o Ataú!” Achei tão esquisito aquele recanto de senzala. os bisnetos nem sabendo de sua existência. Tão viva que me disse: “Sus Cristo!” O Ataú. misto de faquir e resíduo de esqueleto dentro dum sambaqui. sentado também. porque de noite era vigia das obras dum arranha-céu com relógio despertador marca Chicago. parte da primitiva senzala — uma série sinistra de lugares com chão de cimento e teto de traves — o nordestino me contou que o Indalécio era o decano da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e que. cor de piche. — E o outro? — Pelos informes pitorescos do Lula bem como pelo que me lembro de haver lido. nem bicho. O Indalécio. desde esta pronta. e. — O Lula e eu nos afastamos. quadras de football. pelo que depreendi. me olhava com olhos ramelentos. esculpia no ar a múmia e o faquir. forcei-a a avançar e percorrer quase o canil com o halo da lanterna. E enquanto procurávamos minha mulher que embarafustara pelo porão debaixo da sala de jantar e onde outrora se achavam a despensa. nem lenda. os puracurus. sim. o Ataú era um índio javaé. viera morar ali de dia. ia ouvir missa todos os dias — e que largado pelas filhas. quando a municipalidade mandara demolir a igreja no largo do mesmo nome. antigo cacique na foz do Tapirapés. Parecia não homem. a rouparia... depois esquecido pelos netos. resolvera vir a pé tomar providências. estes. tinha uma cara encovada com milhares de riscas lhe pregueando a pele. E vi um soba retinto. e viera reclamar ao Papai Grande contra os carajás. que abaixei a mão de Lula. e sim um desenho dalgum bisavô de Paul Robeson. ao doutor Bandeira de Melo. depois. aquelas. Na verdade jornalistas e fotógrafos se tinham servido dele para uma reportagem exótica em The National . olhando com olhos de aço dentro dumas pálpebras ramelentas. e um índio oblongo. mas com os joelhos rentes ao queixo. era uma espécie de vigoroso protesto contra as netas e netos que só pensavam. em frequentar auditório de estação de rádio. por fim. Queixara- se primeiro ao bispo dominicano dom Sebastião. Estava de calças de algodãozinho. tão inacreditáveis aqueles dois seres metidos ali dentro. passando a luz bem pelas duas fisionomias hirtas: “O Indalécio. Aproximei a lanterna mais ainda: Indalécio seria uma antiga estátua e para ali removida como entulho? Não. e disse: “Tori auditire!” Tio Rangel. e. os canoeiros. lá na famosa ilha do Bananal. os missionários e os sertanistas que andavam “roubando” tesouros das lagoas de propriedade da sua raça. cor de ocre. com um rosário de contas muito grandes. meio fulgurada pela claridade e pela emoção.. Voltamos de táxi para casa de minha filha. Quem diz que o Lauro nos estava esperando com o carro lá embaixo na rua Formosa? Outra mentira da Maria Clara. Maria Clara se apoderou da minha carteira — que eu reflexamente já tirara do bolso e abrira — e desandou a distribuir dinheiro.. Algo assim como o repouso provisório duma leva de nordestinos através de cidades. para onde corri como para uma escotilha. uerrhe. pérolas. Calu e Lula emergiram depois. trazê comida. “Sempre foste uma estabanada e todas as . Inté já aprendi uns nome: uaachiuhatê. joelhos. Não se via nada. havia acolá. esse Ataú — você não se lembra dos jornais se referirem a isso? — teve uma odisseia mais cômica do que trágica. feliz. comprá colares. pulseira. esteira. esperando com paciência milenar que uma expedição amiga voltasse para levá-lo. filho de Narubeia. seu doutô. rei dos javaés.. certa de que no trajeto para casa eu lhe passaria uma raspança em regra. Agora tá qui com essa boca franzida de tanto comê muriçoca!” Ao reflexo da lanterna examinei o índio acocorado no seu nicho. esteiras. vimo-nos de repente. cotirucoatió. quer na sua variadíssima biblioteca da rua Prudente de Morais em Ipanema.” E o Lula ria. biré.Geographic Magazine. fazia uma inspeção em regra. arco. e onde chove mais do que no tempo do dilúvio.. em cima. era um balneário nas Bermudas ou na Flórida. Em dado instante. Tio Rangel fez menção de sair de dentro duma toca. livrei a mão que ela segurava. Saímos meio acurvados por uma porta baixa. mas. flecha. Como num subterrâneo em tempo de blackout. disse-lhe: “Infantilidades em cima de infantilidades! Não resta dúvida que caduquice e puerilidade no gênero humano se confundem. Só vi ombros. bocas de crianças e de velhas. que o Ataú manda numa terra do tamanho de Sergipe. olhos. se agarrou ao meu braço. plumagem. de Barreira de Santana e de Conceição do Araguaia para cá. onde minha mulher. O informe perplexo do Lula foi a bem dizer este: “Já ouvi dizê. “Todos os domingos vem gente espiá. cabeleiras. pai de Unariru! Evidentemente era um prazer estar ao lado de tio Rangel. O “Pullman”. noite acesa já. quer num trem noturno. umas quinze pessoas. mamas. a pedir desculpa e misericórdia. comparado com aquele porão. Pouco depois me olhava com um sorriso. O Lula disse que a estada ali debaixo do vão da escada fora paga adiantadamente com seis perolazinhas que vendeu na rua do Seminário. durante o percurso para o Jardim América. — Maria Clara. onde tem jaraguá e mimoso que dão pra fazê forragem pro gado todo do Brasil.” Ela não entendeu bem. na calçada da ladeira da Memória. quase se sufocava com uma fumaça e com um bafio quente que parecia hálito de tigre. rente às paredes e debaixo de traves de caravela. dechi. acompanhada pela Calu. Subimos três degraus. com gestos e sorrisos simétricos. — Entrei no porão. chegando a confessar que cobrava entrada a cada curioso que queria ver Ataú. . para depois de amanhã.... com ar de vitória estratégica: “Surpresa para depois de amanhã?! Sim. Minha sogra com a cara inchada de mordeduras de percevejos. esta ideia ridícula: visitar um cortiço. tu que tanto aprecias antiguidades!” Depois.. a Aparecida”... Depois o padre a benzer-nos com um aspersório tamanho que borrifou nós dois. E agora. estaria trabalhando como locutor de rádio. tu de véu. o fotógrafo que nos retratou. os fraques e as sobrecasacas dos convidados. Primeiro a cerimônia civil no hotel. já arranjaste alguma surpresa ridícula afora a fotografia com filhos e netos.. Foi o único homem que até hoje se atreveu a humilhar-me quando disse lá dentro do pano preto. eu de fraque. a verdade é que foi lá que me conheceste.. Já há cinquenta anos passados o casamento na Aparecida foi um disparate. após cinquenta anos de experiência de vida.. se tivesse sobrevivido até hoje. dia de nossas bodas de ouro. uma casa de cômodos! Naturalmente.tuas ideias românticas sempre foram de melodrama.” “Casa de cômodos ou não.. comprei no balcão da Exprinter. na pracinha. que noivamos. bem como os vestidos. Pensei que tivesses um coração mais sensível. algumas passagens no Cruzeiro para. A seguir. aderido à máquina como um polvo a uma concha: “Faça um sorriso de noivo e não de bacharel!” Atrevidaço! Decerto. enquanto foste à livraria. Ah! Os romeiros e o bando tipo Rugendas dos teus parentes que abalaram de todas as cidades bandeirantes para comer doce e beber champanha. decerto a comentar a sua proeza. à medida que ia passando uma por . — Não era mala. como apartamentos. Uma hora depois. dá isso depois de amanhã aos convidados e aos parentes. pois como um piano de orquestra. acessos e trabalheiras infernais nas alfândegas e nas baldeações. só quatro marçanos a locomoviam dum fourgon para outro. Com ela já me atanazara. eu que já dera (para me livrar da coleção) tantos charutos a visitas.” Em resposta. Para que aquele trambolho? Somente para causar-me aborrecimentos. Aquele traste sempre fora o pomo de discórdia porque minha inefável consorte. Nem as atrapalhei sequer. sótãos e subterrâneos. levar sempiternamente aquela arca do tempo dos piratas da rainha Elizabeth. E Maria Clara se trancou com a filha no quarto. porteiros de hotéis. uma porção de vezes no estrangeiro. emitindo roncos apopléticos pelas gengivas em Hendaia. então. quando me deixaram entrar. peritos etc. de Paris para Lausanne. razoavelmente menores.. havia de. Meu Deus. fui instalar-me no cadeirão a fim de inibi-las um pouco. Nunca vi tanta caixa de charuto. Sim. com rótulos de hotéis do mundo inteiro nas ilhargas.. que não fumo. cujas gavetas e prateleiras. — Catorze gavetas numeradas. enfim todo o nosso enxoval de turistas paspalhões estava em umas oito malas. inimigos.. nem quero lembrar-me! Estendeu os braços configurando o volume incomensurável daquele pesadelo cúbico. amigos. E minha filha. era armário. repuseram ambas todas as caixas no lugar. escaninhos e pertuitos.. advogados. formidável cofre. dei umas pancadinhas na porta e. era arca. maquette de arranha-céu. quer fôssemos para Caxambu ou Poços de Caldas. além duma série incrível de malas. tantas eram as risadas e havia um vaivém tão esquisito lá em cima. fechando os punhos. de Lisboa para Paris. a gaveta superior. para Viena. para as Paineiras ou para Petrópolis. um trambolho chapeado de metal nos cantos. para Burgos. depois do jantar. San Remo! Bufou ainda. Liège. pois continuaram remexendo numa enorme mala-armário. para a fazenda ou para Santos. que subi. ela abarrotava só com coisas desnecessárias já que minhas roupas. Agora as duas estavam começando uma espécie de despejo coletivo. seus vestidos. O que sofri. eu. arrepiando a cabeleira. maletas e valises. Aix-la-Chapelle. III Continuou a reconstituir: — Em casa de meu genro. nas paradas pela Itália. para Lourdes. me retirei para a sala de visita a ler jornais. Primeiro. só em evocar sua odisseia. e ainda não haviam acabado?! “Ó filha. ir comprando cachimbos. Você sabe que era que tinha na oitava gaveta? No oitavo gavetão? Grosas de cachimbos! Novinhos em folha e decerto alguns comprados antes das nossas bodas de prata! O pai de Maria Clara. de vez. tiravam de lá para daí a pouco repor. Eu. “Isso. O que quero dizer é o seguinte: minha mulher me obrigou a vida toda a cometer bobagens. como estou prestando atenção no senhor. abertas outras gavetas. não fumo. Miniaturas de garrafas de todos os formatos. — Eu sei. senhor! Obrigava-me. Em seguida. como se tal pergunta fosse feita a mim e exigisse uma resposta. — Sim. tio Rangel. essa excomungada mala-armário. E o que sobrar esvazia na sarjeta. de modo esquisito. a em tudo quanto foi viagem ao estrangeiro. Jorge.. Não é isso. Por que não aniquilara eu no nascedouro aquelas fantasias esdrúxulas de minha mulher cuja mentalidade frívola me obrigava. só havia garrafas. escusado dizer-lhe. interessei-me. enquanto Maria Clara contava a Rafaela suas impressões da visita ao casarão antigo.. fazendo-o com uma alegria de beata francesa passando de noite pela praça Pigalle. Aconselhei pois minha mulher e minha filha que dessem um sumiço naquilo. porque da segunda à sétima. Sim.. a fazer considerações misericordiosas sobre o epicurismo rastaquera dos senhores de engenho e dos fazendeiros destas plagas da cana-de-açúcar e do café? Olhou-me. — Não é isso. abre essa joça toda depois de amanhã para os parentes e convidados. de aguardentes e de infusões. li. lamento não haver remetido tal preciosidade para a Downing Street consignada a Churchill. Olharam- se as duas. distribuindo charutos a mancheias depois do jantar das bodas de ouro. Que nomes mais arrevesados! Guardado que foi tudo aquilo. filha.. outros troféus inconsequentes. em pé ali diante do gavetão aberto. Para que havia de dar a filha? Para fumar Pall Mall. o sovina do coronel Valério. de vinhos e de licores. peguei. com que montar um botequim para colônias anglo-saxônicas. vendo os feitios e os tamanhos.? Não. rapaz. Agora.. isso sim. eu lamentava não haver uns quarenta anos antes reagido em regra contra caprichos idiotas de minha mulher. Tirei a carteira de cigarro apenas para servir-me e. só fumava fumo de rolo. Só assim arquivas no porão. fiquei com a carteira esquecida na mão. Abdullah? Enfim para fumar cigarros de luxo como vira muitas embaixatrizes e aristocratas fumarem em Biarritz e Cannes. pois agora. acariciavam e repunham nos lugares uma espécie de adega.” Enfiei as mãos nos bolsos e fiquei a assistir. retrospectivamente. Na verdade uma coleção que seria um régio presente para subornar corretores de Wall Street. Ao lembrar hoje.uma as caixas para a mãe acondicionar no gavetão.. ou no Waldorf Astoria e no Meurice? E isso. sempre fui um abstêmio. para desrecalcar o complexo de inferioridade do pai!. as duas tiravam. já que eu. fui lendo as marcas. que é que você pensa que apareceu na oitava gaveta? Sim. Pois. meu caro. pessoalmente. cachimbos dos modelos e . lia aqueles nomes cubanos escritos nos rótulos. repeti alto o que lia. da despensa para a copa. Presente daquela criatura num aniversário meu. afoitamente. um Weber. da arrumadeira. abarquei com a vista a bacanal! Sim. atuns. selvagens. como um anúncio sumário de revista ianque. arenques. Desci. as revistas e alguns livros. Tanto que prosseguiu. servi-me de água. champanha. dressings. do jardineiro. mais outras vozes: da copeira. finos. quase onze horas da noite! Mas a porção de latas. Ah! É mesmo. daquele fogão elétrico cujo registro de comandos e chaves era mais complicado do que um mostrador de avião internacional. Mas como adormecer com as risadas de Rafaela ouvindo a mãe descrever a colmeia humana daquele cortiço? Lá para tantas me levantei. dueto lá embaixo. imagine você agora diante de tantas latas. pelo que pude inferir. para golf e para corridas. como diria minha mulher. O inefável sistema do mutirão brasileiro! Entrei. vegetables. meti-me num pijama. saí do quarto para procurá-las. Soprano e contralto. Saí do canapé. sauces. para desportos e para salão. da cozinheira. o pouco que pude ver ali perto de mim na primeira mesa de tampo de mármore me provou que minha mulher estava sistemática e organizadissimamente com a sua équipe preparando com suficiente antecedência a programação pantagruélica para as bodas de ouro. da copa para a cozinha. arrependido de haver retirado sem querer o esparadrapo de cima duma ferida. vidros. compus-me bem. retos. o tal General Electric Range. para iate e para automóvel. fui até à geladeira. salads. um livro que saiu também dum dos tais gavetões. repleto de perfume. explicando: — Doctor Plumb. uísque. o fogão elétrico. da lavadeira. Enquanto abri e enquanto fechei a Gibson. duma vizinha.. muito simpático. salmões. com os retratos. Entregou-me num cinema. não estava funcionando. quanto mais intruso. muito mais de uma hora. cookies e frostings! Diante daquela efusão de gulodices luxuriosas. Agora. Verdade é que. para lordes e para cocheiros. do motorista. toda aquela horta enlatada em gift package! Fiz também eu um ar de empanzinamento. espargos. Notei silêncio. . caixas e invólucros mostrava. nem sequer me considerando presença. para você. Minha mulher me olhou por cima do ombro. Depois. Foi. Li. frutas. apaguei a luz. diante daquela infinidade de meats. todo aquele oceano. de Henry James. — Com o tal cachimbo no bolso separado para você. me retirei para o aposento ao lado e me pus a ler Daisy Miller. Se em cima eu já me saturara com aquelas marcas de gim. lagostas. A filha e a mãe. curvos. da cozinha para a despensa. Da copa para a cozinha. boiões.. uma série de desenhos e nomes. aristocráticos. Guardei e mandei um. Não se esqueceu de usá-lo? Tirei do bolso o que usava mais frequentemente e mostrei. passou-se bem mais. para botequim e para biblioteca. licor. Pudera. Meu tio tossiu.marcas mais incríveis: bojudos. recostei-me na cama. enfiei o roupão. ervilhas. Na sala de jantar? Não. com ar intelectual. a única coisa que me ficou. todo aquele pomar. com esta me retirei. E. da Braniff International. virei às pressas o café e me raspei daquela casa para longe. passei uns telegramas para o Rio pela Western. Retirei-me dizendo com desdém retórico: “Maria Clara. dou-lhe minha palavra que vi até duas enormes latas com perus assados. e essa mulher a guardar num armário portátil todo esse sortimento! Caso de polícia! De processo!” Fui deitar-me. — Na véspera das bodas de ouro acordei lá para as sete da manhã com um beijo de minha mulher. Não ouvi a que horas meu genro entrou. — Jorge. era inefável. Ele tinha razão em dizer que tia Maria Clara lembrava em muito a generala Epantchim dum romance de Dostoiévski: temperamento em rompantes! — Almocei em casa de Moura Serpa. de comprar um presente bem vistoso e moderno na rua Barão de Itapetininga. meti-me na Biblioteca Municipal. não é Jorge? Anuí pressurosamente. Não sei a que horas minha mulher e minha filha subiram. principalmente. da New York Central Sy stem. Espreguiçou-se como a explicar de que forma acordara no dia seguinte. estive em um banco. violetas frescas da MacBee Company ”. não te esqueças de telegrafar para os Estados Unidos mandando vir de avião. de visitar amigos. Meu velho tio era uma inteligência muito aguda. da Beech Aircraft. palestra! Pois se só eu estou falando! Mas isto lhe faz bem.. Subi as escadas pensando: “Tanta fila desde madrugada nos açougues e padarias. quase na hora exata de termos que embarcar. quedei- . daí a meia hora — depois de ela ir e vir pelo aposento e pelo banheiro —. pois eu sabia quanto a adorava.. a fim de evitar alergias e. enfurecido. toda uma população de mamelucos que decerto já estavam correndo pela Paulista. da Rockingham Marketers. quando de nossa visita aos Estados Unidos (quando fui comparticipar dum congresso internacional). Por conseguinte. Aquele modo de manifestar com “comando invertido” o seu amor pela mulher. ou rente mesmo às estações da Great Northern Railway. quando resolveu descer. fui tratar de interesses vários. me vesti. desancando-a. me barbeei. de percorrer o antigo itinerário tão alterado a que me referi neste começo de palestra. tomei banho. Isto é. Nem abri os olhos. se é que ainda há tempo. pela Mogiana e pela Sorocabana ali para o Jardim América para a patriarcal comemoração de cinquenta anos da minha escravidão aos caprichos duma mulher que me amava demais e que me tratava como um galã da Comédie Française. que tais coisas que se adquirem hoje nos bons empórios e armazéns do Rio de Janeiro e de São Paulo foram alguma encomenda de minha mulher ou de minha filha? Ab-so-lu-ta- men-te! Quase tudo aquilo as duas haviam retirado da excomungada mala- armário. aquilo tudo assistira eu minha mulher comprar meses antes. Então. nas diversas cidades. aquilo tudo era ainda o meu opróbrio. nos aviões da Delta. o encontro demasiado prematuro com os parentes inumeráveis de minha mulher. Jorge. Pensa você. mas percebi. Mogi. professores. do vale do Paraíba e da velha Mogiana tinha que ser com protocolo inglês. quem tinha sido operado. sim. Jorge. — Mas a verdade é que não havia ninguém a mais lá em casa de minha filha. banqueiros. tudo ficaria apinhado de figuras exóticas — bacharéis. meu genro.. em bicho-do-pé. eu sabia que a programação do jantar perfazendo toda a tradição culinária do Nordeste. tomei um táxi. louças. etiqueta francesa e estabanamento ianque. em parentes consanguíneos.. saí. estive na diretoria d’O Estado. Depois do almoço me fecharia inexpugnavelmente no Retiro. porque o vestíbulo. almoço íntimo com minha filha. Mal acordei no dia das bodas de ouro. fui pegar no Arouche mais um presente para a mulher. pratas e flores poriam as salas e o terraço dos fundos em polvorosa. Contei por onde andara de dia. em gado. quem tinha chegado. em eleições. missa em Santa Cecília. as salas. Primeiro. gente de quatrocentos anos e ricaços de extração peninsular absorvida. comendadores. às nove ou às dez horas. que eu fizesse uma fisionomia expansiva para os parentes pois essa gente de fora é muito desconfiada. entre meio-dia e uma hora. no Instituto do Café. numa paródia entre Vogue e Casagrande e Senzala! Toda a árvore genealógica por parte de minha mulher e a respectiva malta de garotos e meninas em volta das mesas de sorvete. depois. Campinas. para evitar saber quem tinha morrido. minha nora e meus netos. funcionários. guaraná e Coca-Cola. aguentei as efusões de Maria Clara radiante com os presentes. toda uma turma a falar em cafés finos. em prefeitos. Ao dizer isto tossiu. em algodão. deputados. sabendo que teimava no seu exílio. cristais. E. para evitar ser traumatizado pelo afoitamento doméstico dos preparativos. como convinha a quem no dia imediato ia ser centrifugado por tantas novidades. Jaú. passei hora e meia num cinema vendo já não me lembro que filme. desancamos o governo federal e estadual.me lá mais de duas horas. imaginei os convites remetidos uma semana antes. e isso excitou ainda mais meu companheiro de viagem. disfarçando. Eu já tinha a minha ideia. Franca. suportei minha mulher contar ao Lauro em que estado encontrara o casarão da ladeira da Memória. Ribeirão. o pavilhão aos fundos do jardim. todos decerto querendo dizer. São João da Boa Vista etc. etc. em mercado imobiliário. meu filho. Com você. fazendeiros. mas não tendo coragem. entrei em casa preparado para aguentar (com uma filosofia toda especial) as conversas e as caras dos parentes já chegados decerto de Itu. Nem perguntei nada referente à parentela. em maleita e em carrapato! Não pude deixar de rir. os corredores. quem tinha casado. a escada. tive . — Dormi bem aquela noite. pois decerto baixelas. visto ser ela incontentável. Decerto. o jardim. em partidos. eu não contava mesmo. do Recôncavo. quem tinha hipotecado seus alqueires etc.. arranjei uma boa dose de resignação para o programa infalível do dia seguinte. fabricantes. De vez em quando ia à janela e espiava pelo vidro se já haveria mouros na costa. vermute. que beber champanha. um balcão onde me sinto estranho. trepadeiras vistosas. Que o Sauternes é dourado. a cor. atrás da garagem. cerejas e azeitonas. Depois me veio uma ternura por minha esposa. beleza plástica e gosto sutil se pode obter com gim. que aturar saudações. branco. “Quem? Credo!” Tive que me paramentar para assistir à missa. abraços. vermelho. Lá fomos para Santa Cecília. ao fim do jardim.. Transportamos as flores para casa de Rafaela. minha prima. Agora estás parecendo Gertrude Stein”. Olhando para os rótulos fiquei sabendo o tipo dos vinhos. seu desejo de rever a casa paterna. com garrafaria e cristais e onde estavam colados rótulos coloridos. Dubonnet. Para ser franco. o Barbera. assim uma espécie de Cape Cod com terraço de grandes lajes. Um pavilhão rústico. Old Fashioned. tapetes. Entendi sua curiosidade. recebi beijos. conhaque. pois a verdade é que os gladíolos e os gerânios garantiam o bom gosto de Rafaela que puxou mais a mim em sensatez do que à mãe em extravagância. Porto. com receitas de vinte e cinco cocktails. lagos com fundo de azulejos e plantas aquáticas. a bem dizer uma cabina de pesca e uma cabana de caça. poltronas. eu sentado entre duas velhotas. Esperei o almoço no jardim lateral. o Graves. apetrechos. ferros forjados. anzóis. o corredor aéreo de Berlim. Manhattan. o Tokay. e de súbito. possuía o temperamento paterno e a argúcia materna. não eu que sou leigo. ao refletir sobre o jantar. uísque. vigas espessas. a experiência da bomba atômica no atol de Bikini. rum. como uma golfada do passado . mas algum esnobe se deliciaria com o que em cor. canapé. tenho ou não tenho razão? Tive que dizer que Rafaela. rubro etc. Você conhece. Bamboo. estante com livros essenciais sobre floresta e mar. varas. limão. açúcar. cor de âmbar. as visitas heterogêneas. Dia claro e céu azul. armas. Mas. junto aos eucaliptos. entre florestal e marítimo. laranja. tendo que ouvir considerações sobre a longevidade. relvas em declive. a política estadual e federal. antes. ao reparar na quadra de tênis. de esmalte.. minha mulher entre dois velhotes. Assisti ao divino ofício ajoelhado num genuflexório com almofada. mas tão cheia de papelotes e máscaras elásticas contra rugas que lhe disse: “Já não pareces mais a generala Epantchim. peles. apertos de mão. Sazerac. Tio Rangel concordou. se devem ser servidos gelados ou não. A um canto um pequenino bar bem equipado. champanha.minha mulher um quarto de hora abraçada a mim chorando. o Madeira. depois me refestelei no canapé e desandei a ler a odisseia das baleias e dos que as pescam. ao som de órgão. Dei-me conta do efeito de nomes tais como Bacardi. diafaneidade. Quando chamaram para a refeição entrei na sala de almoço que parecia decorada por Marwell. radiovitrola. — Depois do almoço me esgueirei para o Retiro. Pensei na beleza e na alegria dos meus netos adolescentes. Tão verdade foi isso que retirei da estante um volume. moderníssimo. Você que a conhece bem.. durante ou depois das refeições. com piano.. essa analogia não me comoveu.. ainda era cedo. Seriam elas? Não. Sorvete na minha idade? Pois sim. Minha mulher sempre que vai a São Paulo faz como fazia o Martins Fontes quando ia ao Rio. Levantei-me de supetão. no Retiro.. mas não terá sido isso? — Quase. não? Tomei o sorvete cristalino. não? — Deveras. até que levei um susto: alguém me sacudia no camarote do Titanic avisando a catástrofe. Sim. E então você sabe que foi que aconteceu. Com que então esse pessoal todo já chegou?” . A criada respondeu que dona Maria Clara e dona Rafaela haviam saído logo depois do almoço. desejando veementemente que minha mulher e minha filha chegassem sem demora para receber e fazer sala aos convidados porque isso de um ancião como eu em tais conjunturas se apaspalhar um pouco por causa dum edemazinho cerebral e. fiquei apaspalhado. ou sorvete. sobe.. com quase setenta anos. claro.. O que sucedeu deveras foi que só ali. ouço ruído de automóvel entrando. Primeiro visitar os vivos. Jorge? — Não quero dizer que o senhor chorou. tal qual tinham feito ontem! Hum!!! Homessa?! Nisto. “Está bem.evocar em meio a tudo aquilo o dia melhor da minha mocidade apesar do hotelzinho da Aparecida. Já que eu estava vivo.. pois convenhamos que é uma formidável maçada entreter visitas com assuntos que na verdade são bocejos. Depois visitar os mortos.. Refestelei-me outra vez no canapé. filha. Trouxesse o sorvete. E perguntei por minha mulher. só à tua espera”. Naturalmente os convites para jantar davam a hora. Está tudo pronto. tratei de voltar ao livro de Melville. Era um caminhão. ouvi o órgão que todavia fora tocado entre nove e nove e vinte na igreja de Santa Cecília. ela me disse com as mãos nas ilhargas: “Sobe. entre ridículo e sublime. Isso de pescar baleias também não é para a minha idade. E hoje? Ao cemitério. providencial. Quase. vai pentear essa gaforinha de maestro. De forma que adormeci. claro. está bem. agarrei minha mulher! Soltando-se. São seis horas. ferrei num sono beatífico. Então. puro iceberg minúsculo onde uma fatia de gomo de não sei que fruta parecia o Titanic soçobrando. — Então mergulhei outra vez nos mares a levar rabanadas de baleias! E a verdade é que li mais de cinquenta páginas até ser interrompido pela criada que perguntou se eu queria chá. Com que então estavam chegando mais coisas! Não bastava o que eu vira pela cozinha como amostra infinitesimal do abastecimento da despensa? Onde teriam ido elas ontem? Visitas. Esquisito. Ótimo... Sutilezas de protocolos e pragmáticas. Lembram-me. Sala de visitas apagada. o luxo e os salões serem maiores do que os de minha filha. passamos pela copa e diante da cozinha. antes de mais nada. mas peço a Deus que não te haja inspirado nenhuma extravagância. és lépida como o foi Isadora Duncan. Jorge? — Para o senhor e tia Maria Clara isso não se aplica. onde o automóvel do Lauro. contentando-me em observar Lauro e Rafaela no banco da frente e minha mulher no de trás junto a mim. democraticamente. ou atrapalhar. O carro seguia indubitavelmente para o centro da cidade.. minha mulher dá puxões frenéticos na gola e nas abas do sobretudo e me enfia um chapéu na cabeça. porém. Decerto íamos jantar na intimidade à mostra nalgum restaurante. . os mais sagazes se valendo do expediente de mandar telegramas? A caminho do jardim. a residência. nos esperava. tendo a gentileza graciosa de abaixar a aba “a fim de meu rosto remoçar”. e essa gente toda que moesse os ossos no Cruzeiro ou arriscasse a carcaça viajando por via aérea para comer leitão e peru. sempre que os vejo juntos. bodas de ouro devem significar. Ainda assim não perguntei nada. Ainda bem que eu não tinha dietas. tão desfrutável! Todavia. Iríamos desviar-nos um pouco do trajeto para a casa da Conceição e Roberto? Não. comemoração dum fato antediluviano. se não devêssemos ir à Aparecida depois. Sala de estar apenas com o abat-jour aceso. Novidades norte-americanas: deixar o lar pela exibição. tem complacência com um ancião. no vestíbulo.. isto é. estender-me o sobretudo aberto como um espantalho. tal qual ela. — Notei. Oh. vejo minha mulher. por que não ficara eu em Ipanema. E os filhos de Rafaela? Bem. IV Tio Rangel prepara aos poucos o efeito: — Sala de jantar apagada. Compreendi então que para o meu cansaço ser maior e a estopada ainda mais categórica a família combinara o jantar de gala em casa de meu filho visto o bairro. Goethe e Cristina em Weimar. decerto tinham ido antes para ajudar. Ainda meio zonzo. sensatez e comodidade já que são a entrada oficial para a fossilização”. Disse certo ou não. aquilo tudo ainda acabaria em cinema. supliquei: “Maria Clara. Pela certa. Mas não perguntei nada.. decerto o sono me embotara. um dos meus braços se entala numa das mangas. Isso equivalia a dizer que até a criadagem se transferira para ajudar lá em Jardim Europa. e sem ninguém. Fico entalado. Literalmente apagadas. o que vale dizer em quase duas horas de sono. Ao aboletar-me no carro. E. meu genro. — Oh! Oh! Oh! — riu tio Rangel achando a analogia exata quanto à tia Maria Clara. Estou por tudo no dia de hoje. que o carro não rumou para a casa do Roberto.. Maria Clara. mesmo em se tratando de caixas de charutos. retirando e repondo tudo nos gavetões? Tiveste a cretinice de acreditar que Maria Clara era capaz de desfazer-se dos seus troféus de viagens. venerar lembranças do teu itinerário de resignações emburradas. para na esquina da rua Formosa com a ladeira da Memória. dá uma volta no antigo Piques. Eu não tinha senão um pressentimento muito vago do que se iria passar. ao jantar na antevéspera. dentes de anta. Rafaela olha para trás. ótimo! Mas. isto é. miniaturas de garrafas e mais pertences de enxoval permanente mais adequado a um celibatário do que a um pobre juiz e desembargador posto sob a tutela duma Proserpina?! O que Maria Clara fez foi rever. ou se iria dar um espetáculo forçando-me a mostrar-lhe as únicas coisas que não vira. maturimbimbe e picuanga. e lhe queres comprar colares de coral.pois minha mulher se apanhando em sala com ar-condicionado e música dorme que nem uma bem-aventurada. Rafaela permanecia ao lado do marido. Fiz um apelo a todas as minhas virtudes de longanimidade.) “Já sei. amor!”. quando voltássemos para o Rio daríamos com bateladas de telegramas da parentela toda. eu falara minuciosamente ao Lauro sobre o soba e o índio. achei que minha mulher já velha tinha o direito de ensaiar ainda um ou outro experimento. Rangel. como a um condenado à morte um carcereiro oferece um cigarro ou um chocolate. manicuras e aparelhos de . Esperei o efeito da comparação.. figas de guiné. queres ver o Indalécio. (Sim. lhe queres comprar pela certa uerrhés e birés. minha mulher salta e eu me encolho todo dentro do carro disposto a armar um escândalo. como um pobre Sísifo se habilitando para Prometeu. perguntar-lhe se há hotéis. melhor essa resolução. Não pensava propriamente em qualquer surpresa mínima ou máxima. Ótimo. E quanto ao Ataú.” Jorge. e então. o Indalécio e o Ataú. Lauro diz que vai colocar o carro não sei onde.. essa bem-aventurança se propagando logo a mim. e Maria Clara se desesperara por não haver visto exatamente o aspecto mais original do casarão: a gruta debaixo da escada com a múmia e o faquir. Mas minha mulher sempre conheceu apenas uma: fazer-me andar pelo mundo com aquela mala-armário às costas. íamos festejar sem escarcéu nosso casamento. ela e ele neutros. cachimbos. pés de coelho. e mais ingredientes de quiçaça. há muitas maneiras de viajar. “Rangel. me ofereceu o braço. se Maria Clara resolvera apenas passar mais uma vez defronte do casarão paterno antes de jantarmos e seguirmos para a Aparecida. depois de eu pular para a calçada junto aos degraus do começo da ladeira da Memória. não viste tua mulher mexendo na mala-armário. sem retumbantes cartas avisando nossa chegada). o carro sai da avenida 9 de Julho. raízes de pacová. Decerto Maria Clara e eu tínhamos vindo incógnitos a São Paulo (isto é. “Desce. dizia Maria Clara com seu ar de Sarah Bernhardt. criatura. e aquela azáfama na cozinha anteontem e ontem? Achei logo a explicação. Afinal. ex-chefe do tambaque do largo do Rosário no tempo de teu pai. sentir. — Por fim. para depois de atulhares a mala-armário com mais entulhos me propores a última viagem não mais a Nice e Ouchy nem a Havana e a Miami. Vozes. Passos. me rendi submisso a quaisquer vontades — como sempre — de Maria Clara. Ah! Subindo a ladeira da Memória eu via a Maria Clara de cinquenta anos antes! Então me sobreveio um estado de êxtase. Movimento urbano lá em cima em Xavier de Toledo. Aquele vestido.. para o obelisco de cantaria de mestre Vicente. Chegamos ao sopé. O camafeu florentino na linha biclavicular. O semblante de minha mulher me sorrindo. para o lago. meu caro Jorge. tão amigos um do outro. Sacadas no sobrado.. És a Maria Clara de sempre. sorri-lhe com gratidão. Foi só então que percebi o seguinte paradoxo: estando minha mulher vestida agora com um vestido imitação do vestido do casamento civil. Beiral de telhas negrejantes. para as grandes árvores por cujos troncos subiam heras.. Ônibus e bondes descendo Quirino de Andrade.. Mesmo a evocação não é um esforço e sim uma oferta. Portais. Vultos. que sofreu transmutações sem todavia deixar de continuar essencial. Mesmo a beleza anacrônica.” Ah. Instantaneamente me dei conta mais uma vez do que ela tinha sido e era para mim. Olhou-me com firmeza. Agrupamentos. mas de cinquenta anos antes.” Espiou as horas. A antiga casa de meu sogro ladeada por outros prédios como macróbia de asilo apoiada entre velhotas prestimosas.. comecei a subir aquele Gólgota. está sujeita a tais injunções. Transeuntes. Parede contínua. sexagenária. — Chão de pedrinhas. da sua perspicácia. continuou: — Dito isto lhe dei o braço enquanto o Lauro e a Rafaela sumiam.. Prosseguimos. E tudo. da sua inteligência. eu com ímpeto.. depois duma saída de teatro. Gente sentada no paredão.. pelo fato de ser um modelo antiquíssimo. Alisei-lhe os dedos pousados na manga do meu sobretudo.. Bateu-me no braço. que nos outorgou filhos e netos. . Aquelas luvas até acima dos cotovelos. demoradamente. um semblante não de agora. E foi como se meio século antes estivéssemos indo. Maria Clara fez menção de puxar- me. para aquela gente vária que subia e descia. não era ela. para o casarão do coronel Valério pouco antes da rua do Paredão. Subindo a ladeira da Memória recuperei o passado. um semblante que se baralhou. em vez de baralhar-se fica nítido. Andaimes. Quis dizer e disse de forma a ela ouvir bem: “Louvado seja Deus que nos fez tão felizes. saber subir a ladeira da Memória é repetir o prodígio do Tabor. para o frontão de azulejos. da sua vivacidade.ondulação permanente em Itaboca. uma emoção não sentida desde muito. Resisto. Esquadrias. e o tempo não tem passado nem presente e nem futuro pois é e está simultâneo. olhamos os dois para aquela rampa plebeia. ela travando o meu ímpeto. Janelas ao rés da ladeira.. lembro-me de ti outrora através do semblante que tens agora e me olhas com o teu semblante de antigamente... De braço dado passamos diante da porta fechada. que estava feia e sim o vestido apenas. meu caro Jorge.. e sim aos Travessões de Sant’Ana.. Por que não houvera recepção. já temos idade para não dar espetáculos e escândalos! Isto é uma insensatez! Até parece exibicionismo de novos-ricos!” “A porta está fechada”. quando a porta se abriu e um Lula paramentado num bom terno de casimira arreganhou a dentuça. Luzes dum café. ouvindo tudo aquilo.. lá na área. Conceição et caterva tinham estado ontem e hoje de dia. e o jantar? Está bem. — A sala de visitas. Tudo iluminado. Agora quem estava surpreendido e perplexo era eu. Condutores. atenção. “Filha. um monte de flores. Não. Mais exatamente: de rosas. não a vamos levar conosco à Aparecida. e me puxa com doçura mas com determinação para a ladeira. No lugar do piano. a mala-armário. Mas. algo assim como um amontoado de corbeilles. grandes focos de lâmpadas fulgurantes. e esse jantar? Para onde foram o Lauro e a Rafaela? Por que. Guirlandas de folhagens apenas ao corrimão. O Lula fechou a porta com a chave e com.. só o Ataú. luz mortiça? Não senhor. Já a varanda era um formidável camarote real onde decerto peritos de ornamentação tinham passado a tarde. pois o Indalécio já deve ter ido para o trabalho. Mas não aparecia ninguém. Motorneiros. não havia inquilinos formando alas. No lugar onde outrora se achava o sofá dos noivos.. Queres ver o Ataú? Sim.. E a sala de jantar? Ah! O “Pullman” era uma quermesse. sim. No lugar donde a sogra nos vigiava... minha tia Maria Clara era incrível. Maria Clara me olha misericordiosamente. com os cubículos abertos e vazios. o Roberto com a mulher e os filhos foram embora? De mais a mais. ab-so-lu-ta-men- te! Em cima. . Queres? Está bem. De fato. lírios. para dar tempo!. ramalhetes. “Filha. toda acesa. Sim. Nisto soergui os olhos para as sacadas da ex-sala de visitas. disse que o Cruzeiro só saía às dez da noite. Entramos com a pressa típica e envergonhadiça de quem penetra em antros clandestinos.. Guirlandas e festões. Agora eu compreendia onde minha mulher.. vi lá em cima o Lula a gesticular. Escuta. Folhas e flores nos ladrilhos do saguão e nas tábuas dos degraus.) Hum! Hum! Logo reconheci as vozes de meus netos naquela promiscuidade. Isso me fez reagir. dálias. Logo descobri meu filho Roberto com a mulher e minha filha Rafaela com o marido. pelo amor de Deus. por que só íntimos haviam assistido à missa.. As manchas e os rasgões do papel de forrar as paredes dos dois corredores estavam encobertos com festões de gerânios metidos em tufos de samambaias..Engraxates escarranchados em banquetas. No lugar onde era a cadeira de meu sogro. recendendo a alfazema e a incenso.. Os tabiques pareciam flancos de coreto. Mas. a tranca funcionava. E estava eu decidido a não mostrar Indalécio nem Ataú nenhum. depois do almoço. de braço dado é que eu não subia. que iríamos jantar com os filhos e os netos. se é verdade essa coisa da viagem à Aparecida. Escuridão. não percamos o trem. começando a subir as escadas.. Mas que. Soltei-a então. a tranca. (Minha mulher subira até Xavier de Toledo. respondeu Maria Clara já autoritária. está bem. Rafaela. ora não?” Ela sorriu. Ao defrontar com o vão da área foi como se entrasse numa gruta de Fingal. as duas cozinheiras. por causa do efeito de cor que vinha da cascata.. E em cima delas. filho de Narubeia e pai de Unariru. com seus enxovais de filó e tarlatana.. o mais extraordinário. Acercou-se de mim como um paxá. gotejava água sussurrante em gotículas pingando do cimento rugoso e enchendo de círculos a água do lago. era que a cascata “funcionava”! Sim. exigi terminantemente.. E não foi só. quase apoplético. os jardineiros. tábuas. latas vazias de tinta a óleo e lonas enroladas e sim sobre a superfície tremeluzente do lago onde agora. todavia não descera. pistilos.. a mala-armário! Ora graças! Chamei o Lauro. Indalécio estava metido . quatro demônios. Assim.. me acerquei. ex-prático do porto de Vitória. entornando cautelosamente dois imensos barris. que aquela mala ficasse ali.. e pelo cacique javaé.Danei-me com essa conspiração matriarcal!. Uma cor serena que batia em cima dum círculo de gente rodeando em alça todo o recinto desde o patamar da varanda até a porta maior do porão. seguido. como miniaturas. Vacilante não de medo nem de raiva. descubro a criadagem da casa do Lauro e do Roberto. E. Ataú. as copeiras. quatro sujeitos. meu caro Jorge. dois peixinhos vermelhos. Lula bradou uma ordem e então vi. É que avencas e samambaias tremiam. já que decerto não houvera tempo de consertar o encanamento entupido e esburacado. encarapitados em cima da cascata. fosse dada de presente.. Vacilante. e meus cinco netos estudantes superintendendo num cenário imperial mesas e mais mesas cobertas por toalhas unidas. dois peixinhos vermelhos! Escancarei os olhos para o tio Rangel que se transformara em ator formidável. aquele lago que na antevéspera estava árido como o Saara. arfavam peroladas sob os fios prateados da água que não caía sobre cavaletes. e a que se juntava o cheiro humano vindo lá da área. engoliam bolhas.. mas intoxicado já pelo efeito agudo do aroma daquela massa de pólens. estava ainda para dentro da varanda. estames e folhas que meus pés trituravam. no auge do enternecimento querendo tirar as luvas para ir acariciar os peixinhos. — Nisto. comedorias policromas. Ao centro disso. E minha mulher. Felipe. como relevos de anúncios do Fortune e do Better Homes. Felipe parecia um irlandês rubicundo saído da Santa Casa. E quase me senti fulgurado com o revérbero que vinha da varanda. agora além de ter água também tinha. como num livro de Stevenson. os dois motoristas. enfim não voltasse aos meus ombros de mártir. pelo rei negro. o ventre rotundo por sobre o cinturão. Onde estaria minha mulher? Teria eu que descer as escadas. O cheiro especial dos casamentos e dos enterros. as arrumadeiras. vigiada por dois sujeitos atléticos. arrebatá-la de ao pé do lago onde crianças lhe estariam mostrando os dois peixinhos? Minha fúria porém cedeu como ante um refrigério. Indalécio. segundo Calu nos disse com seu timbre inefável de nordestina. braços estendidos. um pátio de milagres. A custo a chusma fervilhante foi recuada para formar círculo outra vez.numa vestimenta litúrgica estranhíssima. manobravam espetos com churrascos. Embora Rafaela tivesse aberto uma cesta. do nordestino. não sei se de carnaval ou de procissão. Agora sim. devoraram e desceram para a quermesse. um terreiro de fazenda. Jorge? Pude. a nora e o genro. — Para assistir ao jantar de gala dos moradores do cortiço da ladeira da Memória. do malandro. assistindo. eu podia num relance rápido ou numa observação minuciosa. era quem fazia a chamada por uma lista que decerto arranjara com os informes do Lula. do sertanejo. onde criaturas sem humilhação e sem cerimônia abriam garrafas e enchiam seus copos. E palanque sabe você para que fim. o mais novo. E nós ficamos ali. pouco comemos. Apresentei-os a Maria Clara que ficou pasmada para os dois como já fizera no museu Grévin diante dos corpos de cera de Gandhi e de Prestes João. veio a grande hora: a distribuição por sorteio das coisas da mala-armário.. da criança. do pequeno amanuense. opa ou manto real. com o crânio esculpido. fisgavam sanduíches. enquanto uma vitrola tocava coisas de Haeckel Tavares e Dorival Cay mmi. Os encarregados de ir entornando as pipas em cima da cascata largaram sua tarefa. do gorducho. Exclamações. Já o Ataú. do velho. o jardineiro e os meus três outros netos lhe iam apresentando. ou obediência sensata a um protocolo por ela mesmo preestabelecido. Meu neto José Paulo. do magricela. do italiano. atravessando a sala de jantar e indo para o seu antigo quarto de solteira — atual residência da família polaca que estava na varanda e que nos cedera aquele palanque. do mineiro. Acabado que foi o festim. um patusco ainda com a cabeça raspada à escovinha por causa do trote aos calouros de direito. e agora o jardim iluminado era um arraial festivo. do cafuzo. incógnitos. Que agradável surpresa para todos.. do esfomeado. do adulto. do caboclo. descarnavam coxas de peru. dilaceravam leitões. do português. do japonês. sempre pândego. reparar naquelas fisionomias onde se sucediam os aspectos marcantes do operário. Temor ante os mesmos. Isto é. do trabalhador. ruminava a sua taciturnidade. Meu neto José Paulo fazia a chamada e o outro meu neto Amadeu. os netos comeram. sem ser visto. engoliam croquettes que nem cápsulas. risadas. E . e se remexia como a acompanhar um tambaque. As mesas dispostas em balcão único foram garrulamente saqueadas. desceram para comer e beber. vislumbres jocosos de bocas. do mulato. severo como um ídolo. fazer uma suposição. do judeu. ao festim barulhento e movimentado. do caiçara. maxilares trabalhando. principalmente para mim! Dei o que se pode chamar enfaticamente um ósculo em minha esposa. do apático ou do alvoroçado. desarticulavam asas e costeletas. os netos e o pobre de mim. é claro. citava pomposamente a “prenda” lendo alto os objetos que os dois motoristas. assim oblongo e solene. abocanhavam pastéis. do sadio. minha mulher se retirou com o filho e a filha. ambos com o desafogo dos locutores de rádio em festas de auditórios. Tio Rangel idealizou maravilhosamente a cena mutável assim: — “Manuel Brito!...” (Irrompeu um sujeito obeso, lerdo, balofo.) “‘Um corte de tecido para um terno... Não sei se a casimira chegará...’, acrescentou Amadeu vendo o indivíduo enorme. Risadas, palmas. “‘Justino Tavares! “‘Uma bateria de alumínio para cozinha; cinco cobertores e um envelope fechado!’ (E o tal Justino, a mulher e quatro crianças recuando, com as mãos cheias.) “‘Anacleto Peixoto!’ (Um sujeito com bigodes em cortina como Camilo Castelo Branco e com uma calva de tártaro.) “‘Um paletó de camurça, uma garrafa de Kentucky Tavern.’ “‘João Exposto.’ (Um crioulo de macacão sujo de graxa.) “‘Uma capa de gabardine, uma caixa de gravatas Arrow, uma caneta Parker 51.’ “‘Tiago Monteiro! “‘Uma caixa de charutos El Triunfo, uma garrafa de Haig & Haig.’ “‘João da Silva! “‘Uma garrafa de Melrose, outra de Schenley.’ “‘Amílcar Pinheiro! “‘Um cachimbo Super Grain, uma garrafa Park & Tilford.’ “‘Pedro Alvarenga!’ (Era o tal Pedro Aleijado, que avançou no seu carrinho.) “‘Uma caixa de charutos Our Defender, uma garrafa de Old Smuggler.’ “‘Eleutério das Dores. “‘Uma lata de Peter Pan, uma garrafa de Bardinet.’ “‘Damião de Góis Pereira!’ (Era o tal tradutor. Sujeito majestoso.) “‘Cinco fitas de máquina de escrever, uma caixa de charutos Prize Bull.’ “‘Gilberto Arruda! “‘Uma caixa de charutos Union Issue, uma garrafa de Overbrook’s.’” E tio Rangel, com sua arte de memória e fantasia, invenção e reprodução, de ator e de contrarregra, com seu espírito ora faceto, ora dramático, sempre moço apesar da idade avançada, exemplo permanente de vitalidade, arquivo humano de experiência, tratou de ver as horas, de saber entre quais estações já estaríamos, e tratou de concluir: — E, meu caro Jorge, assim por diante. A verdade é que afinal de contas não tive tempo de assistir ao resto da distribuição, de ver sumir para boas mãos com um fim útil toda aquela série de charutos, cachimbos, uísques, licores, runs, gins, vinhos, vermutes, conhaques, lataria de sopas, charcutarias, peixes defumados, frutas, sobremesas, acepipes e quitutes sintéticos etc. Apenas esperei que Felipe ganhasse e agradecesse com seu vozeirão de ciclope a coleção de remédios que o Lauro lhe selecionou para dar cabo da ascite, e as latas de comestíveis considerados inócuos ao seu estado bem como uma singela garrafinha de Kummel para lhe fortalecer o coração. Que o Indalécio recebesse confuso um sobretudo para aguentar o frio durante o seu plantão noturno e agradecesse com um ronronar fanhoso o fornecimento de charutos, as latas Campbell’s e Kingan’s. Que o Ataú fosse galardoado com duas mantas escocesas e um foulard francês, e enchesse as mãos de encontro ao peito com todo um vasilhame de naufrágio europeu de bebidas e sortimentos. Meu caro Jorge, você há de estar com a cabeça a arder de tanto aturar a minha tagarelice. Assim pois, ainda não se escoara a reserva da mala-armário. O Lauro, porém, nos advertiu da hora de saída do Cruzeiro. Ah! Tínhamos, Maria Clara e eu, os filhos, os netos, que estender a nossa ladeira da memória até à Aparecida! Brrr! E eis que no corredor, quando saíamos, ocorre a Calu, quase a chorar, com as mãos viradas para cima trazendo qualquer coisa. A custo lhe entendemos a explicação. Os homens tinham parado de botar água na cascata. O cimento rachado deixara a terra chupar a água toda do lagozinho e... quando ela percebera, o tanque estava mais do que vazio e os peixinhos agonizando... Abriu as mãos ainda mais, aconcavando-as bem, e mostrou aquelas duas postazinhas lívidas, cor de chumbo e de zarcão. Maria Clara pegou nos dois cadaverezinhos, ficou a olhar, sem saber se os levava, se os devolvia. Por fim os entregou de vez a Calu. E saímos escondido, atravessando o corredor, descendo a escada. Convulso e gago, o Lula agradeceu a mala-armário com o conteúdo integral da última gaveta. Meus netos tinham sonegado cada qual uma garrafa de Clover Club, Pink Lady, Sidecar, Frisco e Bonx, entrando em descomposturas da avó. A Conceição e a Rafaela entregaram a Calu roupinhas para a Marlene, o Jefferson e o Miguel... Verdade é que o casal retribuiu emocionado entregando um rolo a Maria Clara que pensei que fosse algum diploma, com certeza... Não, não era. Isso de diplomas os pobres não conferem. Só as instituições ricas. Tratava-se de duas estampas, uma do Senhor de Bonfim e outra do Bom Jesus de Iguape. O velho desembargador perscrutou a noite que não cessava de passar, solene e formidável, por sobre esta metade lateral do mundo. Os primeiros revérberos de Volta Redonda surgiram, o noturno parecia embarafustar para Pittsburgh ou Hamborn. Ajudei-o a tirar a valise. Ele abotoou bem o sobretudo, soergueu a gola, fitou-me para descarregar o símbolo do seu auto gilvicentino: — Aquela hora, iniciávamos a rampa; eu e minha mulher, com a filha e o genro, com o filho e a nora, com os cinco netos. O emocionado, o ridículo e o sublime, o noivo, agora era eu. Eu, com sessenta e oito anos, mas na verdade com dezoito ao lado de minha mulher não com sessenta e seis anos e sim com dezesseis anos. Havia que saber transfigurar o passado, subindo a ladeira da Memória. Rente à calçada de Xavier de Toledo, onde o Lauro encostou o carro, eu lhe disse, nervoso: “Depressa, temos vinte minutos só para alcançar o Cruzeiro!” Quando o trem parou em Volta Redonda descemos para a plataforma da estação. Roberto, avisado por telefone, já nos esperava, com sua sisudez de engenheiro. Os abraços me fizeram bem, tanto como o ar da noite e o símbolo de fogo da cidade técnica. Quando o trem recomeçou a deslizar subi para o vagão e, vergado para o tio Rangel, prestei bastante atenção ao seu conselho: — Suba a ladeira da Memória! Não para fossilizar-se como o Indalécio, o Ataú e o Felipe... mas para prosseguir rumo à “Aparecida”! SEGUNDO CADERNO Renata renasce da terra Poente na Barra da Tijuca e Noturno em Paquetá Comandira e Dobaré Crepúsculo sobre a Guanabara São Cristóvão. de porta a porta. Que ficou em mim da dialética persuasiva de tio Rangel? Estou sozinho de todo na solidão encarapaçada de quem já agora não recebe fraternidade nenhuma. as mãos e. pois os corpos passam a ser unidades intermediárias entre coisas e gado. onde as luzes adiam por algumas horas o sono dos homens e corroem acidentalmente a franja da noite. abóbadas. todo o conjunto tomando aspectos de litografia e de acquatinta. muros. Depois. Cada ser se torna caricatura de si mesmo. postes. Depois. Essa. em superfícies de cimento armado. aqui dentro do vagão. acesa na noite. dormentes. o edifício monumental da estação Dom Pedro II. pedreiras. Famílias ouvindo rádio em torno da mesa ainda posta do jantar. fundos de casas. mato. mais que tudo as bocas. correndo sempre em sentido contrário. Volta Redonda. trilhos. como um cão com a língua de fora. quartéis. botequins. plataformas. me seguindo. escuridão. ruínas. anúncios. Mangueira. usinas. um vestíbulo desmesurado. praças. através de tudo. ônibus em pontos terminais. tomam características mórbidas formadas por depressões e saliências. Matoso. pontes. ladeando a passagem central. Recordo-a. I Estou agora sozinho rente à janela do vagão. os bustos. E. parcelas de pessoas lotando o carro e sentadas com a paciência relativa e morna a que os horários obrigam. baixada. correndo para trás do trem. um velho amanuense fumando no escuro duma janela de sala triste. colorações de sépia e de ponta-seca. ângulos e arestas. Cascadura. o Ministério da Guerra. terrenos baldios. táxis enfileirados. que enfermaria mais soturna que é um vagão de trem noturno! Dir-se-ia que a dignidade civil se desfaz. Méier. fachadas acesas. Jato duplo de faróis dum caminhão abarrotado de fardos. só a treva outra vez. semáforos. túneis e uma ideia fixa. lembra no negror uma tela abstracionista. labaredas retilíneas como esculturas de Béothy. favelas. Depois. lances de hospitais. tanto na inércia balofa como na intenção incisiva. retábulos quadriculados. barrancos. uma criança adormecida. luzes já esparsas. reverberantes. entre cortinados. listras acesas dum outro trem passando. uma mulher colocando na cama. o Campo de Santana. serra do Bangu e estrelas sobre os campos de Sernambetiba. torres de igrejas. num galope obstinado. Meu Deus. vendo passar clarões delimitados. transformadores. As fisionomias. subúrbios. Gamboa. Nesga marginal do Rio de Janeiro. O caixeiro-viajante de guarda-pó dorme sonhando com os . é uma película contínua de muitíssimos quilômetros. quintais. vultos. um flanco que. lateralmente. trens elétricos. massas. se lhe presto atenção. maçaneta. inúteis para a viagem. camelo. dorme arqueado. Às nove. com seus bilhetes de passagens e suas carteiras de identidade. distraindo-se com o artigo “Seja bem-vindo à Dinamarca”. pois já não são seres humanos. as gargantas tumefatas parecendo papos macios. e as ir retirando uma por uma. baralhando-os como cartas onde idades. esvaziados. gárgula. primeiro se distraiu com os anúncios coloridos. . dormindo. dispondo-se em prateleiras como mercadoria em trânsito. os sapatos estão esfolados. em Barra do Piraí. Malogro em tal intento. insisto em vê-los como gente. enormes fígados fabricando fel. frouxos. E isso não me adianta nada. sem querer. com as vantagens oferecidas pela KLM. estão destilando sonhos como alambiques oníricos. verificando o que acontece em Porto Rico. lixados. vendo em que pé vai a questão da bomba atômica. Penso no verso do meu poeta predileto: “Que grande sono em tudo exceto em poder dormir!” Reabro os olhos. os vejo como vísceras vestidas: grandes buchos digerindo. as nucas pesando sobre os encostos dos bancos. fuinha. marcas. ainda pareciam. para acabar cochilando em reação ao pessimismo que lhe provocam as páginas de O Caminho da Sobrevivência. às dez e meia. de como os modelos 46 dos automóveis lembram brontossauros. A solteirona tem uma perfeita máscara laica. mas voltados para cá. profissões. de Lady Chesterfield e de Bob Hope. numa Pietà de igreja romana. Vendo-o assim tão desligado de tudo. Reajo. mas agora. passageiros mesmo. ganso. inteirando-se da capacidade mental de J. provas e cicatrizes de contato violento com o chão do que as botas dos ciganos? Cansado de examinar gradualmente o vagão inteiro. com as caras cobertas com travesseiros ou com jornais por causa da luz que os incomoda. um senhor lê as Seleções. Robert Oppenheimer. bambos. ou em tela de Descida da Cruz dum autor espanhol. desconjuntando-se. Os corpos de alguns tomam posições incríveis. Três bancos adiante do meu. E então. criança duns oito anos. à esquerda do meu. inconscientemente teimando em transformar o banco em rede ou em catre. A criança que dorme deixa os pés balançarem. As vidraças oferecem-me ilusões de ótica. Que é que as crianças fazem para que seus sapatos fiquem assim com muito mais indícios. visto sucessivamente parecerem hipopótamo. fecho os olhos. O padre parece farmacêutico ou tabelião. e bem antes de Volta Redonda. o segura por uma axila e por um poplíteo.conselhos behavioristas de Napoleon Hill e Dale Carnegie. ferro de engomar. a mãe. dormem mãe e filho. Quase todos os passageiros já agora estão dormindo revirados. com a cabeça e as espáduas bem para trás. este. imerso no vácuo reparador. mas desde muito está assimilando condensações de artigos. Parecem transformados em estátuas. em Belém. cebola. pesos e condição social sejam naipes. Depois sorri lendo frases notáveis do duque de Windsor e de Joe Louis. rumino em vão outro verso: “Quando é que despertarei de estar acordado?” O recurso de passatempo é decompor os passageiros em analogias disparatadas. herma cívica. No banco. com velocidades diferentes. bocejos da resignação. meros depósitos itinerantes e lerdos. seja no chão da Bolívia. Cruzeiro. muito atrás. sem combinação prévia e lógica. Um guarda- freios com ar de suicida em potencial. a quilometragem e a altitude. nós parecemos gado que. Lorena. xilogravura. heróis domingueiros de filmes em série e os condenados de Nurembergue. todos eles puras ironias duma invenção caducada e arcaica. olhos de grande resignação. lá vais tu. ligado aos teus irmãos como série de chouriços. Imediatamente se alterna a simetria provisória: aquele gado parece gente seguindo para o degredo. Lembro-me duma ilustração que vi numa velha revista: carruagens caricaturais puxadas pela locomotiva gaiata Atlantic. ventriloquismo áfono. Barulho de água numa nesga fria e escura com cheiro de liquens e musgos. Guará. plataforma de terra socada entre vigas. muitos outros trens estão correndo pela noite adentro nesta parte do mundo que ela cobre. entrando em Washington em 1832. penso em caramujos e sapos. humilhados pela passagem dos aviões no céu. levando-o para um museu com todos nós dentro transformados em bonecos de borracha? Este carro vai ligado a uma locomotiva diesel. ou rodamos em torno de nós mesmos num carrousel de 1847? Agora me ensurdece. com Tom Mix e Goering à frente. Numa placa. gaiola rouquenha de destinos empoleirados. chifres. para que o pânico modifique esta catatonia de morcegos dependurados que nem Mussolini numa trave urbana!? Outros trens. Queluz. Não seremos aqui assim tão ridículos perante os passageiros da Beech Aircraft como para um motociclista ridículos seriam aqueles sujeitos que chegaram a Newport em 1880 em altíssimas rodas de bicicletas primitivas. homens que mais pareciam insetos de cujos élitros saíam grandes aros metálicos? Vamos deveras para Resende. por uma transfiguração segundo a técnica dos Caprichos e Disparates. Temperatura acre. O trem recomeça sua marcha de lesma pelo vão do vale do Paraíba. Esquadrias de cabana de Far West. Passa vagaroso um trem de gado. atmosfera conspurcada. Janelas. irrita e crispa o tom dodecafônico dos ruídos de todos os vagões formando contraponto ao ruído mais próximo destas rodas e destas . Caçapava. nós e ela. Custa a crer que haja gente assim capaz de. Por que é que anjos em férias não desengatam e não suspendem este vagão. varanda deiscente. entre túneis dos Andes. mas não tem nada dos vagões aerodinâmicos da Norfolk and Western. São Paulo. Vagão noturno da Central do Brasil. seja entre manguais e brejos no Pantanal. Pelas ripas transversais aparecem focinhos. tomasse morfologias humanas. muito longe e muito perto deste. Por que é que não entram salteadores ou fantasmas. se amesendar durante horas e horas em torno do disco da monotonia de suas mútuas cataduras embalsamadas! Pois não parece aquele soneto rilkeano sobre o necrotério? O trem agora está parado numa estaçãozinha. Parecemos todos. E estão correndo muito adiante. clérigos. funcionários . não eu como sou e sim eu reduzido a protoplasma. ao carro D do segundo noturno Rio-São Paulo. Por fim. um com a cabeça apoiada no punho.” Não aguento mais. soltam gargalhadas. vou ao carro-restaurante para comer qualquer coisa. Nem protoplasma ser mais e já e para sempre óleo refinado ou ácido muriático. em que revista técnica? Num barbeiro ou numa sala de espera de dentista? Que vontade de viajar invisível e amorfo. aderido à noite como a uma placenta. estou parado na composição que anda. cancerosos. o penúltimo um caixeiro-viajante e o sexto um soldado. tabeliães.. como um paralítico na montanha-russa dum parque de diversões. Vejo passar uma cidadezinha decrépita. o decano dos arqueólogos? Manhosamente as luzes diminuem dentro das arandelas do teto do vagão e daí a pouco se extinguem.. o terceiro um mulato. riem. Os dois empregados cochilam. através dos antepassados. o quarto um judeu. Levanto-me. onde me recolho e me isolo de tudo como dentro duma “douplex roomette ideal for the passenger who desires complete privacy and confort. Sinto-me gradualmente feto e selvagem. fico na plataforma de trás. dão-se tapas mútuos. “Por amor de Deus parem com isso dentro da minha cabeça. O gerente dorme. devido decerto a algum defeito. alquiladores. Mas na mesa dos fundos. recrutas. como trazido por uma correia de transmissão.” Onde foi que li isto.engrenagens. parado ali como peça disponível. Levine e Grosz representando amontoadamente carcereiros. vista de conjunto. homem de Neandertal e touro alado da Caldeia. parece um monturo de cinza e lava acumulado ali pelo Mito. lá no seu recanto. Fico nesta letargia talvez meia hora. outro magricela. na fase de verme e de peixe. sem alma dentro dum tank car de Dallas para Seattle. Ó bigorna demoníaca de que sou a lâmina traumatizada. saio. a luz e a treva cooperam para tal possibilidade. o ulular cavo e o sacolejar concêntrico me obrigam a voltar para o meu banco do vagão D.. um truck axle ou um coil spring da marca Eaton ou Kearney. do antigo itinerário do café. em ala de enfermaria. um atarracado.. em piche e em giz com desenhos violentos de Rouault. emitindo roncos irisados de bolhas. pois se lhes faltam vestimentas e categoria para isso. o outro com as fuças grudadas num guardanapo. devotas. Que telhados lúgubres para gatos e sombrações! Como compará-la por exemplo a um recanto habitável se. Eis-me despencado numa muralha de alcáçova. rompo-as em desesperada lentidão passando por todos os estágios. Sinto crostas de séculos e fases evolutivas. agentes de seguros. fujo atravessando charcos e florestas. seis sujeitos. E é enfim como se estivesse ainda embrionário. parodiam sem querer o Grupo Alegre de Frans Hals. bebem. Então o carro se transforma de fato em antecâmara de repartição de pesadelos. Não tendo quem me atenda. venho ter. quase fluido. contam anedotas. sequilhos. sargentos. nesta hora noturna. Muros de taipa. A luz volta. enfio a mão esquerda num bolso. Cravo os maxilares no cabo do cachimbo. firmo o chapéu nas têmporas. distingo paredes que me sugerem quartel. sob a aurora frígida. fico recebendo o vento que a velocidade me joga em jato contínuo. a mala me atrapalha. Saio. assim se afastando. conversam vivazmente dois tipos cujos macacões me informam que eles trabalham no posto de gasolina da estrada que vai para Caxambu. fantasmas e médiuns. mascates. para o que aproximo o punho com o relógio bem perto da fogueira diminuta do Plumb. O chefe do trem. lembraria. O trem recomeça a marcha. retiro a mala. pintado por Vlaminck. Aproximo-me. burgueses. Somos as piores páginas duma enciclopédia desfolhada forrando estes carros. Levanto-me no escuro. Chão batido. Mas o que vejo é a noite oca. A cidade vai sumindo para trás. tudo isso circunvalado por estrépitos. Um caipira de barba rala toma pinga e corta fumo de rolo enquanto um soldado de calças de montaria. Rampa. Armazém de carga. dormentes e uma estação rudimentar. daria a impressão de escombros descarnados duma aldeia lacustre pintada por Max Ernst. acendo-o gastando nisso vários fósforos. Mangueiras velhas ao centro dum quintal. rapaduras e beijus. roscas. vinca a nossa dubiedade. vejo frisos de janelas.municipais. depois dum percurso em curva que lhe mostra o flanco. vou para a plataforma posterior. pede-me o bilhete. Dirijo-me à bilheteria. encho o cachimbo. substitui-a a simultaneidade da escuridão. Se estivesse chovendo. emigrantes. aparecem desvios. lembro- me de verificar as horas. com a sua lanterna e o seu ajudante. sem . o último carro-dormitório parece. reflexos de vidraças. asilo ou hospital. Apoiado na vitrina rústica onde há pães. fazendo halos concêntricos em torno de “uma coisa central que é coisa nenhuma”. deponho a mala no cimento. Um botequim atrás de cujo balcão cochila um sujeito glabro. Luzes. casais de noivos. soergo a gola do sobretudo. Acuado entre o torpor e o cansaço. Rua com lojas fechadas. Ligeiro reflexo. um fundo de sanfona que dedos largassem. Assim é que. Se já fosse de madrugada. os vagões como que se encolhem. O trem. Mas o trem recomeça a andar. Sujeito-a a diversas hipóteses irritantemente intelectuais. passa declamando o nome da próxima cidade. peço o favor de a guardarem até amanhã. analiso a cidadezinha em cuja orla estamos parados. broas. lama e sangue. parece uma tela de Bergman. Reflexo de luz batendo na calçada e na rua. Salto para a plataforma. um gâchis de sorvete. um vão como de sarjeta entre os carros e a plataforma. Portas verdes. aspiro e devolvo haustos. diminui a marcha. Enrijo os traços do rosto. como se a noite nos tornasse fosforescentes. lanço uma olhadela circular abrangendo as cercanias. um chiado típico lhes percorre as articulações. Procuro logo a serra cuja silhueta andei querendo ver tantas vezes desde Barra do Piraí para cá. E nós mais o vendeiro atrás do balcão formamos um grupo taciturno. velocidade. enquanto espero. De fato. saio. No ambiente mortiço a velha descabelada parece. Muros. Vendo-me. por minha causa. Faz frio. e me causando arrepios discretos e lembranças de . O caipira envereda para a estação. para diante duma igreja. depois. senta na soleira. passo rente a um estábulo. Respondendo a perguntas minhas me informaram que o Nico do Chevrolet aparece sempre às sete. e se oferecem para ir acordá-lo. O soldado segue rua acima com o vendeiro. Pago cerveja para os quatro homens e café com leite para a mulher. mas desta vez com broa. diz que tem que fechar. Por fim me decido a rumar para a estrada que se dirige para a serra em curva dócil saindo da que vem de Resende e que segue para Queluz. depois pastos e a seguir as primeiras colinas cujas lombas descem de ambos os lados da estrada. Ouço cada vez mais próximo o ruído agradável duma ribeira entre pedrouços evidenciando pressa. pede-me fumo para o seu cachimbo cor de carvão. Abancado diante da única mesa. senta-se num banco. repetir o café. Casebres à direita e à esquerda. tira salame de dentro dum jornal. diferenças de níveis. já que não sei o que deva fazer. daí a um quarto de hora me dizem que a mulher do Boanerges mandou dizer que ele estava para Resende. embora me afastando dum halo insuficiente. às voltas com as lêndeas. de cabeleira emaranhada. Eu acompanho os dois empregados do posto de gasolina. cercas e árvores. o soldado acorda o vendeiro. Aceito. que poderia ter viajado de dia. O dono do botequim dá corda num despertador. fica acolá como um personagem de A Estrada do Tabaco. uma carpideira disponível. A mulherzinha continua acocorada no limiar. mas simplesmente de chinelos. o soldado pensa não sei em quê como um animal ruminando. Compro fósforos.botas nem perneiras. bebo café. Decido voltar ao botequim. Lembro-me de coisas sem nexo. pouco volume. Caminho decerto mais de meia hora perfeitamente orientado. Entra uma mulherzinha descalça. Mas que no posto de gasolina o Boanerges guarda sempre o Studebaker. vou sair ao lado da via férrea. Saímos. os dois começam a lavar um caminhão. acabo outra vez junto do armazém de carga. Na minha frente. fico parado junto à bomba. A relativa claridade da estação e do posto de gasolina me serve no começo como em patamar noturno oportunas mãos erguendo lanternas. catando-se ora na nuca ora nas axilas. atravessando o leito da via férrea. fico sem esperanças de que achem o homem do Studebaker. Fico bebendo guaraná. procura convencê-lo de qualquer coisa. pois o sono está vencendo os dois empregados do posto. e o caipira mastiga o fumo com um jeito de marujo de cargueiro a ensalivar os dentes. margino-a. fica assim comendo com um ar vago. considero que fiz mal em ter vindo pelo noturno. numa pasmaceira entanguida. quase invisível — e não silhueta como nas noites de luar e nas de céu estrelado — a serra da Mantiqueira. há um profundo silêncio. Ausculto-o: sim. Olho para o firmamento: é uma abóbada de carvão. procurando atingir faixas. mas ouço bem a passagem álacre da água cujo mistério vem até meus ouvidos como carícia apenas musical já que com o frio seu contato verdadeiro só me poderia causar sensação desagradável. com o cachimbo entalado entre os pré-molares. um vibrar tenuíssimo.samambaias. parece que dei em senti-la com os ouvidos. Passo por uma ponte de concreto por sobre o corte retilíneo do futuro leito da via férrea e que naquele trecho já foi retificado. Quanto ao paladar o que sinto é o travo que vem do cachimbo quase em brasa. os meus olhos a custo discernindo onde piso. em seguida por um estado de letargia. A estrada agora faz uma curva em rampa onde a escuridão como sentinela me aguarda e toma conta total de mim. já agora para entender o silêncio. pois que se meus olhos dessem com um firmamento constelado tais configurações estariam de tal forma baralhadas com superposições e contiguidades que eu teria que formar imagens dando-lhes nomes muitíssimos outros e decerto bem mais apropriados. O riacho encachoeirado murmura cada vez mais perto e em dado instante o sinto paralelo ao lado esquerdo da estrada do parque Nacional. para evitar a sensação de treva. a Serpente. é um talvegue em cujo canal se acama a parte mais saturada da treva. mas uma espécie de estado de alerta dos meus ouvidos solfejando sua função. que tais constelações só podem parecer mesmo o que esses nomes significam se eu supuser as estar vendo mentalmente. Tudo quanto era discernível ficou encoberto por um veludo. mas é um contato breve. fica sendo um monólogo distante entre grotões e lajes. dir-se-ia que cedeu à audição um estado vicariante. E então percebo o seguinte: que logo após haver deixado a estação fui acometido por uma amaurose. minhas narinas não sentindo odor nenhum. cuja visão moitas — que na treva são como bastidores — me escondem. Depois o estribilho diminui. Treva de breu. só têm deveras sentido suposto. penso nos astros da região equatorial e verifico que nomes como os Peixes. Por enquanto ainda sem uso. Volto-me para trás: a colina escondeu as luzes da estação e daquela parte da estrada de rodagem. como a visão não tem nada que captar. minhas mãos não transmitindo mais ao meu cérebro a sensação dos dedos. pouco a pouco vou averiguando que certa fibrilação que percebo. a Baleia. Isto é. Assim. Caminho. não para escutar ruídos. . não é absolutamente isso. Em dado trecho transponho um limiar de silêncio. o Aquário. o Touro. por uma surdez. e tão autêntico que. Algo parecido com o rodar do dial dum radiotelegrafista sondando o silêncio. depois. E. meu rosto não sentindo mais nem frio nem aragem. Há pois que me servir dos ouvidos. que antes me pareceu a soma de timbres simultâneos de infinidades de grilos e de infinidades de muitíssimos outros insetos. vem de mais baixo e de mais longe. nem mesmo o da vargem onde ainda estou nem o que a floresta e a serra me pudessem mandar. decerto como não posso ver a noite. aguardar o dia. sem raciocinar sequer quanto ao trem mais conveniente!? Ouço a minha voz. Só a vaia sutil. Como é que até hoje. Cristalino. Sim. E minha interpelação a mim mesmo. Visão: sensação específica . subir depois. por que foi que a ideia de rever a fazenda. Tão verdade é isso que não sei onde piso. aperto-o. me responder. uma porção de vezes. ou também de insolvabilidade?! Decididamente é impossível continuar. fumar. quanto tempo levarei. volto-me para todos os lados. Torno a olhar para cima. mesmo num quarto fechado ou de pálpebras bem cerradas. refletir em termos de orientação. Por esta estrada acima não aparecerá de repente a luz dos faróis dum carro? Esta imensidão do vale do Paraíba. Globo ocular. da analogia condicionada. dos grilos. Nervo óptico. as perguntas irritadas e repetidas. em mim. de repente. é tolice pois já estou nisto faz algum tempo e o que vejo é uma nódoa difusa. por conseguinte. pois como vida de relação? O cérebro?! Nada recebendo. seguir de automóvel para a fazenda. prova que “estou só. apenas como perito ou testemunha da veracidade do verso: “Este abismo de a existência de tudo ser um abismo”. de automóvel? E então me dou conta de que o fato de dar comigo agora. Ou não estou ouvindo nada absolutamente a não ser a reação de meus ouvidos em expectativas? . seriam duma imprestabilidade irônica. jamais prestei atenção no que fosse propriamente a treva? Palavra tão usada. uma vez me tendo vindo. por que não fiquei na estação. já que tudo arfa em sibilos intercortados como milhares de propagações tamborilando numa lâmina sotoposta. era do que eu precisava agora. Mesmo que “houvesse” astros.. E. e. e pasmo por nenhuma outra voz. onde há mais de quinze cidades disseminadas. tão só como ninguém ainda esteve”. Por que não vim no trem diurno? Que necessidade tenho de cansar-me tentando subir a pé para a fazenda? Acertarei com o caminho? Não será preferível descer. tive que realizá-la imediatamente. estou existindo nos sucessivos momentos. Retina. de que me valeriam? Oh! A serventia da lua tão ínfima comparada com eles! Contudo. tão explícita! E todavia só agora averiguo sua veracidade. não supõe sequer a coincidência dum automóvel irromper de súbito por aqui? De que me vale ser bípede? E de que me valeria ser centopeia? Nada. tenho que parar. sentar-me lá num banco da estação. em quiálteras. Agarro o cachimbo em brasa. pergunto alto. sentir frio. que nem camadas apresenta. quando amanhecer. ou cuidar que daqui a pouco verei (embora mal) uma área suficiente para seguir a orla da estrada. destacado de tudo. pois esperar que a vista se acomode a este negror.. na escuridão. opera em função de quê? Do passado. pensar. que timbre tinha? De irritação só. voltar. Sim. do “antes” recente ou longínquo. apenas gráfica no meu cérebro. Que é que há. Deve haver uma imensidade deles a toda volta. nem mesmo uma voz sem som. O recurso é refazer o trajeto procurando sempre ao longe luzes que de dado momento em diante me ajudem no regresso para Itatiaia. Invadem-me pensamentos cautelosos. Está bem. estabelecer planos sucessivos disseminando neles fazendas. que é a luz. machucando um joelho. Tais vibrações são transmitidas ao líquido do labirinto. Interceptado pelo silêncio e pela escuridão. Audição: sensação resultante da excitação das terminações do nervo auditivo pelo vibrar dos corpos sonoros. Chão rugoso. tentando dissociar as camadas do negror que me envolve. Troncos. parece que “me sinto” mais especialmente. como também possui o dom de acrescentar suposições.que nos revela a presença dos corpos e nos dá sua forma e cor. Recuo. rugosidades.. equilibro-me. já não estou próximo da fazenda. já que dispõe do mundo real e de muito mais ainda. De fato. Posso na treva operar transferências. Mato. vargens. onde deverá estar a da Mantiqueira. pastos. Resvalo em outro tronco. Não.. do lado. Paro. nervuras. cidades. esbarro num tronco. dentro do horário certo. o Paraíba. Que é que me falta então para eu ver? Ah. Sinto as faces geladas. com os ouvidos apurados. o cérebro. firo o ombro noutro empecilho.. a serra não está aí na minha frente? Dou uns passos. ver a serra da Bocaina. Sobressalta-me o terror de cair. E este silêncio relativo desajusta ainda mais minha situação. Subir a ladeira da Memória. folhas. sob a claridade da comemoração das bodas de ouro? Lembro-me das palavras de tio Rangel: “Não.. vou voltar vagarosamente. esforçando-me por distinguir e perceber o chão. seguidamente. prossigo pisando com intervalos curtos. considerando bem. sim: um excitante. Bem: não há luz. Estar agora assim sentado no centro fictício da treva. e vice-versa: ver a Via Láctea. E por que me irritar se. estradas. logo não posso ver. porém. E não estou bloqueado aqui por um vácuo pior do que qualquer muralha? Ou haverá que subi-la em hora adrede?. Sento-me nela. Assim pois. mesmo porque a ribeira invisível e insistente voltou a choramingar. os aterros da Central. me causa uma série de calafrios. Tia Maria Clara não a subiu em hora propícia. envieso um pouco a marcha. tem certeza dos relevos e da nomenclatura de tais coisas. . muito embora uma nuvem me vede o firmamento. E não somente tem tal certeza.. a meio caminho já verei luzes lá embaixo. oferecendo-se na ajuda da interpretação do “auto” gilvicentino de tio Rangel. No halo mais próximo de mim: cordoalhas de cipós.. a noite não é isto só”. esta lacuna imensa só é lacuna porque as coisas reais que encobre fingem não existir para os meus sentidos. de horas apenas? Pois não saí do Rio. Apalpo-o. a via férrea. Fazer ficar do tamanho que eu quiser o botequim de página de Erskine . doem-me as mãos metidas dentro dos bolsos. o estorvo é provisório. que posso dar mais atenção a mim próprio. ambos não adivinhados sequer. principio a raciocinar de que forma devo agir. acendo fósforos. Encho pela quarta vez o cachimbo. O chão sólido me atemoriza mais do que o espaço livre. Uma pedra no meio do caminho. . Esculpir instantaneamente no bloco da serra a cara de basalto do Indalécio. as rugas pré-colombianas do Ataú. procuro resguardar o pescoço e as orelhas na gola da capa e fecho os olhos inúteis. com a mendiga vagabunda na soleira da porta catando lêndeas. sinto calafrios. a corpulência hirsuta de Felipe ex-prático do porto de Vitória.Caldwell. fecho mais as mãos dentro dos bolsos. aspiro e devolvo baforadas. não posso! Cruzo as pernas. Mas seguir para a fazenda. isso. encolho-me. critica os poemas. dum estômago. a beleza da manhã translúcida. fixar e lavar os filmes Kodak super speed. nuvens se abrindo. define a minha índole. E. úlcera fibrosa na pequena curvatura. Ela então me explica que depois de deitada abrira o livro de Edith Sitwell. enquanto começo a subir. montada em seu caixilho metálico. Escancaro as pálpebras. qualquer coisa difusa. ou se me esqueci dela. ao meio-dia. Daí passa sem pausa a lamentar que só certas inteligências tenham um semblante de acordo com “hipótese” do leitor. como uma carícia. indaga por que será que mesmo a Virginia Woolf tem uns olhos tão duros. penetração suficiente para os seios esfenoidais. verifico a segunda: a cornucópia. se saí. Depois. examino-a por transparência. Escuto sorrindo. em dados momentos neutra. soergo uma das três radiografias. transfiro os filmes para a banheira de lavar.. concordo. vejo a paisagem noturna mas real.. Estou na câmara escura. Destampo o primeiro tanque vertical. ironiza o nariz e principalmente os olhos da autora. O Largo de Händel. vou sair da câmara escura e nisto o telefone (instalado ali dentro) toca. ou o poleiro da alma?! Depois que a solução 2 reduz e completa o processo. Música de orquestra. segundo Renata. que já fizera ginástica. Não compreendo. A música que. fico em pé. uma grande lua! Bato o cachimbo até esvaziá-lo. desentorpeço-me. Pergunto-lhe uns exemplos de tal . Compreendo. II Percebo. em outros convincente. diante das cubas de revelar. se li... terminando íntima. ela dá umas risadas interessantes. o que fiz de noite. Conta que já nadara. ora suave. de segunda a sábado. que já jogara peteca. sem transição propriamente dita. suspendo a terceira: um crânio de perfil. vejo que sob o efeito da glicina os contrastes já surgiram bem. porém. A seguir diz “como me achou” quando passei pelo Posto 5 a caminho do hospital. ora normativa. olho em volta. rente à lanterna vermelha. como sempre. daí a minutos. Procura explicar a temperatura da água. Depois a voz de Renata não para mais de falar. vai colocando suas pilastras de centopeia. branca de bário. Abaixo-a. o tom de ouro da areia. vejo uma nesga de céu estrelado. E por sobre ela avança o primeiro arco da “ladeira da memória” que. Não será ali a sede. pergunta por que foi que lhe dei aquele livro. me pergunta de chofre se concebo uma poetisa feia. enfiando-a no fixador. como um viaduto. adunca e ainda por cima vestida feito “embaixatriz”. Primeiro pergunta como vai a alma. Colo o fone ao ouvido. Enxugo as mãos. descendo e subindo de tom. com sua estrutura trabecular. “isto é”. Já sei: meio-dia exato. bem feminina. a tonalidade entre âmbar e esmeralda das ondas. acrescenta que quer ver só onde a vou levar das quatro às seis da tarde. Respondo-lhe categoricamente “que abranjo períodos”. o Macbeth não é alma. é alma. por causa do oboé. a descompor-me com uma galhardia meridional. redijo protocolos. mas que o violoncelo agora a irrita sobremaneira por seu timbre gutural de solilóquio de Macbeth. volto ao laboratório para pôr os filmes a secar. ao passo que o oboé lhe parece (para um pouco. Que só escreverei um livro digno de mim quando o sofrimento me depurar do conceito órfico. num disco só. Penso que vai desligar. Diz do plano. a Gymnopédie I e II. Agora sua voz baixa um pouco. dispo o avental.raridade. E desliga. tão panteísta. de Wassermann. diz que talvez eu tenha razão. Entabulamos uma altercação. como a voz de Hamlet. Explica que antigamente supunha que o instrumento mais parecido com a voz humana fosse o violoncelo. saio para o almoço. que não trabalho com personagens e sim com gerações. Tragédias muito diversas. E que se encarregará de um dia me pôr na obrigação de dar em literatura não o barroco mas a qualidade de que sou capaz. vira sussurro.. Diz a hora exata do dentista. Daí a instantes já estamos na nossa grande disputa de sempre. mero bailado. Para o pacto de paz provisória me intima a lhe dar um presente. paro diante duma exposição . procuro ser obediente ao pedido e recomendação de Renata. Depois me encaminho para a rua do Ouvidor. Sim. “confessa” que se decepcionou com o sumário dos capítulos do meu futuro romance (e que lhe entreguei quatro dias antes). borboletas e colibris. pensa. Dito isto em tom maternal. Pretende convencer-me que devo tomar como paradigma de tamanho a Sinfonia Pastoral. afirma que só escreverei o meu livro essencial quando ela morrer. que me alimente bem. mas que para isso terá que desaparecer porque me atrapalha como o allegretto atrapalhou Beethoven obrigando-o a sair da sinceridade grandiosa do vivace e do presto me no assai da VII Sinfonia. insiste comigo que não me esqueça de almoçar. ela ri de mim. mas declara que o motivo do telefonema é avisar que “virá” à cidade. ou Golovin. e explica onde a devo esperar. procura a comparação) um monólogo de Hamlet. preencho fichas. Reflete de lá. mas isso foi apenas parte de expediente. ela a ferver de brio. num conjunto tão severo. Sim. agora é que começa a conversa. ao passo que o oboé. da essência dos movimentos da VII e que não entende como é que o grande taciturno teve a fraqueza mozarteana de incluir uma parte gratuita. Prefere a segunda. lastima profundamente ouvir declaração tão ingênua da minha boca. Eu a fingir que prefiro Ravel e Debussy. em obras de artesanato? Implica com a vastidão enciclopédica dos meus livros. Achei propósito em asseveração tão original. é temperamento. que só sei guiar com muitas rédeas. Respondo-lhe que o allegretto é a parte maior em tamanho e em beleza da VII. Por que motivo insisto em romances-rios. de Gide. Então dá uma risada problemática e não cita nenhum. Primeiro.. Saio da câmara escura. rente às vitrinas. cada filme. Sentado diante do negatoscópio. cada hemitórax. mostro ao paciente a fratura do calcâneo. a ver os diagnósticos suspendendo cada filme à altura da lanterna antiactínica. prendo os relatórios. E assim passou a tarde. Uma vesícula biliar repleta de cálculos. não aceito o nome de tal trecho por não me parecer absolutamente que condiga com o estado de alma que representa. Adquiro o disco. Leio. abaixo a mesa Victor. termino por achar o nome belíssimo. positivamente tal nome não pode de modo algum aplicar-se àquela música. Ao fim de meia dúzia de radiografias. vou carregar o chassis. vou preencher as fichas. volto para o trabalho. procuro num Larousse a palavra gymnopédie. saio pela varanda. atendo-o já com óculos de acomodação. ajeito os cabelos. por fim confessa que teve que pular duma janela alta para uma área. Uma coluna dorsal. por causa da batida da polícia a uma casa clandestina de jogo. acabo de redigi-los. fixo. a sala fica totalmente escura e a pantalha fluoroscópica intercepta uma imagem torácica. visto o paletó. corto- lhes as pontas. . me fecho na câmara escura a revelá-las. tenho a sensação dum lamento. Mudo a fita da máquina portátil Remington. cada qual decorrente duma forma de queda em salto. aderências no ápice. entro na loja de discos. inspeciono novamente. Atendo a um fraturado. deixo o envelope com o disco perto da máquina de escrever. de fora a dentro. a sala imersa numa débil luz azulada. Volto para o gabinete. Deixo os seis filmes na cuba de água corrente. Faço por escrito um pedido de drogas e de material radiográfico. entro na biblioteca. revelo. o doente se veste calado enquanto retiro as luvas. carimbo-as. o transformador chia. Acendo a luz. Uma telerradiografia. Entra outro cliente. já agora no negatoscópio. Depois reduzo o diafragma da lâmpada ao mínimo e percorro de cima a baixo. líquido rente ao diafragma. uma vez abstraindo o sentido exato da palavra. Dispo o avental. Não. passo a atender clientes. Devolvo-o ao ambulatório clínico depois de explicar que há três qualidades de fratura do calcâneo. com a sua série de exames de rotina. Um ceco-apêndice. vejo-o arregalar muito os olhos.de livros. Prosseguem as horas do expediente ali na sede do Caduceu. enfio cada qual em seu envelope. as cortinas das janelas e da porta bem descidas. releio e medito sobre o que diz o verbete. faço gráficos. como romã evidenciando seus bagos transparentes. preencho com o diagnóstico o espaço em branco dos protocolos. Um pulmão colabado por pneumotórax desviando o coração. radiografo uma articulação do tornozelo. ponho outra vez o avental. ouço a Gymnopédie. A luminosidade opalescente dos dois pulmões rodeia o mediastino como dois mares batendo suas vagas esverdeadas contra um continente. tiro as radiografias do secador elétrico. isolo-me numa cabina. Uma fratura de cotovelo. explico-lhe que caiu de certa altura. assino os protocolos já redigidos. E daí a pouco acalco o pedal. entro na câmara escura. gestos. através de seus aspectos mais rotineiros e excepcionais evidenciando uma variante incrível de estados físicos. ora densas. Atravesso a avenida. com uma atitude ao mesmo tempo serena e cautelosa. bem junto dela. caminhões. fico parado à espera dos elevadores. ao seu lado. seu chapéu. ora ralas. depois um vulto que diz meu nome baixo. Povo em duas tiras intermináveis. Brados de jornaleiros. comprar cigarros. cores. verifico a hora exata. Desço pelas escadas. Sinto sua mão presa na minha. Vê-me. isolado mas sempre rente à multidão naquele trecho conhecidíssimo e imutável desde a minha adolescência. aproxima-se da porta. e na verdade desnecessária já que o lugar mais secreto do mundo é a rua. desço pelo elevador. folheando uma revista. as características mais agudas e diferentes sobressaindo por entre os trechos das calçadas onde quatro polias perpassam carregando fileiras de gente. O elevador. feita por comparsas. Entra um grupo. Ela salta no oitavo andar. sentindo sua atenção alerta e seu feitio embevecido. Chego ao rés do chão. uma lâmina de histologia onde tudo se contém: as tiras em sentido oposto do tráfego ininterrupto de ônibus. descendo. de ambos os lados. Cada vez que os elevadores lá dentro da passagem descarregam gente. profissionais. presenças itinerantes de população. entro no vestíbulo do arranha-céu. E o todo é tanto um flagrante carioca e brasileiro como uma variante ou paródia. Nisto passa por mim um agrupamento heterogêneo. Começo a sentir-me alvoroçado. Entro.pego no chapéu e no disco. Depois volto obedientemente para aquela calçada e me coloco em um ponto donde possa vigiar o vestíbulo do prédio. A todo instante ela deve descer do carro da tia. entre a Equitativa e o Café São Paulo. observo. paro em dado trecho da calçada. Prossigo até ao décimo. todo o seu feitio . sempre vigiando as imediações. Prudência instintiva. e que prossegue. disfarça. guturalmente. Aquele trecho entre a 7 de Setembro e a rua do Ouvidor é. Tarde magnífica. uma plataforma cortada do Rio de Janeiro. para. dos muitos outros flagrantes de trechos de qualquer grande capital em hora de tarde de verão. Fico assim à deriva. disposições. saio. Onde teria descido? Acompanho-a de longe. com estrépito simultâneo. passo pela sala de espera do dentista. em pé. O ascensor desliza para os andares. Insinuo-me por entre pessoas. Está sozinha. Agora vou tomar café. Apenas um arranha-céu e mais além uma série de andaimes lhe modificam o aspecto do postal instantâneo de centro de cidade. trechos de conversas de transeuntes. trejeitos. vozes. assisto à entrada de outras pessoas nos andares pares. Abre-se a porta dum elevador escoando gente. É ela. carros de luxo. táxis e carros particulares. estou num canto. Disfarço e quase me escondo como se transeuntes pudessem pressentir a razão de eu estar ali. inspeciono os automóveis que porventura se abeiram do meio-fio. Movimento incessante de ônibus. afasto-me para junto duma das vitrinas da Casa Lohner. Por fim acabo vendo seu vestido. táxis. sair novamente. continua. percorre o trecho onde outrora foi a Imprensa Nacional. Assim que me liberto do congestionamento de esquinas e das filas para lá do Passeio Público e da praça Paris. cresce e se define em categoria e em pormenor até se inserir na multidão. antes de entrarmos na praia de Botafogo. estamos além da lagoa Rodrigo de Freitas e do Hipódromo. assim batida de vento e de nervosismo. lhe roça a cabeleira e a testa. recompõe os cabelos. vejo passar a paisagem una da muralha baixa. Dentro de vinte minutos. por São Clemente e largo dos Leões e varado o bairro do Jardim Botânico. Eu então me dirijo ao ponto de estacionamento onde deixei o Stutz. do mar igual. embarafusto para a rua Senador Dantas inspecionando as duas calçadas. me incorporo à simetria dos demais carros. Uma das minhas mãos. fica com a fisionomia e o busto incisivos. e até mesmo a gola do tailleur. entra com aquele modo severo e instantâneo de sempre. isto é. tendo vindo por dentro. Vou sempre a determinada distância. disfarçar. some e reaparece à medida que sigo e que grupos a interceptam e livram. retiro-o manobrando com certa dificuldade tamanho é o aperto e número de veículos ali naquela hora. ela se senta diante da direção. logo que vejo adiante de mim as pistas e alamedas da Glória. atinjo o Flamengo. eu ao seu lado. se tanto. toca para o fundo do Leblon. Vejo-a afagar a capa do meu romance. Está de óculos escuros que lhe dão uma severidade de cautela imediata. detém-se diante duma vitrina somente para verificar se a acompanho. ela dá uma saída “tangente”. passamos por uma espécie de garganta de penhascos. impele o carro pela primeira subida em curva. Galharda e vivaz. do Russel. enquanto seguro e manobro a direção. escondido sobre o meu joelho. e a curva da Amendoeira. atravessa-a em dois lances para o lado da muralha do convento de Santo Antônio. Com a velocidade seus cabelos formam em sua testa e em suas têmporas aspectos flexuosos de medusa. abre a portinhola cujo fecho eu já soltara. Renata levanta a cabeça.inconfundível e essencial e que vem. em direção já da avenida Niemey er. muito atenta aos carros que passam. ser unidade móvel e rítmica dentro da multidão. reajeita os óculos esfumados. demanda a rua da Assembleia em direção ao largo da Carioca. aquele rosto pousado de perfil. De repente a vejo irromper de dentro duma casa de antiguidades. dou volta pela frente do Stutz. Depois atravessa a avenida com desenvoltura. vejo a tarde radiosa em Santa Teresa e na Glória. Vejo que está com o chapéu e a bolsa no colo. distingo o recorte de bronze do Pão de Açúcar e do Corcovado. salto. atravessa a esquina. Paro o automóvel. Mas agora. paro rente à calçada. Depois então ela intromete o motor potente pela . Bem perto dela. calco a sola no acelerador. Passa pela frente do radiador. ultrapasso-os. sempre sentindo ali embaixo. Entra numa livraria e quando chego a surpreendo com o busto ligeiramente voltado para as bancas de livros. Segue pela calçada abaixo naquele ritmo de compostura neutra. As vagas atroam. Canoeiros. Renata vai jogando na vasa os lírios. muito lépida. Por quê? Para que eu compre as flores todas dumas crianças que avançaram oferecendo-as. Depois da gruta da Imprensa a estrada deixa o litoral. cárite. ilimitadamente. Mas a cada nome que brado. as mãos morenas. corre em seta ao lado do Golf Club. faz a curva fechada espetacularmente. ela séria e ofegante. até à África sem dúvida. Do torvelinho urbano de calçadas e esquinas na hora mais confusa da cidade para a nesga bárbara da restinga além da Gávea. faz uma alça. Assim. literatura ao acaso. Primeiro. de veias altas. Molha os pés. Renata não fala. me atira punhados de areia e me descompõe com o epíteto desdenhoso de “antológico”! Na verdade. Defronte a superfície do mar que brame cavernosamente. um a um. Logo que salta da canoa. Do lado oposto ao canal por onde sangra a lagoa. o Atlântico a arfar. escolhe logo uma canoa por causa do nome bárbaro. helíade. oréade. maciça e violácea. no máximo iara. oceânida. Agora estamos estirados na praia. de repente. E ela. em complemento às . Vamos a toda pela estrada em cornija. em menos de uma hora. para com estardalhaço. selvagem. prova a noção da responsabilidade e. em alta velocidade. Descemos num areal do lado interno da praia que se prolonga batida de sol. prossegue rumo à Barra da Tijuca. Atravessamos a lagoa. põe-se a dar saltos e arremessos por sobre o areal dourado. O carro embarafusta para o Joá. ela. ninfa. o rosto esticado como relevo de proa. Encravamos o carro todo fechado entre duas moitas de pitangueiras. ora vendo só a muralha e o oceano. Como sempre a conversa é em patamares. Renata tira os sapatos. ora o flanco que desce em permanente promontório cheio de plantas ou em vãos de areia formando praias e angras. estou segurando braçadas úmidas de grandes lírios-do-brejo. do lado de cá. À esquerda. sentados no barco podre. enquanto corro querendo alcançá-la segurando seus sapatos e seu tailleur. Outros carros parados. os óculos pretos lhe dando um ar categórico. atira-os na minha direção. Chegamos assim a uma espécie de rotunda onde uma estrada poeirenta vai para Jacarepaguá rente a um mangual. não ri. declara que é apenas — e que isso lhe basta! — índia. A cabeleira ao vento. eu fazendo de seus sapatos e de seu casaco travesseiro para a minha cabeça. houve transposição total do cenário. Um mocambo. mulher dos trópicos. bem humana e atual. a pedra da Gávea. As figuras múltiplas e sucessivas de Renata na orla marítima me fazem rir e declamar comparações. vivo e túmido. a duna sem fim. que sente reação acerba ante tais nomes mitológicos.paisagem adiante. jamais aceitou símbolos nem imagens arcaicas. Pescadores. O carro recomeça a andar. acrescentam contraponto à paisagem selvagem. desce em planos helicoidais de fuso para a baixada. náiade. nereida. agarradas ao volante. ficam boiando como num cenário para Ofélia. desanda a correr de encontro ao mar. quer ser sempre inédita e diferente. e sim apenas dentro. uma curiosidade que tive que sofrear durante mais de ano. em conversas prudentes pelo telefone. em dois planos diferentes. só coexistindo escondido em cinemas. e. Por exemplo. sem transgressões nem embustes. Isso teria que ser mera verificação teórica e eventual? De fato se criou em mim um interesse. deixas-me perto da minha casa. tu com o teu mundo mas livre. como um segredo. considerou: — E como é que. Foi preciso que escrevesses teus livros para que eu pudesse ver que alma eras. Calou-se... Proust. interromper. e sim algo parecido com uma lei. Conhecendo-te pessoalmente depois. que. eu com o meu. e mesmo agora. da tua existência. Kafka. A sociedade não nos pôs diante um do outro. Estudei-te e compreendi-te através deles. refletindo no que dissera. Reduzi-a peremptoriamente a fraternidade. pois sempre acordo cedo. Havendo tal empecilho. depois que consegui conhecer-te. que não foi temperamento. tive a revelação de que eras o paradigma humano mais condizente com a minha expectativa de mulher. ciente disso. já . visto haver tudo o mais. que é então que quero de ti. antes do sol — e me impõe a realidade social e doméstica. coincidiu verificar que a essência estava moldada num indivíduo pelo qual senti desde então uma simpatia crescente. em passeios assim à margem do mundo. Por que não posso conservar fora de mim. telefono-te na hora do teu expediente no Caduceu. musical: Ravel.. e a verdade é que em tais ocasiões. Como foi que não nos pressentimos antes?! Acordo com noção radiosa de ser tua. que sensibilidade tinhas. Ouço-lhe depois a voz de contralto dizer coisas lúcidas sobre a nossa vida que ela chama de fictícia. a cegueira do destino. nos é vedado. nem tento sequer alterar. uma atração. Thomas Wolfe. segues para junto de teus pais. Prokófiev. Debussy. Baring. nos estamos iludindo com curtíssimos simulacros de vida. a noção integral com que acordo todos os dias de termos sido apartados e atraídos por uma plenitude harmoniosa? Mas nasce o dia depois de mim — sim. — Quando te procurei deliberadamente.. pois aconteceu que se propuseram conviver em teoria dois seres evitando o mais possível motivos para problemas de consciência. sem saber diretamente nada de ti. já que há deveras A VIDA. já que cada um de nós tem a própria e que juntos não temos nenhuma. Morgan. passei a vigiar-me. vou para a praia esperar-te de manhã quando passas para o hospital São Cosme. para então ir nascendo dentro de mim a tentativa lúcida duma escolha.nossas recentes conversas anteriores: Gide. e que passa a haver então? A minha vida e a tua vida. mesmo secreta. ainda eu em plena adolescência. Depois. me laçou nas suas malhas? Que vida passou a ser a minha desde que te conheci? Teus livros caíram por mero acaso em minhas mãos. aturo e aceito. que era um estorvo intransponível. Bem viste que não foi leviandade. até que não me pude conter mais e te escrevi. Sei que na minha consciência não considero errado nem pecaminoso querer-te bem de modo leal. antes que anoiteça saímos daqui. já que o direito a uma opção. és o que está distante. com sílabas quentes: — Que é que quero de ti? Tanta coisa e nada!. definiu o seu sentimento: — Trata-se dum mistério. entendes? Jamais me decepcionarás. logo. não solapá-las em nada. como um conluio. Conhecemo-nos e foi preciso que tudo continuasse como dantes. E esse prodígio de nos havermos conhecido redundou em quê? Na lástima lancinante de só então. o contemporâneo simétrico a mim em tudo. do tempo e do limitado. Encarou-me. Isso é que tenho que querer. Não estudo nenhuma possibilidade temporal. brincado em criança. Não esquadrinho certos recessos porque os considero sacrossantos mesmo sendo eu vítima. o que não mora comigo.que me satisfaço apenas em falar contigo ao telefone. sem possibilidade de equívoco nem de engano. O mais seria pecado e acarretaria remorso. sem urdir a esperança de qualquer realização provável ou improvável. bati na cabeça compreendendo o que . Foi uma evidência que não resultou de ilações. Por exemplo: a poesia não pode tudo? A música não pode tudo? Assim.. Não és um acréscimo com intenção de substitutivo. Meneou a cabeça e deduziu: — Certo dia nos conhecemos. a nossa solidariedade. injunções de complexos e erros. de forma a ele substituir um estado que fatos irremovíveis impossibilitam. tomado banho nos mesmos rios e cachoeiras. sem informação segura do teu caráter. O eterno e o instante. Sim. adivinhei logo. interfiram na nossa plenitude. nos sentirmos irmãos secretamente... Não depende o meu querer bem de nenhuma hipótese em elaboração. Ora. não faz mal. por causa de Deus e de certa. estudado nos mesmos livros. em minha casa. porque somos um ritmo de leis. contentarmo-nos com este segredo. mas o apartado. Não nós. muito menos sou mulher para planejar circunstâncias. Só pode ser assim. em me sentar horas ao teu lado num cinema escuro? Olhou para o mar reboante. A vida! És para os meus o estrangeiro. Da mesmíssima forma. não admito que pecado e remorso. estirou-se mais na areia. Quando certa noite. Mal te conheci. disse devagar. Duma lei. subido em árvores. tenho que dar a esse assim um sentido altíssimo. mas sim duma lei. após muitas outras de insônias. que te queria porque te conhecendo recebi instantaneamente a revelação duma evidência garantindo tua categoria. Minha consciência me é testemunha de como não te aliterei a nada. sem aguardar acasos nem supor probabilidades. Temos que respeitar injunções severas. O infinito e o transitório. visto o mundo de mãos dadas e juntos termos entrado na adolescência. Quero-te bem já e sempre. Mesmo para mim. Teria sido bom termos crescido juntos.. para além do bem e do mal. criatura. Que pareça uma plenitude irônica a ilusão de tudo em nada. não acaricio nenhum sonho que sou obrigada a adiar. o “convívio intersticial”. de tua condição social. com as mãos juntas sob a nuca. a vida. em me avistar contigo num desvão do mundo. tarde demais. Se te telefono escondido. impossível pensar sequer! Reduzir um sentimento sobremaneira alto a combinações ilícitas seria o mesmo que aplicá-lo como em negócios se aplica o ouro “disponível” para que renda juros de agiotagem secreta.. Assim. é porque vimos nitidamente que há que suportar um estorvo usando de cautela e de nobreza e não de argúcia e de cinismo. Analisei-as como alma. definindo. se me deparou impossível. coisa que fiz muito tempo. neutra. depois que te conheci. Querer. que era que tal sentimento faria de mim. se não somos livres. — Jorge. que te queria bem e que tal sentimento era amor. Procurei. Amor não é apenas curiosidade. Analisei que sensações seriam essas que. um substantivo. esclarecendo o fenômeno que deu causa ao nosso sentimento. se nos encontramos com a máxima cautela. Circunvalada pela “minha” vida. Uma louca. uma mística. Analisei-as como mulher. da minha negação lúcida para a ambiguidade. uma insensata. duma objetividade explicando. já que meu sentimento por ti não supõe obrigatoriamente estratagemas.se passava em mim. não ferir nem violar nada. folheando livros e mais livros. isto é. atração. andar às voltas com problemas de consciência. que liberdade foi essa que atingimos? Donde a recebemos? Ou chegamos a ela pela inversão conveniente de verdades que ajeitamos à nossa feição e sabor? Ficou algum tempo calada. pensando. perguntou: — Achas que estou sofismando perante mim mesma? Meneei vivamente com a cabeça. incógnito. arranjava traduções francesas de Rilke a fim . me despertavas. nem que tivesse que fundir radicais e desinências para formar um neologismo indicando o estado imanente de bem-aventurança terrestre. logo adotei uma tática e uma estratégia. comecei a procurar não a maneira de utilizá-lo nem de anulá-lo e sim que era que eu faria dele. ou melhor. A mim mesma me jurei. se vivemos emaranhados em expedientes. não! Conhecedora perfeita de minha formação moral. pois para te querer bem não necessito transgredir sanções. abstrato ou concreto mas susceptível de significar um esconderijo. Ao cabo de investigar em vão. Analisei-as como uma terceira pessoa. não! Uma platônica. tu ou eu insinuando combinações. Ouvia Bach e Händel para ver se me vinha do recesso do meu êxtase tal palavra. instinto. Evitar conhecer-te. pois precisava de qualquer informação. acabei por ter certeza de que no nosso caso não preciso nem mesmo superar nada. estava quase concluindo que tal palavra eu a teria que inventar. verifiquei que poderia amar-te contanto que tal sentimento fosse mantido sempre tão acima das injunções terrenas que não se objetivasse nunca em estados sensoriais.. se não nos debatemos em aflições em que entram terceiros. em filósofos e depois em santos uma palavra. que entre nós o amor fosse vida em comum. E depois disse com serenidade: — Busquei em poetas. na hora mais lúcida de minhas reflexões. Analisou-me. procurei. limpou a areia dos tornozelos e dos pés. que tal nome. Isto é. sumia no poente. Limpidamente. Continuou a falar. gymnopédie. vermelho e opaco. levantou- se e estendendo-me as mãos para que eu a ajudasse. calçou-se. não condizia em nada com a música. — Que palavra é. mas já agora como num solilóquio: — Sei que estou incluída dentro de sanções que. intimei-a assim imobilizada a dizer que palavra era. não quero parecer original. folheava teologias. vestiu o casaco. Tampouco sou criatura que se confine no platônico ou se transfigure optando pela sublimação mística. E veio dizendo: — Ainda agora te declarei uma coisa que já sabias. Sabes que esse passo é impossível. esfregou-o pelas pernas abaixo até aos artelhos.. pediu-me o lenço.?! — Não digo. Se for da vontade do destino normal que nos conheçamos um dia como homem e mulher. Não. não me passa pela mente ser preciso qualquer transgressão ou expediente feminino. Desejo querer-te bem sem recuos nem avanços. Tenho medo que caçoes de mim. para a pedra da Gávea. mostrando o disco de Gymnopédie. A palavra difícil que descobri é pretensiosa mas tem diafaneidade. Um sol imenso.de entender bem três das suas Elegias de Duíno referentes ao amor. consultava místicos como São João da Cruz. o homem e a mulher desejam a união como finalidade e depois como frequência. “incrível”? Ainda agora. intolerável. que juntos usufruímos um sentimento que nos basta.. Pois bem. Ora. No amor. num livro qualquer. quando eu vinha dirigindo pela avenida Niemey er. mas que. estando nós a coberto de receio ou pavor quanto a um passo a mais. Eu é que me encarreguei dela e não tu. Ela olhou para o lado oposto. Agarrei-lhe os pulsos. encaminhou-se para o lado da areia onde devia estar a canoa. isolada era uma palavra bonita. certa noite. isso só se dará se não tivermos que transgredir leis e conjunturas legais. sentou-se. como a raposa que disse que as uvas estavam verdes. Aceitando tal restrição que talvez venha a ser permanente não estou aberrando de nenhuma condição corporal instintiva. já estarei prevaricando. tirou os sapatos de debaixo do casaco. Fez menção de levantar-se. jogou-mo. bateu com as mãos uma na outra. gritou que já era tarde. Custou mas encontrei! — Que palavra é? — Não digo. encontrei. Pois bem. me dizias. pois o . viu as horas no meu relógio. para te querer bem. deveras musical. Debateu-se. terrena e humana. para o canal. Que me julgues “complicada”! — Que palavra é? — Juras que não me acharás ridícula. se transgredir mesmo que seja em pensamentos. até que por simples acaso. qual moeda entrando numa fenda. vincando aquela paisagem agora desolada com um friso de zarcão. Não nego que de vez em quando me sobrevenham considerações confusas. em completa bebedeira. rindo. a montanha. qual pavilhão de leproso levantino. Seus netos cafuzos saíram lá de dentro da cabana e nos rodearam oferecendo curiós. Calados. seria preciso uma filosofia para transpor o dilema de ou esquecer ou lutar contra tal inibição. natural que me sinta às vezes no limiar de barreiras. a duna que desaparecia sem fim. até mesmo para a alma. Em cima duma prateleira perto da máquina de fazer e conservar sorvetes. Por entre ingazeiros rumamos para a beira da gamboa. Mas tais estados puramente femininos se restringem a sintomas de insatisfação apenas. Sou bem mais do que mulher apenas. a pedido de Renata. quase lilás. Em tais momentos averiguo que para os sentidos. a baixada lembrando uma pálpebra inferior. Como mulher. esquisitas mesmo. mesmo durante tais raciocínios. tu morando com teus pais. o canoeiro. O mar atirava bramidos. A minha situação existe. O crepúsculo contornava tudo. . Renata enxotava. querendo transpor ou arranjar meios de transpor obstáculos. no plano terreno se trata duma limitação que evitamos considerar por escrúpulo. Como saído da gamboa surgiu. que se intoxique de anseios. socós-bingas e xexéus. Entre altas moitas de muriris e aningas.. Entramos para o bote. Mostrou o mar. Como criatura hei de reagir quanto a esse embate entre a realidade e a ilusão. Embora na verdade nossas vidas civis sejam apartadas. passando já agora por um chão onde debaixo de cajueiros e amendoeiras um botequim estendia seu telhado de zinco e sua sordície de balcão primitivo. fibroso como uma raiz. Onde estávamos? Que região era essa limitada pelo oceano violáceo. homens e mulheres em trajes velhos de banho. porque sempre. Num mocambo isolado com portas negras e janelas escuras. eu vivendo na minha casa com meu compromisso.alvoroço que sinto não se estriba em desespero como se eu me debatesse na demora duma hipótese porvindoura ou levasse urdindo planos para sua possibilitação. não sou criatura que se nutra de esperanças tortuosas. um grupo acabava seu pic-nic. Evidentemente. Prosseguimos. um rádio dava notícias de football. alguns maruins. rolos de vagas se quebravam estentoricamente. Paramos diante do canal por onde a lagoa se ligava ao mar e que naquela hora parecia um conduto lacrimal. sentado por trás dum caixote onde expunha pencas de caranguejos e bagres. pela pedra da Gávea assim maciça e pela baixada imperial de Jacarepaguá? Vogamos mais de meia hora pela lagoa. um velho só de calção de pescador e barbas de taumaturgo nos olhava.. só chegamos a conhecer-nos depois que tal situação já era desde muito uma realidade. já agora dançando no alpendre ao som de ganzás e violas. nosso sentimento se me apresenta tal qual um triunfo. guriatãs. Subimos para o Joá em ímpeto de propulsão ziguezagueante. Rodeamos a metade da lagoa Rodrigo de Freitas entre o Leblon e Ipanema.. o Golf Club e a Gávea Pequena. Assim que cheguei corri à biblioteca. tendo reposto os óculos pretos. correu e virou a esquina. De volta para casa. firmou os óculos e disse: — Aquela palavra que se adapta ao nosso sentimento é. E daí a minutos. abri o dicionário Morais e fui procurar o significado.. adússia. Renata escolhera bem. na avenida Vieira Souto. estanquei o Stutz. depois em giros quase helicoidais. Apertou a minha mão agarrada ao volante.” . atenta.. E. criou coragem: — . descansava o queixo no meu ombro. Vimos como plataforma lisa e melancólica o oceano lá embaixo. procurei decorar a palavra “adússia” que jamais ouvira. já com um farol aceso. numa rua transversal bem perto da sua esquina. entramos para Copacabana pelo corte entre duas favelas suspensas em rochas. Renata calada. saltou. Enquanto descíamos para São Conrado.. sorriu. esguia e ligeira. na abside.sofrendo a depressão lôbrega do crepúsculo que tornava possível aquele mundo bárbaro e selvagem transformar a nossa felicidade em desvalimento. séria. “Espaço atrás do altar-mor. Tapou a boca. Sim. analisando-o com o maior . no mais não havendo quase hóspedes por falta de publicidade conveniente e por causa da ausência de sentido prático dos donos. A seguir passa a explicar em que se estriba a possibilidade de lá para maio tal projeto vir a realizar-se: é que dadas circunstâncias ocorrerão. inquérito a mando do ministério. Que não existe propriamente conforto.. Tenho uma surpresa para contar. haverá a ausência de alguém por mais de mês. E ela começa a considerar com muita vivacidade como seria ótimo se pudéssemos passar semanas numa fazenda. numa verdadeira atmosfera de Babel de línguas e de fisionomias. gente que em nada nos estorvaria. Que conversou mais de meia hora com Júlia que veio de lá. a fazenda em si sendo um casarão rodeado de muita mata e de muita água. gente meio ingênua para nós. Um projeto estupendo. Fala que só há movimento deveras nos três dias de carnaval e um pouco durante a temporada de férias. duma tessitura. ingleses. judeus e bancários. verdadeira colônia de protestantes tentando uma vida à Rousseau. E do fundo dessa espécie de açude sobe do passado a voz de Renata me falando pelo telefone. Acho graça nessa frase cujo final parece de cartomante. À guisa de informação ilustrando o que diz. Explica-me que existe entre Resende e Itatiaia uma comunidade de finlandeses organizados em cooperativas. e com dona Maria Emília que tem uma fazenda perto. III Na lacuna negra há agora uma trama. Comissão do governo. em meio à lavoura cítrica. Assim fico sabendo. suecos. que haverá uma viagem por mar. conta por entre risadas umas observações de Júlia que lá passou os dias de carnaval entre suíços. Que tudo se está aparelhando providencialmente. e que a esposa do chefe aluga o edifício da casa-grande como hotel de férias. Que os tais finlandeses são famílias vivendo em casas à parte. Que há três dias vem pensando na viabilidade de tal projeto. Que frequentam o Camapuã alguns estrangeiros. Olho ao centro da treva circular o reflexo que o firmamento pulsátil aí depõe. mas trabalhando em vão.. o sujeito menos exótico parecendo Strindberg e a mulher mais elegante lembrando a Mae West. sem interferência sua. Uma viagem ao sul. ainda ralas. com passeios admiráveis. cheia de projetos irrealizáveis por falta de capital. embora sem pormenores nem citação de nomes. — Como vai a alma?. já que só os juros referentes a pagamentos atrasados vão a uma enormidade. fusão esquisita de cooperativismo e panteísmo. Que tem sido muito prudente. Indago do que se trata. as primeiras camadas. Que estranho que é o fato da presença da pessoa amada anular todas as demais! Apresenta-se não como síntese das outras criaturas mas como exceção fundamental. entram as duas. Aquela proximidade tão rara. Venho. Cada vez que combinávamos um encontro num cinema esperávamos com ansiedade aquela hora e meia de alheamento do mundo. Assistimos ao filme de mãos dadas. bem atrás ouvindo uma orquestra inexistente.critério. Mas a lua total irrompe por fim e a paisagem mostra. eu analiso para ver se as distingo. Cada vulto que entra. até nos inserirmos deveras num nicho de sombras. Imagina os passeios a cavalo. jungia-nos um mútuo transe de efusão. Percebo-a murmurar meu nome ou apenas fazer que o soletra. outra vez. do presente. a alegria suave dos seus lábios. Sua voz se inflama e me comunica entusiasmo que manifesto fazendo perguntas a que ela responde com pormenores. sento-me ao seu lado. anulavam-se os pessimismos integralmente. O mundo em redor. Um jato luminoso fere a tela. Renata envolta num halo de Arpège. há uma persistente vibração neste vácuo. como se a fímbria toda do oceano. como semibreves inseridas em pautas e mais pautas. Filme francês com Michèle Morgan e Jean Gabin. cada grupo que se esgueira. nada podia contra a força de enlevo que nos insulava do passado. Diante de mim. uma adússia onde quedávamos como dentro duma concha. ombro a ombro. Vê-la nas manhãs ou nas tardes já de si tão belas era como se o Posto 5 assumisse a amplidão nimbada de poesia. Quedávamos livres de apreensões.) Estou de pé. de aproximação dual. em muitas fileiras. Promete mostrar-me fotos lindíssimas de paisagens magníficas: florestas. em declive. cabeças e ombros. a dose crescente de experiência que embota sensibilidades. dado o empenho em não sermos pressentidos pela tia. Quando o disco da lua começa a desentranhar-se da fímbria rala da nuvem vejo tudo mutiladamente como se estivesse acometido duma hemianopsia. possível apenas uma vez ou outra. . olhamo-nos. Renata e a tia estão demorando. ou contextura microscópica do silêncio ou estridular sutil de grilos. recamada de poalha. (No retábulo da noite aqui na subida para a serra agora já existem laivos que se agregam à luminosidade rala do luar. os grandes olhos. as excursões pela mata. cachoeiras formidáveis como o Véu da Noiva e Maromba. Sempre que a lua se esconde atrás de nuvens negrejantes volta a amaurose e se apura a audição pois. o começo da minha “ladeira da memória”. a escalada a cumes. numa diminuta abóbada de êxtase! Renata esculpia no ar com as mãos uma ogiva. percorro as veias do dorso das suas mãos. da realidade normal e da rotina particular. tem no entretanto uma realidade íntima. recantos do parque Nacional. vejo seu semblante aquilino. O empregado desce pela passagem inclinada e lhes indica uma fileira onde há lugares. Esquecemos o filme. das multidões. Expande-se em alegria antevendo o que possa vir a ser essa nesga de sonho. Por fim. Mas vê-la secretamente em meio a mil pessoas numa sala aparelhada para gáudio dos contatos era conseguir um sortilégio de triunfo secreto. Em seguida se virava para mim. Para não ser pressentido por algum transeunte noctívago me sentei no cais a contemplar o Rio de Janeiro coruscante de luzes. flores e mais flores imaculadas e recendentes. seguisse incógnito para encontrar-me com Ariadne. feliz e incógnito na sua felicidade. tendo à nossa volta marés de realidade prosaica. dos cargueiros e das boias. De quando em quando Renata apurava o ouvido. poder nutrir a sensação jamais saturada de bem-aventurança terrena. e dentro em pouco nos sentávamos debaixo dum jasmineiro que a bem dizer nos tapava da rua e da casa. num estado entre lúcido e febril. sem se realizar a nossa ida para a tal fazenda. muito juízo!” As horas depressa passavam nessas contemplações . Mas nos fins de junho. certa vez ela me disse que no sábado eu fosse a Paquetá pela última barca que lá chegava à meia-noite. sorria. ou a orla das montanhas. ao alcance dos dedos. Reparei melhor: estávamos apoiados a um caramanchão cujos postes e balaustradas quatro jasmineiros enchiam de sombra compacta e de perfume estonteante. Lâminas de ondas preguiçosas me vinham ao olhar não como se eu. desde as Paineiras e a Tijuca até Petrópolis entrassem aqui nos trópicos para a categoria mítica onde outros nomes mediterrâneos. pudéssemos de forma categórica ascender a tais estágios. Parecia incrível que tão prematuramente vividos e experimentados.desde o Leme até a igrejinha de Copacabana. não busca sempre comparação nos mitos?) Em Paquetá me dirigi logo para as imediações da chácara colonial imersa em escuridão relativa. a Etólia e o Ponto Euxino eram ainda e sempre halos panteístas e líricos. os dorsos apoiados na madeira. Aguardei a hora e obedeci com entusiasmo incontido. Então me abeirei do portão cuja folha esquerda logo se entreabriu. qual Ulisses emergisse por entre as águas das fragas da Lucárnia e sim como se. ai. (Quem. e então as esfregava em nossas mãos até virarem massa. O mar não tinha ruídos senão de lento bater de ondas durante a maré preguiçosa. atenta e cautelosa quanto à prima Carmem e à tia Noêmia. colhendo ao longo do jasmineiro. Fiz o trajeto da Guanabara sentado entre funcionários e pequeno-burgueses vendo as luzes de Niterói. Renata me tomou a mão. ou desde Ipanema até o Leblon. Ficamos sentados no chão em cima duma espessa manta dobrada. das ilhas. virando o busto na direção da casa. Maio chegou. as pernas estendidas por sobre a grama. Vaga-lumes já não vivificavam o gramado e os tufos. até que escutei os primeiros compassos do Largo de Händel sussurrados a bocca chiusa do lado de dentro do muro. repetindo Glaucos. De mãos dadas nos olhávamos calados. da euforia misteriosa. Renata. tais como o Hebro e o Escamandro. Às vezes o luar abria escamas tremeluzentes à esquerda da ilha Brocoió: víamos então o fervilhar dos cardumes sob a superfície. dizendo: “Ai. Soergueu meu busto e se deitou no meu colo. aproveitei-a até para acender escondido um cigarro. Parecíamos resguardados da noite e do frio num bosque. sonho mútuo. ou fechava os olhos. Tenho que entrar.. voltava a esconder a cabeça e a cobrir-nos bem. Ou me olhava. já começa a clarear. De súbito ela se desvencilhou e disse: “Jorge.. de repente. ajeitando-a em duas cogulas. envolveu-me num halo de gratidão. E abaixava um pouco o semblante. emergindo. escutava. improvisado. Sua fisionomia trigueira tomava um ar de doçura. eu em Ipanema. com a manta na cabeça e nos ombros. Então levantou o busto. “Quatro e dez. acontecia gotas de orvalho pingarem sobre nós. em tempo algum acharás que minha atitude. larguei-a em cima dum banco. como a dormir. abriu a manta.” Perguntei-lhe então: “E tu. unidos só pela imaginação. Ela exigia que eu ficasse calado. ajeitou-se de modo a continuar forrando o gramado e a também cobrir nossas cabeças e costas. Um livor crescente começou a manifestar-se rodeando Paquetá.. quase de convalescença. Fiquei fumando. Até que Renata resolveu puxar bem para a frente as abas da manta: ficamos com os rostos escondidos. Uma vez ou outra ela entreabria um pouquinho a coberta na direção da varanda e das janelas. atravessou o jardim.. instou comigo graciosamente que me soerguesse um pouco. ela em Paquetá. Suas mãos seguravam de encontro ao seu peito e de encontro ao meu as abas daquele xale comum. embrulhando-me na manta. Silêncio total. fazia-me perceber o perigo. abraçá-la e cobri-la de beijos. Indício algum. O rosto de cada qual.. evitando acariciar meu rosto. Renata se recostou bem de encontro ao caramanchão. procurou o outro. a primeira barca é às cinco e quarenta. como se tudo aquilo fosse pura fantasia. Dobrei a manta. correu para a varanda e sumiu. Esperava a todo instante que ela voltasse. deixando que os jasmineiros acabassem de embriagar-me. olhava-me de perto. “Jorge. saltei cautelosamente para a rampa . Ríamos baixinho.” “Preciso e devo entrar. Depois a cena se alternou. Deixa o plaid dentro do caramanchão. vai embora!” Olhei-a sorrindo. vai embora.” Não me deixou concluir. vendo só uma treva aveludada e ouvindo nossas respirações.. em observação atenta e perturbadora. Em todo esse tempo me veio a ideia de. meu comportamento. depois me estendi de costas no gramado. puxou a manta. esboroei-me pelo gramado abaixo. Tu entenderás direito o que eu fiz?. Mas assim que certa aura secreta começou a empolgar-me e a invadi-la também. Em dado instante me fez pousar a cabeça sobre o seu colo e ficou a afagar-me os cabelos. Continuei sentado. por tua vez. deixou apenas que fizesse das mãos unidas uma concha onde apoiar o vão tépido de seu crânio que a cabeleira afofava. sentindo um ou outro pingo de orvalho bater em meu rosto. Que horas são?” Dobramo-nos com as cabeças apoiadas uma na outra. A madrugada começou a esfriar. vendo agudamente o quadrante que os ponteiros formavam no meu relógio de pulso.recíprocas. mostrava-me a casa. não consentiu que lhe acariciasse o rosto. comecei a andar pela praia. me entreguei a um torpor engelhado. Mas na tarde do quarto dia o aparelho soou na câmara escura e Renata. o queixo tapado pela gola soerguida. o cigarro aceso no canto da boca. a atitude dos transeuntes se transformando num ralenti de curiosidades gratuitas e de conversas cariocas imediatistas. a sua vida está nas vitrinas e no trânsito intenso de que ela se torna canal. saí. de mãos nos bolsos. é mais um logradouro estreito e comprido de passagem e permanência de burguesia e de funcionalismo público. Ao meio-dia o telefone não tocou. acompanhei Renata e Carmem que . Em cima. a mão fria. e assim. estreita como as vias de bazares do Oriente Próximo. vigiando a saída do prédio quase fronteiro. Ainda bem que lhe disse que embrulhara dois pacotes de livros para ela. Perguntou os títulos das obras. Era a hora em que a rua Gonçalves Dias. com um tom hirto nas sílabas. os pés estendidos no banco da frente. começou a apostrofar-se. perto da chaminé. recebendo afluências que agem em seus flancos como bombas calcantes de efeitos reduzidos. o andar. E foi por suas calçadas que vagarosamente. só nas esquinas. ao pegá-lo. a pedir que me esquecesse daquela noite. modas e frivolidades. toma aspecto denso não de tráfego mas quase de estagnação. mostrou gradual interesse à medida que eu me ia lembrando dos nomes. Prontifiquei-me a ir vê-la. Compreendi que faltasse o Largo de Händel. fechei-o. os grupos se formando de preferência nos portais e na frente da Colombo e do Caduceu. a chamar-se de leviana. sem trânsito de veículos. E o timbre de sua voz transmitia de modo evidente o seu estado de escrúpulos. isto é. Embaixo havia quase só operários. o chapéu arriado para a testa. Disse- me que estava falando da modista. Calculei que o motivo fosse não haver voltado ainda para Copacabana. que anulasse da memória sua atitude “inconsiderada”. Não é uma via de acesso ao povo em si.cimentada. Prometi fazer como outras vezes. com várias interrupções. Mas três dias decorreram sem que desse sinal. Às cinco e quarenta voltei para o Rio numa barca em cuja proa grandes peixes do tamanho de cetáceos expunham suas corpulências lívidas e plúmbeas. Rua de prédios baixos. tanto as calçadas como a rua propriamente dita apresentando mais gente parada do que em movimento. entre um castelo e outro. batida por problemas até de ordem religiosa. lojas de varejo. abri o portão. joalherias. o dorso bombeado e branco da barca estava vazio e batido de aragem. De fato. Fui acoitar-me ao calor das máquinas no centro. E explicou com um travo de amargura que estava decepcionadíssima consigo mesma. diferente. a acompanhá-la. Advertiu-me que não se achava sozinha. segui-la de longe pelas calçadas. sentindo a rispidez da barba nascente. com sobrados de sacadas. pois Renata estando em Paquetá não poderia telefonar com facilidade. daí a meia hora eu me achava no portal duma loja. de profissões liberais e de políticos. desde o Mercado das Flores até o largo da Carioca. se no mais das vezes se deixava arrebentar pela beleza do dia. disfarçando. incógnito. dos momentos mais aflitivos e dramáticos da sua vida de mulher casada. ou pedia quase socorro: donde. da noite. e então a sua palestra inesquecível através da voz rouca atingia efeitos até plásticos com as variantes mais inesperadas de apreciações e devaneios. também acontecia que fatos íntimos e insopitados a deixassem em marasmos. Assim. os pormenores ressaltando através dos efeitos pitorescos por entre risadas e terminologia álacre. de vida doméstica (por mais que evitasse referências e objetivações) era em mim que achava derivativo. estalada a guerra. imprevistos passeios a toda velocidade pelas estradas longínquas até Jacarepaguá. Acompanhava-a sempre discreto e emocionado. após cautelosa espera. até que a descobria a sorrir. dos silêncios duma leitura. encontrava solução em fugas teóricas. Bastava a minha voz parecer distraída ou evidenciar qualquer preocupação ou dissabor eventual para logo me interpelar. porém. desde que a conheci até abril de 1940. logo que possível. do mar. Se eu. Se nos dias normais era a natureza mais transbordante que imaginar se possa. Só íamos a cinemas e a passeios quando sucedia — o que não era muito raro — aquela pessoa se ausentar do Rio em comissões e inquéritos administrativos nas sucursais da sua repartição fiscal. Ela sempre me descobria logo em qualquer ponto onde eu estivesse à sua espera ou procura. do céu. nos dias de “túnel” deixava que a batessem rajadas e marés de apreensões e angústias. Em dados momentos a multidão nos tapava. Também o seu drama íntimo. Nem sempre. imersa em soluções anagógicas. Conhecia meus estados de alma só pelo tom de minha conversa.entraram primeiro numa loja de armarinho. ficando não raro assoberbada por aborrecimentos e problemas que a marcavam como períodos de acessos cíclicos. a seguir na Colombo. das ocasiões órficas do seu desabrochar adolescente. buscando o apaziguamento de perplexidades e vicissitudes. desde fatos recentes até reminiscências de quando menina. Assim. abrindo dicotomizações para voltar depois ao eixo central. Isso foi criando uma sensação crescente que redundava numa espécie de radar. com ar de motejo. e isso com sabor inefável. As dificuldades de comunicação pessoal tornavam o telefone o nosso instrumento mais eficiente. permanente. místicas. e então passava uma porção de dias sem telefonar. Constantemente. ela ou se fechava discreta e delicadamente em seus problemas. criticava Hitler e Chamberlain com apodos . Perdia-a. recebendo sua atenção breve e solícita enviada duma vitrina ou duma porta de loja. telefonava. fiquei a par de sua existência desde a infância até agora. olhava desorientado para as quatro calçadas duma esquina. Era por meio de longas conversas vivazes que ela me contava a própria vida. Mais tarde. dos complexos transferidos para soluções intelectuais. a acompanhei assim. das qualidades específicas da sua índole e do seu temperamento. isto é. depois numa casa de chapéus. da mata. Longe de tal sistematização de se firmar em amizade amorosa. Estabelecemos uma permuta de sensibilidade também. sofria com as derrotas na Polônia e na Noruega. Estabelecida que foi a confiança mútua. contudo não me atrevia a instar. cada qual começou a ficar ao corrente da vida do outro. um sentimento misteriosíssimo. pouco a pouco nos fomos promovendo a arquivistas recíprocos do passado. descendo e entrando pelo túnel do Rio Comprido. subiu de ímpeto com os primeiros encontros. e do presente. ria gostosamente da comédia de Mussolini ou de Göring. em que não andávamos de automóvel pela avenida Niemey er e ao longo de matas e praias. Era minha conselheira quanto a projetos e programações literárias.. Às vezes eu lhe lia pelo telefone Eliot ou Pasternak. eu já ao ouvir o timbre de sua voz sabia que daí a pouco ouviria. As horas em cinema tinham qualquer coisa de vibração crispada. exercendo e recebendo influências que eram refrigério e diagrama.” Não se tratava nunca de fatos materiais e sim de estados de convívio conjugal. em que não nos encontrávamos em cinemas. subindo a ladeira do Ascurra. nossas almas se compreendendo melhor. Sá-Carneiro ou Fernando Pessoa. ou a guerra. fazia-me perguntas sobre Hermann Hesse ou Montale. Realmente sempre que me telefonava ou que atendia a telefonemas meus. e eu em paga retribuindo com livros e conversas calorosas sobre Kafka e Wassermann. eu tinha que respeitar essa faixa de alcova na sua vida.. dava-lhes apelidos duma originalidade pasmosa. procurava distraí-la entabulando conversa sobre música. primeiro difuso e com exaltações. o prefixo: “Grandes são os desertos. Assim. Trocávamos impressões sobre os autores cujos livros eu lhe dava. possível somente durante as primeiras correspondências e telefonemas. seus rebates promanando sempre de questões cuja essência não sendo exposta eu. com a inércia de Gamelin. Os . Sempre que sobrevinham problemas ou dúvidas nos consultávamos.jocosos. literatura. sentia horror instintivo por Laval. ela ajudando e desenvolvendo meus conhecimentos e curiosidades musicais e folclóricas. Sem saber como. principiava a interessar-se por Éluard. começava a acreditar em Roosevelt e em Churchill. ó Jorge. lhes adivinhava a causa. grandes são os desertos. atingindo o Alto da Boa Vista. todavia. como resposta às minhas perguntas. ó Jorge. Queríamos sempre saber da vida um do outro quanto ao tempo em que não nos falávamos ao telefone. Nos dias de “túnel” (conforme designação sua) a voz já nas primeiras palavras me avisava só pelo tom que “Grandes são os desertos. Depois viera bem mais que simpatia. grandes são os desertos!” Nem sempre se externava de todo. Ela se cansava já de Aragon. depois lúcido. Por mais que suspeitasse das circunstâncias. passando pela estrada do Cristo Redentor. em tudo a sua vibração sempre me servia de teste da sua inteligência e índole. “ressurgindo” após um silêncio inexplicável de dias. entretinha e solidificava as antigas relações de amigas que sentiam seu fascínio. Um mineiro no fundo duma galeria também pode ver esse céu através dum poço profundo de arejamento.. todavia. em pontos afastados. e uma sensação particular. cinemas. mesmo tomados em doses maciças. vai embora!” Assim. Ora.. conversas.. chegávamos a este paradoxo: ela vivia lá em sua residência com a sua realidade “anterior e atual”. são o meu sangue. e ela respondia com sagacidade intempestiva: “Remédios há que. Que sentimento nutro por eles? Sentimento de averiguação real ou latente dum bem. de angústia. vislumbres não de vida.. puros ou excepcionais (telefonemas. mas no primeiro exemplo um céu a toda volta. Contigo tenho amostras fugazes. mesmo os raciocínios no gênero dos da conversa na Barra da Tijuca não significavam senão uma disciplina teórica. ou apenas em alvoroço fugaz. por causa da profundidade donde o contempla. com os meus. que dose de realidade quantitativa significava na sua existência? Fazia-lhe esta pergunta. Ao invés. Em ambos os casos o céu. a qualquer hora. Sobressalta-me senti-los: são um mistério que fibrila a minha alma. Depois. se apresentavam ensejo de convívio e conhecimento não deixavam de ser uma coragem consentida. Vivo há tantos anos com minha gente. Conforta- me deveras tê-los. Que me advém disso? Uma sensação geral.). pois nossas naturezas se galvanizavam sempre e cada vez mais. Vê-lo-á até estrelado. Serei mais sincera dizendo: o meu ser.passeios de carro. estou com trinta anos. só servem no máximo para abrandar sintomas. Logo depois te conheci. de com a frequência tais estados se transubstanciarem em placidez beatífica. convivia com as parentas mais íntimas. como sucedera de modo nítido naquela primeira manifestação na noite de Paquetá quando de súbito teve que me dizer: “Jorge. me casei. E apenas um disco do firmamento no outro exemplo. se a plenitude mesma não me bastaria. confissões referentes ao passado etc. na ordem temporal e espacial.” . como é que tenho que me contentar com mera fração? Vou explicar melhor: no alto da montanha um pastor. e eu indubitavelmente. sentado. vê a toda a volta o firmamento. se somasse as horas e os fatos. mas de aparições. desde que nasci. encontros. ao passo que os alcaloides. passeios. de alegria. isto é. e o sente. declarava: — Não quero que nos tornemos abstrações idealizadas. Leblon. que pássaros estávamos ouvindo ou vendo. durante o chá. da faculdade. ao longo das estradas e atalhos por onde andamos vagarosamente até o cair do sol. contou toda a sua vida. Paris e Berlim. no terraço do hotel. Nunca foste noivo. fala-me da tua vida. “Para teres a impressão de havermos crescido juntos e de me haveres deixado depois.. Uma tarde. pelo chilrear. Primeiro. agudo.. Das mulheres que conheceste na Europa. o horizonte retilíneo. Jardim Botânico. lá ou aqui?! Juras?! — E aí tomava um ar crispado.... a rir. depois. largo dos Leões. daquela. IV Bem que procurava usufruir essa fração. pelo trinado. da minha profissão. Penhas e muralhas cobertas de tinhorões e samambaias. os bairros de São Clemente.. Matas cheias de rumores.. Depois de “confessar-se” (conforme expressão sua) interrompeu a conversa reticenciosa e começou a correr atrás de borboletas. a espantar-se. À nossa direita a floresta e a montanha. ironizando a minha ignorância crassa em botânica.. Vamos. Eu a contar peripécias de colégio. fechando um pouco as pálpebras: — E essa tal Lambeth que surpreendi uma tarde falando contigo na Garnier toda radiante? Um diálogo denso se formou então. com os joelhos e os cotovelos em movimentos felinos. acenava-me apenas com o queixo e as pálpebras. Por fim abraçou a árvore com os tornozelos cruzados e com o braço esquerdo. subiu num barranco e me chamou apontando para qualquer coisa.. perguntando entre risadas: “Não pareço o ex-rei Ferdinando da Bulgária?” Caminhava ao meu lado. ao passo que. mas apenas para eu ficar ao corrente da sua existência. que aves. Até que soltou de mim (pois seguíamos de braço dado). reconhecendo pelo gorjeio. a dois metros do chão.. o mar. Aproximei-me da “índia” que. inclusive dos tempos de Londres. À nossa esquerda despenhadeiros. pelo canto. procurava com a mão direita afrouxar e destacar as nervuras esverdeadas e túmidas dum pé de orquídea. da Europa. pois. Explicou-me que me contara as suas “memórias” não para enternecer-me. a entremear comentários. pela cor da plumagem. sabendo e dizendo o nome desta árvore. Ipanema. A fim de que eu não seja poesia vaga em tua vida e sim uma criatura que te encontrou e que te dá conta do erro em não te haver procurado e achado muito antes. Estava agora parada. Falou mais de três horas. E daí a instantes resvalava muito risonha pelo tronco abaixo. num passeio às Paineiras. Ela a indagar pormenores.” Instava para que uma simetria se estabelecesse. dava um pulo repentino para os meus . cerrando os dentes. as ilhas. da estreia literária. subia por um tronco acima. pelo voo. Inclinava-se toda. do tempo em que eu frequentava esse reduto do Guerra Durval e do Celso. nos fundos do Palace Hotel. Afastou-se para o lado... que já fora ama de sua mãe e de tia Noêmia. Limpava a saia de casimira e as meias de seda manchadas de limo. Conheço-a vagamente. despetalando-a.. fiquei folheando um livro. Lambeth para aqui.. — Vagamente?! Então o modo dessa estouvada conversar contigo na Garnier. Foi a . trejeito e voz de menina. falando com ela! Não me viste entrar. Disfarçava. e logo o abaixando para o chão. Muito espontânea.. até que perguntou: — Donde é que conheces a proprietária da minha casa? — . essa tal Lambeth! — Da Associação dos Artistas. Bonita. numa árvore. mudou de feitio. Lambeth para ali.. enquanto examinava as orquídeas. e ouvi aquelas risadas. Depois subitamente começou a falar com ênfase: — Ela não me conhece pessoalmente. repuxava as pálpebras para que os olhos ficassem oblíquos.. ria do meu feitio hirto.. que me falou da sua velha ama. pondo as mãos para trás e andando sempre com os olhos no chão (conforme seu hábito quando se preocupava com qualquer coisa). de índia e de iara: — Presente de Comandira a Dobaré. Estapafúrdia. Como tu rias. à esquerda. Perguntou-me se não achava bonito o nome da sua ama caiapó... Depois. vagamente?! — É o feitio dela. uma índia caiapó que seu pai levara para Belém.?! — Sim. em cima. Continuou a caminhar. repeti-o alto muitas vezes.braços e me oferecia a parasita dizendo com mímica. dado o tamanho e o peso. E Renata procurou prender a parasita inteira em cima do meu coração. fui falar ao telefone. a proprietária da tua casa. vendo que os alfinetes de nada valiam. Dei-lhe o braço.. calada. Quando vi que então não me vias mesmo. ajeitou a magnífica peça colorida no bolso de lenço do meu paletó. Artista. Pintora. Não sabia que era a proprietária da tua casa. dizendo: — Lembrança de Maluero a Zavahúri. comparava-me a um andor florido.... quase apoiada ao teu ombro. Passei bem perto.. Mas é claro que eu a conheço de vista. fingindo prestar atenção num pássaro. Usando uma piteira de trinta centímetros.. de vez em quando erguendo o olhar para mim. Jorge para lá.. Maluero. Achei lindíssimo. de retratos em jornais. bem virada para o grupo.. apreensiva. Jorge para cá. colhendo uma flor. E foi então. no peito. numa pedra... indica que te conhece vagamente e que a conheces. ” De fato aí me recebeu às quatro e meia da tarde. Jorge? Eu vou com você”. dizendo inefavelmente: — Está passando bem. crente de que te ia levar de carro para Copacabana. Do norte. Aquela intimidade evidente. daí a pouco te despedias.. enquanto uma tribo de gansos nos apupava pelo gramado acima. estátuas. Depois que descemos. colocou-o na cabeça. Depois se levantou.. vermelho. Espero-te na varanda. Se não te cumprimentei na livraria foi porque sempre me aconselhaste cautela em público.. e readquiriu a harmonia habitual que daí a pouco passou a ser meiguice. viveiros. orquidários. Mostrou-me o jardim. — Renata imitava a voz duma Lambeth exagerada. — Mas logo na esquina do Jornal do Comércio me desvencilhei dela dizendo que ia ao Correio e te esperei. Dos pais. deixando-me sozinho numa das salas a folhear álbuns de fotografias que trouxe dos aposentos de tia Noêmia.. Renata estava de sweater e de calças Lanvin. Era ela a dizer que tia Noêmia e a Carmem haviam descido por causa dum jantar na rua Toneleros e que só subiriam no dia seguinte. disfarçou. Paisagens do Amazonas. da coleção do avô “no tempo da borracha”. rente às banquetas. começou a cumprimentar-me soerguendo-o um quase nada. Zavahúri? Gostou de vir me ver. descoradas. disfarçaste.. “Logo depois do hotel Quitandinha... explicou muito bem onde era. em público. estufas. — Claro que sabias. E subimos até à mata. Certa vez fui chamado por uma ligação interurbana de Petrópolis. Retratos de família. Ficaste hirto. E ela respondeu. eu muito atento ao seu ar radiante. Que se achava sozinha. Deu-me o nome da rua e do bairro. . Renata voltou trazendo-me um cálice todo embaçado de gelo moído. Comandira pergunta a Dobaré se está bonzinho. Do Rio. nem me olhaste. pavilhões.. o número da casa. — E nem te telefonei durante três dias! E tanto tinhas culpa no cartório que não me telefonaste também a perguntar se meu silêncio seria porventura doença. gostou?. disse que a criadagem se achava de folga. Atravessamos o jardim. — Enquanto te faço um daiquiri. Não tiveste coragem de cumprimentar-me sequer tirando o chapéu.. balaustradas. tanques com plantas aquáticas.. Todavia tomaste um táxi diante da Equitativa. parecia Comandira domesticada. ficas vendo como eu era em pequenina. quis mostrar-me o morro. Da juventude. Após determinado silêncio e amuo. ela falando e mostrando uma porção de coisas. que apenas a velha Maluero estava cochilando lá na copa. se eu não queria ir vê-la. Fotografias antigas. Seringais. quis oferecer-me um cocktail que foi fazer. ao te despedires: “Para que lado você vai. Pois se eu sabia o motivo de tal silêncio. e chegamos à piscina em cuja orla nos sentamos. Tirou-me o chapéu.minha voz que te “acordou”. Renata se arrependeu. — Para que perguntar?. Da infância. Que dizes desta meninazinha antes de te conhecer? Sentou-se. rum branco. ergueu-os até o rosto. gelo quebrado e açúcar. — Agora vou mostrar-te uma coisa que trouxe do Rio expressamente. artigos teus. Seria melhor um livro sobre o nosso tormento.. Um livro da nossa vida — (Revirou as mãos. Queria. uma nau velejando tão lentamente que nunca chegasse. começou a folhear os álbuns. foi guardar a caixa... ao reaparecer. a explicar tudo. Fomos vagarosamente. Os empecilhos materiais e morais. que não fizesses conferências. um chão dando para o impossível. Quero que escrevas então a que deveríamos ter. folheando o romance. transformando-te em mito para essa gente toda. um mapa. gulosinho. com riscos a lápis. e que não conheces. que não escrevesses para jornais. A realidade.. Nosso encontro.. os nomes das pessoas. A minha alma apoiada a uma grande muralha no alto dum promontório em Tintagel vendo a toda volta um mar imenso em torno das Cornualhas. Nós a percorrê-lo. — Qual?! — Darias primeiro a índole e a sensibilidade de nós dois... Depois pediu o livro que eu tinha no bolso. Nosso passado. ensaios e artigos a teu respeito. Disse títulos de contos. lembrança. Deixou-me sozinho um minuto. as datas mais ou menos. que não desses entrevistas. conversando sobre o futuro livro. — Poesia? — Não. folheando o primeiro volume. Qual vida? Temos uma vida.. E. escolhendo o nome. a solução única viável.. que sumisses da vida social. O drama.. a pisá-lo.. Uma vida nossa. E. os livros e os álbuns. a chegarmos diante duma . me convidou para irmos passear a pé. sorrindo. nós?. dizendo que era presente. fez um ar taciturno.. fez menção de descansar a face sobre eles. levou o cálice para a copa. Um livro descrevendo a eclosão do nosso afeto.. Em seguida juntou os dois volumes. Nosso conhecimento. feita naturalmente com o pouco de informações que te venho dando da minha infância e juventude. este maço aqui. Que escrevesses um livro especialmente para mim. — Críticas. Ergueu-se. voltou trazendo uma caixa e os meus dois livros. — E mais o quê? — Não. Voltou. que não frequentasses livrarias nem rodas literárias. os lugares.. Um nome que significasse um roteiro. Depois abriu a caixa envernizada e retirou maços e maços de recortes de jornais. É suco de limão. Os estorvos. afavelmente.. de permeio. chamou-o de livro perigoso. a marcha para a vida. — Bebe. arrancou cuidadosamente três fotografias suas e as colocou dentro do livro. a impossibilidade de a vivermos. Nourritures Terrestres. e disse títulos de capítulos.) — Da nossa vida?. embaixo ou do lado de certos trechos. mostrou como estavam anotados.. suposta. Calei-me. inclusive as que o destino interpôs entre as nossas vidas. — Vários milhões de pessoas acolá. nas imediações do restaurante. dotado de ascensão máxima e com uma queda. Algo diferente como roteiro lírico e sentimental. O texto competiria a ti. como desfecho de consciência e de destino. como dois foragidos.. internamente. para lá do processo de Baring. Ficamos a olhar para aquela região feita de ruas. olhávamos para um trecho posto lá longe. a Guanabara e o Distrito Federal. contemplando de longe o cárcere cuja porta ficara aberta hipnotizando-nos para a obrigação do regresso. eventual menagem mercê de disciplinas severas e observância estrita de .. — Sim.. Sim. rente à garganta vulcânica. — Isso tudo é mais assunto de poema do que de romance. os debates espirituais. praças. O processo. A anulação dos corpos como empecilhos. escreverei um romance diferente. se transformando num vale de refúgio e de refrigério. Então fizemos o primeiro esboço desse território humano. delimitado. fomos muito além da Crèmerie. As tentativas. — Ora! Não digas isso! Estou dando o plexo nervoso do assunto. as fronteiras e nós mesmos. o caminho. e que parecia caber numa das nossas mãos: a grande capital semelhante agora a uma concha na beira do aquariozinho a que se reduzira a Guanabara.. sendo no começo região de primavera e de encantamento. Nós. um contentamento inebriado. oferta natural para a felicidade de coexistir. Vagarosamente andando e conversando.. assim. chegando à Independência. Um grande enredo lírico. bairros. que percorríamos incógnitos e invisíveis mediante o pacto de jamais transgredirmos uma lei que aceitáramos sob juramento. Sentados num penhasco. onde não podíamos conviver deveras. também. longe e acima da cidade. porém. morros. Um silêncio de avaliação de felicidade. os percalços. A solução simbólica. uma catástase de drama pungente: o drama da insolvabilidade. já que o litoral para o embarque rumo às ilhas e penínsulas era infestado por legiões afeitas a rapinas e tráficos.. postos no alto. Um relevo apenas. a seguir se expandindo num deserto onde.. as lamentações nos aguardassem para a entrada no reino do drama. tal qual estamos agora. Um território. bem defronte. vitoriosos na derrota aparente. a chave forjada no fogo.. apresentando acidentes. os escrúpulos. a libertação das almas como realização total. uma espécie de balcão neolítico dando para a baixada. os problemas. Rio de Janeiro. cromático. Só daqui de cima é que as podemos dominar e anular provisoriamente. só porque estávamos.. Nada de soluções dialéticas. sabendo-a cárcere. praias. sentindo embaixo o despenhadeiro violáceo.. depois.circunvalação. ou desumano. Para nós. nos avassalou. e os bairros marginais e as encostas se fundindo num negror de presépio que por fim se foi subitamente pontilhando de luzes. correndo. Enquanto isso. parecendo não uma paisagem direta mas sim uma linda e microscópica Kodachrome Print projetada numa tela neutra. como sempre que não existe ainda intimidade natural e sim estado dionisíaco. da testa aos joelhos apresentando uma linha da silhueta. fugindo ao platonismo mas também não querendo ser arroubo físico. Falava agora naquele outro crepúsculo na Barra da Tijuca. Até que começamos a prestar atenção no bramido das vagas. Depois. em cima desse vão. porém. pelo Joá acima. para acabar se soldando como rodapé ao quadrante fronteiriço. Vogando ambos . (Ah! Os crepúsculos eram sempre a cortina de remate dos nossos eventuais encontros!) Primeiro. deveras Comandira. ali ficamos até que o crepúsculo caísse. o cenário se apagando na face anterior. nossos corpos eram bailados olímpicos. no canal ladeado de dunas. como era. na boca duma mulher. Depois. adússia. começando a esbater-se em teto amarelado. retraído agora a uma escala milimétrica. ardentemente sentido e comparticipado. achasse rebarbativo. te declarei que nosso sentimento não podia mais permanecer tácito entre nós. quando saímos de lá. depois em velocidade para a Barra da Tijuca. o crepúsculo. te defini o fenômeno que motivava tal estado como um processo só comparável ao mistério do esconderijo. pela praia. dando saltos e arremessos. como na Heroica. apenas um niilismo de blackout. empreguei um termo. até o velário do dilúculo lhe aderir como uma tenda cor de sépia. nossa tagarelice era um bailado mecânico. as pernas e os pés se fundindo na cornija do penhasco. Tanto que. Chamei-o de plenitude. que decerto. pela avenida Niemey er adiante. lilás. na majestade da pedra da Gávea. recortada pelas sombras. a baía tomou aspectos horizontais de lâmina de aço. vimos que tal paisagem se embuçara numa estamenha de quaresma. a minha suave amiga incorporada ao conjunto de cá como uma estátua. ou lá o que fosse. abstraindo o fervilhar da iluminação conglomerada lá embaixo e ao longe. dados os empecilhos sociais e morais.horários. — Lembras-te? Naquela tarde que já parece tão longínqua. o céu. Mas. Agora. Na verdade. Busquei-lhe uma nomenclatura já que o nome “amor” para nós era tabu. até ir apresentando uma opacidade grossa. Passando pela mesma paisagem que hora e meia antes nos parecera um tecnicolor panteísta. Desmaio gradual de luz. Estirados na areia. desligados de tudo. virando uma silhueta única de nanquim desde o Pão de Açúcar até o pico da Tijuca. sendo. E por sua vez. Depois. a amplidão perdendo a transparência. Ergástulo. um allegro con brio. Nos planos de cá do grande vão. esse bocejo da consciência das horas. que tomara antes colorações de laivos melancólicos. depois em concavidade de madrepérola e de nácar. eterno e incorruto. te olhar..º 3. teu ar submisso e ao mesmo tempo diferente em meio à multidão. estarmos vendo as maçãs daquela natureza-morta de Cézanne. porém. Para quê? Não sei. reduzido a uma coisa que conforme disseste. não ferir nem violar nada. E que o amor a que andávamos dando nomes de puro eufemismo. e tu também decerto. A mim mesma me jurei. Mas. bem longe e recuado. Tens que voltar para acolá (estendeu o braço mostrando o cenário de luzes).. pois percebi. não sabem sequer interpretar o adagio assai da mesmíssima Sinfonia n. encheu tudo. voltarei eu também. senti deveras que a atração que nos impulsiona é tão misteriosa que passei a fiscalizar-nos. Com alegria. parecia que podíamos pegar e desbrugar.”? Não afirmei que “não existe nenhum impasse entre nós”.. que “a sensação de alvoroço ou de paz que sinto não se estriba em desespero nem em resignação”? — Disseste. o Rio de Janeiro. junto. ainda assim. na probabilidade duma beatitude de três semanas ou quatro numa fazenda encravada na Mantiqueira. tudo. — E riste de mim.. brejo. Os heróis olímpicos. Tenho medo por causa do que senti naquela outra noite em Paquetá. te chamei. terrena e humana. na hora mais lúcida de minhas reflexões. nós que andáramos aos saltos e arremessos na areia dourada.. onde não sou mulher e nem tu homem.. Para te ver. Todavia não tive coragem de efetivar tal propósito e desejo porque tenho medo. como? Jorge. inclusive nossas almas. Agora é noite. a tua constância. já que meu sentimento por ti não supõe obrigatoriamente estratagemas e embustes ou transferências e sublimações. instintiva. Hoje... pois para amar não necessito de transgredir sanções. Como evadidos. porque para junto de ti.?” Pois não cheguei a afirmar que “aceitando tal restrição que decerto virá a ser permanente. os bailarinos atuando con brio no allegro da Heroica. Dois meses se passaram!. E veio o crepúsculo. esfomeados. não estou aberrando de nenhuma condição corporal. Então voltamos para Copacabana imersos num silêncio esquisito. andar às voltas com problemas cruciantes de consciência. depois: “Somos um todo de plenitude mútua. Vi-te depois na rua Gonçalves Dias. mas inviável e de realidade e eficiência tão abstrata que tendo nós tal riqueza era o mesmo que. estivemos vendo lá embaixo. alvoreci-me tanto com a tua presença..naquela canoa. para o Rio de Janeiro. “Dias depois te falei. Dentro de dois. era amor sim... de três dias.’ Não foi mais ou menos isso que eu te disse?” — Textualmente. não? . que a tal plenitude de que faláramos com tamanha sinceridade não passava de migalha..’ Não foi o que te disse em tom categórico? ‘Acabei por ter certeza de que no nosso caso não preciso nem sequer superar nada.. aqui estão sentados corroídos de treva.. serei eu a mesma que te falou aquela declaração de princípios na duna da Barra da Tijuca? ‘.. Afirmaste. só víamos agora vasa. — E não te disse eu.. que não somente é o amor um mistério capaz de motivar o que já motivou entre nós. — Como?!. Indaguei mesmo se não tinha confiança em mim. se não éramos criaturas para constituir com nosso sentimento aquela filosofia condicionada a que ela se referira certa vez. procurei demonstrar a vantagem de podermos passar umas semanas juntos. a evitar sempre que um sentimento tão grande lhe viesse a parecer tormento. pois nosso interesse mútuo. perguntei quando era que fariam outra viagem distante. decorrera de qualidades idênticas sendo nós incapazes de urdir uma trama que redundasse em sofrimento e em estados intoleráveis de angústia. agora. Que com isso não nos estávamos deformando. — E já que estamos falando nisso.. os encontros fortuitos. que era. para. como é mesmo a tal palavra? Hein. Que toda essa treva aí. lhe dizer que.. isto é... ora júbilo ora atarantamento. Deu-me o braço. com muito tato. Até dias atrás eu era ainda homem capaz de dizer que por ti. — Vamo-nos embora daqui. Jorge. me entra pela alma adentro.... Instei a propósito da estada na fazenda. um alvoroço que por sua natureza é dual. pois éramos criaturas felizes!. não obstante a separação obrigada por severas contingências. — Como?! Na. o quê? Sorri contrafeito. Levantou-se. Achava que era plenitude. se receava que tombássemos na estatística. — Plenitude.. se não tínhamos já. — Pois se não riste.. repeti: — Na estatística. visto termos saído antes sem destino e por isso haver eu deixado o carro a uns duzentos metros da casa. voltamos a pé para a residência longe talvez um quilômetro. em si mesma.... Que sabia eu do amor? Nada.. no comportamento comum de toda gente. como nem sabemos ao que nos levará. finalmente. Não tentei tirá-la daquele estado me utilizando de expressões inversas pois sabia que nada a demoveria de tais raciocínios. por exemplo. Renata. Se somos toda gente!? E com ênfase lhe declarei que almas como as nossas podiam e tinham direito a uma qualidade de comportamento acima dos romances mesmo da vida. devido à nossa situação especialíssima... cumpre que te diga. Ahn!. Por enquanto.. o bem que isso faria a nossos corações e a nossas almas. se não tínhamos já um mundo nosso. apenas recordar e evocar nos momentos de distância. uma alteração sensível em nossas almas. Perguntei-lhe. pela tua paz. Enfim. Parece que por este precipício acima estão subindo serpentes. nossa atração.? — Adússia!.. pela tua serenidade . isto é. de quilômetros. Tenho medo deste chão. ri. ela e eu teríamos que passar por muitos estados alternativos de pessimismo e de euforia.. Que elas já me roçam os pés. Aconselhei-a a não transferir reflexões a nosso respeito para uma escala de aflições. . quer para não importa qual resolução bem oposta. minhas viagens. sentidos. Se me fosse dado aperfeiçoar o dom de que disponho empiricamente como romancista. Não concorri em nada para o que existe entre nós. em que meandros te sentes tolhida ou de que arroubos te sentes tombada. te juro: de . És uma exceção tanto no plano espiritual como no corporal. pois sentes que estás entrando numa sarça. consciência e livre-arbítrio.. Mas. minha função de escritor.. porém. se quiseres. um fascínio. Não te obrigo a nada. englobando todas as características do desejo. provisórias ou duradouras. elegante. Podemos separar-nos num caminho que não tendo sido percurso todavia foi encontro. Mas não podemos acabar com o que já foi sentido. e sim fomos atraídos para um campo imantado. duma solicitação tua será uma ordem instantânea e cega que não precisará ser explícita.. Tanto que se nos separássemos sofreríamos sobremaneira. contra mim ou a meu favor. eu sacrificaria qualquer disposição ou digamos mesmo pretensão não bem especificada. porém. de nenhuma espécie. O menor indício. me tolherá de obedecer-te quer para que eu desapareça. da estirpe mais selecionada de valores femininos. minha natureza me ofereceram contingências várias. — Nada existe entre nós. até que chegou o dia em que sponte propria declaraste que usufruíamos uma plenitude. deixei que manifestasses e externasses teus estados crescentes de sensibilidade. visto como não nos aproximamos para uma experiência onde a lógica nos guiasse como conselheira lúcida. Mas não te posso desobrigar de coisíssima alguma. Acresce que és duma nobreza de sentimentos beirando a perfeição do sacrifício. índole e natureza. caprichosas ou ponderáveis. ao teu coração. Hoje te digo que já ultrapassamos qualquer probabilidade de recuo. desejaria veementemente te eternizar num livro como suma e ritmo de bem e de beleza. E no entretanto existe tudo. nosso itinerário ideal. e até mesmo de chofre. Uma coisa te digo: venho dum mundo onde minha situação social. Pasmo ante a verificação empolgante da criatura que és. que entenderei através mesmo do código mais secreto. mas. a nossa equação. mas confessasses logo depois que isso era migalha. Sim. muito embora quanto a este recalques tua personalidade verídica. Recebi-te como uma dádiva inesperada. todavia. Podemos interromper.. Pasmo só em pensar no que há entre nós. Renata contemplava-me. Jamais.. pois és bela. inteligente. acima de tudo. Mais que isso tudo: porque és tu. mutismos.. Já agora tenho que entrar em dados assuntos referentes não propriamente a nós. Vejo bem que começam a assoberbar-te raciocínios. tens coração. Exerces sobre mim uma febre. inconfundível. analisa o que é que te conturba. Tens temperamento. deparei com criatura da tua categoria humana. sem pressa. Mantive-me durante muito tempo reservado. E tens cérebro. de forma mais explícita.. Uma coisa. Considera bem. deixa por alguns dias de telefonar-me. absorta.espiritual. vivaz. sexo. Compromisso algum. Não motivarei eu próprio desígnio de qualquer espécie. estados perplexos. Pouco depois.mim não sofrerás a menor pressão. tenho que me precaver a estar atenta. Louise Labé. avenida Niemey er. numa grande pausa de tudo. por mais que a velha ama fosse um duende. só pode ser um sentimento do qual apenas esteja a par a onisciência de Deus? “Dispomos dum roteiro: Copacabana. fala. Alice Faehndrich. Retiro dos Bandeirantes. que te quero tanto.. Luiza Schwerin. Foi vestir-se enquanto eu ouvia rádio. ser o teu único estorvo. para não colidir com o mundo. Mas não tardou que começasse a Hora do Brasil. Que coisa mais paradoxal eu. Ipanema. teórico. talvez lhe anexemos Itatiaia.. não tens confiança em mim. — Chega! Chega! Para isso tens memória. ela me ensinava o trajeto. Leblon. Barra da Tijuca. Traçaremos primeiro um esquema além e acima das contingências. não conviria despertar-lhe a atenção com uma visita desconhecida para o jantar. Já que iludimos o mundo. Então. Convidei-a a jantar comigo no centro de Petrópolis. a fazenda Camapuã. Portanto. a vigiar-se por causa do mundo. Jorge. Será que também nós precisaremos nos servir desse sofisma sacrílego? E para alcançarmos o quê? A felicidade ou o tormento? Começa logo esse romance. Edith Bonin. Aceitou dizendo que de fato. Têm uns nomes tão difíceis! Obedeci: — Maria Alcoforado. condessa de Die. Eu colaborarei. sentada ao meu lado no carro. ao menos como incentivo. hein?! Vamos. Então o nosso amor. aquelas grandes enamoradas da última vez que me falaste a respeito de Rilke. porém dispomos de tão raras oportunidades! Daqui a pouco te vais embora e eu fico sofrendo nos sentidos e na alma. menos de aproveitar nossas presenças. restringes-te a ouvir-me. ela a servir-me. Paquetá. enganemos também a nós mediante um contexto no qual o fictício obrigatório inclua o nosso passado real. sem remoer palavras nem pensamentos. e isso porque acima da minha felicidade situo e respeito teus escrúpulos. a condessa Kanitz-Menar. o nosso presente secreto e inculque o futuro até termos coragem de agir. Sim. um programa oficial falando em boias apagadas nas costas tais e tais. Tu poderias e podes transformá-lo em presente imediato. Lou Andreas Salomé. porque és livre. — Tenho a impressão de que os amantes chegam ao absurdo de considerar a Providência cúmplice de seus estratagemas. Entramos na varanda já noite exata. — Quero-te bem e isso não está certo perante os outros. a baronesa Rabenau. Jantamos num recanto. Gaspara Stampa. Ela dominou-se para não responder. a princesa Maria von Thurn und Taxis. — Sorriu de modo ambíguo. hein? . Prosseguimos silenciosos. desliguei. discretamente. não é? Cita-me. tem obrigatoriamente que ser secreto. Petrópolis. D’Oberg. Ambos são lindos. — Riu do nome que estava dando à residência de sua tia Noêmia.. Mas tratam.. Basileia. do mesmo assunto: Tristão e Isolda. não. — Já ouviste falar na biblioteca de assuntos medievais que os Vilhena possuem? — Nem sei quem é essa gente. Bateu-me com o guardanapo. Posso ajudar-te levando Chrétien de Troy es. — Soglio. Falar nisso. o Castelo de Friedelhausen. — Pois sou muito amiga de dona Maria Emília. Maria Gneisenau. estão sendo devorados por cupins. — Apenas admito a Volkart. os cinco exemplares. — . Sidonia Nadherny . Godesberg. Uma tarde fui tomar chá com ela e ao sair recebi de presente uns calhamaços que o casal comprara em duplicata durante as visitas aos sebos de Montparnô em Paris e de Portobello em Londres. a condessa Solms-Laubach. Furnborg. — Escusavas de citar essa última localidade. Tu dizes Isolda ou Iseu? — Tanto faz. o nosso . Valmanara. desde a serra da Bocaina até as Agulhas Negras na Mantiqueira. Muzot. Francisque Michel. cita aqueles lugares por onde ele amou e fez elegias e odes.. que foi onde ele morreu. Gottfried. Irchel.. algumas delas. Pede a conta. não é? — Esvaziou o copo de vinho. Renata considerou: — Arre! Como estivemos intelectuais. Duíno. Já morreram há séculos. até que me tapou a boca. — Pois vou prender- te. — Vou levá-los para Camapuã e os armarei na fazenda feito oratório. Clarimundo e Palmeirim. em seus castelos o andarilho de asas. compraram tanta coisa que só no Brasil deram com as repetições. Gostarias de ter um bando assim. ao passo que as contemporâneas dele foram mecenas de saias acolhendo em seus salões. Capri.. Hollinger. o Valais. Renata fazia mímica de reação crescente a cada nome. Assim me livro deles.. No trajeto desafiou-me: — Já que falaste em tantos lugares e mulheres cujos nomes nem sei pronunciar quanto mais repetir. ou irritantemente intelectualizados hoje! Vamos levar mesmo essa livralhada? Para quê? O novo romance. Nanny Wunderly Volkart. a Mansão Carolath. Quando o carro parou rente à cancela. trancafiar-te na fazenda Camapuã. zangada. ouve agora o que é que vou levar para Camapuã. Lautschin. porque foi a companheira a quem Rilke pediu que o ajudasse a morrer a sua própria morte. Veneza. Béroul e Thomas Bédier. — Cinco só não chegam. sim.. instrumentos de engenharia para uma demarcação lírica. Ganowitz. — Sou todo ouvidos. leva-me até a “mansão”.. As outras. ou cópia desses canastrões? Proibido terminantemente lê-los. somente? Bateu-me no ombro com a bolsa. e meu. Para leitura disporás da minha alma. e entrou. . Basta que não esqueças a máquina Remington e meia resma de papel sulfite.. que vamos esquematizar em Camapuã. será original teu.romance. Redargui com certo atrevimento: — Da alma. quanto mais levá-los.. TERCEIRO CADERNO Fomos felizes em Camapuã Mas o mundo se esboroa sobre nós O passaporte cancelado “Hard labour” . Não regressarão tão cedo. a bordo do Alcântara. Espera um pouco. Fica mais natural.? — Ora.. E na semana passada ainda se achavam na fazenda. entre Marechal Niemey er e Itatiaia. E claro que Carmem não poderia ir por causa das aulas de piano. — Quando. Donati e Camapuã.. excursões.. Já recebera telegrama da chegada a Porto Alegre. Passeios.. Júlia me deu o número do aparelho. — Depois de amanhã. — Muito bem..... indaguei quando ela partiria. Vais fazer o seguinte: telegrafar hoje mesmo para o endereço que te vou dar. Então convidara tia Noêmia a acompanhá-la à fazenda Hortênsia. Os Vilhena foram para a Europa ontem. Assim não chegarás de improviso. Os primeiros compassos do Largo de Händel enchem de otimismo a minha disponibilidade. cachoeiras. Depois que tomei nota. Desse endereço se comunicam com Camapuã. vamos para Camapuã?. Mas o diabo arma muita coisa. — Que gostosura. embora se alegre pelo fato de eu dispor duma fazenda. Com que alegria de adolescente em férias Renata me telefonou já da . É crime esperdiçar a vocação. Renata? Há em sua voz um encantamento envolvente ao explicar de que forma estava tudo arranjado.. agora andas com uma papelada confusa. dar-se-ia o caso do doutor Jorge aceitar? Poderia acompanhar Comandira a Camapuã? — Mas que história é essa de fazenda Hortênsia? — A fazenda de dona Maria Emília Vilhena. Achava-se sozinha havia cinco dias.. floresta. levaste com teu primeiro romance trancado numa gaveta até 1931. E ao centro de perspectiva sonora ouço este convite: — Jorge. Não se dá com integralistas. não te resolves. Há um carro que costuma esperar os passageiros para Itaoca. Claro que tia Noêmia não aceitara pois não podia deixar Carmem sozinha. publicaste um livro de contos em 1922. Para todos os efeitos vou para lá... Escuta: já telefonei para Itatiaia.. irrisório. Tia Noêmia não os conhece... Logo. Preço módico. A sereia dum jornal ulula por sobre os quarteirões. Jorge! Não me decepciones. vou buscar meu carnet. Instantaneamente o telefone toca. e vamos para Camapuã com o fim expresso de endireitarmos esse material todo para um segundo romance. I Meio-dia. Se tia Noêmia souber que essa gente embarcou para a Europa.. — Nada disso. a estrada varava um bairro que mais parecia um arraial. com estímulo infantil. rampas e curvas. no Rio? — Tia Noêmia. Fui em pé. Depois ladeamos uma extensa área onde bosques europeus se inserem em florestas tropicais. até Barra do Piraí donde. sob o revérbero do sol a pino. paredões. Chácaras. A seguir o flanco de matas à direita e um vale sinuoso à esquerda. Pastos. isso sim. que veio ao Correio. porteiras. Ruazinha com lojas e muros. se . Sentei-me ao lado do motorista. no último vagão. caso sobrevenha qualquer novidade. com retângulo de lavoura e copas de pomares e donde.. sebes. Com o nervosismo de ter de vir esperar encomendei o automóvel com bastante antecedência. O motorista pergunta onde deve deixar-me. — Vou para Camapuã. descobri logo uma diferentíssima índia Comandira: de calças e de botas de montaria. com um Ford. Nisto Renata disfarçou entrando para o automóvel. O trem seguiu para Queluz.. não fiz outra coisa senão verificar em cada parada a flecha que indicava o nome da estação seguinte e observar o Paraíba. O rápido partiu superlotado. Os primeiros morros. a Mantiqueira e o quadrantezinho do relógio de pulso. Jorge? Estou aqui há mais duma hora. atolamos na vargem. sentado perto da janela até chegar Itatiaia. pois o motorista se aproximava após haver esperado em vão por mais outros passageiros. ao descer a rampa ao lado do velho armazém de carga. O administrador de Camapuã vem diariamente a Itatiaia. Pouco depois de meio-dia saltei em Itatiaia. foi preciso que um caminhão do parque Nacional nos empurrasse. apesar do carro estar com correntes nos pneus. transpus a plataforma e. cercas. Percebo que sua vivacidade procura chamar minha atenção para a beleza da paisagem. — Tudo bem? — Cheguei anteontem com chuva. um sanatório militar.estação na manhã em que embarcou! Entreguei a assistentes os serviços da minha especialidade e parti dois dias depois de Renata. Ele então me explica que “essa senhora aí atrás” também está hospedada lá. me telegrafará para o Correio do distrito de Itatiaia. — Mas será mesmo verdade. — E. em certos trechos. Sinto o olhar de Renata em mim. Transposta a via férrea. Em casa acharam ótimo que eu afinal sempre me resolvesse a tomar umas férias. até que chegamos a um socalco amplo e opulento. toda uma região cultivada. À esquerda logo no início da subida e bem depois da vargem. Inutilmente procurei ver o cavalo dando. como casal em sala de castelo escocês. Renata sempre acolitada pela finlandesa que nos deixou sozinhos um pouco pois foi ao encalço da criada com as xícaras que tirou do aparador. A verdade é que o fato de estar ali na soleira uma pequena mala valeu mais do que gesticulação. Almoçaríamos diante mas longe um do outro. muito embora. mímica e. descortino a ala que dá para o terreiro: umas quinze vidraças no andar de cima. e uma sombra vermelhaça. Daí a vinte minutos ouvi soar um sino e apareci na sala de refeições. vem ao meu encontro. Aproximo-me. pois tal criatura bondosa entendeu que eu era a pessoa que havia telegrafado.. Água. Nada de toalha ou de flores. O pequeno metal reluzente veio ter às . esperanto. Já encontrei Renata amesendada na extremidade austral. Frios. fato este que foi vaiado imediatamente pelo escarcéu de marrecos e gansos no terreiro. com vidraças de cada banda. no corredor. o primeiro plano vem a mim.devassam lances do vale do Paraíba. prato e guardanapo. decerto o idioma do Suomi ou algum dialeto resinoso da Ostrobótnia. nos polos opostos estavam arrumados dois serviços. — É necessário disciplina em tudo.. salta. constando cada qual de talher. o carro entra numa alameda. Dou então com a fachada estreita duma casa antiquíssima. com ar de campônia europeia. Pago ao homenzinho a minha quota. com ademã de estalajadeira do Kalevala. abre a portinhola para “a outra passageira”. E não entende uma única palavra do que lhe digo. eu com ares de estrangeiro perdido em cismas. Saudamo-nos com discreta reverência. num gloterar pitoresco de miados. O motorista para o carro. Uma copeira corpulenta. começou a servir-nos. indo de lado a lado da casa. Por fim o carro percorre uma estrada interrompida de vez em quando por porteiras e mata-burros até chegar a uma espécie de esplanada. Uma peça enorme. Três vidraças em cima. Legumes. Renata desaparece. umas dez janelas e duas portas ao rés do chão. Então. Canja. mesmo em não dar azo a que gente dum mundo desconhecido tire ilações. assisto a Renata pagar a sua — que é o dobro. Mamão. Renata empurrou com propulsão elástica o descanso do talher na minha direção. Não tardou que irrompesse da porta da copa a rubicunda Aimo que se pôs logo a explicar entre suspiros e gestos que desejava apresentar-me a outra hóspede (pelo menos foi o que me pareceu). Todavia. copo. Transposta uma curva em rampa. isso durante meia hora de cerimonioso respeito. Então fiz uma saudação profunda à desconhecida amazona. Duas janelas embaixo. ida e volta. evidentemente me cabia a ponta boreal. como compete a hóspedes cosmopolitas. fôssemos os únicos. agarra na minha mala e a leva para a porta. ladeando uma porta imperial. segundo mostravam aparências e realidades. junto às vidraças. Mesa capitular ladeada por dois bancos compridos e uma cadeira em cada ponta. em rotação. mais que depressa. aulidos. Ganhei um quarto no sobrado: a segunda porta. Carne com batata. bufos e arrulhos. acendi-o. aos fundos do terreiro se alargava. soletrou alto os nomes: — Balada. mas alhures e em outros tempos.minhas mãos deslizando como um patim. E depois me acompanha. Palmgrem. Estávamos tomando café quando irrompeu pela sala adentro uma figura pitoresca de médico ou pastor protestante de romance de Kilpi. Acompanhei um regato ladeado de lajes. ambos com muitas mesuras se retirando para a colônia lá entre o laranjal. lançando uma olhadela para a copa e outra lá para fora: — Fica observando daqui da vidraça. Depois veio a mim. viu que era um kantelê. foi para junto dum consolo onde pôs a girar num gramofone arcaico um disco cujo som parecia de lixa: cuidei que se tratasse de onomatopeia de clepsidra. Toivola repeliu solenemente os dois nomes. inclinou-se para guardá-lo. aqueles rolos eram primitiva máquina de passar roupa. Fui ter a uma espécie de rotunda em nível bem mais baixo do que o terreiro e sombreada por mangueiras matriarcais. Eu fiz o mesmo. em certas estampas. e cujas copas quebravam a intensidade do sol a pino. (Nunca mais os veríamos.. rente à escada da cozinha em cujos degraus havia ao sol uma exposição gárrula de crianças. o mesmo fazendo eu. Alguma dessas máquinas de supliciar escravos. conforme verifiquei dias depois. Em resposta. já ladeado pela consorte... com margens de pedra. Renata ergueu-se. desejou que eu me sentisse ali tão bem como em minha casa. enclausurando-os em parêntesis com as mãos que depois passou a esfregar enquanto recuava. Saí pelos fundos. O chão estava coberto por uma camada de estames. se já passeara. Renata disse seu nome e estendeu a mão. perguntando-lhe em português passável se estava gostando da fazenda. articulou o nome. Não. onde duas mulheres lavavam roupa. tendo apenas aos fundos não sei que esquisito instrumento de madeira. Pohjola. Renata o suspendeu nas mãos. . antigamente?. cachorros e gatos. — E acrescentou. quase vazia. atravessei uma espécie de abóbada nuremberguesa.. Que inefável trecho microscópico de porto fluvial! Logo descobri os degraus e a rampa por onde Renata descera. Dito isso. Foi logo prestimosamente cumprimentar Renata. o bom pastor levando um cordeiro.. Quando me vires no terreiro presta atenção para onde vou. Um quarto de hora depois a vi atravessar o terreiro e descer uma rampa sumindo por baixo de grandes copas de arvoredo. não agora nem aqui. cimentada. Dir-se-ia uma clareira para quermesse e representações bucólicas.. Enchi o cachimbo. Toivola nos apresentou efusivamente. impulsionei o meu que lhe chegou com ímpeto de bobsleigh. Levava aos ombros uma rede colorida que segurava como. pegou em outros dois — só havia aqueles três —. postas ali em círculo. Ao ver-nos perto prestando atenção no disco. Toivola. desci para o porão. samambaias e tinhorões e cheio de estribilhos mas que depois.) Quando o disco parou. Levantei-me. amarrava a rede nos dois troncos mais próximos. florestas. de olhos fechados. excursões. de olhos fechados. Obedeci pressuroso. levíssima. E. Comandira. através do riacho.. ainda bem que as argolas não me machucaram. não tem ares arrevesados e. por conseguinte. de noite. instala a tua rede em seguida à de Comandira.. daí a segundos estávamos estirados. E. manter ar de espião internacional. mãos atrás da cabeça.. de botas e de calças de montaria. Dobaré.. decerto. — Mas. e assim. será somente para de noite. durante as refeições. E era limitado em cima por um paredão com trepadeiras e embaixo pelo arroio que ali se alargava em curva sussurrante.. como é que vais transitar pela lama nas horas das refeições? — Assim que uma das Kalmar me contou que na véspera haviam matado uma urutu no terreiro escolhi imediatamente a casa delas para esta temporada. além disso. de fechar a janela do teu quarto ou então de não acender luz. conquanto esteja sozinha.! — Trouxeste a máquina de escrever? Uma resma de papel ofício? — E tu trouxeste aquela coleção sobre Isolda? Teu quarto. para uma distância encoberta por vegetação. qual é? A primeira porta. sei o nome de tudo quanto é lugar bonito. não disseste que eu viria para aqui a fim de pormos em ordem meus papéis e combinar contigo o meu segundo romance?. Fiquei no bungalow das velhas Kalmar. escuta: trata.. cachoeiras.. duas redes. disfarçava o sorriso. Jorge? Não respondes. isto é. Logo. aceitará! Saiba o ilustre clínico que já andei vendo a coleção de postais da região. de ímpeto. De dia estaremos juntos realizando passeios. E. Estás ouvindo. e andei a cavalo ontem de manhã e de tarde.pistilos. cada qual em seu palanque. tratei de desvencilhar-me. O tronco número 2 prendendo a cabeceira da rede de Comandira. — E apontou. a rede sempre oscilando. — Mas. no corredor? — Meu quarto?! Então cuidas que eu ia ficar na casa-grande contigo? Pois sim!. Jorge? Amuaste. e os pés da rede do Dobaré. e foi então que vi que era uma segunda rede. Vi uma ponte feita de troncos e cipós. Não te aflijas. natural que um cavalheiro convide uma senhora que.. Quando me aproximei ela jogou na minha direção qualquer coisa que me cobriu a cabeça. o pico das Agulhas Negras. e se chover. Jorge? . também já não há mais motivo para sentarmos longe durante as refeições. olhando-me (chegar) por sobre o ombro. civilizada. E Comandira. estradas. E as duas redes rangendo. havendo passeios. pólens e corolas com tons entre róseo e cinzento. Três troncos. — Vamos. já visitei as famílias todas desses finlandeses. falando baixo: — Não precisas. O Toivola já nos apresentou. Aliás. balouçando vagarosamente enquanto caía por sobre nós e no chão uma poalha tênue. fui para junto dela que. Vimo-nos numa rampa gramada. queixos coriáceos. eu apreensivo. Quatro gansos. Renata estava parada no centro da ponte. enveredou para a pontezinha. E logo. um trator. A relva. fitou-me bastante. fumaças de chaminés. Renata escancarou os olhos. esfregando as mãos. passamos rente a um telheiro onde uma carroça. troncos e raízes desviavam a correnteza. acompanhei-a. Jorge? Ouviste. rugas de sibilas. o paiol. telhados de residências marginais. E. nas costas. cruzei as mãos sobre o peito. caminhando com as mãos juntas. E então se abriu diante de nós. com bochechas reentrantes. como fascinadas. tufos de plantações e a fibrilação do ar. Um esquadrão de marrecos seguia em diagonal. o céu. decerto vai para o seu aposento na casa dessas tais Kalmar”. no pomar. E. corri para lá. O sol enchia aquilo tudo de fulgor. Dir-se-ia que tinham sido borrifadas de cinza. Renata calada. pareciam o desenho colorido da primeira caixa de chocolate que me foi dada de presente na infância. a estrebaria e o curral. agitou-a no ar. pulou para fora da rede. cheio de areia fulva e de seixos cristalinos. formavam remansos em dados trechos. mas confiante. Renata cortou uma vareta. Renata prosseguiu. mas telas de Bosch: seres humanos retorcidos. E. faziam estardalhaço como dando ordens de manobra. de fato. sentindo o riacho à direita e a lavoura à esquerda. com lajes aqui e acolá. Renata virou dando um uivo mais tirolês do que caiapó. como oficiais. sorrindo por entre gengivas roxas. Pinheiros com seus galhos que nem asas fechavam a esplanada. fiquei a observar o leito do córrego. Jorge?”. os galhos em varas. Depois. um cachorro dócil. Jorge? Não é mesmo. Continuei na minha rede. olhando para as águas. Ao lado direito se adivinhava o percurso do riacho. Levantei-me. cheia de pereiras despidas. utensílios de lavoura. ameaçando-me. cortinas nas duas janelas. era cortada por sulcos por onde desciam regos de água. e metidas em antiquíssimas roupagens das dinastias Rurik e Oleg. Os pinheiros formavam profunda alameda. Que doce sussurro! Lajes. fechei os olhos. sussurros. ronronando. começou a fustigar um arroio cuja água espadanava. amansavam-na. mastigando uma pétala que colhera. vieram ao encontro de Renata como se esta fosse a princesa Helga ou a rainha . pensando comigo: “Zangou-se com essa história da Lambeth. surgiram duas velhas saídas não de ilustrações dos contos de Andersen ou dos irmãos Grimm. narizes de sibilas. apoiei-me na “balaustrada” de cipó. Metemo-nos por ali adiante.. estreitos arroios. trepadeira.. uma varanda. Chegamos a uma espécie de paliçada que uma porteira fechava. uma charrua. — A Lambeth é que termina sempre as frases perguntando: “Não achas. Na quarta ou quinta. prosseguimos. estribilhos e rimas de água. a todo instante interrompida por terrenos com casas. cuja perspectiva mostrava o chão. mas logo os reabri. Cancela. profundo. tudo cantando. criação. de todas as bandas. Nossos pés pisavam folhas farfalhantes. um caminho reto. logo depois da escada. verde e dourada. já agora ambos indiferentes a qualquer curiosidade porque na tarde gloriosa. parando a contemplar a serra violácea batida de sol. cujo único representante visível era a criada que durante algumas horas. A verdade é que daí a pouco as velhas falavam e Renata fingia entendê-las e até respondia. cama. fomos rodear o passeio de cimento que marginava o casarão. gabava as flores. não compreendia como era que Renata tivera a coragem de hospedar-se ali. Se falares mais uma única vez nessa tal Lambeth te entrego àquelas velhas antropófagas. admitindo-as apenas como um gradual brasileiro. o armário com o espelho. o café.. Mas Renata voltou. Incumbir-se-ia. . subimos para o terreiro. o chá e o jantar após varrer e pôr em ordem os cômodos. azul. Renata entrou na primeira porta do corredor.) Distraidamente nos erguemos. e eu fui para o meu quarto. Kiev e Pskov para envenenar os Jorges petulantes daquelas bandas e épocas! — Está bem. inclusive. o licor de nêspera. Ela reparava e compreendia a minha decepção. o corredor. Na ponte. de receber a conta quando nos fôssemos embora. de mato e areia. Mas tens coragem de dormir com estas bruxas e deixar-me acolá no casarão mal-assombrado? — Desamarramos as redes. Quando reparamos estávamos seguindo pela margem dum rio cheio de pedras e espumas. tão avós! — Pois sim. furioso. nos servia o café. tudo tinha riqueza de luz e sombra mas nem sequer uma alma viva a não ser nós. sentando-se num banco da varanda. duas cadeiras. Renata dignou-se dizer-me: — Ora. por cima da correnteza. as galinhas. Eu olhava lá para dentro. saímos.. aquelas e esta numa algaravia fanhosa. Renata largou os livros em cima dum peitoril.Heira. trabalhava e residia a colônia finlandesa. o almoço. o porão. muito bem. Tão hediondamente feias mas.. eu as levando nos ombros como um pescador. — Mas não são tão boas. fechou a porta. a escada. onde os pomares e as lavouras se sucediam. por haver acreditado naquela invenção de aposento no tugúrio das Kalmar. o terreiro. dentro de estrito anonimato e sorridente silêncio. Foram velhas destas que “eles” levaram da Uppsala para Bizâncio. Mas quanto às gorjetas semanais teria escrúpulos e cerimônias. e tão respeitosas para comigo como se eu fosse Olavo ou Ragnar. Lá embaixo e dos lados. Nunca mais falo na Lambeth. enquanto uma das velhas foi fazer café e a outra foi buscar uma garrafinha de licor que nos serviu. uma mesinha. eu fiquei parado com as redes nos ombros. Sentamo-nos numa laje.. Novgorod. Renata não me apresentou sequer. olhava-me com um triunfo zombeteiro. (Tomamos conta do casarão e do terreiro. vendo lá dentro sua mala. e sob aquele vozerio bucólico começamos a discutir e a organizar o método e o enredo. me tomou as redes. Um quarto de hora depois. tínhamos que saber bem um do outro. A seguir. meu quarto aceso! — A instalação não tem comutadores. todo o entablamento. a arquitrave. Banhos. Jacarepaguá. Dão o sinal cinco minutos antes. Então tomamos nota. Excursões pelas matas. Paquetá. telefonemas. reescrevendo-o em outro papelucho. Voltamos para a fazenda já na hora do crepúsculo. emendamos apontamentos. para assim formarmos uma atmosfera de analogia. como era que eu queria escrever um livro nosso se afinal de contas Paineiras. Copacabana. — Olhou para o corredor. Petrópolis. Jorge! — Por quê? — Pois podes estar certo de que o teu quarto só falta andar sozinho.. Na . Jantamos juntos numa das pontas da grande mesa. riscamos coisas. alterávamos tudo. sua morfologia evoluindo gradualmente.. Às seis e meia a luz se acende nas lâmpadas que não estão distorcidas e às nove horas a luz se apaga sozinha. Escalada aos píncaros. até que me veio um nexo que expus com entusiasmo.. Enquanto Renata dava uma risada. o friso e a cornija. então perguntou: — Tua vidraça está fechada? — Está aberta. pus em cima da mesa a ficha do meu segundo romance. de afinidade. Passeios a cavalo. — Homessa. procurando um desfecho nunca atingido. De fato. sorridente. porém. guardando-a depressa na minha pasta. — É o aviso. o fuste. ajuntando os livros. vagarosamente começamos a idealizar como haveríamos de passar aqueles dias ali em Camapuã. revirávamos os fatos. Já o sol descambava quando. — O aviso de quê?. Ela. Conversas sobre as nossas vidas. enfim. é o aviso! — disse Renata apanhando a papelada. Depois. Em breve. as situações. Mas. cinemas. pois era evidente que isso de romance tinha muito de gestação. Jorge. corri para o meu quarto.. a súmula de cada capítulo e um esboço de itinerário. Por volta das nove horas da noite. — De que a luz vai apagar. o pedestal. Aqui só tem luz elétrica até às nove horas. teu quarto está com a vidraça aberta? Credo. Renata na cabeceira nos servindo. o capitel. sintetizando num cartãozinho onde a letra de Renata traçou oito linhas constituindo o soclo. Ouvimos os três discos. Combinamos que todos os dias. Barra da Tijuca. Somente no céu as constelações pareciam vidro moído. Sim. vi luz pela bandeira da porta. Visitas ao parque Nacional. tudo isso era o presente apenas? Certo.. ouvia. por tão linda estrada rente ao rio. fizemos um resumo que fomos cortando. eu. concordava. ao lado. Quando acabamos. sedimentaríamos o assunto total. após troca de opiniões. a escuridão lá fora era de breu. a luz piscou três vezes. refulgente. Por quê? — Olhei para o meu quarto. a base.. começamos a escrever numa folha de papel os títulos. exploramos algumas folhas dos cinco livros medievais. Fotografias. percebeu que o meu quarto estava aceso. sob a lâmpada muito fraca. avenida Niemey er. onde houvesse cachoeiras. íamos entornando pela janela abaixo punhados e mais punhados de besouros. se sentava também lá no peitoril da sua janela com os ombros agasalhados. — Como vai. dispersos. seus olhos tendo às vezes um luaceiro. Só restavam alguns. Comandira entoava canções de embalo das índias do Pará. E deu em varrer meu quarto. nas paredes. entortava o rosto a ouvir os grilos e os sapos. Renata não se achava mais ali. mostrava-me as estrelas. Sentei-me no peitoril. perto. Sombras compactas. Dei em agarrá-los.) Velamos a noite e velamos nossas presenças esculpidas em sombra. apavorado. o queixo oval emergindo da sombra. Centaurus. no assoalho. se fosse piloto poderia de vez em quando calcular o tempo pela rotação dos astros que por cima da escuridão absoluta tinham uma nitidez como jamais vira em nenhuma outra noite na minha vida. para a amplidão. Peguei no travesseiro. resguardado por um casaco de camurça. assobiei baixinho o começo do Largo de Händel. na cama. eu veria quase em relevo na chapa negrejante da noite côncava centenas de constelações me contemplarem dizendo silenciosamente seus nomes solenes: Libra. cheios de antenas vibráteis. na mesa. enquanto ria como criança. no assoalho. Com os livros fazíamos pás. outras vezes ficando opacos. amontoando aquele enxame. sentado ali no peitoril. no peitoril. Estrelas. (Só anos depois. tateando. aerodinâmicos. sorria. ambos postados ali naquelas duas janelas até quase de madrugada. soergui um pouco a vidraça. para o terreiro. e não apenas um reflexo daquele vidro moído lá em cima. Hy dra. dei em apanhar os últimos. zumbiam motores microscópicos. Nove e um quarto foi a hora que vi no meu relógio quando apaguei a vela. na mesinha. porém. Fechei a vidraça. Em dado momento olhei outra vez para a porta. Crux. tornei a fechar e. no travesseiro. aqui e acolá. Grilos. nas margens do Araguaia. Scorpio. correu para o seu quarto. muito amarelenta. como órbitas vazias de esculturas . Não tardou a reaparecer. Olhava para mim. Agora. luzidios. as mãos no colo. logo os largando. Trazia uma vassoura que fora buscar lá na copa. E o casarão ficou imerso em treva. bati-o várias vezes de encontro ao peitoril.. Então peguei no chapéu onde antes estivera jogando o resto dos besouros. Mas outros entravam pela janela. Capricornus. Outros. fui sacudi-la do lado de fora da janela.. Noite plácida. Puxei cautelosamente a colcha. Sextans. sacudi tudo fora. com a cabeça bem para trás apoiada na esquadria da janela.cama. os ombros numa atitude plácida. Nisto a luz começou a esmaecer. Renata largou a vassoura na minha mão. Renata apareceu na porta. Dobaré? Está bonzinho? Como vai passando?. Renata daí a instantes. fui ter à mesinha e acendi a vela. E seu olhar tinha um fulgor que era dos sentidos e da alma. em contemplação recíproca. ou os mesmos. até que sumiu. no peitoril. Sapos ao longe. negrejantes. entramos no trecho conservado pelas turmas do parque Nacional. ou sairmos pelas portas. que possuir vida. pois em tal caso já não seria romance. Para isso se nos ofereciam duas opções. barrancos. Corremos cada qual para o respectivo quarto. treze fechadas. disse que seria bom já irmos ela de maillot sob a roupa e eu de calção de banho. ou nos jogarmos daquelas janelas abaixo. mas algo bem à maneira do norte. curvas. Fiz o mesmo. Lado a lado.. Renata. e duas abertas. banhada de fulgor e de treva. pedi-lhe que nos arranjasse dois cavalos com boas selas. leite e açúcar. ou se detêm na fronteira da abnegação. passamos em velocidade. Esperei ainda um pouco. taludes. Depois sumiu. Friagem na noite. na parede de quinze janelas. ovos. e sim uma apresentação humana das contingências do destino. sem quaisquer problemas. não deve ser absolutamente um hino de euforia. surdas. Não um petit déjeuner cosmopolita. Eu perguntava à noite. consultando os astros. Meia hora depois fui falar com a senhora Aimo. Diz-me que o meu romance. a mim e a ela própria. só comparticipando do café. tínhamos. Rijas traves temperadas e batidas na bigorna e no fogo da consciência. Renata despediu-se estendendo o braço. . Levantei-me cedo. tanto na parte autobiográfica como na parte lírica. Nós. cada qual na sua moldura. a fácil. fustigou e esporeou o animal que saiu em disparada num galope vertiginoso. misteriosas. Depois dum percurso até Itaoca. os cavalos briosos ficando daí a uns vinte minutos com escuma nos peitorais. em retas. ou a difícil? Porque sabíamos que as portas e as janelas tinham grades. Logo. no terreiro. que cuidei ainda em seu quarto. de repente surgiu das bandas da cozinha. Que não deve ser uma história de duas vontades de amor se realizando na acepção comum. e então Renata se soergueu um pouco sobre os estribos. Ou os dois seres se estraçalham ao tentar transpor a circunvalação que rodeia o burgo. E por que motivo era que não tentávamos uma das duas soluções. por exemplo. à amplidão. com o mesmo intuito. Que devo escrever um livro a respeito do estorvo que obstrui a passagem para a felicidade. ao longo de troncos. ali estávamos como telas. mas tão só biografia de dois seres pertinazes e teóricos. no gênero maizena. cercas e abismos. e me estirei na cama. Ela permanecia séria. Se continuássemos sempre como telas emolduradas seríamos meras abstrações românticas. como criaturas humanas.. rampas. se aqueles que se amam e não têm coragem de romper com as amarras seriam desfibrados ou heróis.antiquíssimas. entrou na sala trazendo uma bandeja com um pequeno almoço e me explicou ter sido feito por ela. abaixando a vidraça. Entusiasmou-se. raciocinando em silêncio. Falei-lhe do nosso passeio a cavalo. Assistiu à minha refeição. explicando onde era a descida e recomendando cuidado. agarrando-nos a liames. Mais! Vira-te para a mata! Resisti à ordem terminante. Já desde muito tempo antes vinha até nós aquele bramir agradável que emerge das cachoeiras escondidas. Um preto calceteiro segurou nossos animais. — Jorge. amparava-se em mim. Tratamos de descer mais. só de maillot. Descíamos por entre túneis de galharia e por entre lajes. Daí a instantes descíamos uma escadinha de madeira dando para o mato. inclinadas. e estendeu as pernas. e ressurjo hediondamente. O espetáculo plástico da água. equilibrava-se. Renata ria. Então. Corro para a espécie de gruta rasa onde vejo suas botas. seu jato permanente e translúcido escavando paredões graníticos ladeados por uma flora exuberante. Sofreamos os animais e prosseguimos devagar. e nisto dou com ela saindo duma espécie de nicho ou caramanchão. esvaziadas e ocas. as pedras e a cachoeira. E eu. Lá embaixo havia uma verdadeira piscina natural rodeada de árvores que assistiam. pelo atalho da margem em declive abrupto. dar pulos. Cautelosamente nos aproximamos olhando para a golfada da lâmina que se despejava com alarido. — Pronto! Tiro as mãos do rosto. virando-me para todos os lados. mostrando as botas que lhe puxei caindo quase quando as duas. E agora víamos por baixo e depois da ponte o rio se despejando em três quedas. veloz e lânguida. sua flexuosidade ao mesmo tempo garbosa e indolente. abaixava-se. me ficaram nas mãos. de calções. Acabei obedecendo. sua beleza dinâmica. troncos e arestas. não a vejo. E da borda desse bojo a água se despejava como jade líquido em cortina indo cair em outra represa clara. tapa o rosto. Renata sentou-se na pedra. mais que depressa. ficou admirando o cenário. sua roupa. Espio em volta. Ao cabo de meia hora de marcha chegamos a uma ponte. Renata se sentou na pedra batida de sol. como um náufrago prévio. no musgo traiçoeiro e nas folhas emboloradas. assumiam efeitos magníficos que atraíam por causa do perigo. contemplava a floresta e o céu. Por fim chegamos a uma pedra imensa que avançava por sobre a cachoeira como um bastidor maciço. em pé. ainda assim escorregando no barro liso. pois não ouvi ruído nenhum de mergulho. . firmar bem os pés. e amarrou as rédeas em dois troncos próximos. Por um atalho alcançamos a segunda escada desmantelada sob um dossel de folhagens e tivemos que nos agarrar a troncos. conversando e ouvindo o ruído dum rio invisível ao fundo do vale que marginava a serra. ouvindo a cachoeira arfar numa orquestração contínua. do espetáculo de libertação contínua alcançada só através da luta e do arremesso. Renata e a serra. até chegarmos quase ao nível da superfície da piscina. abro os olhos. segurando cipós. procurando-nos. respirando forte como através de brânquias. e depois nos atiramos em tudo quanto é direção. mergulho de olhos abertos perscrutando primeiro um fulgor macio e mole. sumindo. volta a correr e atira-se. não num precipício. escancaro os olhos e vejo o corpo de Renata sumindo e irrompendo uma porção de vezes. como três folhas apanhadas duma árvore e postas num avental. em sucessivas metamorfoses de oréade e dríade. ora em disparada frenética. Nós também como que adquirimos outra vitalidade que se infiltra em nós vindo dum panteísmo antiquíssimo e do qual nos lembramos como duma mensagem desde muito esquecida. discutindo-as e programando-as. integrando-nos em seu mistério. . despenco. estendo as mãos.. ora vagarosamente. Depois. com as mãos esticadas em ogiva. para depois nos procurarmos aos repelões por entre risadas. fender a superfície. começamos a rir.. Às vezes ficávamos estirados no terreiro. logo nos soltando assim que varamos o bojo ressoante e translúcido. Subo e me vejo perto de Renata que foge rindo. espumas e fulgores. folheando as seis únicas páginas do romance. Renata a gritar o meu nome lá de longe. depois um recesso baço e por fim opaco. Subo radiante. diante da pasta aberta. sinto-me sorvido por leis indomáveis. Outras vezes em plena mata depois do almoço numa observação itinerante e minuciosa da natureza. emergir longe. Lá do centro ondulante ela me apupa. luzidia e flexuosa. Enquanto me espera. verifica que podemos mergulhar sem perigo. mas entre bainhas fofas. Lanço-me na sua direção. Vinte dias e vinte noites de altitude. corremos para a margem. postos sempre no primeiro plano duma perspectiva estereoscópica. vejo a água subir enviesadamente. subimos pelo atalho. dou uma volta em arco. Renata aproxima-se da beirada. até que Renata. com a cabeleira se abrindo. se distende como um fuso. Corro. atiro-me no ar. abraçando-nos. Vejo seu corpo trigueiro e esguio soltar-se da rocha. a gesticular. entre troncos e lajes. desce ao sabor da correnteza e se entorna. sacudo a cabeça. sua desenvoltura me atiça e me chama. numa sensação híbrida e anfíbia. de comum e tácito acordo. seus olhos e seus dentes brilham. Recua. mergulhando. Tomados de júbilo afoito. num mundo de rampas verdes e de águas sussurrantes. chegamos outra vez ao jorro da cachoeira e nos atiramos juntos. índia legítima. emergindo. fugindo um do outro ou em perseguição. bem juntos. e meu corpo se amolda à água. Ou a cavalo pelas estradas e campinas. pelo rebordo da piscina abaixo. como golpes firmando a minha individualidade. entre as árvores. Juntos nos aproximamos do jato cuja parte central nos esbordoa os ombros e nos vence. E de súbito me vejo no centro dum redemoinho irisado de bolhas. Vista dali. nadando. a paisagem parece coisa muito diferente. e eu a ouvi-lo em ecos dentro de mim. estuda bem o fundo permeável. vinha a treva. dizia meu nome bem no meu ouvido. Renata readquiria o júbilo. Então falava muito da infância e da adolescência. Bonita. ali naquela mesa sob a luz frouxa. confusos. Íamos pelo corredor. Minha contingência de homem me obrigava a devaneios misteriosos. Piscar de lâmpada amarelenta. sua fisionomia se opacificava. deitada imóvel. como no parlatório dum cenóbio. anulando em cilício a liberdade de cada dia. ou ficava a olhar para as cambaxirras que meio ariscas vinham vasculhar o tapete de poalha de estames de pistilos. ela se apoiava na sua porta. Sempre. A luz se apagava. e ali nos quedávamos. ela encobria o rosto com uma écharpe e cantava coisas de embalo. Eu me apoiava no corrimão da escada. mas me repelia ante o menor indício de . De noite. A luz esmaecia. Depois do jantar. já não tínhamos a desenvoltura de dias antes. com os dedos em nós. dizíamos qual o provável programa da manhã seguinte. Mas certa noite ela não apareceu na janela. recuperava o ânimo ante o sortilégio da mata. como prisioneiros submissos. a sua voz tomando acentos melancólicos. como um apelo distante. Estirados na relva vendo a mata no plano em declive e ouvindo a harmonia gárrula da água descendo por toda parte. ela se desvencilhava. Grudávamos o rosto no vidro. Ali na mesa comíamos calados. sofrendo a atuação de leis ignotas. desinserindo o contato das horas diurnas. elegante. Corredor. indo à pressa para uma distância ilimitada. num diálogo de percussão. os corpos como estátuas resguardando as almas em vigília e em vigilância. Era como se de dia estivéssemos livres mas de noite separados em dois cômodos de senzala. fugia para o quarto. Bati na parede. ela se transformava. Tábuas. Uma vidraça rente à escada. cerrava minhas espáduas com os braços tensos. Quando na rede. Dei em notar discreta preocupação em seus olhos e nos traços da sua fisionomia. víamos para lá da treva de breu a história sintética e trágica das constelações que seguem distantes milhares de anos-luz umas das outras. beijava-a. Eu me jogava em seus braços. muito esbelta e expedita. fugindo de qualquer coisa ou indo verificar qualquer dúvida longínqua. Mas o crepúsculo nos trazia como um capataz carrancudo. Assim que a luz piscava três vezes. naqueles dois peitoris. o passeio. Não tardou que aquele júbilo dionisíaco de Renata se embaçasse num atarantamento precavido. ela que durante o dia era vivacidade e triunfo. a excursão. Portas. Daí a minutos estávamos cada qual no seu peitoril. — Vamos andar a cavalo? E daí a pouco éramos dois viajantes simétricos rente a barrancos e paredões. começamos uma espécie de código Morse. enquanto a imaginava do outro lado da parede. à hora em que o crepúsculo era uma espécie de aviso gutural. fechava-o. Renata pendia a cabeça em meu ombro. tomava-se duma loquacidade estratégica. Nessa tarde. fustigou o animal e fugiu gritando o meu nome. Jamais estatuíramos um prazo para aquela amostra de felicidade. pelo atalho acima. com os joelhos em hélice. Depois montou a cavalo. Voltamos no vigésimo dia à cachoeira. decerto com os olhos voltados na direção do código crispante. política. atirando-se. e ali no centro reboante. comeu com apetite. e subia em direção à ponte. com a fisionomia reluzente. transida. E eu a via em disparada. Quando o sino tocou para o jantar ela surgiu. não conseguindo deter o impulso que nos levava. natural. novilhas e bezerros que bebiam. afugentando uma vaca. estou com medo de mim. Perdi o equilíbrio. estirada na pedra. falou sobre o mundo distante. Ficamos ali em silêncio.conluio instintivo ou consciente... Nenhum de nós parecia saber.. Meu quarto era masmorra. pagando com o castigo da treva e da vigília o preço do dia claro e livre. Carmem. bebi água. e perguntou que dia era. Já na segunda semana arquivávamos o romance reduzido a seis folhas. depois voltei ao terreiro. do ar para os degraus da escada. Nadamos. fustigando o ar. como num sorvedouro. — Jorge. Vez alguma faláramos em ir embora. Abracei-a em plena escuridão: diante da . Não adiantava eu percutir a parede. conversou sobre música. afundei. porém. Quando a alcancei. ignorando tudo. da alma. ansioso e sufocado. se vestia. incisiva. rolando. Soerguemo-nos ao mesmo tempo.. Quando a luz apagou não nos levantamos logo da mesa. subiu. ela me olhou de modo penetrante. tia Noêmia. vimos na borda da piscina o flanco vertical da penha lisa por onde a cortina da água descia. emergi. No terreiro. anuindo ao apelo certo do instinto. desceu. com metade do corpo dentro d’água. tombamos. alguns minutos depois. mas Renata não deixava. Renata não respondia. do outro lado. entregou-me as rédeas. da consciência. serviu-me várias vezes. ambos ofegando. me puxou por sobre si. E as noites passaram a ser a contrafação atroz e irônica dos dias. permanecendo acolá. até que. E de repente fomos aspirados pela correnteza. Olhou-me. pelo corredor. quis desvencilhar-me um pouco. balançando-se em cipós. e. beijando-me o rosto e os cabelos. fomos sair lá embaixo na margem estreita. como náufraga num litoral de penhas. bracejando entre espumas e sulcos. como a censurar qualquer coisa. em pé. nadando agora dum modo esquisito. Fiquei a andar pelo porão. puxou-me para a água. e podendo atingir uma veracidade consciente e voluntária de vida. distanciar-se cada vez mais de mim. E ela ria dum modo frenético. suspensa. contornando curvas. me abraçou com um vigor convulso. ela disse quão inefável seria vivermos longe das cidades. Não ouvi o menor sinal de movimento no seu quarto. cantando. ignorando até mesmo um certo travo interno. tem feito muito calor. E ruídos. sentou no peitoril. o seu quarto estava fechado. vai pegar a tua capa enquanto eu entro.. Pela quarta vez acendi um fósforo. Ficou de trazê-la na hora do café. entrei. A vidraça era um livor tênue. certificar-me. Teria ela descido.. amanhã cedo. visto eu haver demorado um pouco? Passou-se mais de meia hora. bati na parede. pois a luz da vela do quarto iluminou o corredor. Nossas mãos lutaram umas por cima das outras. sacudindo-me com dulçor inefável: — Jorge. para ambos. Dez e um quarto. Três vezes acendi um fósforo para ver as horas. Resolvi descer. O porão era um açude de treva.minha porta parei e a abri rodando a maçaneta. Insisti. Nove e vinte. correu para a janela. quem sabe? centuplicar) acrescentando: — E. Já pedi a conta à criada. Esfregava a face no meu rosto. apenas na parte por onde eu descera havendo um halo discreto de escotilha. Onze e vinte. e a vasa de treva no porão aonde ia ter aquela escada como degraus dum cais. esperei. sofreando uma porção de impulsos. fui para a janela. sentei-me a fumar no degrau de cima. Até quando teremos que fingir. puxei-lhe a cabeça de encontro à minha. como um vórtice visto por duas fendas. Tomado de ânsia e ao mesmo tempo de respeito quis e não ousei bater no quarto de Renata. ergueu o vidro e. Ela desvencilhou-se. aproximava dos meus olhos os seus olhos. Nada. Viu-me logo. Ela começou a dizer o meu nome envolvendo-o em adjetivos cálidos. Passei o braço por seu ombro. eu fazendo tudo para evitar. A minha e a tua. fiquei a observar o retângulo da porta ali em cima. Obedeci. Até que a porta se abriu e Renata apareceu com a capa nos ombros. um misterioso mundo de fulgores. Coloquei a capa atravessada nos ombros. . dum lirismo tenso. Renata e eu entramos. ouço passos. A porta estava fechada com o ferrolho e a tranca. chamando-me como a dizer que fizesse a mesma coisa. amanhã vamos embora. Comecei a sentir frio. Por fim fui para a escada. pulou para o lado de dentro. Enveredei para o meu. Renata soltou-se de mim. Subi cautelosamente. Por fim ela tirou as mãos da maçaneta. Onze.. e então nascia ali.. Nisto vejo uma fímbria de luz debaixo da porta do primeiro quarto. Duas notas separadas. Alcancei-a já na sua porta. Em todo o caso. Quando reapareci no corredor junto ao corrimão da escada. fugiu. muito lépida. em turbilhão. mesmo em cafundós como este? Notou minha surpresa que procurou amainar (ou. segurou meus ombros e disse. ela querendo rodar a maçaneta. como despedida vamos passar parte da noite debaixo das mangueiras. sussurrei uns compassos do Largo de Händel. . antes que o terceiro galo redarguisse.. — Já arrumei tudo. cujas águas nossos instintos transformaram em lavas. na banda leste. A porta do primeiro quarto se entreabriu o suficiente para mostrar Comandira que me chamava. dois. ela moveu o ferrolho. incutindo calafrios em nossos nervos. Amanhã vamos embora. Mergulhamos.. Galguei a escada. emergindo do chão com pétalas. então. sob a ponte. beijamo-nos. Renata?. Abraçamo-nos. Eu soergui a tranca. Foi apagar a vela e voltou. Estridor esfarelado de grilos. os ombros cintilando de areia pois o sol já subia. me senti ridículo por fora e sublime por dentro. me desafiou: — Um. E. Jorge. tiritando: — Volta. Vai buscar nossas roupas. enquanto ao mesmo tempo se deitava naquele chão farfalhante. detendo-me. Quando paramos ofegantes na bossagem do porão. Renata. Quando chegamos perto das mangueiras fiz menção de voltar. saindo juntos do lado oposto. nos amamos em plena escuridão.. avisada. Deixaste-me aqui desde as nove horas!. . vislumbre fosforescente de vaga-lumes. tão grande testemunha que seu diâmetro abarcava a estação de Itatiaia. Ela sorriu pedindo perdão. Tanto na ida como na volta. Descemos a escada. Renata sussurrou. com os pés. exclamando: — Esquecemos as redes.. estames e pistilos grudados no corpo moreno e nos cabelos desfeitos. a aurora surgiu ao longe por trás da bocaina.. O riozinho. — Mas.. as pernas. E isso até o canto dum galo provocar a resposta dum segundo. A rotunda das oito mangueiras parecendo cenário maeterlinckeano. três! Corremos e nos atiramos no arroio. O terreiro ermo como um claustro.. estirados. Renata segurou-me. Levou duas semanas sem sair comigo. a exigir emendas. Jorge. — Está bem. declarei: — Estou pronto a fazer quanto quiseres. II Só viajamos para o Rio daí a quatro dias. Curva da Amendoeira. naquele tempo ponto terminal provisório por causa das obras em Pedro II. querendo crer. Senador Dantas.. tornou a entregar-se. Ponte dos Marinheiros. largo da Carioca. — Ajuda-me. porém menos loquaz. — Impossível. . E quero que as esqueças para sempre. Manhãs no hospital São Cosme. Algumas quadras antes da sua rua. mandando que eu apressasse a velocidade do Stutz. Barata Ribeiro. para lá da avenida Niemey er e da Gávea Pequena. esperamos que um motorista de táxi arrumasse nossas malas. ou em passeio na represa do Tatu e na Mesa do Imperador. beija-me no ouvido e sussurra: — Hás de perdoar-me estas últimas noites em Camapuã. Uruguaiana. Mas no regresso se fechava em mutismos de raciocínios atrozes. Desde o ato mais corajoso até à renúncia mais absurda. palmeiras. — Há de transformar-se. Campo de Sant’Ana. Ao largá-la em Copacabana.. A não ser que a minha vida se transforme por completo. Olha-me. Flamengo. Faço o táxi parar a dez metros da sua esquina. Mesmo entre nós. Mangue. mais morena. rua Larga. Monroe. túnel Novo. Vida intensiva. casarões. Noites e madrugadas redigindo o texto do romance. Chegamos num cálido anoitecer à estação da praia Formosa. — À nossa temporada em Camapuã? Ninguém saberá onde estive. em São Caetano. qualquer alusão a estas noites. tardes no Caduceu. nos meus problemas. a última vez. Ali na antiga estação. praia de Botafogo. Russell. Renata. mas sem encontrar probabilidades. ela ainda balbucia: — Proibido terminantemente fazer qualquer referência. Renata pelo telefone. na praia repleta de bramidos e trevas. — Nunca mais se repetirão. Enquanto o motorista desce a mala maior e a valise. praça 11. — Não. Itamarati. Nos dias seguintes sua voz ao telefone traía dédalos de evasivas. mais queimada de sol. como sempre um pardieiro. — O motorista acompanha-a com as malas. Benjamim Constant. a reagir contra o tamanho do livro. Certa noite. umas luvas. achava que eu escrevera um livro vigoroso. Só ao anoitecer. as horas no peitoril das janelas. Renata recebeu o seu exemplar em papel Alexis. Para isso almoçáramos no Joá. Certa manhã os jornais apareceram com enormes cabeçalhos: “A ANEXAÇÃO DA ÁUSTRIA”. O desenlace custou discussões intermináveis. Levava-me uma lata de Half and Half. Evocávamos o Camapuã. corcoveava como um bisão querendo desmantelar o congresso nazista de Nurembergue. os besouros. ao passar pela praia às oito e meia. ela se manifesta. Renata tinha sempre um trecho a alterar. a fazenda. Ao meio-dia. revistas. agora. evitando a hipótese de sermos surpreendidos. Uma noite. Entreguei-o ao editor. um chapéu. Durante três meses examinou pericialmente o texto datilografado do meu romance. Vejo-a do lado de dentro da sala com o livro encostado no rosto. no restaurante do Joá discorreu sobre o livro com admirável sabedoria analítica. Nessa tarde e no dia seguinte ela não deu sinal de vida. os rios. os passeios. Ao meio-dia saudava-me com o Largo de Händel. o Morse através da parede. ou um registro gutural de problemas domésticos. Estava satisfeita. Todas as manhãs na praia aguardava a minha passagem para o hospital. afirmou que desejaria ser conforme . recebia discos. Meses e meses de clínica radiológica e de artesanato literário. Na manhã seguinte. De longe eu lhe adivinhava o perfil no Posto 5. apesar de idoso. vejo-a levantar-se da areia com o livro soerguido na mão. E ria dos avatares a que era submetida como personagem. a voracidade com que comíamos mangas e laranjas. devastando capítulos. cheia de comentários vivazes e risadas cristalinas. O interesse imediato. telefono avisando a minha passagem. só de raro em raro traçando vincos azuis de nihil obstat. Tarefa monótona de revisão. estava radiante. Suas conversas tinham duas pautas: ou alegria dionisíaca. Mas daí a semanas atirava para longe O Globo onde vinha o ultimato de Berlim e Benés. de regresso a casa. fazia questão de que fosse publicado logo. Certas tardes escapulia para o bar do Glória a fim de debater um capítulo ou ouvir minha opinião sobre um vestido. Tio Rangel recordava seus tempos em Viena imperial. era a publicação do livro. E como Renata ria ao evocar tudo! Só não aludia às últimas noites em Camapuã — assunto tabu. e eu por minha vez não pude telefonar-lhe. que eu ouvia fechado na câmara escura. as cachoeiras. perfumes. a escuridão. após o Largo de Händel. invectivava Hitler. para receber todo radiante um volume do meu romance. deblaterava contra Dollfuss. as matas. riscando com lápis vermelhos períodos e mais períodos. nas redes. Lera tudo. ocupado em assinar dedicatórias. Porém as reconstituíamos intensamente em Petrópolis e nas Paineiras. Renata descobria bons programas de cinema para fazer-me descansar. Hitler fardado de motorista e Daladier sorumbático que nem um viúvo — faz as críticas e os artigos assinados sobre o meu livro encolherem- se para um plano secundaríssimo. no Alto da Boa Vista. como em Camapuã? Acho-me um pouco parecida em teu livro com a personagem de A Porta Estreita. E. Ela. irrompe a II Grande Guerra Mundial. desloca para o centro a arvorezinha de Natal que lhe mandei na véspera. A grande. poupado. Então prometo a Renata fazer o meu terceiro romance. de corpo. É um segundo cachimbo Plumb. após me fazer sinal.eu a metamorfoseara em personagem. Aperto-o na mão direita. — Menos no final. ela sai para o jardim sorrateiramente. está invisível na sala de jantar. na sua rua. diz que a “matei” no romance anterior e que a vou . vagueio pela calçada. conversar à vontade na Barra da Tijuca. — Julgas então que estás tolhida como aquela personagem de Gide? Mas por que insistes em não transpor a porta estreita? — Hei de transpô-la um dia. rodeado de volutas. ri. A política internacional faz locutores de rádio aprimorarem dições estentóricas a respeito da Tchecoslováquia. conversas. Em dada hora. É o símbolo da única solução. evocações de Camapuã. — Principalmente no final. quando a família principia a cear. então passo rente ao gradil e recebo um embrulhinho multicor. vou postar-me rente a uma árvore. cinemas. como um boêmio sem lar. é lógico. quase defronte. encho-o. Afasto-me depressa. abro. Mas num futuro livro vou apresentar-te verídica de alma e.. Mas até ao Natal de 38 o livro esgota-se. Renata e eu fugindo do mundo. acendo-o. tudo se exacerba e nós dois rodopiamos nesse labirinto. inserindo-a no mundo como primavera imerecida. Passeios. Outro ano. desde 1914 até agora. Jorge. ao telefone. como símbolo deste mundo de cá. toca bem alto na radiovitrola os oratórios de Hay dn. cujos paradigmas o velho continente não merece. Jorge. nas Paineiras. Até que entramos também nós a deblaterar em uníssono com o Ocidente porque os nazistas invadem a Polônia. coisa que por enquanto só aparece em vislumbres. — Pelo contrário. traço capítulos e lhos entrego pessoalmente. Ela escancara as janelas. de fato. — Prometes? Bem de corpo e alma. Às vezes penso que se eu morresse te daria plena liberdade para me pores exata num livro. indo nas tardes propícias rever filmes franceses. Tive que me substituir por um robot místico e trágico a fim de despistar fariseus.. depois. noites adentro. cujas últimas noites se repetem cada vez mais. na esquerda. Mussolini fantasiado de ópera. Jorge. Semanas depois ela se enfurece jocosamente porque a entrevista sensacional de Munique — Chamberlain com seu guarda-chuva. familiar. Na noite de 24 de dezembro saio de casa de meus pais logo após o jantar. Charleroi. Renata e eu trocávamos impressões e expressões de pasmo. E até ficava rouca de tanto falar no telefone ou no carro. condoía-se da guigne de Giraud. portanto. Essa mulher não para com as suas contumélias. surpresa e revolta. cretina e idiota de Gamelin?! Você acha que posso ter uma embolia. Impossível. não. Chego a sonhar alto. Mais tarde explicaria: — Gripe. estou mareado de tanto andar no Atlântico Norte em torpedeiras. — Não. Esses nomes de generais começando por B. pelo telefone. do fim do expediente — Renata aparece pessoalmente no meu gabinete de raios X no Caduceu. transladamo-nos para a Flandres.ressuscitar agora. Você pensa que estou aqui? Estou mas é em Narvik. A noite passada corcoveei na cama como um possesso. encouraçados. e outros. a rendição belga e o tripúdio de mais da metade da França. não têm o panache de nomes como Joffre e Foch. A invasão da Dinamarca e da Noruega é um opróbrio demasiado cínico para tio Rangel que pela primeira vez me pede que lhe meça a pressão arterial.. Acha você que posso ter uma apoplexia. assistimos à desagregação do IX Exército em retirada no Mosa. em Trondheim. impossível!. Mas não tolero a ideia da derrota das democracias. — Pois. rapaz? Não quero morrer desconfiado de que a civilização vai acabar. Ela já não acreditava em outro Marne sempre adiado. da boa. e em menos de cinquenta dias jornais e rádios narram o aniquilamento da Holanda. Volto-me para Roosevelt. Antuérpia.. Esquecemos o nosso hemisfério. e você sabe que fez Maria Clara? Quis dar-me água de melissa. Não paro de expectorar. quando uma tarde por volta das quatro e meia — pouco antes. ao meio-dia. Blanchard. . Durante três dias não me telefonou nem atendeu quando liguei para a sua casa. rapaz! Você é médico mesmo. após o Largo de Händel. Paris estava cai não cai. Apanhei na praia aquele tufão de sábado. aviões e submarinos. Para Churchill.. a linha Maginot se tornando tão inútil e sem préstimo como desde séculos o Coliseu em Roma! Que meses aqueles em meados de 40! Sempre. Meça direito a minha pressão. ou foi apelido que lhe botaram? Quando parecia que a guerra ia confinar-se no Ártico feito um cetáceo a apodrecer no fiorde de Namson. Nossos espíritos confrangem-se com a nefanda loucura que assola a Europa. rapaz. eis que ela vira de bombordo ou de estibordo. Besson. Não confiava em Rey naud. um derrame? Não é amor à vida. com chuva e tudo. a agredir fantasmas. não é medo da morte. Billotte.. sei lá!. detestava a longanimidade de Gamelin e de Wey gand. não te chamas Renata?!. — Rapaz. Que inércia é essa. isto é.. senta-se na beira da mesa. Se for tem que ser aberta e obturada direito. — Pegou na bolsa e nas luvas. Assim. — Raízes íntegras. Mostra-me qual é. para afinal chegar a este aforismo: — A acupuntura no Oriente. Abre a boca. comi um pêssego-salta-caroço. pergunto-lhe por que razão não telefonou. Esta manhã. Tenho que ficar de plantão até as cinco. — Queres então que eu te radiografe um dente. com ar de haver mentido. Que língua!.. — Levei-o para a câmara escura. E os que tiraste em Camapuã. o vestido. toma das minhas mãos o vespertino cuja manchette em letras garrafais é a tragédia de Dunquerque. Talvez seja abscesso numa das raízes. De manhã. digo-lhe que por pouco não me encontraria. fez menção de mostrar o lenço. Em resposta ela se levanta. Transferi a película para o fixador após verificar no negatoscópio que não havia abscesso nenhum. — Entreabriu a bolsa. do tempo da juventude e da mocidade. Ensinei como devia segurar o filme. Hoje cedo cuspi sangue. no Cosme Velho. Mais um quarto de hora. as banheiras estão tampadas. — E tu. apenas. no pequeno almoço. Vamos até o Retiro da Saudade. o domador. — Com que então é aqui que trabalhas do meio-dia em diante. se entalou aqui entre o maxilar e a bochecha.. Depois do almoço tornei a cuspir vermelho. Mas não tens nenhum daqui de dentro para a tua . inspeciona com interesse a instalação General Electric. A chapinha pega vários. Ao vir para cá. — Imóvel. Já tens retratos meus de quando eu era pequenina. — Só daqui a pouco. o caroço rugoso. Reapareci e propus: — Depois vamos tomar uns drinks no Retiro da Saudade. Ao ver na luz a diminuta radiografia exclamou escandalizada: — Então o meu rosto é assim por dentro? Que horror! Parece a queixada duma caveira. ou esta engrenagem no Ocidente. Pronto.. — Aproxima-se de mim e explica o motivo da sua vinda: — Ando com um dente aqui me preocupando. Enquanto fingia soerguer o fone me beijou sussurrando uns compassos do Largo de Händel. Está uma tarde tão bonita! O despertador me chamou à câmara escura. Ah! O segundo molar superior esquerdo. Gabo-lhe o perfume. Então está bem. Talvez tenhas ferido a gengiva. Onde é o telefone? — Ali dentro. Senta-te aqui. também. — Está bem. Alguns. Podes entrar. Aproveita e radiografa-me o coração. E este. dependurei-o dentro do revelador. Que surpresa! Que alegria! Ela sorri. Que abóbada palatina! Que gengiva! Parecem dum filhote de leoa!. mais de lado. — Muito provavelmente. o penteado. tirei-o do invólucro. deixa-se abraçar. Percebi-a preocupada. em compensação. e a voz rouca durante aqueles dias? A expectoração? Escarros de sangue? Ela apanhou o temporal do mês passado na praia. as duas superfícies estão perfeitas.. Olho-o na luz antiactínica. prendo-lhe as quatro pontas. desnuda bem o busto e põe o avental branco que está dobrado sobre a mesinha. Nisto levou repentino susto. na região subclavicular. Entrei na câmara escura. a . nem arranhão na película. passo para o fixador. — Estou muito mal? Quando vou morrer? Entreabro um pouco a porta. Uma bolha de ar na superfície do filme Kodak. Continua no mesmo lugar a imagem redonda. inclino melhor o negatoscópio. — Ótima ideia. tampo a banheira. destampei a banheira. de contorno nítido. abaixa o vestido. Daí a pouco Renata bate na porta. Na outra. Ela terá passado iodo nas costas? Este filme estará mofado? A emulsão não será antiga? Terá aderido à parede do tanque vertical? Mergulho-o na banheira de água corrente. Entra no vestiário. Depois. faço-lhe uma careta. Mas. que levei para Camapuã e que fica sempre na minha biblioteca. — Com licença. — Com que então é nesta máquina que datilografas os teus romances. carrego outra vez o chassis. abro o tanque do fixador. fechei a porta. transparência pleuropulmonar normal. suspendo o filme. Então será mesmo o que suponho? Impossível! Clinicamente impossível. Enfio outra vez o filme na banheira para que a bolha se desfaça e escorra... Obedeceu. costelas bem transversais. Não há mofo. mergulho-a no tanque de glicina. em cima. Surpreendo-a mexendo na Remington. — Tínhamos muito que fazer. Lavo e enxugo cautelosamente as mãos. Soergo-o. — Dá uma risada. arqueei-lhe os braços para fora. saio.. soergo o caixilho. estiro-a no caixilho. torno a fechar. Na câmara escura o despertador (que geralmente dava apenas dois ou três tinidos) emitiu um gargarejo metálico entre alerta e alarma. os teus artigos de crítica? — Não. ensinei-a a suster a respiração. Lá está a imagem. enquanto ela se sentava na minha cadeira e abria a gaveta da escrivaninha “para saber os meus segredos”.. à esquerda. fi-la ensaiar. muito lépida.. Imobilizei-a com o queixo sobre o chassis trinta por quarenta. Esquisito. Dou corda no despertador. — E lá nem sequer a abriste. Coração opaco. Diafragma nítido. Será imagem falsa da curva dos arcos costais superiores com a clavícula? Lavo. Mas não saio da câmara escura. Mas. deponho-o em pé na prateleira. examino-o. vou passar o filme para o fixador. ficou na barraca. entrei na câmara escura. ergui o filme. Lâmina de gelatina emergindo dos écrans reforçadores.coleção. pôs-se a andar pelo espaço existente entre a mesa Victor e as paredes. — Amanhã cedo te mando a radiografia dentro dum envelope em branco para que ignorem a procedência. A radiografia se faz num décimo de segundo. sentada numa cadeira.. arrolha-o bem e manda-me pelo portador que te entregar a radiografia. Conversaremos no carro. Um pulmão não se escava duma hora para outra. a voz.. Aponta onde é. Pronto. Farei examinar no laboratório do São Cosme. Basta olhar para a tua cara. ela fazia propostas: — E se fôssemos à represa do Tatu? Não preferes? Larga isso aí.. reter o ar. — Estava séria e lívida. mostrei de relance. suspeita. Um sujeito com labirintite não daria de modo mais cambaleante os três passos que dei na câmara escura. Assim. — Para que essa pressa? Mostra direito. Do contrário só chegamos lá na hora do poente. respiraste enquanto eu batia a chapa! Temos que repetir. — Obedeci. — Claro que sou leiga. decerto a arranjar-se diante do espelho no vestiário. Dois. logo vê que isso é uma caverna.. Expliquei-te tão bem: encher ao máximo os pulmões. Antes de abrir a porta. por exemplo. — O filme já está fixando.. Arrastou-me para a câmara escura. recalquei a emoção e recompus a fisionomia.chuva não a deixava fugir para casa. discreta. Mas o fiz tão alvarmente que Renata. Mas não deu para ver se tinha alguma coisa? — Bico calado. Soergui o filme de encontro ao negatoscópio aceso. como eu agora. Componho a fisionomia. . — Sou mesmo uma estabanada. Dez minutos depois eu ainda estava fechado na câmara escura. Do lado de fora... Pensas que só tenho aqui a tua radiografia? Já retirei da água corrente mais de dez e as estou dependurando em ordem.. — Menina. apenas disse em tom de apóstrofe: — Já sei. — Filha. Vamos ver se acerto agora. anômala. os gestos. quando fores de tarde ao médico especialista já levas toda a documentação. aqui assim (contornei com o dedo indicador um disco no meu peito abaixo da clavícula esquerda) apareceu uma imagem. Bravos. deixa para amanhã. Quero ver. de preparativos.. Leva-me para casa. Um. — Vamos embora. reapareço fingindo naturalidade. Três. escarra dentro dele. — Deixa de reticências.. — Não diga absurdos. Tão fácil. Largou-me sozinho. Mas qualquer pessoa por mais estúpida que seja ou mais estupefata que fique. Podes respirar e vestir-te. desses de homeopatia. e logo o mergulhei na água corrente. Aplica o peito aí nesse pelourinho. Assim que acordares lava um vidrinho. outra vez. Não trocáramos palavra mas viéramos. Isso levará de um ano a um ano e meio. um critério sensato de comportamento. Fala-me agora do tratamento. Opto pela primeira hipótese. Ela seguiu pela calçada até o largo da Carioca e enveredou para a muralha do convento de Santo Antônio. até os turistas a ignoravam. Descemos juntos no elevador que dá para a rua Gonçalves Dias. ela com a mão esquerda. Leblon. A represa do Tatu não oferecia ambiguidades profanas de drive-in nem de motel. — Tanto pode ser um círculo como uma circunferência. ora em cima da ebonite do volante. mas sem gelo. ora em cima do meu joelho. ela se escondeu apoiando a fronte no meu joelho. a avenida Niemey er me obrigavam a estar atento às curvas do litoral que sempre nos protegera. que a seguia a alguns metros. vacuolização essa possibilitada pelos brônquios. — Renata nem sequer pestanejou. era o modo simultâneo de consentirmos que a tarde tão linda (consentirmos ou rogarmos?) extraísse da paisagem anfíbia sempre nossa testemunha. Renata afastou-os para o meu lado e pediu água mineral. O barman já sabia: “Daiquiri”. táxis. Entre a rua 13 de Maio e a praça Paris. uma vacuolização de tecido pulmonar caseoso. eu com a mão direita enlaçadas para que os dedos. iam ficando para trás. ser uma circunferência. a incógnita do futuro imediato. uma cicatriz de antiga pneumonia ou de não diagnosticado pleuris. Quanto à segunda hipótese. entrei no carro. ultrapassei-a. — Urgirá então murchar esse círculo (se for círculo) fazendo colabar por meio do pneumotórax todo o lobo pulmonar superior. ônibus. diminuição e divisão. o exame de escarro é que esclarecerá. Alcancei em alta velocidade a praia do Botafogo. O barman trouxe os dois cálices de daiquiri. Sentamo-nos na nossa mesa habitual. e de vez em quando o visor redondo surpreendia nossas faces amaneirando-as como um camafeu. Os perfis dum homem e duma mulher calados. como signos matemáticos. Quase sempre vazia. Um reliquat fibroso. arranha-céus. pudessem resolver mediante soma. Renata não admitiria circunlóquios e menos ainda subterfúgios. a avenida Atlântica. isto é. multiplicação. Na curva da Amendoeira ela resolveu: — Vamos para a represa do Tatu. Estávamos bem paralelos. depois disse: — Fala-me primeiro daquela imagem. sempre nosso cenário. Somente as ilhas persistiam no horizonte retilíneo enquanto Ipanema. Durante o trajeto não trocáramos palavra. Fechei o gabinete de raios X. — Compreendo mais ou menos. o túnel. Só levantou o busto e se acomodou direito quando íamos pelo Flamengo. — Hoje em dia. há ainda como . O silêncio mútuo durante o percurso nem sequer significava evasivas. abri a portinhola do lado oposto. Que beleza de tarde! Carros particulares. uma noção aguda de compromisso e de responsabilidade. Eu. Encalhei o carro entre troncos de amendoeiras e recessos de buganvílias. Gosto do teu caráter. Liguei o motor. absoluto. no banco da frente. — O que citaste é muito conhecido e famoso.. Perguntei-lhe (e minha voz saiu por entre os cotovelos. esvaziei o segundo. E que.. se tua família preferir. pusilânime. não tinha? Eu é que vou dizer ao especialista que é que ele tem que fazer. que iríamos contracenar com o elenco do destino. marcando hora para consulta. Através dos meus cabelos caídos me chegou ao recesso do labirinto que eu era uma voz próxima porém deformada por incalculável distância: — Foste leal. de paixão. liquidei a conta insignificante. imediatos. Encarei-a sem falar nada. fiquei doutora no assunto. — Então.. Eu quis cobrir- lhe as faces com beijos ofegantes. Ambos os processos têm que ser urgentes. Mas não fiz mudanças. fui ao encontro do barman. que te reconduza à tua família. sorrindo carinhosamente: — Aprecio a tua franqueza para comigo e para contigo. continuei em ponto morto. Poc. bebi em dois tragos o conteúdo do primeiro cálice. censurou-se. Sentei-me ao seu lado. está muitíssimo bem. Pertence à Belle Époque. portanto. anos? Acaso estás fechando uma conta? Ela ergueu-me a cabeça. E. não seria falado mas apenas suposto. repitamos: pneumotórax. apoiei a testa e o queixo no volante que abracei inutilmente agarrando-o com mãos crispadas. Tu mesmo declaraste que há urgência. de amor total. que te restitua ao lar? Está bem. poc. Pois não”. Dois. Nós ambos compreendemos deveras. Sete. poc. o nosso diálogo. Gostei do modo com que me falaste. duma vez. — Imediatos?. censurou-me. Não deixou. neste último percurso que estávamos fazendo juntos. Tratamento a domicílio. tão cedo? Encontrei Renata instalada no carro. assim mais ou menos: “Estás pedindo que eu seja conformado. — Falemos agora da nossa situação. que o tratamento precisa ser imediato.tratamento complementar os sais de ouro. Como é que se escrevia antigamente? Tísica. Levantei-me. Não me escondeste a terrível verdade. um ano e meio de tratamento. Ou quererás dizer crônicos? — Telefona amanhã para o consultório do Moutinho Nogueira. — Já. . Abaixei a cabeça. só então. Ou. as mangas e as lágrimas): — Por que citas números. intercalou-a entre suas mãos de maneira a voltar o meu rosto para junto dos seus olhos. E tinha ph também. sais de ouro. — Não será preciso sanatório? — Isso quase não se usa mais. poc. escolhe outro médico.. Vamos embora. Conhecemo-nos há nove anos. explicando: — Não sabes que tenho uma infiltração caseo-ulcerosa? — E disfarçando. naquele silêncio simultâneo e prolongado. Com a vinda dos seus. Fiquei calado. antes de sumir. contara tudo com desenvoltura estoica. inteiriço. Mas que se arrependera porque fora sincera e que notara o pânico. De repente Renata exclamou. devagar. sem demonstração de nervosismo ou abatimento. Com naturalidade. Mas que.. Vermelho. seja qual for a série de transes que depararmos. Às vezes. como medida de sossego e de consideração. Na metade do percurso. Quando em minha casa todos já dormiam ela me telefonou.. a caminho de São Caetano e do Joá. Descomunal moeda que sozinha compra tudo. Ante aquela ameaça de retórica. merovíngias. passou a falar do seu estado de espírito. sozinha agora ali . Dois postes esticavam cartazes: VENHAM VER AS ESTREPOLIAS DO ELEFANTE ELEUTÉRIO. Seguimos pela estrada paralela e rente ao mar. OS REQUEBROS DO URSO JUVENAL. Roçava não só o horizonte como também a nossa atenção passiva. E resolveu imergir. Telegrafaram pela Western. Para fugir a tal evidência. não obstante os disfarces.“Não me vais devolver nem restituir. Que contara apenas a quem devia contar. Levei depressa Renata para seu domicílio. ASSISTIR AO DRAMA EM TRÊS ATOS “HOLOCAUSTO”. Que não assuma nenhum caráter que venha a influir depois até mesmo sobre ti.. E que sucedera o pior ainda. Engrenei o câmbio em primeira. mas logo tive que dar marcha a ré por causa dos troncos e da muralha. entre a estrada e o areal erguia-se a cúpula de lona dum circo. o que isso significava. Compreendíamos agora. Temes a ausência. a separação? Jamais estivemos tão juntos como de agora em diante estaremos. não consentimos que ela nos contaminasse. Abaixou a voz e explicou: — Telegrafaram àquela pessoa que está no Recife. apontando para o mar: — Espia só. Depois uma espécie de tenacidade de considerações otimistas fazendo recuar o medo. Ordenou que enxugássemos as lágrimas. Daí a minutos ultrapassávamos a orla dum campo de polo e de golfe. como se levasse uma neófita ao limiar da “estalagem dos assombros”. Estoica? Nem isso. Perguntei-lhe: — A quem contaste? É preciso que tal notícia não se espalhe. Era o sol..” Renata apoiou a fronte e a têmpora em meu pescoço e em meu ombro. que nos escolhera por saber de que éramos capazes. rodeado por flocos de nuvens que lhe revestiam o trono e os ombros com vestes fulgurantes. Participou que ia confiar-nos missões. uma sensação de pasmo. Fiz manobras a fim de seguirmos para Copacabana. recobrara ânimo. Ela então disse que esta minha ideia era exatamente a sua. Tudo dentro duma espécie de túnel: dentro da caverna daquela radiografia. Estás aqui. e o fiz com efusão máxima. a chegada. dentro de no máximo três dias. a reação. emagrecimento. expectoração. envolvi-a em ondas de coragem e carinho. Que dias! O rádio a bradar mais derrotas. Era como se visse no litoral lívido frangalhos de exército embarcando em tudo quanto era espécie de transporte. Quero que me sintas minuto por minuto ao teu lado”. o pasmo não deixava lugar para o raciocínio. passei a reduzir sua doença à proporção mínima. me foi impossível conciliar o sono. Na noite escura fulgores me enchiam o cérebro. Como se ouvisse os apitos de rebocadores e lanchas. Exigi que não agravasse um caso físico com outro mental. permaneci mais de hora às voltas com pensamentos que tratei de metodizar opondo o otimismo à surpresa mas não conseguia nada. Custava a acreditar na verdade. deitado. como é que estarás aqui? Estará aqui outrem! Procurei levantar-lhe o ânimo. Fizeste muito bem. o pânico e o sofrimento daquela pessoa.naquela casa só com a tia Noêmia (que teimara em sair por último mas que depois voltara dizendo: “Enquanto não chegarem fico contigo”). Mas agora. a mostrar-lhe que não poderia haver gravidade já que não tinha febre. A Itália declara guerra. não assumira até então o aspecto de estorvo e de barreira que ia assumir agora: a sua vida com outrem. como? Como é que estás aqui? Como é que poderias estar aqui? E depois.. pontadas. Sentindo-a depois melhor de alma. Ela desligou. Fico vendo nitidamente a minha situação. E averiguar isso é terrível. os jatos das explosões. Depois. suores. A transferência do governo francês para Tours provoca o desânimo sintomático do colapso. dando a entender que a humilhava sobremaneira saber que essa radiografia e esse tratamento iam pôr à mostra uma coisa que conquanto existente. adivinhando já o que se vai dar. — Eu estou aí. a fazer-lhe sentir que evitasse radicalmente quaisquer problemas pois que a condição principal para a cura era o estado de espírito. concorrendo para ódio maior. o uivos do Stukas. tudo! Entendi tudo... Mas que tinha eu com isso? Que me importava a mim isso.. sentia pela primeira vez o sentido agudo e lancinante duma coisa que a pungia. a dar-lhe conselhos quanto à disciplina do tratamento. Renata e Dunquerque. Foste meu amigo. Estendeu uma série de considerações. uma realidade. como que se me clareia um setor. — Qual? — A tua ausência. aqui. — Dizes-me: “Estou aí. Escuta: entendeste a minha coragem de contar tudo? Compreendeste a minha lealdade? — Tudo. se na manhã do . Quero que me sintas minuto por minuto ao teu lado. dia 5 o exame de escarro dava “presença de bacilos álcool-acidorresistentes”!? Se passei um dia horrível, imaginando-a no consultório médico, sendo examinada, sofrendo a gradual impregnação da certeza duma realidade cruel? Se na tarde e na noite de 6, e nas manhãs, tardes e noites de 7, 8 e 9 sua voz inesquecível me contava os pormenores, as providências, a instalação da piezoterapia, o regime a ser seguido?! Se na manhã de 10 sua voz tinha um timbre de desolação máxima porque alta noite chegara um telegrama da Western avisando a partida... daquela pessoa? Se na manhã e na noite de 12 e 13, todas as vezes que telefonei atendiam criadas, parentes, tia Noêmia ou então “uma certa voz”? No dia 14, ao meio-dia, me telefonou mas não ao som do Largo de Händel, dizendo: — Jorge? Atenção. Um minuto só, muito rápido. Estou bem. Atmosfera de nervosismo e desespero aqui por parte daquela pessoa que chegou. Compreendi que já telefonaste ontem à noite e hoje de manhã. Disfarça a voz o mais que puderes, não desligues silenciosamente, pois urge não agravar isto aqui com o que já denominaram de “estranhezas...” Chama pessoas de nomes diversos cada vez; pergunta por números bem diferentes; enfim... entendes, não é? Depois do pneu instalado, isto é, após a quarta ou a quinta aplicação, devo ir para Petrópolis, passando então a fazer insuflações quinzenais. Telefonarei sempre que tiver ensejo. Caso, por circunstâncias eventuais, eu espace as notícias, telefona, chamando tia Noêmia. Ela estará sempre comigo em Petrópolis. Arranjarei modos disso parecer normal. Vou pensar e depois combinamos. Adeus. Não posso prosseguir. Dias medonhos de semana tétrica! Eu a sair do consultório para comprar jornais! A lê-los esbarrando em transeuntes e postes, a subir, a aguardar telefonemas, a ir para casa pensando em Renata enquanto meus olhos pasmavam para os títulos e as notícias da derrota catastrófica de Forges-les- Eaux, lendo (sem entender direito) as providências de Héring e de Dentz para a defesa da França, sofrendo agudamente com a confusão na minha alma, seguindo por entre a multidão como um foragido pelas estradas de Châlons- sobre-o-Marne. Em casa, não tomava parte nas conversas, não sentia apetite, não dormia direito. Em São Cosme, deixava os assistentes atenderem, chegava tarde, cuidando que um telefonema para casa pudesse dar informes. No Caduceu (em vésperas de mudança, pois a diretoria já escolhera os andares dum arranha-céu na Esplanada do Castelo para acomodação provisória da sede enquanto demolissem o edifício e erguessem o novo prédio de muitíssimos andares), vagando por entre os trastes em mudança ao longo da varanda que comunica o casarão da rua Gonçalves Dias com o imóvel do lado da avenida; vendo a boa vontade do secretário que insta comigo para ir escolher na sede provisória o local para o gabinete de radiologia. Agradeço, prometo ir imediatamente; sou simples contratado, a instalação é de minha propriedade, e tal prova de apreço me comove. De fato vou, mas noto desde logo compartimento exíguo, ausência de sala de espera, corredores em labirinto, o Caduceu disposto agora em salas separadas e em andares diversos, em meio a escritórios de advogados, engenheiros, dentistas, representantes de firmas consignatárias etc. Volto para o edifício antigo. Já na calçada, balbúrdia, caminhões parados, operários e contínuos, serventes e funcionários carregando móveis, arquivos, cofres, utensílios. Sento-me diante da minha mesa. Considero, considero... O quê? Nem sei. Cansaço. Inércia. Vontade de dormir. Jornais me atordoando com seus títulos, como grandes revérberos. Estarrecimento no mundo. Lista de cidades que vão caindo. Orléans, Mans, Rennes, La Rochelle. Angoulême ameaçada. E em mim? Um grande pasmo, uma espécie de noite boreal, pior do que treva verdadeira. III Em meio a tamanha barafunda, recebo à tarde uma visita no meu gabinete ali no Caduceu. O servente vem avisar que uma senhora está na biblioteca à minha espera desde as onze horas. Ordeno-lhe que a faça entrar. E vejo irromper pelo corredor avarandado uma senhora muito distinta e positivamente tomada de grande vexame. Reconheci-a antes mesmo que entrasse. Era dona Noêmia, tia de Renata, mãe de Carmem. Mãe e filha eu já conhecia desde muitos anos, na verdade desde 1937, embora decerto nem soubessem da minha existência. Eram ambas que nos valiam sempre, involuntariamente. Pois Renata saía com uma ou com outra, ou com as duas, nas suas vindas à cidade. E elas, juntas ou alternadamente, a acompanhavam a cinemas, teatros, concertos, exposições, compras e passeios, sempre que Renata não se achava sozinha no Rio. Na casa delas, em Petrópolis e em Paquetá, Renata passava temporadas de verão e de inverno. Os demais parentes moravam em outros bairros. Tia Noêmia servia também de desculpa para os longos telefonemas, seu nome devendo acudir sempre caso acontecesse alguma “estranheza”. Era uma antiga professora que apenas ensinara dois anos, logo se casando com um advogado de grande banca e do qual enviuvara havia seis anos. Carmem, bonita, com alguns traços de Renata, estudava música e era de temperamento reservado. Eu de manhã a via quase sempre na praia fazendo companhia à prima. Nem mãe nem filha tinham chegado a perceber qualquer coisa até agora, pois um sistema rigoroso de cautela e cuidado nos fora imposto. O segredo impunha uma perspicácia impecável. Agora a descoberta da doença iria modificar decerto tal estado de coisas. E era aproveitamento lógico e reflexo termos que nos servir de tia Noêmia para uma ligação subterrânea, caso ascendesse a tal favor e chegasse a entender o sentimento e a angústia da sobrinha. Não me assombrei pois ao vê-la procurar- me, mesmo porque Renata sempre me dera as melhores informações dessa criatura que cumulava de elogios, dizendo-me tratar-se duma grande alma. Assim que entrou e que fechei a porta, me perguntou: — O doutor Jorge? Fiz que sim, com um movimento de cabeça, pedi-lhe que se sentasse. Instalei-me diante da minha mesa, voltado para essa visita mas sem a observar diretamente a fim de que ficasse à vontade. E ela começou em voz baixa: — O senhor está diante duma desconhecida, embora saiba quem sou. Mas eu não estou diante dum desconhecido. Para conhecê-lo bem, saber que alma e que sensibilidade é, li, a pedido e instância de Renata, o seu romance. Comecei-o trasanteontem, acabei-o a noite passada. Um fato súbito, descoberto ainda bem que a tempo, além de criar uma atmosfera que apavorou e que exigiu providências terminantes, criou também um verdadeiro drama, de ordem tão pungente que esta manhã Renata, quando lhe fui levar o café (pois estou em casa dela desde a noite de 4 deste mês), me pediu um grande favor. Segurando-me as mãos, deixando as lágrimas lhe correrem pelo rosto, e valendo-se do fato do marido ter saído para tratar de pelo menos exonerar-se da comissão que exerce em Recife, contou-me o que há entre ela e o senhor. Fiquei desolada, não pelo caso. Se tal caso existe deve ser sublime, porque eu, doutor Jorge, eu sei que criatura, que alma é Renata. E espero confiantemente que ela em seu sentimento não se tenha enganado. Li seu romance, sei que a primeira metade é o relato fiel que o senhor faz da sua existência até chegar a Renata, e que a segunda é o sentimento elevado de ambos e cuja realidade teve que alterar por escrúpulo. Como, pois, não me desolar, entendendo o que minha sobrinha passou a sofrer, não só por causa da doença, mas dos fatos e da situação que desde o dia 11 para cá ela está enfrentando? Os encargos do marido, alto funcionário do Ministério da Fazenda, o obrigam a desempenhar funções ora aqui ora acolá, uma temporada em Porto Alegre, outra em Recife, de repente transferido para Campinas, depois indo instalar um inquérito, digamos, em Vitória ou em Belo Horizonte; a natureza dessas funções determinou que ele mantivesse casa no Rio, já que a sede ministerial é aqui embora ele viva em contínuo vaivém. Tal estado deu à Renata uma noção falsa de liberdade. Sim, podia telefonar, sair, passear; era senhora da sua vontade. Que tal liberdade tenha sido a causa de, mulher casada, criar um romance, não acredito, pois minha sobrinha não é leviana. Feliz não é no matrimônio por incompatibilidade de gênios. E que essa liberdade concorresse para qualquer ideia, devaneio, não posso acreditar, pois conheço bem Renata. Bateram na porta. Era um colega meu. Atendi-o na varanda, voltei. E dona Noêmia continuou: — Bem, encurtando: no dia 11 o marido chegou. E chegou exatamente na hora em que o médico estava fazendo a segunda aplicação de pneumotórax. Viu aquele aparato, teve que ficar parado no quarto à espera de que o doutor terminasse, abraçou a esposa, ouviu com aspecto inenarrável a exposição neutra do médico, desceu com ele, viu na sala a radiografia de encontro à luz da janela, leu o resultado positivo do exame de escarro, acompanhou o médico até ao jardim, depois voltou, subiu. E desde então, doutor Jorge, se criou uma situação pungente: não arreda mais o pé do quarto, aflito, prestimoso, mas na verdade agravando tudo, a doença e o espírito de Renata. Resolveu aposentar-se, tratou logo de telefonar para o ministério, expôs o seu caso, encarregou um amigo e colega de tratar da papelada, e está, dia e noite, sentado diante da mulher. Qualquer telefonema, ele atende. Se se trata de parente íntimo, comove-se e que ela quisesse qualquer informação. sofre e se emociona com a derrota da França. Tal conversa foi interrompida pela chegada dum amigo. ela sofre. — Eu. Novo estardalhaço por parte do marido que emprega a palavra “hemoptise”! Veja só o senhor! E que chama o médico urgentemente. A noite passa. Vive afoito. das pessoas que estiveram em visita. outro telefonema. mas é engano! Então. fazendo ver que precisa comunicar-se com parentes íntimos. de ir com ela para um sanatório. Januário se desespera. irrita-se. perguntar pelo doutor Jorge. Que resolve ele? Tirar a extensão do quarto. dar notícias. É de casa. O senhor está compreendendo o duplo drama de Renata! Como é que essa criatura pode sarar? Em que atmosfera vive ela? O telefone toca. e enquanto isso vejo Renata discar não sei que número. acha que a humanidade vai ficar escravizada ao fascismo e ao nazismo. um desconhecido manda chamar não sei quem. O telefone chama na câmara escura. vem a manhã. Passa-se o dia. pois não quer que a esposa. vive num atarantamento impressionante. que o estão enganando. interpreta tal derrota como o limiar de coisas tremendas e fulminantes para a civilização e o Ocidente. pensando na aposentadoria para poder ficar ali. aconselha o marido.. um desconhecido diz que é engano.. é minha mãe pedindo que eu não me esqueça de pagar à Light. Explica que se trata dum derrame sem importância anexado sempre aos casos de pneu. Saído que foi o médico. venha a incomodar-se com o ruído da campainha. presente quase sempre a tais cenas. “Não está? Como?! Ah! Foi fazer uma radiografia a domicílio? Está bem... Nessa hora exata o telefone toca. O telefone toca. Bem. A todo instante liga ela própria o rádio. da sua decisão de largar tudo. daí a pouco volta de lá. . pede-lhe que coopere com bom senso para que seu tratamento não sofra tais inibições.convulsivamente ou dá pormenores de como Renata passou. Vejo tão nitidamente que esse homem com sua solicitude lhe está fazendo mal que o chamo para a sala de vestir e tenho com ele uma conversa muito séria. Chamei o contínuo. No dia 17 voltaram os escarros de sangue. Desculpe. vai para a sacada fumar. se preciso for. Ela a custo o demove.. diz que não é nada de maior. condói-se. outro engano. Peço licença a dona Noêmia. Ele promete. Ele concorda. Conversam mais de meia hora lá embaixo. ele se atira ao telefone pressuroso. errado.” Deduzi que se tratava do radiologista que lhe fizera o diagnóstico. pensa decerto que a mulher está desenganada. olho para Renata.. quem passa a sofrer é ela. do que o médico disse. encarreguei-o disso. pois no íntimo tem uma ideia sinistra sobre a doença. disfarço. que foi a pleura que deu água. Voltei a ouvir dona Noêmia. Este vem de carro. o colega que trabalha na mesma seção que ele no Ministério da Fazenda. diz que é mentira. vou atender. Está combinado já que daqui a dias subirá com Renata para a minha casa em Petrópolis. que sofre de insônia. que a conta da luz está no meu bolso. preocupada decerto com o pequeno derrame. tia Noêmia! Acabou o livro? Ah! Acabou?” Como me pusesse a elogiar muito. continuou: — Esta manhã. assim que aquela pessoa saiu para tratar da aposentadoria. mas que também não posso livrar-me desta conjuntura. E quanto me amargura e me desespera este drama com tantos lances secretos. Diga-lhe quanto me humilha eu ter que aceitar a minha realidade. tia Noêmia. folheei o livro. neste quarto. Distraia-se”. os telefonemas duas vezes por dia e aos quais desde o dia 11 não tem podido atender.” E contou tudo. deitada no quarto ao lado e atenta à possibilidade de Renata precisar de mim. ela me fez sentar na cama. Explique-lhe que é assim a minha existência. às oito horas. mas no mais das vezes isso até é providencial. não podendo sequer atender aos telefonemas. a bem dizer li até às duas da madrugada. sou eu!” Redargui que de fato. perguntou: “Então. a radiografia fatal. ouça. na descrição do físico e da alma. os passeios. Leia isto. explicou mais ou menos com esses termos. e ontem acabei. são reação das pleuras. “Menina. os conselhos e as providências. o tempo que isso perdura. que nos quatro dias anteriores estava com o ânimo levantado. Sentei-me. troquei impressões com ela. Tudo. que não tenho ânimo para suportar isto. Em igual condição me sinto. Veja que coisa mais irônica: esta criatura aqui com a sua sinceridade que me irrita. Explique-lhe o que se passa nesta casa. Grande percentagem dos pneumotórax apresenta derrame. por entre lágrimas. ela me disse: “Pois então.” — Eu avalio. ora no quarto. ora no vestíbulo. Passei daí por diante a notar uma melancolia demasiado sisuda em Renata. — Esses derrames. aliás um moço muito expedito e sensato. os telefonemas. tinha semelhanças. Às vezes cresce tanto que é preciso tirar a fim de evitar desvios dos órgãos centrais. Vendo-me sempre ali por cima. da página 365 em diante. pois dá o que chamamos sínfise. de noite. pois quando por acaso diagnostiquei a doença de Renata me perguntei a mim mesmo: “E que papel vou . Pediu-me que solucionasse a sua agonia. — Foi o que o médico assistente. não diga semelhante palavra!” “Agonia sim. Anteontem li de dia. Ouça e compreenda esta sua sobrinha e afilhada. à noite. e pense naquela outra pessoa a telefonar. “Semelhanças?! Sou eu! No corpo e na alma! Eu!. as cartas. Renata. trasanteontem me deu um livro que estava na mesa de cabeceira e disse com ar prestimoso: “Coitada da tia Noêmia! A sacrificar-se tanto. Vá procurá-lo.. lhe estar provando a minha realidade atroz. Olhou-me entre severa e compreensiva. Não há nada de vergonhoso em a senhora falar com ele porque o sentimento que existe entre nós é absoluto. ele entra de serviço ao meio- dia. Essa mulher aí.. dona Noêmia. que está deitada não por sentir fraqueza e sim meramente por obediência ao médico que a aconselhou a ficar de cama uma semana. Peça- lhe que me perdoe eu. Faça-me uma caridade. isto é. fibrose do bloco todo. li trechos esparsos. sensível como é. pondo-o a par do estado dela. ela e o senhor. e que nos ajudará. Atendo como um autômato ao expediente do meu horário. Telefonando ou não. e. Sei bem. largado como um peso de chumbo. lá isso sabe o senhor que é médico. ou desaparecer?” Contudo. devolvi-a. Eu não sei se ela tem caverna em formação ou esvaziada no pulmão. doutor Jorge. Paris fora ocupada pelos nazistas sob o comando de Von Küchler! O 10. como um cadáver de refugiado belga ou francês que um Focke-Wulf houvesse metralhado no plateau de Langres. aqui permaneço. — Eu entendo e imagino. como? Eu não vejo solução. De tarde saio. — De agir.. julgaria pouco-caso meu. Na certeza de que é um alto espírito. para ambos. Pensei. seria uma comédia indigna perante o alvoroço do marido cuja solicitude agrava a situação. Tanto que desde ontem de manhã não telefonei mais. Neste caso quem tem obrigação imediata de agir sou eu. telefonando.. com essa preocupação terrível de doença. . Despediu-se com um sorriso bom e compreensivo. ela. isso eu sei. Há de ela sempre e sempre. De que forma poderei ajudar Renata? Durmo de bruços na minha cama. de segredo? Não seria melhor ir para um sanatório? Sair daquela casa? Ou ir já para a minha residência em Petrópolis? Eu. Imaginava Renata deitada numa cama. escrupulosa como é. só havia uma. de receio. sofreria em ter que fingir para evitar suspeitas. passando a mão pela testa. sentir sua ausência. nobre. pensar no senhor. começo a detestar a minha profissão pela ironia do dia 4. com dó de Renata e com vergonha de mim. de saudade. — Como é que Renata pode tratar-se. Ora. Voltei. o senhor existe para ela. Mas que tem um rombo na alma. — Compreendo. ao mesmo tempo humana e sobre-humana. compro jornais. acompanhei-a até ao elevador. ela. Levantou-se.. Mesmo porque minha sobrinha acha ao mesmo tempo que tal drama. ficar boa. sofrer pelo sarcasmo do destino em lhe pôr uma pessoa convulsa e solícita ali aos pés.. um nobre coração. Vim aqui lhe expor este estado de coisas.º Exército destroçado! 14 de junho. fingindo estar falando com uma parenta ou amiga.. que se trata dum estado terrível. — Escute. — Mas. De manhã. caso ela procure meios de comunicar-se com o senhor. com os pensamentos em brasa. refleti. Germana me entrega os jornais cujas manchettes ocupam quase a metade superior da folha. buscando uma solução. doutor Jorge. decente.desempenhar? Fugir com ela. em sua casa em Copacabana. De noite estiro as pernas sobre a mesa de trabalho. a única. Vi-me na alternativa cruel: se não telefonasse. como? — Fazendo tudo para ela ter paz. dona Noêmia. me comunicaria sempre com o senhor. tomando café.. ao passo que. permaneci sem saber o que resolver. ou na minha em Petrópolis. Abraça-me. Esvazio as gavetas. livros. Tudo. — E não quer também comprar este carro? — De que marca é? — Stutz. deixara seu cartão. franqueio-lhe o imenso arquivo de radiografias a fim de que veja a qualidade e a potência do transformador. — Ah! Prefere a Lohner? — Não. Não desço à cidade. . os livros e a máquina de escrever para o carro que deixo sempre nos terrenos onde foi o teatro Lírico. Era de Ubá. vou para o Caduceu que está nos últimos dias de mudança. como num banho turco. a emergência em que se acha a Inglaterra. Não preciso acompanhá-lo à Casa Moreno nem ao Lutz Ferrando. Vou para a biblioteca no salão da frente. entrega-me. procuro o mapa de França. Linha Maginot! Linha Maginot! Solto uma blasfêmia. Quando novo custa mais caro do que Mercedes. Telefono-lhe. Repentinamente resolvo sair do Rio de Janeiro. Até que me surge o Alípio. jornais. Hum! Os alemães já estão no vale do Saona e do Ródano. enche um cheque. com a alma rodeada de vapores. náusea. me causa desgosto. mineiro da Zona da Mata. rádio. Almoço. escureço a sala. Levo-o. enfio as mãos nos bolsos. Ele se senta ali diante da mesa. não vou ao hospital São Cosme nem ao Caduceu. pessoas. o Alípio me ajuda a levar os papéis. Resolvo ir rondar a casa de Renata. dizendo precisar da minha experiência e dos meus conselhos. Telefono para um médico meu colega de turma que esteve ontem em São Cosme e que. e logo lhe respondo: — Não. a sala do gabinete se enche de colegas discutindo a situação da Europa. vai procurar na Lohner um técnico para a desmontagem e a reinstalação em Ubá. mostro-lhe a aparelhagem. O fato de não vê-la. estava num hotel do Flamengo. tiro um Larousse. comida. desando a passear pela varanda que liga no primeiro andar o prédio da rua Gonçalves Dias ao da avenida Rio Branco. por entre a barafunda provocada pela mudança do almoxarifado e da secretaria até ao meu gabinete de trabalho. Explico-lhe o motivo: a mudança de sede do Caduceu. como um autômato. digo-lhe que venha ao edifício do Caduceu onde estarei do meio- dia em diante. Packard ou Cadillac. Dijon. rumores. luz. Que prefiro descansar ficando só com a instalação do São Cosme às minhas ordens. Ameaça iminente sobre Metz. Tenho aqui o que lhe serve e convém. começo a ver a localização das cidades caídas. faço uma radioscopia como demonstração. Fechamos negócio. No dia seguinte vou ao São Cosme. De manhã atendo ao ambulatório radiológico. Fico estirado no divã da biblioteca. Nancy e Lião. cria em mim um masoquismo. Uma tristeza infinita me prostra. não me achando. diz-me o que pretende. Em casa. recolhi-me cedo. que já passara em casa dela em Mem de Sá. Arranjar estampilhas àquelas horas era difícil. foi à caixa. Do túnel para lá tudo é uma roubalheira. O Alípio encheu um cheque. já ao anoitecer.. anexou outro cheque e quis recibo.. na África do Norte. E um quarto de hora depois bebia cerveja. sugeriu uma subida a Santa Teresa a fim de verificar o motor e as mudanças. envergonhado: — Está bem esta. Pensou.” Perguntou-me se eu sabia em quantos dias as Panzerdivisionen haviam varrido a Bélgica e a França.. veio de lá com os selos adesivos. vendo baldado seu intento. quedou boquiaberto para o painel diante da direção. De manhã chamei Germana ao meu quarto. perguntou-me. Gostou. — O que achar razoável. não! Aqui pelo centro.. isto é. que combinara tudo. dei-lhe. ajudei-o a manejar a mesa. . depois a Churchill e a Rey naud para “não serem cretinos. quis andar no Stutz. Não contei nada do que fizera. escrevi-lhe uma lista de livros técnicos e especializados a adquirir. Uma vez na cidade. a venda da aparelhagem e do carro. Saindo pela rua Álvaro Alvim mostrei-lhe os anúncios luminosos de dois ou três restaurantes e logo me despedi. expliquei tudo quanto foi hipótese que fez sobre casos tais e tais. Fiz-lhe uma tabela de exposições para cada região. Não saberia eu dum lugar discreto e barato para um jantar com. examinou bastante os pneumáticos. Disse-lhe que no dia seguinte trataríamos disso. aproveitou e abusou. fez-me subir e descer as vidraças.. entramos num café aos fundos da Cinelândia.. Ele então tirou a carteira. somei a importância dos três cheques. encontrei tio Rangel a organizar a resistência da França fora da metrópole. gabava a arrancada alemã na Polônia. quantia? Olhei a importância. E ele de repente me pergunta quanto quero pelo Stutz. consultou o caderno de cheques do Banco de Crédito Real de Minas Gerais. em Copacabana? — Não. a “contemplação e tempo” que Hitler tinha dado a Daladier e a Chamberlain. Não permaneceu pois tinha visitas para jantar. dei-lhe um recibo da operação feita declarando o estado de bom funcionamento da aparelhagem.. Irrisória. — Comprar automóvel agora que está faltando gasolina? E logo de seis cilindros!? Voltamos para o Caduceu onde ele me atazanou mais de duas horas para que lhe ensinasse a trabalhar com os reóstatos da mesa de comando. passei a noite em claro. não. apalpou o couro dos assentos. música? — Aqui pelo centro ou na praia. Não. verifiquei e corrigi seus conhecimentos de câmara escura.. quis saber se “engolia muita gasolina”. Olhou bem a pintura. Voltamos ao largo da Carioca. Indagou se eu não tinha mais o que vender! E despediu-se porque ia jantar com uma cantora de rádio. não! Chamou o garção. em Prudente de Morais. havia acolá nos cafundós de São Paulo uma cidade prodígio: Hacrera. Para você e nossos pais. artigos. na Cidade Menina conforme diziam oradores de Rotary Clube. Na localidade mais nova da Alta Paulista. Atendeu-me um colega idoso. — Mas. tomei o Ótis que me depôs no rés do chão. Voltei ao tabelião. pus-me a relê-lo e a meditar muito. onde havia além do mais uma instalação Acme. Milagre? Sei lá! Destaquei-o cautelosamente. o Alípio chegando nervoso e alegre. atravessei a Esplanada do Castelo. após o expediente hospitalar me dirigi a um cartório. Então redigi dois ofícios. as lâmpadas e o transformador muito bem encaixotados. chamei o meu servente . Saí acompanhado amistosamente até ao elevador. A proposta. havia uma casa de saúde. telegrafei para a cidade cujo nome jamais vira e que nem sabia onde ficava a não ser que era no Estado de São Paulo. perguntei na portaria do City Bank onde era o Banco de Crédito. — Abraçou-me. pediram-me que reaparecesse daí a vinte minutos. Na manhã seguinte. e você? — Isso é problema meu. enquanto o aguardei li e reli o tal anúncio caído do céu.endossados. Como demorasse a pública-forma. os carregadores levando tudo escada abaixo. Um médico operador precisava de sócio que fizesse radiologia. de tal forma solucionava o meu caso. fiz tempo no Simpatia. E eis que debaixo do balancete duma casa bancária dei com um anúncio providencial. para lá me dirigi. Dava as características da sua casa de saúde. esportes e até anúncios. dando como razão e motivo ir para o interior. comprei o Correio da Manhã. ianque. Reinstalei-me no Simpatia. como também dos municípios vizinhos até à barranca do Paraná. Uma hora depois rumei para a avenida México. eu disporia duma vasta área de Bauru para cima. esclareceu-me tudo. os cheques referentes ao Stutz. E. radiante. Sim. O proprietário precisava dum sócio que fosse técnico naquela especialidade. Não somente garantia movimento do município de Hacrera. editoriais. além de conveniente. Nem titubeei. mandei lavrar uma declaração tornando meu pai meu procurador no Rio. agradeci. notícias. À hora do almoço fui esperar o técnico da Lohner. subi a pé a avenida. na Esplanada do Castelo. Li telegramas. Assim. desmontar o gabinete na minha sala do Caduceu. moderníssima. possuía em tais circunstâncias a oportunidade dum prodígio. e solicitando resposta imediata pois deveria partir breve. continuei a ler o jornal. Quando vi a instalação reduzida a peças desmontadas sobre o ladrilho. — Compre um carro novo. com aparelhagem radiológica. a fim de informar-me direito. recebi o cheque. Dava o nome e o endereço no Rio dum profissional consagrado como informante de sua idoneidade. um à diretoria do São Cosme e outro à diretoria do Caduceu exonerando-me do meu cargo e lugar. Depois de adquirirem. por exemplo. exigiu sobremesa. não tardou. por exemplo. Não vencem os mais capazes e sim os mais argutos. esquecido de vez do Marne e do Sena! Que é que um período de ausência de dois anos. Que é que você conhece da sua terra? Estações d’água. muita coisa. Os que ficam nos grandes centros lucram pois trabalham em ótimas equipes. café. Mas. excelência e prática.que incumbi de entregar os dois ofícios explicando-lhe muito bem como devia fazer. persistem em permanecer no Distrito Federal. que precisava dumas férias longas. você não distingue um abacateiro dum pé de araçá! Ignora o nome dum peixe de água doce. como experiência. isso significa várias vantagens. habilita a pessoa a vir instalar-se trazendo não somente prática geral como também meios de subsistência. — Devia ter feito isso desde muito tempo já. Plantou-se aqui em casa estes dias. continuou. Exime-se de ordenados reles aqui. perguntou a razão de minha mãe estar com ar choroso. Pelo menos falando no Tietê e no Paranapanema. com brados proféticos. Acho um erro advogados e médicos pulularem nas grandes cidades. . E. uma temporada por aí adentro. uma estada na realidade representa. Inúmeras! Nisto chegou tio Rangel. que meu pai optou francamente a meu favor. dum pássaro do sertão. Vejamos o caso dos médicos. É um envoûté da Europa. só durante as refeições adotando tática e estratégia para que a família aceitasse a minha resolução de ir para o interior. Falei da mudança do Caduceu para uma sede provisória onde o espaço disponível para a minha seção era precário. que aquela vida das oito da manhã às cinco da tarde atendendo a sócios e membros de instituições já me estava enervando. em verdadeiro knockout só porque os alemães já estão perto de Chambéry. Minha mãe e minha irmã não aceitavam a ideia. atrapalha na sua vida profissional? Você ainda é tão moço! Pelo contrário. como possibilidade de ganhar dinheiro. O mundo é muito grande. que sentia uma surmenage incrível. e em ignorar o Brasil. Caxambu. além de servir como lição e experiência sob todos os pontos de vista. E trate de voltar brasileiro. rapaz! Ó Germana. Perdem tempo precioso. fazendo considerações de ordem vária. Ora. a fazer considerações sobre a hora trágica do mundo. Em casa passei cinco dias de letargo. tanto falei e debati as vantagens múltiplas. Lambari! Entende um livro sobre a Amazônia? Sabe ao menos o nome duma tribo de bugres do rio das Mortes? Conhece uma fazenda de gado? Uma fazenda de café? Ora. porém. Enfeitei as vantagens oferecidas. Fique por lá um ano. ou mais. declarei que meu estado de nervos neste período de notícias sensacionais não me deixava trabalhar. desliga esse berreiro de rádio aí! Seguiu com o olhar a obediência imediata de Germana. já agora me fitando bem: — Vá para o interior. em Cernavoda. para o jardim. os dois. diante do nosso quarteirão. rapaz. Passou as mãos pela cabeça esfiapando a cabeleira branca. Viena. Eu e a Daonela a fugirmos para o fim dos Bálcãs. antes da desembocadura. Ela tem passado bem? . Quanto a mim. Roma. e possas tu não voltar!” Atiçou o passo. Ah! A Europa daquele tempo! Ah! A Daonela. — É dona Noêmia? Bom dia. tive que a devolver ao tal Gaguine. — Pacato e pacífico tal qual me vês. Conhecemo-nos em Viena. cantora russa!. ma arrebatou e ainda teve o topete de desafiar-me para um duelo. e desde a visita de dona Noêmia só tendo eu tido ensejo de falar-lhe pelo telefone duas vezes a respeito da saúde de Renata ( — vezes essas em que consegui encontrá-la em casa. Paris. Recém-formado em direito. Meti-lhe umas taponas e. Seu alvoroço era diferente. para ser sincero. no casarão da ladeira da Memória e ia com ela. Isto é. De librés e postilhões. — Tempo de caleças e vitórias. me deu logo os endereços da filha e do filho casados em São Paulo e prometeu uma série de cartas de apresentação a um mundo de gente. Budapeste e quase em Constantinopla.. De casacas e camisas de peito duro. — Ora. E ainda por cima vesgo. Fugimos para Budapeste. fui despedir-me da juventude na Europa. Não o Filho Pródigo do Evangelho. ainda hoje lamento não ter. Sim. esse latifundiário do Tver a veio buscar. em Bazias. com um olho nas contumélias da Maria Clara e com o outro nas caduquices de Pétain. Pouco depois nos olhou um por um. Possas tu não voltar. até que enfim. quando bacharel em visita pela Europa. já estava noivo da Maria Clara em São Paulo. Daí a pouco fomos sozinhos. Amamo-nos em Presburgo. mas o da interpretação de Gide: “Vai. descido de vez até o fim do Danúbio e queimado o passaporte a fim de não regressar mais. como a fazer sentir que nos apressássemos ambos. ir-me embora. De saias rodadas e de decotes. em Belgrado. não era sozinha. pois quase sempre estava na residência da sobrinha). Jorge? Para a Aparecida. eu que estivera em Londres.. Sabe quem está falando? Desejo saber notícias de Renata. sessenta dias depois eu pegava a Maria Clara lá em São Paulo. tenho que ficar nisto: a vida. Não. Já não manifestava o ar de ainda agora. depois de várias décadas na rotina doméstica.. Sim. em Kilia.. deteve-se mais em mim e pespegou-me esta intimação: — Quid novi? Quando soube que eu pretendia deixar o Rio. De valsas magiares. Uma vez tudo resolvido. posso dizer a um rapaz o que disse o Filho Pródigo ao irmão caçula. Então tio Rangel me convidou para andarmos um pouco pela calçada central da avenida Vieira Souto. nas Portas de Ferro e em Galatz. sabes para onde. Mas.. voltei. tratei de comunicar-me com ela. Vai.. vou para o interior. RAPIS.. sem precisar me tratar de “amiga Júlia” (como das outras vezes). nós também. E. cheio de abraços. PRISA. Disse até que ia telefonar-me à noite. ausente daqui. de minha casa dirão onde me acho. A criada veio dizer daí a pouco que o Eleutério. Enfiei- os no bolso como passaporte de minha idoneidade perante o colega lá de Hacrera. E afinal. resolvera vir trazer. diga a Renata que achei uma solução provisória para o sossego de que ela precisa. . meus bons serviços prestados da data tal à data tal. Vendi a minha aparelhagem. e percebi que ela escutava muito bem.. estirei-me no divã. Então lhe falei com certa emoção. SARIP. NISEMA. Sigo com a certeza máxima de ajudar. da qual ela comparticipou: — Dona Noêmia.. queria falar comigo. Os dois ofícios eram respectivamente do diretor e do presidente das duas instituições onde eu trabalhara. pois faço questão mesmo da paz de Renata no sentido mais absoluto. dando notícias. Disse-lhe que o fizesse entrar. com protocolos de gratidão. parti. saudades e recomendações de meus pais e de Germana. com muita naturalidade. Acendi um cigarro. AMINSE. Deitado no leito do Cruzeiro.. Mas quero que entenda que faço isso sem qualquer atitude intempestiva. Trazia-me dois ofícios que tinham ficado na secretaria já que o gabinete estava fechado. quando julgar conveniente. e sim procurando colaborar no restabelecimento dela. Não digo para onde vou. abracei-o. vendo que eu não aparecia desde três dias. IRPAS.. Tia Noêmia. acompanhei-o até ao jardim. E. Caso seja necessário comunicar-me qualquer coisa (não estou pedindo que escrevam. meu servente. Desliguei de chofre. MANESI. E. Tanto que me respondeu: — Deus levará isso na devida conta. Agradeciam em linguagem tabelioa. SIPRA. ANIMES. Falei vagarosamente. NEMAIS.. paradoxalmente banido do mundo. daqui a dias. se é perto ou longe. beijos.). SAMENI. senti entre as lágrimas as palavras Paris e Amiens (sei lá por quê!) se esbrugarem todas no jornal onde as lia RIPAS. Dei- lhe dinheiro. na verdade estou sempre com o coração voltado para essa admirável criatura de Deus. respondeu e informou de modo seguro. . pois sabia que onde quer que fosse abrigar a minha saudade. atropelando- me em angústias e emoções. Que hora do mundo repercutindo em mim com estridência de explosão num fundo sinistro! Primeiras. a ouvir rádio. no litoral. sento-me na cama. E os telegramas . Mesmo as casas mais próximas não faziam o mínimo esforço para se tornarem compreensíveis. E.. com ruídos possantes de aviões de mergulho metralhando um litoral lívido onde também os meus pasmos cambaleavam. terceiras edições de jornais. fico a olhar a parede de cal. e vi que ela me era hostil. Acomete-me então um desespero cruciante.” Assim me hospedei no hotel São Bento donde. e a paisagem noturna era toda ela treva difusa. perante a evidência surpreendente. como se não quisesse deixar-me sobreviver. nos mesmos dias e nas mesmas noites da tragédia de Dunquerque. em metrópole febricitante ou em campo autêntico de concentração. O candeeiro mostrou-me a primeira rua em rampa. a refletir na minha vida. na montanha.. Da data da hecatombe de Dunquerque à data da queda de Paris. viajando num trem como unidade isolada de retirantes e foragidos. a arrumar as minhas coisas como a transferir o meu drama para uma espécie de África do Norte simbólica. Notícias urgentes e contínuas de Última Hora goeladas pelos broadcastings convulsivos. sob os fulgores e repelões do fato cruel. circunstâncias dramáticas me tangendo o cérebro e o coração como o coice da arma das patrulhas fustigando prisioneiros lorpas. rememoro tudo. procurei interpretar o pressentimento inóspito das suas primeiras ruas até ao hotel como uma consequência de estranheza. segundas. duas horas depois. IV Em São Paulo não procurei os parentes. um pouco recolhido para dentro da janela do quarto. e da queda de Paris. telegramas incríveis. eu vivera numa covardia de atarantamentos. a ler manchettes vermelhas. Embora tivesse chegado de noite a Hacrera. seria literalmente a objetivação daquele trecho de A Grande Noite: “Aí estava pois diante de mim a nova cidade como a estranhar-me toda crispada. Locutores inflamados transmitindo comunicados estentóricos.. contraindo os maxilares. cronologicamente até chegar àquela surpresa tétrica na câmara escura. ao chegar. Jatos de desgraça esboroam por sobre mim. vi uma multidão vagarosa sair do cinema quase fronteiriço. Esvazio as duas malas nas prateleiras e no gavetão do armário. com lágrimas nos olhos. parte já agora dum enxurro. Emoção paroxística! Eu a comprar jornais. qualquer aspecto que visse. os bancos em efervescência. Caminhões entravam superlotados. me deu uma noção esquemática do movimento em época de safra. a rotina da profissão. e as balanças imperialistas pesavam o suor da gleba. via japoneses me fazerem três e quatro saudações litúrgicas. mandei chamar um carro. na cidade. percorria quartos. Potentia dicitur ad actum. Memel. Narvik. e sim em corvée. estourados. como um resíduo que escapando da orla da centrifugação é despejado na finitude dum sertão. além de sofrimento. E quis logo sair para a rua. pelo centro e arredores. das máquinas de algodão e dos armazéns gerais se achavam congestionadas de mercadoria. aquela gente trazendo para ali. as plataformas das usinas. Dormira bem à noite. as esquinas atopetadas. alas. segui para a Casa de Saúde.cheios de equimoses violáceas — Munique. Verdade era que aquele meu livro se me apresentava feito uma boia atravessada de axila a axila. segurando sobre os joelhos o livro datilografado. chegara a Hacrera como um rato fugido de bordo e todo marcado de brasas e fuligens. que aquelas páginas começadas quando da revolução de Franco deveriam ser o meu testemunho do mundo. para o povo. . que haveria de transformar a minha angústia e o meu desespero num teor de sublimação. notando dificuldades de disciplina e de higiene. desci para o café. enquanto meus nervos. Dunquerque — recuando para desvãos aquerônticos. Fora. Varsóvia. nem como se simbolicamente me houvesse engajado numa usina. enfermarias. Queria convencer-me. em setor muito outro. Avencas. apresentei-me ao colega diretor. Não. como a ajuntar o que de mim ficara nesse percurso ferroviário de mil quilômetros. fui para a janela encarar a cidade como um soldado que se levantando da tarimba procura uma eficiência imediata. promiscuidade. na verdade para suprir o que em mim havia de carência. vendo operados. À hora do almoço. a minha interpretação. sitiantes em delírio. Rancharia. Dantzig. Urgia transformar o meu exílio não em estado servil de recluso em Caiena. Retomava assim. moribundos. se estilhaçavam nos bordos da caverna pulmonar de Renata. Barbeei-me. Votuporanga. Um passeio de carro. convalescentes. Trondheim. corredores. tomei banho. que eu emergira do redemoinho. Reentrava no mundo desvalido através duma nesga nova. Ergui-me logo de manhã. num potencial válido: o meu terceiro romance. e dormira profundamente. lhe surpreendi a feição progressista. era apresentado a colegas diferentíssimos. eu não optara pela Alta Paulista como se houvesse optado pela comparticipação e pela resistência num setor técnico longe da ação. os cafés sussurrantes. mulheres em puerpério. dar com a minha perplexidade alhures. Sim. diria meu tio-avô Rangel. isso sim. instalações. em hard labour. Meia hora depois já comecei a atender a clientes de localidades para mim totalmente desconhecidas: Tupã. Amsterdão. menta. Frigoríficos. Depois. Sociedade Rural Brasileira. fumo em corda. tifo. alfafa. mandioca. com vítimas de trabalho. Vermine orientale. leishmanioses. bugres. instalando-me diante da máquina de escrever. arroz. o meu jantar solitário nos fundos dum café. Ou crítica ao governo: moratória para os criadores. micoses. aperitivos e zoeira de palestras na Brasserie. Federação das Indústrias. evidenciando que não estou na inércia da zona velha mas. baús e bagaços de frutas. jardim e sala de espera sempre com visitas acocoradas no chão em meio a sacos. Enfermeiras rudimentares. Construção civil. japoneses. de Cingapura para Áden. nordestinos. os mais variados. Corredores. positivamente. de fato. tomate. Amoreiras de Varpa. Óleos e gorduras vegetais. Perto donde me sento. mansarda acesa: isto é. Milho. Eu me achava ali no interior do Brasil. do meu aposento na Associação Médica. O problema do gasogênio. Amendoim. Convênios. ora diante da máquina Remington portátil. Cooperativas. Tratei logo de sumariar minha programação de tarefa. Couro e peles. E. mulatos. Gado. ajuntamentos diante do Banco Brasileiro de Descontos. a mais formidável das fibras têxteis. trechos de conversas bradadas em tom de pregões de Bolsa: Casulos de Bastos. soja. Crédito agrícola. caboclos. Hospital o dia todo. ora diante da aparelhagem técnica. Algodão. Quartos particulares parecendo beliches de navios de emigrantes. das oito da manhã às seis da tarde. Tecelagens de seda recém-montadas. a salvo. Acabado o dia. palavras de materialismo. já sabia em que ritmo tinha que agir. como fibrilações: mamona. nomes estouram no ar. percorrendo os boletins oficiais e os despachos dos Estados-Maiores. no turbilhão daquilo que se chama genericamente “produção vegetal”. Pastagens. ouvindo o trânsito tagarelado para o cinema. letões. pneumonia. Extração mineral. A grande novidade: o rami. Falências. Papel e polpa. Taxas e fretes. Ao cabo de duas semanas. da enxurrada. Roberto Simonsen. Bem. lendo os jornais chegados. sitiantes e operários. raspa. tracoma. Na ida para o almoço e na volta do correio para o hospital. Enfermarias lembrando tombadilhos de cargueiros. com operados de apendicite e hérnia. entretendo-me com discos.. ou nos grupos por onde passo. opilação. gergelim. Gente de todas as origens: espanhóis. Arroz. Café. Vida acolá. cana-de-açúcar. pois. Departamento Nacional de Café. Frequência de ambulatório e estagnação de internamento constituídas por colonos. Metalurgia. Fome ávida de matérias-primas por parte das Nações Unidas. Transportes. úlcera de Bauru. Cifras de balanços quanto a mercadorias armazenadas e encaixes proporcionais. tendo remetido duas cartas para casa dando minhas impressões. Racionamento. torta. agudos e crônicos: malária. fumando cachimbo. Fernando Costa. Casos. Então aquela minha possível e provável experiência ecológica da Alta Paulista . Lucros brutos.. como deformação macroscópica do meu drama. recebi um rolo de vários números da Life.não significaria pelo menos o direito de desamarrar dos tornozelos a grilheta? Que solidão! Ah! Aquele mundo me era estranho. Durante dias . eram conotações copiadas de Fernando Pessoa. Entre o Natal e o Ano-Bom estive em São Paulo. muito mais. Fim de ano lúgubre para o mundo e tétrico para mim. Revirei bem as folhas à procura duma provável carta. através das quais entendi muita coisa. mesmo porque o apelo para a ação não me vinha dali e sim de longe. fazendo piada com as derrotas fascistas e. Mas. já que urgia aguardar. porque minha mãe e Germana haviam acabado de chegar. Lia e relia o telegrama na rua. Só em ouvir comentários e gracejos sobre as fantochadas de Vichy e em ler e seguir pelo rádio (o PRE — Rádio Nacional e o PRG — Rádio Tupi) a atmosfera de nervosismo do Ocidente (até fins de outubro por causa da chamada Batalha da Inglaterra) eu me sentia. mesmo naqueles confins da Alta Paulista. Junho de 1941. indo ao correio buscar correspondência. Poucas palavras. de Lauro e Rafaela. aturdido ainda e sempre. que Renata ficasse boa. folheando as revistas. Telegramas de meus pais e Germana. na cama. de tio Rangel e tia Maria Clara. à porta dos bancos. assim como o armistício franco-italiano me irritou como um escárnio. de Roberto e Conceição. nos cafés. e estranho me ficaria sendo enquanto eu lá devesse cumprir a minha tarefa tipo hard labour. se empolgando com a vitória naval inglesa de Taranto. me aturdindo. porém. mas cada qual com a sua marca efusiva onde a melancolia fora substituída por uma certeza de superação. Jamais me esquecerei do estado radioso que me tomou. nas reuniões. espetaculares. Ataque alemão à Rússia. Os colegas. O armistício franco-alemão dilacerou ainda mais a minha angústia. No dia do meu aniversário recebi despachos de casa e de São Paulo. como se fatos gerais. no ataque de Mussolini à Grécia. me crispassem não por sua veracidade incrível e sim. dei com dois poemas datilografados. abrindo o pacote. no hospital. ao sair do hospital antes de anoitecer. depois. à saída do cinema. recebi outro telegrama. Certa vez. Em casa. No primeiro mês os jornais e o rádio davam os telegramas da constituição do governo do general Pétain e traziam os apelos do general De Gaulle. Passei o dia em absoluta rotina procurando não pensar em mim para evitar considerações angustiosas. Durante o trabalho no hospital primitivo. os poemas. Não viera carta nenhuma. na mesa. só falavam em Sidi Barrani. ou durante a vigília em casa. ou em seus consultórios. eu estendia meus nervos para o drama da Europa. Levei várias noites a reler aquelas linhas — decerto passadas à máquina pacientemente — e a pensar em que condições e mediante quais cautelas tinham sido escolhidas no livro que eu dera a Renata. estando hospedadas em casa da prima Rafaela. A redação era bem típica dos bons tempos de Renata. eixos. Já não me sinto tão só quando recopio meu romance horas e horas seguidas. essa Alta Paulista onde estou confinado. Laval já não mais era assunto dos jornais. às vezes. Meu mapa é aquele telegrama de Renata e que abro. campeã nos índices de . pois a guerra passa a ser um espetáculo inédito desde que os alemães descem pela Iugoslávia abaixo e em abril Atenas é tomada. as entregas sendo já agora mensais e os rolos chegando juntos. embora os fatos do mundo e o meu degredo me obriguem a viver com a atenção e os nervos voltados para a Europa e com a alma e o coração ligados à lembrança de Renata. diferenciais. a adesão dos búlgaros ao pacto nazista. Os circunlóquios de nada valeram. e que outros meses procura fazer-me compreender seu sofrimento de alma. movendo-se. Conta-me que vai ficar noiva. A curiosidade dos leitores de jornais e ouvintes de rádio passara gradualmente a ser Tobruk. sobrevindo depois o ataque a Creta. Verdade é que me custou vir a ser parte. O fato e a certeza. como se a remessa e o empacotamento fossem feitos num único dia por mês. transmissões e alavancas que a faziam. Hacrera. Germana ignora seja o que for sobre a doença ou a saúde dessa pessoa cujo nome aliás nem cheguei a citar. estrofes de fácil transposição. Apenas me fala que sempre houve telefonemas e que deu a muita gente o meu endereço. mitiga de certa maneira o meu isolamento. A minha expectativa é um radar atento. Volto a viver isolado. dois. embora ignorando totalmente o que haja entre nós) — informar-me alguma coisa. pela Lambeth. pergunto por Beatrix. a Lei de Empréstimos e Arrendamentos. Sempre um poema em cada remessa. a tirar-me da solidão clandestina. Outros. Uns.acompanho as três a passeios e a compras. depois de assistir ao embarque de minha mãe e de minha irmã para o Rio. por via aérea. já agora. procurando esquecer o mundo de vez. pois o caduco de Vichy o exonerara. Mas o povo. abraço-a. Abordo perguntas mais diretas a respeito de tais e tais famílias. enfim dou margem a — caso ela saiba da doença de Renata (que conhece de vista e que sabe quem seja. quer de dia quer de noite. Até eu me ponho a ler. consulto. verdadeira criptografia. alheio à alteração de mapas. Germana me dá notícias de interesse a respeito de minhas antigas amizades e conhecimentos. passa a querer-me bem. embora sendo a cidade mais nova do Estado. de que Renata sabe onde estou. interessado. Percebo que certos meses ela se restringe a informar-me indiretamente do seu estado geral de saúde. a incorporar-me ao seu conjunto. a descida de enxames de paraquedistas dando uma feição nova à guerra e assombrando por seu ineditismo. fibra ou nervo daquele conglomerado orgânico de tendões. bielas. a interessar-se por mim. releio. Na noite de Reis regresso a Hacrera. a confiar no meu trabalho e na minha presença. Como teria feito para descobrir meu paradeiro? Chegam mais pacotes de revistas. arrecadação, desenvolvimento e produção. Mas eu “não me podia aliterar aos apaniguados de Mammom”, conforme me escreveu tio Rangel em resposta a uma carta onde lhe dava informes da região onde me enquistara. Acomodação grata com o corpo clínico, com a sociedade, com o povo. Ainda assim, reclusão depois do expediente hospitalar. E quem passasse pela calçada indo ou vindo do cinema ouvia uma rádio-eletrola tocar sinfonias, ou escutava o ruído do teclado duma máquina de escrever. É que desde muito eu retirara da mala os únicos livros trazidos, Morceaux Choisis, de Gide, e a Bíblia, embora sem suspeitar que, quando me retirasse definitivamente, a balança da estação haveria de pesar caixotes no total de meia tonelada. Sim, pois gradualmente àqueles dois livros se iriam juntando muitíssimos da minha biblioteca do Rio e os que editoras e escritores me mandariam de todo o país para eu escrever artigos de crítica na Folha da Manhã de São Paulo. Por melhor que fosse o êxito material e o trato que me dispensavam, e não obstante as amizades de que me vi cercado, o meu mistério não criava interesse nem curiosidade. Ninguém, mesmo nas eventuais rodas de psicologia mais aguçada, pressentiu naquele médico solitário problemas pessoais íntimos. Eu não frequentava residências, quase não era visto no Tênis Clube, transpunha discretamente a entrada de bancos, evitava rodas de café, escolhia certos filmes para aparecer no cinema; nos intervalos de expediente hospitalar ou durante as melhores horas noturnas, vivia relendo, emendando e recopiando laudas dum calhamaço. Em dada época dei em passear a cavalo nas cercanias do hospital. Certos domingos aceitava convites de almoço em fazendas. É que, se eu deixara um mundo a que continuava ligado por antenas obrigatórias, Hacrera mal conseguia polarizar-me dentro de seus cordões e ductos. Seria paradoxal eu me aclimatar àquele meio que só vivia em função de café, algodão, óleo, tecelagens, bicho-da-seda, gado, cooperativas, enriquecimentos, comissões, jogo de Bolsa, venda e compra de datas, lucros e riscos de toda sorte. A todo passo me apontavam sujeitos expeditos e loquazes, contando que se tratava de indivíduos vindos de Santos com avidez de gangsters, com fundilhos rotos, e que em cinco anos tinham nas mãos, como rédeas, cadernos de cheques. Era comum me apontarem outros, vindos da zona velha com economias e fortuna e, após vicissitudes, estarem agora em decadência chocante. Não raro ouvia alusões a grileiros e a cheques sem fundos, a golpes e a falências. No gabinete da minha especialidade atendia a clientes de toda espécie mandados por colegas ou vindos espontaneamente de Guarantã, Padre Nóbrega, Lucélia e Lins: colonos tanados de soalheiras; fazendeiros chegados em automóveis com instalação precária de gasogênio; japoneses que se explicavam em algaravias quase de pidgin. Um dia, depois da saída dum cavalheiro nédio com fisionomia de escultura em cenoura, vim a saber que se tratava dum suíço latifundiário com mais terras “aí para dentro” do que toda a área da Helvécia. Noutra ocasião, após servir um espécime caquético e taciturno, fiquei sabendo que era um soba da zona velha, político matreiro e antiga força quase absolutista na Alta Paulista. Causavam-me alergia certos tipos de ganância. Cumprimentava-me sempre, por exemplo, um medalhão agroindustrial das bandas de Sabina, um analfabeto ousado com tez grossa de capataz e desenvoltura de capadócio que vivia embarafustando pelas diretorias dos bancos sempre de pasta debaixo do braço, a arrancar empréstimos e obter cauções, a jogar na alta do café, a pagar para amigalhaços contas de oitocentos mil-réis de bebidas no bairro do meretrício, a embarcar todas as semanas para São Paulo tomando conta do Pullman com seu vozeirão e suas gargalhadas, sempre pomposo e rastaquera, tropeçando em gaffes e em sintaxe. Atreveu-se a ter a honra de escandalizar Hacrera com uma falência de montante espetacular, estarrecendo rodas bancárias e meios forenses, suas aventuras virando ensejo para piadas e anedotas. Constavam-me existências de comanditas sem idoneidade operando até em armazéns gerais, pavoneando-se em cafés, no Tênis Clube, jogando pif-paf com quantias e crédito ilimitados, como em cassinos de Santos ou de Poços de Caldas, construindo bungalows. E isso não era para mim tentação sequer de arquivá-los como personagens ou comparsas de qualquer livro eventual. Já em sentido contrário, eu sentia a pulsação tônica da cidade e da região através de seus pulsos sadios, responsáveis pelo progresso e desenvolvimento idôneo de todas as atividades passíveis de afirmação. Assim, o fato de uma simples casa bancária acabar transformando-se num banco de proporções tão olímpicas que alastraria sua musculatura pelo Estado todo em sucursais de gerências e expedientes verdadeiramente benéficos era um prodígio não só da época oportuna como de organização pioneira. Meu estado de ânimo criava reações críticas mas não desdenhosas. Eu tentava até acertar o passo e a velocidade de minhas possíveis eficiências humanas com o ritmo acelerado daquele exemplo moderno. Não considerava Hacrera produto anódino de Far West nem manifestação improvisada de “ponta de trilhos”, e sim traslação de bandeirismo, aglomerado de brio e de trabalho, fenômeno social e econômico. Tampouco me escandalizava com interstícios de astúcia e ousadia, atrevimento e desfaçatez acaso irrompendo pelas frestas ainda não calafetadas daquele mundo híbrido onde, à falta de válvulas de politicagem local — por ausência de eleições —, certas ambições individuais se cevavam na exploração da terra, do colono, do operário e até mesmo das profissões liberais. Estas, pela quase totalidade proba de seus elementos, imprimiam à cidade um sistema nervoso e reflexo. Advogados, engenheiros e médicos conjuntamente com banqueiros, fazendeiros, professores, funcionários, comerciantes, industriais, operários, sitiantes, colonos etc., conformavam Hacrera, davam-lhe estabilidade e desenvolvimento, depuravam-na de arrivistas, lixavam sua primitiva fisionomia bárbara ou adventícia. Colégios, instituições, bancos, tabelionatos, escritórios, empresas, organizações, a Santa Casa, a Casa de Saúde, aparelhavam a Alta Paulista com as comodidades funcionais e orgânicas indispensáveis. Claro é que não se tratava dum meio selecionado mediante programações prévias e teóricas. Hacrera, fenômeno real e pasmoso, também tinha, como corpo vivo, suas escaras e rebotalhos parasitando através de caldos de corretagem nas poças de estagnação circunjacentes à estação ferroviária e rodoviária onde a “paqueiragem” caçava clientes incautos ou bisonhos, arrastando-os para pensões coniventes e salas de espera de organizações e que mais pareciam depósitos humanos como aquela prancha O Mercado da Rua do Valongo, o livro de Debret. Hacrera... A sua avenida principal, já quase toda calçada desde o edifício do ginásio até diante do Tênis Clube e do cinema, formava uma fachada de corpo com hipertiroidismo. No bairro São Miguel e na ourela da estrada de ferro — contrafação imediatista de São Caetano e da Mooca — se erguiam entrepostos, cooperativas, serrarias, galpões, fábricas, usinas, com toneladas de produtos e de matérias-primas. Nesses redutos de cimento armado e de metal, com plataformas, chaminés, turbinas, caldeiras e transformadores, se processava, como num grande fígado, o metabolismo da Alta Paulista. Já na rua São Luís e transversais, lojas atacadistas davam à cidade aspectos de dinamismo concêntrico sempre servido por filas e filas de caminhões abarrotados. Pouco a pouco bairros residenciais substituíam orlas de matas e primitivas fazendas, modificando o anterior frontispício de casas de madeira. Assim, Hacrera, em sua evolução, estava a merecer reportagem, entrevistas e até ensaios sociológicos dos atuais sucessores de Rugendas, Saint- Hilaire, Davatz e Luccock. Em meio à azáfama de núcleos técnicos como os parques industriais da Anderson Clay ton, da Matarazzo e da Mac Fadden, em terrenos baldios surgiam sempre toldos esticados de circos; ou, diante das duas matrizes, se instalavam quermesses noturnas com alto-falantes e barraquinhas. Jamais supusera eu que tendo publicado em 36 meu segundo romance com remate suposto de fuga para o Oriente viesse, por injunções irônicas da existência, dar com os costados num crivo de aculturações onde os quistos de imigração japonesa, por seus aspectos inéditos, me interessavam sobremaneira desde os primeiros meses. Assim, achava extravagante tantas insígnias e tabuletas em caracteres japoneses, desde os nomes de tinturarias e botequins até os de organizações com verdadeiro sentido atacadista ou consular, como por exemplo (mais tarde) a Hinomaru Kai e a Hakko Kai. Pelas ruas o aparecimento dum macróbio com o neto amarrado às costas feito mochila era aspecto repetido em cada quarteirão. De todos os lados, dos trens, das jardineiras, dos fundos de pensões, dos portais de lojas e botequins, de caminhões e de escadas, irrompiam japoneses cujos encontros recíprocos eram espetáculos, tais as séries ininterruptas de saudações e zumbaias. A Casa de Saúde vivia atulhada com súditos do Micado; as sessões de cinema regurgitavam com suas presenças amassadas. As jardineiras, ligando a cidade com outras próximas, ou vindas de grandes distâncias — rijos veículos enlameados ou poeirentos —, depunham nas calçadas, com ritmo de sístole e de tenesmo, bandos de lavoura e de sertão, grupos descalços e de botas, baianos cândidos, espanhóis truculentos, caipiras enfezados, crianças barrigudas de opilação, caixeiros-viajantes com guarda-pós, capatazes entroncados, derrubadores de mato, mato-grossenses metidos em bombachas, ministros adventistas, letões de Bastos, ciganos balcânicos, funcionários de arrecadação, e até gente das barrancas do Paraná. E isso com profusão de dinheiro e doença, sacos e sacas, baús e trouxas, esteiras e utensílios, tais chegadas parecendo extravasamentos de retirantes e cabroeiras, cortes transversos de vagões e de tombadilhos. Enfim, fusão rural e portuária, toda a limalha humana remanescente dos ciclos do ouro, da caça ao bugre, da tropa de derrubadas. Algo entre curral tangido e acampamento itinerante, já não no Tietê e no Paranapanema, e sim no Peixe e no Guatemi. Reçaga febril de bandeiras, entradas e emigrações. Hacrera! Estrutura apressada de sociedade urbana e fabril dentro de áreas rurais; encaixe de primário civilizado em secundário virgem, dando imantação. Todavia, horas altas da noite, da minha janela, fumando cachimbo e pensando em coisas tremendas, eu via um, outro, mais outro caminhão cheio de móveis, de famílias, de cacarecos, atravessando a cidade, rumo ao Paraná, a Londrina. Sim, havia gente que não fascinavas, Hacrera, que te atravessava apaticamente, que desejava estabelecer-se mais além, onde houvesse melhor exílio. E eu, que cuidara ter vindo parar na ponta extrema da solidão! Nisto, abruptamente, nos primeiros dias de dezembro, uma notícia em brado cavernoso: o ataque japonês a Pearl Harbor! A declaração de guerra dos Estados Unidos! Dentro de dois dias a primeira vitória aeronaval nipônica ao largo da Malásia. Nove dias depois, Hitler assumia o comando da Wehrmacht. 1941 acaba tetricamente com a estabilidade imperial inglesa: queda de Hong Kong. Reflexo imediato em Hacrera. Acessos de xenofobia contra a colônia nipônica. Acidentes. Pancadaria. Comícios. Retração dos japoneses nas ruas, mas brilhos mordazes em suas pupilas sob as pálpebras em fendas. Fanatismo febril, secreto, que se iria multiplicando, urdindo uma teia sinistra que anos depois . pelo rosto. Dei-lhe um título extraído dum dos capítulos. o abarrotamento de Santos. Eram mensagens dando a entender que tudo devia perdurar assim até à hora nona. com um amigo solícito. transformado em Governal. coesos. Lia. mas de Tintagel. Mas. de ser aquele chão de neve de Dombas que vira numa fotografia da Life. longe ainda das futuras dissensões que dariam margem ulterior à ação fanática da Suishinbu e da Suishintai. Levei dias com um alvoroço incontido.se expandiria nos jatos da Shindo Renmei. Aqui me competia aguardar. atrás das cadeiras dos engraxates. a suposição do que iria acontecer. o general Tojo. nesta espécie de cerca de chuços. Interpretei tal palavra como um sinal de volta de Petrópolis para Copacabana. levando sobre os joelhos o meu romance que. iniciado no conforto da minha biblioteca de Ipanema. muni-me da carteira de identidade — eu que já nem sabia ao certo quem era! —. germanófilos pregavam bandeirinhas no mapa europeu assinalando os avanços. a minha alma? O meu tormento? A minha saudade? Tinha a sensação exata. da Life. embrulhei-o. Sim. Timochenko. acabara se transformando em bateia de garimpeiro. Já decorrera o prazo para um tratamento radical. Ia falar com ela! Já devia estar boa. amarrei-o. num grande mapa da tabacaria. até que uma sereia desferisse seu clangor ressoante: “Tudo livre!” Não a sereia desfazendo o blackout da guerra. E eu alheio a tudo aquilo. empolgados pelas vitórias. tive o dom de esquecer e . ao passar as mãos pela cabeça. os quistos nipônicos. Em São Paulo esperei a hora do avião lendo relatos sobre o processo de Riom. me mandava números. não porque soubessem geografia e estratégia. relia. mas porque tinham tempo para conferir relatórios e boletins. Stálin. Enquanto isso. em bigorna de laminador. toquei para São Paulo entre gente galharda e afoita que conversava sobre o Avanhandava. enfim as hipóteses alternadas em breve me criaram um nervosismo quase jubiloso feito de ansiedades apoiadas numa certeza peremptória: ia rever Renata. donde Renata como Iseu. a ideia de chegar. pois naqueles meses todos Renata. Eliot. até que certa tarde da primeira semana de junho de 42 tirei da gaveta o romance que concluíra. me chamaria para o litoral de penhascos da Cornualha. o último poema falava em mar. o Nelson. S. emendara e recopiara no hinterland paulista. E. decerto por intermédio de tia Noêmia. Entretanto. tornava a pegar e a interpretar aqueles poemas. E então o espírito se me clareou. Uma vez no ar. De dentro das folhas desses exemplares eu retirava poemas datilografados de T. com a tia Noêmia feito suave Briolanja. qual Tristão. pelo peito. vendo a paisagem baixa e dianteira ir retrogradando ao rés fictício da asa esquerda do avião. guardava.. do mundo. meu companheiro de vida e de temperamento. Roosevelt. na proliferação dos tokko-kai e da seinenkai. O ruído dos motores era uma orquestração. baterias. tímpanos. por sobre a paisagem vicentina. Ia agora levado a dois mil e duzentos metros de altura por cima duma paisagem nítida. clarinetas. violoncelos. atirando fora como lastro cuidados. tubas. pressentimentos e inibições. . em meio à primeira suite de Villa-Lobos — introdução e alegria — interpretando o Descobrimento. fagotes. violas. flautas.alijar o sofrimento maciço. de cujo panteísmo me vinha ânimo quase dionisíaco. contrabaixos. eu ia para uma redescoberta. Sim. pistões. Parecia-me estar sendo levado ao som simultâneo de violinos. trombones. oboés. Q UARTO CADERNO O diálogo das lágrimas A tarefa aprazada “Rapta ad angelis” O andaime e a demolição . à direita. O gradil. Tudo imutável. as diferenças. As janelas de cima e de baixo. em cima.. lojas. sou eu. nítido. bondes.. por fim convulsivo. Da banda do mar me vinha um revérbero de magnificência. como até 1940. o meu nome. à esquerda. alívio e queixa. prédios. morros. contrafeito. estátuas. Ah! Agora. tornei a telefonar do varejo de cigarros. a casa. as imediações da casa de Renata. Ruído oco. agradecimento e desespero. Flamengo. sem cerimônia nem reserva. Vou passar por aí”. até que Renata pôde repetir muitas vezes. quando senti que uma voz atendeu. vocativos e súplicas. Então ela não adivinhava? Não sentia? Por que era que eu não batia palmas. jardins. Liguei para lá. I A visão global do Rio de Janeiro me empolgou.. tudo bem carioca. Ônibus. anúncios. fechadas. Nada de atenderem. como se a última vez da minha passagem por ali tivesse sido ontem. Jor-ge! Então ela prorrompeu de lá num pranto lancinante. fachadas.. sentindo uma alegria misturada com sofreguidão enquanto ouvia o chamado insistente. empastado. Saltei no aeroporto e logo se deu o prodígio: instantaneamente me inseri na movimentação urbana. rouco. . defronte. cheio de sentido. não me dando sensação intrusa. é. o jardim. túnel. Sumo Bem! E aquele pranto (fluente.. quem. em exclamações... praças. pessoas... Não pude conter meu ímpeto: embarafustei pela rua acima. saudade e certeza. E já ia desligar.. benéfico.?! — Sim.. Reconheci-a logo. não tocava a campainha. dizer: “Estou aqui perto.. ge. calçadas. sincero. rua Barata Ribeiro. Tudo imutável. alamedas. inútil. desafogo e paroxismo. — Aqui. entrecortado. Como meus olhos saudavam essa estereoscopia de trajetos! O Rio de Janeiro! Eu! A cidade verificada nos pormenores de esquinas. mesmo essas. Russell. Entrei no mesmo botequim onde tantas vezes entrara para telefonar.. Botafogo. dissolvendo as sílabas do meu nome em sufocação estrangulante: — Jor. O percurso pela antiga área do morro do Castelo — tão diversa do resto da cidade — não me interessou senão como travessia até me ver diante dos trechos tão conhecidos desde a infância: Monroe. o. Era como se me debruçasse sobre um mapa de clorofila e vidro que pouco a pouco principiasse a crescer até adquirir veracidade de espera e oferta. não ficava parado diante do portão? Voltei ao botequim. nessa tira fisionômica tão característica. táxis.. presente. Saltei em dada esquina. fala.. gratidão e ânsia) não parava mais de brotar. zonzo. curva da Amendoeira.. Glória. desmanchando gabinete e escritório. alertada por premências e entusiasmos. curiosidade e triunfo. dizendo ser uma cliente com uma requisição clínica de exame. de tamanho sacrifício. Mas que meu gesto dando sumiço à aparelhagem fatídica. até que prorrompi em lágrimas. seus apelos! E agradecia haver eu adivinhado e seguido com estoicismo a necessidade de exílio e de separação. não podendo conter-se. que saíra do Rio por uma temporada ampla. Tomou-me uma angústia paradoxalmente envolta em júbilo. indagou da minha saúde. Mas que. arrasando o ambiente e os utensílios da condenação irônica. reaver o ânimo. pudera avaliar e medir com a escala do seu tormento a capacidade do meu sacrifício. e que imediatamente se entregara com todas as veras a uma única finalidade: ficar boa para merecer-me. ligara de novo o telefone e fizera. as razões de haver eu guardado segredo da localidade onde me encontrava: o desejo absoluto de cooperar por um modo . específica. Procurei explicar-lhe. depois de ouvir minhas respostas. percorriam meus nervos despertando exaltação em meu cérebro. Quanto ao meio de vir a certificar-se do meu paradeiro. comentava. dias depois. que ninguém no mundo podia fazer ideia do seu suplício. explicou que se valera dum expediente: telefonara em começos de agosto para a minha residência. E ela então esclareceu que ao saber que eu saíra do Rio. sua saudade. E quis saber se eu recebera o telegrama. com a explicação de tia Noêmia. E que assim. ela fazia perguntas. E. Que não podia mais! Que só Deus sabia da angústia em que vivia por minha causa. receber incólume aquele clamor angustiado. aspirar para dentro da sua avidez feliz e dolorosa os sinais da realidade aguda. Sensações centuplicadas de afeto e carinho. Agradecera neutramente. assim que atenderam. E então aquela voz de sempre. declarou que se rebelara muitas vezes. os poemas. perguntou quando eu havia chegado. querendo ouvir. ela conseguiu dominar-se. acreditar na surpresa violenta e inefável. a enchera de ternura infinita. Depois pediu que lhe falasse da minha vida. Que achara meu gesto duma nobreza exemplar. dizendo ser da secretaria do hospital São Cosme. que estava clinicando e escrevendo um livro no interior mais recuado de São Paulo. que a informasse dos meus dias e dos meus trabalhos. E que uma voz — decerto a de Germana — informara com solicitude e lástima que eu não tinha mais consultório. ultrapassar tudo. lhe disse da emoção causada por seu telegrama quando do meu aniversário. as revistas. se sentia seu carinho. então. inconfundível. explicando tudo resumidamente. no começo reagira ante a perspectiva duma solidão insuportável. uma emoção cruciante. queria sempre saber mais. ouvia aqueles soluços incontidos que vinham a mim como bolhas sufocantes. da minha alma. se lhe perdoara a exigência daquela disciplina. Após alguns minutos assim. se me lembrava sempre dela. fiquei com uma verdadeira pujança nos sentidos e na alma. Não podendo falar. Em dado trecho lhe perguntei como fora que soubera do meu paradeiro. Atendia-a. tia Noêmia perguntar o meu endereço certo. — Entendi tudo. Respondeu com presteza e naturalidade a perguntas minhas. Para que se concentrasse no seu tratamento. Para a cessação súbita de cuidados e angústias. Mal souberam por alto do meu caso. que se fartava de ouvir música. mas a consciência sofria por ele que sentava numa cadeira rente à minha cama. só descendo de carro nos dias de consultório. que o meu exílio deveria ser interrompido em breve. que. Contou o tempo do tratamento. as insuflações feitas. violento. E passou a dar os informes que lhe pedi sobre sua saúde. Mas que isso de cura exigia um período de dois anos e meio no seu caso. ficava a olhar-me. Não foi preciso submeter-me ao constrangimento de expor-te a minha situação. Abrangi logo o alcance do teu intuito. ou tinha que solicitar que me entendesses. bem vês.assim tão paradoxal para a sua cura. que não tinha complexo nenhum e tampouco pânico da sua moléstia. do que és capaz. Declarou que ultimamente ia até assistir a um ou outro filme bom. sei que compreendes. sabendo de modo peremptório que eu me arredava em benefício principalmente da sua saúde. entretanto. um modo cruel. fez-me indagações evidenciando interesse e curiosidade franca. aflição por causa da doença. aquele cuidado. só te passei aquele telegrama e me restringi à remessa de revistas. ouviu atentamente os meus conselhos. E passou a mostrar conhecimentos exatos. de mostrar-te a minha realidade doméstica. eu bem compreendia. dormindo no Rio e regressando na manhã seguinte. O coração sofria por ti. não tivera tempo de esgotar o sortimento de livros que eu lhe deixara. e ter que inventar estratagemas. E redobrava de atenções! Ah! Era cruel para mim tal situação! Ou eu morria. vieram logo. que entrara já numa fase de rotina terapêutica. Sei que alma tens. — Foi. para a sua paz. postaram-se ao meu lado dia e noite. a empregar terminologia de tisiólogos. que a sua gente também já perdera o pavor. a dizer o que lia. a cuidar que fosse medo. quiseram aposentar-se. Sim. E os poemas? Entendeste? Mando-os como um código sucinto para diálogo. já se acostumara a confiar na cura. acentuou que eu ficasse mais do que certo de que ela entendera a razão material e espiritual de haver-me afastado aparentemente da sua vida. percalços e vexames. que sentimento é o teu. a ironizar seu caso. a citar expressões clínicas. Logo ficou provada a impossibilidade de comunicar-te ao menos o meu estado de saúde. arranjaram transferência para o Rio. Tanto que não te escrevi. seria crueldade minha ver aquela assistência. explicar que todas as providências haviam sido tomadas segundo a tua . Que estava continuando o pneumotórax. os seus pulmões. que no começo vivera em Petrópolis. que a tal caverna (e aí riu. E que havia de fazer? Se nem podia atender aos teus telefonemas! Se nunca me via sozinha no quarto! Se não arranjava um expediente mesmo perigoso para comunicar-me contigo! De mais a mais. Era natural. quase unida. como outrora) estava colabada. subterfúgios. a adivinhar a minha angústia. estão sempre perto. sujeitarmo-nos a uma separação.. nem mesmo como eventual intruso.. ficares à margem de tudo! Como uma coisa real e súbita provou com evidência dramática o tormento inenarrável a que teria que ficar reduzido o nosso caso! Tia Noêmia. por exemplo. com os olhos e os ouvidos muito atentos para a escada.orientação secreta. para tranquilidade relativa mas que ajudasse o meu tratamento. Tu próprio te empenhaste em me aliviar de sobressaltos.. em Hacrera. era necessário um sacrifício que. Trata-se agora tão só duma consolidação. não preciso dizer-te mais nada a respeito. por amor da minha vida. tinhas que transpor uma fronteira. seis meses. quanto mais como um amigo. não entendesse. do meu tratamento precisamente naquela hora em que o ar para os meus pulmões seria a tua presença. uma criatura como tia Noêmia se oferecer a essa grande prova de misericórdia e compreensão! E não foi necessário ela te solicitar nada. Voltarás para Hacrera por uns. vendo o meu sofrimento. foste para longe a fim de outorgar-me sossego. confusamente: a certeza de que seu coração permanecera inalterável. me fugia. assumia ainda assim um caráter de medida indispensável. sabes? praticamente estou curada.. Eu continuarei a dar informes por meio de poemas. — Tu sabes que se não me despedi foi por isso mesmo. se ofereceu a ir conversar contigo. às vezes. Teres que te afastar da minha vida. o teu desvelo! Que ironia cruel compreendermos ambos. arrumarás a tua vida material. segurando as minhas mãos. influir sequer com um pedido. como médico. amor! Respeitaste religiosamente a minha situação. Imagina tu. Sim. viesse a piorar. quando telefonasses. ainda. como te agradeço teres entendido que eu precisava que me prestasses um favor sobre-humano. Cartas. O fato de ir para longe te viria a ser esclarecido mais tarde. alijaste de vez a instalação técnica que te causara aquele golpe na alma.. sem perder uma sílaba das suas palavras que me provavam uma certeza que. Ah! Jorge. sumiste. por exemplo. — Tia Noêmia. sendo martírio para nós ambos.. Enquanto isso. Coitada! Transida e pálida. e tratei com todas as veras do meu ânimo e da minha saudade de ficar boa depressa. talvez até reagisse. Trata de . Pois é. Eu escutava sem fazer o menor comentário. não digo que as escreverei. Não podias esgueirar-te por entre o meu drama. És médico. pois bem sabias que se eu viesse a saber da tua decisão passaria por um golpe medonho. E. Nem te despediste. Tu mesmo logo te deste conta de que.. — E foi o que se deu. meu pobre Jorge! Foste aguardar longe o prazo do meu tratamento. Assim. Parecia agora que o sofrimento o tonificara. assim que conseguimos ficar a sós — quando desceram para o jantar — me contou apressadamente a vossa conversa. De mais a mais não quero avivar sofrimentos que uma correspondência secreta reavivaria na minha alma. De minha casa informariam onde eu me achava. Sim. Ah! Sossego.. me disse que tu entenderas tudo e que ela percebera que ias fazer alguma coisa decisiva. E de fato fizeste. E que então sim. muito grave. e por fim quis saber o título. Neste tempo todo. E então. que dom de interferir e de comentar! Passou depois a querer saber pormenores de Hacrera. falando.. A de sempre. emendando.. Rindo. que trouxera.. Deus há de apiedar-se de.. que estava com ele debaixo do braço. que levara dias sem poder abri-lo. onde eu morava. população. de como mantivera sempre diante de mim o papel que ela dois anos antes escrevera sugerindo que fizesse assim e assim. Indagou. Contou que adquirira um mapa moderno de São Paulo. — E como vou fazer para lê-lo. Como vou ler? Já arranjaste editor? O mesmo? Ah! Ótimo. que tinha o Larousse à mão para fingir procurar coisas eventuais.. Era a antiga Renata. — E se eu te pedisse que o entregasse ao editor? . Foram à cidade. a um banco. nenhuma alteração cabendo mais. por telefone. o todo exato e uniforme. que ela ficou algum tempo calada e confusa. se via sempre seus retratos. chamaram um táxi do ponto. Tamanho. me repôs no clima de antes de 1940. fingindo distração vaga. percorrera o litoral. como era o hospital.. logo a seguir. todos. Pois remete para lá.. que desse força a tais e tais personagens.consolidá-la para quando vieres definitivamente. Novo silêncio. Disse-lhe do meu esforço quase maníaco em cima do texto. se gostava dos poemas.. E dei explicações minuciosas das normas seguidas. ela. Fez perguntas. depois perguntou com tristeza vincada de embaraço. Que o dobrara dentro do Larousse. relendo. escutando. e descobrira sem falar nada. — Mas sem que hajas lido? Será possível? Disse-lhe isso com tal veemência.. se praticamente não estou nunca sozinha? Por um acaso providencial me achaste sozinha. saíram raramente pois tomaram providências radicais de vida. o tempo que durava a viagem. para disfarçar. então. distância de São Paulo.. entregar-te o original. depois declarou: — Vieste então entregar-me o livro? — Expressamente para ver-te e. de como o refizera mais duas vezes... Jorge. Imagina só. aprovou.. com um senso pertinaz de artesanato. do meu livro. Achou magnífico. onde estava Hacrera. Perguntei-lhe como devia fazer para entregar-lhe o romance. dos meus trabalhos. Que temperamento. Renata. quando telefonaste haviam saído havia minutos. aconselhando que distribuísse desta e daquela forma os episódios. desde que tia Noêmia — encarregada de comprá-lo — lho trouxera fingindo o haver achado por mero acaso nos fundos duma estante. que clarividência. muito calada.. desesperadamente. depois localizara as cidades antigas e as novas. E que terminara. Ficou quieta algum tempo. copiando. deformaste situações. Pensava de lá.. elaboraste variantes e disfarces. pois tomaste cautelas.. aconselhando.. cuidadosas. filho.. quero ver-te. te pediu que corrigisses? — Jorge. fui causadora de o outro romance — interferindo. — .. desce. Se o refiz pelo menos três vezes sem contar as leituras lentas. uns discos. me envaideci. às claras... quem. — Quantas vezes o refizeste?! — Nem sei. se for possível para um pouco. critico livros que me mandam. Daí a pouco.. tomei-me de narcisismos! E como era impossível descreveres a verdade já que estávamos peados por tantos embaraços. mas na verdade não somos nós realmente. sobe. Afinal.. Como era um romance autobiográfico. Jorge. — Então vou depois à cidade. — Não. diferente. E de repente começou a tossir. saiu bom. os livros e os discos para o endereço de tia Noêmia. não foi pressa. Às vezes ia me deitar às quatro da madrugada. Escuta. levantava-me às oito por causa da Casa de Saúde. evidentemente não houve pressa nem atropelo.. Passa. englobando um período tamanho do mundo.. Não emprego direitinho os termos? Escuta. Eu. Por que essa pressa?!. — Não foi nada. — Não podes descer? Pegar o embrulho com o romance?. — Posso ir aí? — Oh! Não.... Tens cópia? — Tenho. Foi porque me inclinei e forcei o pulmão colabado.. sem parar.. Conheço dois terços. Dia e noite. Tudo culpa da minha vaidade. tão comovente! Mas quando entrei eu como personagem.. Achava-o esplêndido. nisso de. a primeira parte. Façamos uma coisa. está tão boa. Além disso. da tua vida. Em certo sentido é como Os Thibault. tiveste que criar sucedâneos aos episódios.. o meu romance.. Percebi que tampou o bocal do aparelho. — Mas. Falei tanto que até me esquecia que era doente. Impossível... a da tua infância.. E ela te entrega. disse com ar risonho. mas não muito defronte. discutindo — haver de certo modo saído desorientado. — Ah! Não. nisso de abranger gerações. tenho escrito para jornais de São Paulo. Enfim. Estás vendo? Colabado. temos muita responsabilidade nesse teu romance... Impossível. traduzo para editores. — Quanto trabalho! Façamos uma coisa. Quase cinco anos. por exemplo?... Trabalhas nele desde fins de 37. quis colaborar. que uma amiga. Passa pela calçada do lado de lá. Não poderias dizer que é tradução dum livro inglês. do desejo de que me soerguesses a um clima de platonismo de . e mando tudo. Não digo bem.. das tuas memórias. — Não está direito isso. é a tua grande obra. para eu te poder ver bem. e tu. compro-te uns livros.. — Escuta uma coisa.. E a verdade é que te saiu. pensando bem. é o melhor que tenho a fazer. já a leitura é feita sem saturação. Fica assim combinado. Por exemplo. o tempo passou Deus sabe como. Se digo “emenda mais seis meses” não estou dizendo que sujeites teu livro a torturas. Boa estou. amanhã. Queres? Aceitas? É um pedido meu que. — Deixas que te telefone? Se não puderes atender.. colabou.. Como é isso?! — De fato.. Saio sim. pode-se dizer que tem corpo e alma.. passará hoje.. Até lá estarei boa de vez. Quando é que vais ao médico? Vais com quem? Tia Noêmia não te leva de carro? — Jorge! O médico vem fazer a aplicação aqui em casa! Não saio nunca! — Como?! Não sais nunca? Mas não disseste que praticamente já estás boa? Que até uma vez ou outra vais a um cinema. Minha temperatura é normal.. e que com isso só te adveio vantagem? Não há quem diga que é teu romance mais perfeito?! De mais a mais já te expliquei.. Está bem. desculpa em haver insistido. Digamos.. desde 1924 até 31. E. dás uns passeios?. que estou ansiosa! — Não podes mesmo sair? Amanhã. Emenda-o mais uns meses. Não tenho febre. Jorge?! — Está muito bem.. — És uma grande alma. Isso decerto te aflige. A espelunca.. O ápice tem clareado. da minha parte.. relido tempos depois de realizado. Tenho estado em casa de tia Noêmia. nervosismos. Entendes? Queres? Aceitas? Hein. pois sabes melhor do que ninguém que um livro. Disse-lhe.. escuta uma coisa: se eu te pedisse mais um sacrifício? Afinal. Está bem.. como disseste. Assim. verdade e mistério.... sobrevém outra lucidez.. — Pois então?! Silêncio opressivo.. ação e poesia. Vou seguir o teu conselho. Realmente. sua lógica. Até lá reingressarei na vida civil. — Volto para Hacrera com ele.. depois do corte da aderência. E não está direito. assisto no mínimo uma vez por mês a filmes no Metrô de Copacabana. por exemplo? Ou depois?. mas pelo menos te dei full-time para realização integral do teu terceiro romance. seis meses. não é mesmo? — Sem querer. não disseste sempre que teu primeiro romance ficou numa gaveta durante sete anos. fica tutelado por inibições. afinal: — Amor. te distraias e depois comeces a reler como leitor. Os sintomas todos sumiram.. nos saiu um romance que da página 1 à página 364 é memória mas que da página 365 em diante perde sua autonomia. — Escuta! Mas.. Entrega-o ao editor.romance inglês com auras místicas de novela espanhola. a minha voz era outra. esta guerra se terá esclarecido. que ouças música.. filha — respondi. só será vantajoso. e sim que descanses um pouco. desapontado. já se está formando fibrose em torno. Eu entendo tudo.. Agora passa aqui defronte. depois. a constituir cuidados. Desaparecerá este ambiente. ou se atenderes e tiveres . a soluçar! Prossegui. Olhei para o prédio. Atenção. enfim. e eu sentia uma emoção estrangulante. pouco recuado da rua. com exaltação confusa. ela mostrou-se e cobriu o rosto. Voltei-me logo e dei uns passos até dobrar a esquina. Nem que tenha que te chamar. Um pouco para dentro da sacada.. Todavia continuei ali na esquina. possibilidade. entendes? Desligou. Eu entendo tudo. em soluços.. quase parando. olhando sempre para lá. e seria horrível se eu não te pudesse ver.. balbuciando o meu nome. Quando passei bem defronte. não devem tardar. morena.que disfarçar. apontando para o original do livro na minha mão. aquilina. “Como a família é verdade!” Minha mãe um tanto grisalha. Dei dinheiro ao homem do varejo. meneando a cabeça sorrindo e chorando.. Meu pai atarefadíssimo com o expediente da repartição. em paga do tempo demasiado longo que lhe ocupara o aparelho. tudo rodando à minha volta. Um táxi aproximou-se do meio- fio da calçada. Depois fui para casa. — Escuta. fazendo que o pegava e beijava. O essencial é que tenhas paz. retomando a mala no varejo de cigarros. às voltas com . ora procurando ver. não faz mal. esguia. Um pouco para dentro. sempre que houver ensejo. Lá estava ela. em pé. telefonarei para tua casa. cheio de vexame. chorava. Sim.. Estava para dentro. com o rosto tapado. que o apanhava e apertava de encontro ao coração. mais cheia. Onde estás? Onde?! Ah! Sim. tive que me agarrar a um poste e ali ficar em atitude miserável. Muita paz. procurava reavivar todas as minhas energias a fim de poder fixar-lhe bem a imagem. de tia Noêmia! Quanto tempo vais ficar no Rio? Demora o mais possível. — Não sei — respondi. Germana. Saíram de táxi. ela apareceu. Não vi mais ninguém. tirou as mãos do semblante. pedi-lhe que me guardasse por uns momentos a mala. Repus o chapéu e daí a instantes reapareci para observar relativamente de longe. Lar. Olhei para a sacada da frente. hipnotizado por sua presença em potencial. E eu. Comprei-lhe cigarros. ela não tirava o olhar de mim. Ou será melhor me telefonares tu? — Está bem. Um quase nada mais forte. em cima. mostrou-se de novo. ora sumindo. As lágrimas me caíam pelo rosto abaixo.. sim. Pois sim. O rosto porém. eis que a vejo recuar. E estando assim ali. decerto devido a cautela e emoção. telefonarei. Levei assim nesse alvoroço mais de hora. dando um passo à frente. Voltei. Mais magra? Pelo contrário. agradeci de modo bem objetivo. Então passa já. Alguma diferença. Efusão. Passei olhando bem. vou desligar. Atravessei para a calçada de lá. com o embrulho do romance numa das mãos e o chapéu na outra. Já o carro dava a volta na rua para aproveitar o declive do passeio diante do portão. Mas quando me viu parar bem defronte. Dirigi-me para o lado que vai para a praia. e tornou a recuar. Não há o que eu deixe de entender. provava ainda o mesmo status quo doméstico. Sim. o mar tão mutável. Tia Maria Clara não se fartava de mostrar os retratos do primeiro neto formado em direito. Viver assim. Eu saíra do Rio havia dois anos. Telefonei para dar boa-noite e dizer que estou bem. Fiquei na biblioteca. longe dali e da conversa. tomava-me duma esperança cálida. como sempre.. avisados. Declaração conjunta das vinte e cinco nações aliadas. mal ouvia os arrazoados de tio Rangel cuja voz me parecia a do Repórter Esso. meus pais e Germana já haviam subido. O velho desembargador riu satisfeito. Tio Rangel pegou no chapéu para ir embora. fazia cálculos. ainda não marcara o casamento. Conferência pan-americana em Havana e no Rio de Janeiro! E Cingapura a cair. Se será! Ahn!!! E lá se foram as duas silhuetas venerandas ao longo da calçada da avenida Vieira Souto. Quando reentrei. — São. Corregidor. Ah!. ansioso. no que foi ajudado por Germana. Reconheci a voz de Renata: — É tia Noêmia? Como vai? Já estava deitada? Ouviu a irradiação? Que coisa. Rapapés e discursos. de eu compará-los a Disraeli e Mary Anne. usando do expediente de fingir estar falando com tia Noêmia. O jantar e boa parte do serão decorreram sob o domínio de tio Rangel. solicitava. apesar dos seus canhões.... Sensação. Pânico. hein?. Ao jantar. Revia a cena da sacada. E de fato ela me informava estar praticamente boa. considerava pormenorizadamente as palavras ouvidas. às onze e pouco. Que é que isso representa?! Que será retomada. Tão raro passar um navio!. apareceram. sem ânimo para subir quando. Pensar isso é uma coisa. tia Noêmia! O fato de Renata telefonar. Ergueu-se. Que bom rever e sentir a paisagem entre o Arpoador e os Dois Irmãos! Ter diante de mim aquele areal de sempre.as suas aulas num instituto oficial. por enquanto. porém. escutava os soluços.. procurou ligar o rádio. Impossível dormir. furibundo: — Bem. as ilhas áridas lá longe. o telefone tocou. para . — São uns meninões esses ingleses. compreendo que possa cair... Encravei-me ali em Ipanema. dois anos aturados. Há muito tempo que não passo um dia assim tão animada. suspenso em minhas emoções e expectativas. Até amanhã. toda entregue a corrigir provas mensais. Fora o prazo normal para o tratamento e a cura. mas me deitei sentindo conforto e consolo. Estão a apregoar a tomada de Madagascar! Será que com esse golpe meramente poético julgam desfazer em si mesmos e no mundo a péssima impressão da queda de Hong Kong? Eu. tio Rangel e tia Maria Clara. Achei-os mais do que nunca um casal admirável. E então o que ouvimos foi de estarrecer: a queda de Corregidor. apenas bem-intencionados os governos das Nações Unidas.. Todos já dormiam. Fui passear na praia. Mas permanecia sempre com os ouvidos atentos. sentei-me diante da grande amendoeira. o mar. estirei-me na cama. bem depois das dez. — Boa noite. sala de estar. que nem antenas. uma coisa: se eu desligar.consolidação e decerto para uma gradual normalização de vida.. subi. Desligaram logo. as ilhas. bem diverso e arranjando uma voz idiota. não saí de casa. lendo um jornal. Fui para o jardim. Atendeu a mesma voz de pouco antes do meio-dia. ouvimos a BBC fazer grandes comentários à situação. sou eu. Uma voz de homem atendeu. APENAS. tomado de imprudente nervosismo. Uma voz baixa disse apenas: — Boa noite. quando o telefone tocou. Uma voz cautelosa: — Quem fala. De noite. quando o telefone tocou. berrei que me chamassem o Miranda! “Miranda?” Não. durante o qual MacArthur foi o tema. meu Sumo Bem. a passagem esquisita de veículos a tração animal (por falta de gasolina) e de automóveis bizarros com suas instalações de gasogênio. Perguntei se era o número tal e tal. O dia passou. Jorge. fiquei a contemplar o poente. Mas havia a possibilidade dum chamado a qualquer hora. Isso. E agora. nisso não mentindo de forma alguma. Almocei atento. Insônia.. Ali mesmo no escritório atendi pressuroso.. mais seis meses. Jorge? — Sim. Só voltei depois de ter chegado quase ao Leblon. — Escuta. Dois anos: dois séculos num campo de concentração. Eu a dar as impressões mais otimistas. Assumi uma vitalidade intempestiva. ali não havia Miranda nenhum.. Antes do almoço. Mas fica .. não toques para aqui. mais ou menos sempre perto do aparelho. depois me instalei na biblioteca. tornei a ligar. Antes do jantar não consegui resistir mais e. Jardim. dando outro. o farol. Até amanhã. Renata curar-se-ia antes do mundo?! No dia imediato. pois mamãe não se fartava de matar saudades constantemente a conversar comigo. Na manhã seguinte estava eu à mesa do café. Saí.” Desliguei. Entrei.. Antes. escritório. por volta das oito horas. Vigília. sozinho. depois de muito girar em torno do telefone como limalha agarrada a um ímã. Minha mãe a querer saber particularidades de Hacrera. mais seis meses apenas. “Engano. depois de esperar alguns minutos. de timbre e disposição. esforçar-se por dar valor moral a vitórias ianques se acentuando no Mar de Coral. não aturando o meu estado de tensão. após o jantar. telefonei cautelosamente para a casa de Renata. entenderei que és tu e que estás perto. bem diferente. com as mãos para trás. os vultos de Renata e de tia Noêmia atrás do canteiro da frente da casa. quero pedir-te uma misericórdia: volta quanto antes para Hacrera. Seus cabelos. cortados à maneira de pajem. fingindo ajeitar a aba do chapéu. Ouviste bem? Eu ia responder quando ela sussurrou: — Não posso prosseguir. — Vou passar por aí. lábios e faces pintados. Usarei de qualquer expediente. Na semana passada contratei advogado. Olhando porém para o jardim vi nos fundos um carro particular. Sabes quão difíceis e longos são os trâmites judiciais. Vejo tia Noêmia muito lívida mas com fisionomia compreensiva. mesmo: já não tão magro e incisivo como antes. e distingui de relance um homem conversando com o motorista. Na hora de embarcar passa por aqui. conserva a mesma beleza. telefona antes. Mamãe apenas reiterou as admoestações referentes a eu ficar meses e meses sem sair de Hacrera. Então ela disse. recomendando que chegasse meia hora antes a fim de preencher a ficha. Decerto efeito do regime a que se vem submetendo. E passei devagar pelo lado oposto. Almoçamos cedo. que o automóvel parado lá no fundo do jardim era de Carmem. Mesmo que outra pessoa atenda. Ao meio- dia telefonei para Copacabana. têm uma leve ondulação. usa um vestido que reconheço: o da sua visita à sede do Caduceu em junho de 1940. deixando a mala no táxi. muros e gradis. antes mesmo de ver direito. Reservaram-me lugar para o avião das duas da tarde. Tudo fechado. Trata da passagem. Jorge. Farei o possível para que me vejas. examinavam ambos o motor. . Renata. Prometi vindas amiudadas e mais longas. Daí a um quarto de hora saltei na esquina. telefona para o aeroporto para que te arranjem lugar. Diminuo o passo. me contempla com ânsia indefinível. Logo que cheguei à esquina seguinte atravessei para a calçada oposta e vim rente a portais. Estão lá embaixo no jardim. Posso ver melhor o seu rosto. Às nove horas telefonei para o balcão da Vasp. A parede da fachada encobria o lance lateral do jardim em cujos fundos estacionava o automóvel fora da garagem. E nisto adivinhei. Estou sofrendo como só tu podes avaliar por te saber no Rio e não te ter aqui perto de mim e nem poder sequer falar contigo. com voz muito lenta e muito baixa: — Há meses que venho debatendo com Fulano a nossa separação. Os meus tomaram meu regresso como coisa natural visto eu em conversas constantes haver avisado que não poderia demorar-me no Rio. Peço-te a paciência de mais um ano de exílio. encostada na parede da casa. — E desligou. Concedi- lhe um prazo. Compreendi ou reconheci. Passei aparvalhadamente. todavia está diferente. Renata atendeu.por perto do telefone. nem sei bem. Hás de calcular quanto eu anseio pela liberdade. aquilina. Ouço uma voz chamá-la. Ela não responde. . fazer uma pergunta absurdamente natural de expediente doméstico. os lábios soletrando vocativos. assim. aquele olhar pungente. esguia. os olhos presos nos meus. aderida àquela parede. Ao fim do gradil volto a cabeça para rever aquele semblante amargo. morena. Bosques e mais bosques de eucaliptos até Garça. Restaurante. Parati. Rua Barão de Itapetininga. Tanto a primeira parte da asserção é verdadeira que uma voz feminina. se o mundo está cheio de campos de concentração? E não é isto uma paradoxal menagem me dando direito ao tempo e ao espaço. Pederneiras. Senhor? Donde venho? Até quando este tormento de solidão apreensiva? Um ano mais? Está bem. Estação da Luz. Manhã. cicatricial do tempo de nossa dependência às matrizes sagradas? Ou a alma também tem seu feixe de fios ligado a outras almas? Eu estou aqui a dois mil metros de altitude e por mais veloz que voe este bimotor não me desliga de Renata que por sua vez. Queixar-me por quê. Depois. passemos ao essencial. Horas. Estou amarrado aqui. como se quisesse roçar no mar da Mancha. Este raio desta palavra espacial e temporal “longe”. diferentíssima da de ainda agora (da aeromoça) sussurra helicoidalmente nos meus ouvidos: “De qualquer modo dentro dum ano estarei ao teu dispor para sempre”. Que raiva! Corcoveio sem querer. Baldeação para a bitola estreita. E imediatamente o avião começa a pular e a sacudir-nos por causa de sucessivos vácuos. II O avião é um artefato lúdico insistindo em inexistir sobre o édredon das nuvens acolchoadas que o reduzem a brinquedo com mola em cima de flocos de creme chantilly. Congonhas. “Isso aí embaixo é o oceano Atlântico.. Haverá apenas o umbigo anatômico.. sem saber sequer onde isto era. Por entre aquele texto oral sussurrado mas categórico se intromete a voz da aeromoça: “Apertar os cintos”. mesmo atada a mim. ainda não conseguiu safar-se do ecúleo. receio vomitar. Vera Cruz e Hacrera. Noite. Onde estou. ora é advérbio. distanciadas por geometrias de cafezais e algodoais em losangos. vou discernindo Angra dos Reis. quase de contralto. O vidro embaçado é uma escotilha inútil por causa da bruma do mar da Mancha. à . O trem a fazer curvas na paisagem ampla que desce pelos dois lados do espigão. o cinto sacrílego me machuca o umbigo por causa da fivela. Pelo menos devo acreditar no que me disse e na impressão que tive. Ubatuba. Há dois anos passados vim ter aqui. O Atlântico!” De fato. Levo alguns minutos a repetir o compromisso que Renata assumiu comigo. de tal modo o cinto me sustém e me dependura. Vagão-leito. Da Mancha. Para nós ambos ainda é substantivo concreto que havemos de reduzir a abstrato. ora é adjetivo. como? Pois isso aí embaixo não é a restinga de Marambaia? Mas. de longe. Renata está praticamente curada. infantes enchendo a praia como ovos de tartaruga. esfrego o rosto de cima a baixo. Por que motivo. Mais uma vez. Volto. Cafés movimentados. Por fim. Uma ventania súbita. tiro a pilha do romance datilografado. bombardeiros. cronologicamente. em halo de breu. disposto a enfiar aquele calhamaço numa gaveta. surge na parede a caverna de bordos granulados do pulmão de Renata e dentro dela cabe como reflexo dentro dum globo. os civis das cidades bombardeadas. da mesa e do armário. Mal saio da Casa de Saúde me envolvem lufadas de pó no trecho da avenida ainda não calçada até diante do ginásio. Poeira sutil sobre os móveis. em tecnicolor. olhando para aquela confusão. Mas como. Começo a juntar páginas e páginas no assoalho. trazendo o cheiro de queimadas distantes. forma redemoinhos. Por que desesperar-me. Nisto me lembro de telefonar para o hospital avisando que já cheguei. embaixo da cama. Fora. com lágrimas nos olhos. Vou abrir a janela. Sim. Sento-me no leito como um apátrida num catre. nada são quando ao cabo de tudo existe um prazo. o abri? Gesto reflexo de grilheta.espera e à confiança? Entro no quarto. nossas duas existências. Esvazio a mala. Dentro. apitos. a guerra. Fecho os olhos. a tragédia distante: um litoral apocalíptico: embarcações. batendo a porta. Não há de ser nada. Eu e Renata na parte central. a pilha reduzida a quase nada. então. os demais. Por fim me aventuro rua abaixo. Ela disse mais um ano. os prisioneiros nos campos de concentração cada qual à espera da vez para o forno crematório! . Corro a fechá-la e a acender a luz porque dou com as folhas do meu romance revoluteando no ar. como dois cromossomos dum núcleo só. se me esquecera (velho hábito!) de numerar as páginas? Sentado no leito. pelo chão. tenho que me acoitar aqui e acolá. reflito na minha vida e a custo retenho soluços estrangulados. desço. arrebento o barbante. Ahn! Já não estou aqui há dois? Dois anos? E consegui aguentar? E suportei isto? Esta vida? Este inferno? Esta solidão? Esta distância? Esta ausência? Martírio e tormento. ou saliva? Não é nada. com aquela barafunda em cima da cama. Quando reentro no meu quarto vejo e escuto a janela batendo fragorosamente. no resto do mundo? Os infantes dos exércitos vencidos. Tomo um carro. celeuma. Que é isto nos dedos? Pranto. Respiro fundo. pretendo pôr tudo em ordem. agora no posto de gasolina. Ar confinado. o mundo. Pego no chapéu. Deponho-o em cima da mesa. mais adiante dentro da Casa Dias. vasa. revejo tudo. de lá me solicitam que compareça urgentemente pois houve um desastre de caminhão na estrada do rio do Peixe e há vários fraturados. em lugar de fazer uma comparação com o que sofro e o que sofrem os demais? Sim. pelas paredes. até ao queixo. desfaço o embrulho. em relevo. O japonês junta pequenos maços. tamanhos os assuntos que formam o contexto. Acode-me um anelo de solidariedade. Quem. apenas entrevisto? Uma vez terminadas as ponderações críticas a respeito da minha obra já pronta mas ainda inédita. como os gomos duma fruta cuja acidez eu deva provar. acabo de ler o original. Pego em folhas e mais folhas do romance. vou almoçar. Quantos dias há em um ano? Não sei. para mim. sim. Nos dias seguintes. de Dostoiévski. esvaziei a mesa do gabinete de radiologia e a mesa da minha sala na Associação Médica. não diminuir. então. a tradução de Retrato do Artista Quando Jovem e . trezentos e sessenta e cinco dias. Atrapalhado pelos múltiplos de mim mesmo (quantos indivíduos não fiquei sendo de 40 para cá?. ver a cidade. postas ali baralhadamente feito enxurrada num ralo. paraquedistas. comparticipar. acho que guiei os personagens e os fatos como se eu dispusesse dum tablier de avião. Folheei ainda algumas noites o meu romance. já na Segunda Grande Guerra. Mais um dia de rotina. Pois dois encargos severos e minuciosos. E. encher mais um ano de campo de concentração? Ainda bem que a Globo e a José Oly mpio me haviam solicitado traduções. De noite o Nelson e o Kimura me ajudam a pôr o livro em ordem. dali. aterrissagens. batendo com elas em pé na beira da mesa. vou passando para o Nelson que as enumera. Da situação do mundo desde pouco antes de 14 até a derrota de Dunquerque e a tomada de Paris. eu verifico o fim e o começo de cada página. vou formando pilhas. jungido àquela mesa como a um cadafalso ou a um catafalco (sei lá) trato de passar o tempo imediato como quem quer atravessar depressa uma ponte. enfio-o numa gaveta. dos futuros e eventuais leitores desse meu livro. dadas as contingências sucessivas. oferecer-me. mesmo sem ordem numérica. os solilóquios contínuos). quanto ao estilo. resolvo não alterar. o laico. E hão de passar muitíssimos outros. Aquele era um romance ambicioso. voos. Porta estreita por onde passa por vez apenas cada heterônimo da minha euidade. à desenvoltura. Entalo-me entre releituras de certos trechos como numa porta da qual só estivesse aberta meia folha. com apertos de botões e manobras de alavancas. Ainda um ano. um século. Acho que neste romance ambicioso trabalhei com diversas estruturas. Deixei-as livres como dois recantos para os Evangelhos. Para qualquer analfabeto. que os capítulos são alas. Estou cansado e confuso para fazer cálculos. não quero saber. de Joy ce e o ortodoxo. arranjo o bloco todo. entenderia na personagem brasileira — que cruzara tal fuligem como um fulgor — o sentido de prêmio não merecido. apresentar-me. Como. não estender. asas. movimentando motores. Aqueles ambientes fechados eram os meus dois cômodos: o profissional e o residencial. Claro que contavam com a minha presença. estar gessado ortopedicamente até a altura do hipogastro. “Nós não estamos sós. o Ano-Bom e Reis em São Paulo. Dezembro de 42 chegou. O carimbo . Hermínio (o noivo). porque somente em junho me iria embora definitivamente. Só uma noite ou outra me livrava da metamorfose e ia. zonzo e exausto.” Mudava de textos. deixou-me dirigir até Garça. assistir a um filme. De vez em quando. sentado numa cadeira diante duma Remington. namorada crônica dum arquiteto que há anos fora nosso colega no Anglo-Americano. “Hoje é terça-feira ou sábado? Estou na Alta Paulista ou em Dublin?” Confundia o Argolo com o príncipe My shkin. ficara noiva. Isso de tradução pode ser comparado ao suplício dum operário demolir sozinho um prédio e ter que reconstruir-lhe depois a carcaça com o mesmo material. recebi uma carta. tinha trabalho para mais de ano. o último sendo onde iriam morar. já construtor de diversas residências nas ruas internas de Ipanema. Do idioma russo quase não me lembrava direito embora em Berlim o cônsul Petrof me houvesse ensinado durante o outono e o inverno de 22 e 23. tive a impressão de. Um dia. Baralhava os dias. Constitui um curso retrospectivo e um teste ulterior de capacidade. À vontade mesmo apenas sentia a boca para fumar centenas de cigarros e vociferar imprecações. apenas. assim que iniciei tamanha tarefa. afastei-lhe o sentido crônico de exílio. Cassiano Ricardo e Mário Quintana. Que Germana. a bem dizer incógnito. indo eu ao correio. Esquecia a guerra até me chegarem exemplares enrolados da revista Life com fotografias de Estalingrado e com tiras de papel cujas linhas datilografadas eram trechos de Carlos Drummond de Andrade. fui a São Paulo no avião-escola do russo representante da Ford em Hacrera. bater nos teclados da máquina. Germana e meus pais viriam passar o Natal. de tal maneira me empolgavam as traduções. Faltavam inúmeras páginas. De volta à minha solidão no começo de janeiro de 43. Cais das Brumas. interrompendo o de Joy ce e principiando o de Dostoiévski. em fins de maio. Ainda assim sentia dificuldade em mexer com os braços e as mãos para virar páginas. tendo livres apenas o busto e a cabeça. mas o casamento só seria no fim de 43. me erguia (pesando arrobas como qualquer rês) para olhar no espelho se eu estava mesmo virando múmia de Joy ce ou de Dostoiévski. Mas no meu caso. em mexer com o pescoço e a cabeça a fim de que os olhos pudessem ver os parágrafos traduzidos e o texto original. A outra novidade era já esperada.a tradução de O Idiota eram incumbências que preencheriam o meu tempo atulhando-o como o alforje dum contrabandista. na residência de Rafaela. Lírio Partido. Cartas de casa traziam duas novidades. Cheguei ao cúmulo de esquecer em que mês estávamos. estava terminando na avenida Vieira Souto um prédio de apartamentos com doze andares. estes escreviam e subscritavam à mão suas correspondências. O lobo superior do pulmão esquerdo já clareou. Todavia. Jorge. Como R.. diálogos. que você só se transferisse de vez para aqui em junho de 43. o pasmo que você sentirá. livre das preocupações e conjunturas que. Convém. agravariam o estado de coisas se tal providência não fosse tomada. debates e insistências prolongaram-se durante meses. E de fato foram. a obrigação espontânea de recuperar-se quanto antes a fim de agir logo em seguida noutro sentido: o de emancipar-se e resolver deveras o vosso desejo. sem lhe apresentar pormenores mas apenas se baseando nas providências de ordem judicial que ia tomar. certificada de que os trâmites judiciais que ocorreriam longe estavam de interferir no seu status físico. o exame de escarro tem dado negativo. R. Já meses antes. Abri-o ali mesmo na rua. É evidente que o sacrifício de você determinaria. por conseguinte se torna imprescindível uma explicação: Não se trata de motivo de saúde. assim como você avaliará o nosso. da parte de R. pois combináramos para o próximo mês de junho o seu regresso definitivo. fugisse para a minha casa em Petrópolis. Ela não seria de mamãe nem de Germana e muito menos de tio Rangel. E avalio o seu estado de ânimo.. Primeiro: Sem estatuir qualquer prazo e sem significar em absoluto uma fuga. Os colóquios. ao qual coube por distribuição o processo — magistrado íntegro e que segundo consta já está na lista das promoções (irá para o Tribunal de Alçada) — deferido o pedido de separação de corpos. você nos fará a caridade de vir somente em dezembro. Tendo o juiz. ou melhor. Do ponto de vista médico. graças a Deus. ele apareceu em menos de vinte e quatro horas e se . você deixou o Rio a fim de possibilitar a R. analisarmos os motivos que forçaram tamanha ausência. tão longe dos seus e de nós. Segundo: Pediu-lhe R. Tendo sido vãs as tentativas de acordo.era do Rio. imediato tratamento. Fulano não se alterou: apenas mudou do quarto da frente para o dos hóspedes. ao passo que aquele envelope era datilografado. orgânico e terapêutico. pelo contrário. o médico prossegue com o pneumotórax apenas para consolidação. tratou logo de conseguir desquite amigável. ou pulmonar. “Prezado Jorge: Está a inteirar-se o terceiro ano do seu exílio aí. portanto. se julgou que dois anos seriam necessários e suficientes para a cura. servindo-se dum advogado de fama e que habitualmente só aceita causas após examiná-las e compenetrar-se das respectivas viabilidades. Imagino o desgosto. então (em junho de 42). ela partiu para o desquite contencioso. fazendo-lhe a vontade apenas ao transcrever esta ‘canção de amigo’ que ela me ditou e que é do século XII: Se nesta vy da mortal No há hy prazer que dure. pois. Abraços de Tia N. Pós-Escrito: R. E quando a causa é vultosa. lhe vetei novo intento. E consegui o prodígio de me meter no fluxo consciente de Joy ce . se você quiser vir agora em junho. Tem em grande apreço as responsabilidades. porém desandou a chorar de saudades e isso lhe provocou tosse. mas as dificuldades de aproximação ainda serão as mesmas. reter consigo os autos. Tendo R. adiar audiências etc. O advogado de Fulano é useiro e vezeiro em inventar chicanas. já vê você a necessidade que eu tinha de escrever- lhe (atitude que nestes quase três anos nem eu nem R. mas se caminha centímetros. que por certo não influiriam na marcha da causa. obter protelações. tomáramos até agora por escrupulosa cautela). Tampouco há tamanho mal Que por tempo nam se cure. fui até lá e a trouxe para a minha casa. ciente da sua provável promoção.. as mãos na máquina. e sempre que nos enervamos ele sorri ante a nossa precipitação de leigas e a neutraliza com um argumento que lhe parece válido e peremptório: ‘O meritíssimo juiz da Vara de Família e Sucessões. logo para e se enrola. ou piores. ele fez disto aqui hospedaria. Assim. Em todo o caso. Isto posto. os arrazoados da parte contrária se tornam do tamanho desses camelos que no deserto de repente se deitam na duna e não há ofertas de tâmaras. Toda gente sabe que a máquina judicial ao invés de rodas tem mais pernas do que uma centopeia. a claridade da rua brigar com a iluminação elétrica da sala. Ao todo. Como tia autoritária que sou. não entrará em férias forenses em dezembro. requerer recursos. O nosso advogado está certo da vitória.. venha. me chamado pelo telefone. basta de sobressaltos. Meti a cabeça nos textos.aboletou no aposento contíguo. quis acrescentar algumas linhas a este meu texto. Eram atitudes pessoais. Jorge.” Que decepção! Mais seis meses. até o Natal. sem aliviar as suas pastas de tudo quanto é causa de mais de ano. três anos e meio de degredo. não raro vendo amanhecer lá fora. chicotadas e berros que façam a caravana levantar e prosseguir. Não precisa nem deve responder-nos. E por ser escrupuloso não as transfere’. e haja traduzir até altas horas da noite. prezado Jorge. sem dizer ao certo que pretendo não voltar. parari. rente aos desvios da via férrea. Mais além. de Hacrera até Gália.. E. vou ser padrinho. emendei. fogo-apagou. gavetas. comissários. No bairro de São Miguel. O rádio dá a notícia do desembarque aliado na África. onde tenho compromissos sempre adiados. japoneses misteriosos sentados nas calçadas. pois instou em me ceder o leito inferior. E tais nomes sugerem paz. de sala de tear. armários. avoante. gerente dum banco. No setor industrial. Que o uru põe ovos no chão. o que ele me diz parece um poema bucólico. Não aguento mais este exílio. as máquinas de beneficiar algodão descansam do full-time. Que o irerê não é ave nossa apenas. o habitat. Nas plataformas. banqueiros. fardos com cintas de ferro. e que o ninho parece um forno. Na entrada do Leader e do São Bento. Devo passar duas semanas em São Paulo. prensas.e no dédalo das almas dostoievskianas. pois existe na África. a postura. Cafés vazios. Esvazio estantes. Meu companheiro. Lá vou eu estirado numa cama fria.. A respeito de rolas. Por mera atenção respondo ou comento de vez em quando o que ele me diz. rola-pedrês. artigos e ensaios. do inhambu e das codornas. onde advogados. pomba-gemedeira. médicos. Em meados de novembro reli a minha versão. debaixo de folhagem densa. principalmente com livros mandados para eu fazer críticas. Bairros comerciais fechados. Noite de 28 de novembro de 43. juriti-azul. como cangurus ao luar. Ouço aqueles nomes: pomba-trocaz. põe-se a conversar comigo lá em cima. no escuro. Que o mutum tem um nome científico que parece verso parnasiano. Assim é que vou sabendo coisas singulares a respeito do macuco. Depois vou à estação. levo uma noite e um dia a encher cinco malas. coberto até ao queixo. Estarei no Rio na terceira semana de dezembro. Luzes somente no Tênis Clube. as características e os costumes dos bichinhos que apenas caça uma vez por ano. . Despeço-me do Argolo. sequências de aparelhagens pesadas como paquidermes terminando em supostos alambiques que lembram proboscídeos de cristal. explica a vida. A ironia do Tempo é ele fingir de substantivo abstrato. de dia fazem ruídos compactos de porão de navio. E dei em vagar pela cidade até alta noite. Após o almoço vou ao banco. Parecem silos. embrulhei num só os dois pacotes. ama as aves. de usina. Entro em casa. não. Passagem para o noturno. a alimentação. É um emérito caçador que. retiro em cheque todo o meu depósito. desde a Colômbia até o sul da Argentina. A ele sugerem sono. Germana casa-se nas vésperas do Natal. paradoxalmente. nas Antilhas e em toda a América do Sul. fazendeiros e respectivas senhoras jogam pif-paf. caixeiros-viajantes e corretores de seguros conversam em cadeiras de palha. resfolegando beatificamente. rádio. invasões. ânsias. Munique. bombardeios.. golpes de Estado. formando e superpondo desenhos como os que vejo agora nesta revista cheia de reproduções de Hans Erni. pés. Darlan. Dantzig. Dói-me o corpo como se eu tivesse passado três anos e meio deixando que me laminassem. Memel. Líbia. lágrimas. avenida Niemey er. nas prisões em França poetas fazem pior: decoram os sonetos e os retêm já que nem sabem quando lhes será dado ao menos um lápis! Agora. espaço vital. congressos. insânia. Spitfires. São Cosme. o doutor Alípio. só consigo dormir depois de Duartina. pois levei horas absorto em considerações. colorações. livros. atado com meus nervos. Rommel. direitas. sudetos. pânicos. Barra da Tijuca. Dói-me a alma como o dorso dum coolie. obstinações. Ipanema. atordoamentos e tarefas! Que baralhada no meu espírito! Copacabana. Envolto em mapas ecumênicos. Midway. Nimitz. contrafação. radiografia de pulmões. estados-maiores. Estalingrado. aviação. que susto! Ali está ele na mala. paroxismos. Nurembergue. sofrimentos. confusões. Tojo. Polônia. Petrópolis. sementes. numa espécie de revisão geral do tempo.. esquerdas. com riscos brancos como giz. Krêmlin. Stuka. blackout. música. Montgomery. verdadeiro alforje de couro com pedras. suspenso na treva e na insônia. pasmos. marasmos. ao léu de rodas que me transportaram até Pederneiras. Casa Branca. Hacrera. De Gaulle. Eisenhower. Congonhas. A minha inércia algo estremunhada não é senão ainda um cansaço de eito. Downing Street. Bélgica.pois para de falar depois de muitas explicações sobre os tamanhos. campos de concentração. o livro. por mim. derrotas. bicos. A verdade é que vim desde meia-noite até de manhã deitado. Este percurso de Hacrera a São Paulo pelo trem que sai à meia-noite e só chega às duas da tarde é fatigante e monótono. negra como nanquim. telefonemas. Casa de Saúde. comandos. Noruega. Wilhelmstrasse. o romance datilografado? Ah. Em todo esse primeiro percurso risquei mentalmente o vão da cabina. cinemas. coágulos. Eu. tia Noêmia. repondo em ordem a minha vida que parece ter . judeus. Santos Dumont. passeios. Wavell. desterro e trabalhos forçados a mil quilômetros de distância de onde antes fui disponibilidade e gratuidade! E o livro? Sim. loucura. Paineiras. raízes. Sonho baralhadamente. delírio. Holanda. no trem de aço. Giraud. Três anos e meio! Quanta coisa surpreendente. alterações. intimidade. Messerschmitts. Extremo Oriente. não tarda a dormir. Ora. lacrado com a minha febre. rêmiges e crissos. caverna. cerimônia. feito fogueira fumegando enquanto lhe botam água? Três anos e meio! Modificação total na minha vida! Fuga e exílio. make-up. Caduceu. jornais. primeiro faço uma faxina nos compromissos. Fortalezas Voadoras. Von Brauchitsch. França. quantas diferenças. mapas. poesia. neste segundo trecho do percurso. Paquetá. ou penso sem nexo cronológico. Vida nova? Sim..” Afinal de contas. ora. Quanto à verdade estatística de que os nascimentos enchem as lacunas de óbitos. Na mesa ao lado uma nédia matrona corta com a faca um pão para os filhos atentos. A autêntica. Tampouco carreguei pedras à toa como Sísifo. Sobrei de tudo o mais. Se vim para uma variante de itinerário. Sou outro homem. o que é essencial. Perfeitamente. azeitonas. Claro! Lógico! Nem será preciso voltar ligeiramente a Hacrera. isto é. de René Laporte: “Nous sommes des fruits éclatés”. Mas agora estou aqui regressando não intato mas bem amadurecido. Está certo. Eu próprio não renasci. despedir-me de todos. Teremos diante de nós a Vida. Rumino um verso de Éluard enquanto espero ser servido na mesinha para dois. que importa? O que conta. E no Rio?. Aqui estou. naissance contrarie absence”. Será que dentro em breve o mundo (sim. é a poesia que determina o comportamento certo em todas as conjunturas.. acendo o cachimbo. guarda recibos e prepara o seu expediente do dia. levar um substituto. ao acordar num hotel. aquela a que fazemos jus porque a resgatamos pagando alto preço.. pensando bem. Determina. Sol. obedecendo ao verso de Pasternak: “De que te vale clamar se este mundo é um lugar surdo?” E de fato lá cheguei estourado. Ajo mentalmente. Agora. Quando fui para Hacrera me anulei do mundo.. regresso de vez. O verso diz: “Le monde change de couleur. E o que vem difere sempre do que se foi. Vejo para lá da rampa ajardinada um paranoico conclamando por meio de gestos e apóstrofes os . não fiquei dormindo num motel. e sei duma programação eficiente contida num verso: “Que la bouche remonte vers sa vérité”. servindo uma geração que não comerá mais em cochos? De tarde o trem passa pelo flanco do Juqueri. não mudei quando descobri que dia era ontem? Aliás o meu exílio o que foi senão realizar literalmente o postulado de Eckhart? Qual postulado? “Despojar-se de todo o quê. Gente. olho para os viajantes sentados ali no Pullman. arrumando os meus propósitos tal qual o sujeito que. junto com sal. Paisagem. Meu pai tinha razão. Superei tudo e no litoral do desvalimento montei um estaleiro. Sim. não resta dúvida. Respiro fundo. rosas e água de cântaro. é renascermos ambos. acreditando naquele outro verso. Voltar à clínica especializada? Ou viver escrevendo só? Escrevendo o quê? Ora. o seguinte não podendo vir a ser um da capo. não será o símbolo de qualquer coisa misericordiosamente solícita e oportuna. rasga papéis. um aspecto sucessivo na gangorra da Liberdade? Essa matrona brasileira. revista os bolsos. assim partindo o pão em pequeninos e. essa invasão da Europa deve estar próxima!) não se refará? Mas tornará a civilização a ser o que foi antes.chegado ao fim dum capítulo. o essencial é Renata. mas não resolve. minutos antes da viagem. já que sofri. trato mas é de ir almoçar. Valeu-me ou não a experiência da Alta Paulista? Claro que me valeu. Três anos e meio. aí. valores invisíveis. dispus de tempo para reler o Retrato do Artista Quando Jovem e O Idiota antes de entregar as duas traduções datilografadas aos representantes da Globo e da José Oly mpio. Sim. escolhi gravatas. outra no auditório da Biblioteca Municipal. porque o triênio e meio na Alta Paulista tinha sido de relativo desleixo. viera descontar o fim do prazo em São Paulo. Em São Paulo hospedei-me desta vez em casa de Conceição e Roberto — desde muito enciumados por eu preferir (segundo eles) Lauro e Rafaela. Outro compromisso foi autografar obras minhas numa livraria do centro. . uma na Associação de Medicina. Ainda bem. durante as duas semanas de dezembro fiz ternos num bom alfaiate. lotada. Sua atitude parece vincar um brado assim: “Em verdade vos conclamo à pressa!” São Paulo. Tão ansioso que não suportara mais o exílio. Tive que cumprir diversas tarefas. Ele deve saber. Como afinal iria de regresso definitivo para o Rio. Tão logo isso se efetivasse eu poderia dar provas a meu pai de que lhe havia seguido os conselhos. O lucro das vendas de volumes felizmente chegou para pagar os drinks e os canapés de caviar. a segunda com debates que quase a transformaram numa daquelas bagarres dadaístas da sala Pley el em Paris. Endossei os cheques dos pagamentos e recolhi-os à minha conta-corrente no Banco Brasileiro de Descontos. muni-me de boa roupa branca. a primeira. Duas conferências. Argolo falava em vender a Casa de Saúde a um consórcio formado por dois terços dos médicos de Hacrera. Mesmo porque as remessas da revista Life tinham parado em novembro. Estava ansioso por voltar ao Rio. fazendo-me interpretar isso como aviso e “atenção ao sinal verde”. com gente até nas janelas. cheguei depressa. Não obstante convites e recepções. Conclamam-me. Oswald de Andrade sempre ao meu lado. Conclamando o quê? Não sei. Quando o alto-falante chamou os passageiros portadores de fichas amarelas. Lindoia. Lauro e Roberto não consentiram. Haja descobrir um instrumentozinho cibernético adequado para a discreta operação.. Meu cachimbo entupiu. Só consegui passagem para o avião das seis horas da tarde. depois. Durante a viagem de noventa minutos. foi como se escutasse a suíte O Descobrimento. desde a Gávea até o Pão de Açúcar. . gim. por cima da ilha Grande e de Mangaratiba. submetido a blackout. custei a acertar o bolso onde guardara a passagem e os talões das malas (a ficha de embarque estava metida no bolso do lenço no paletó). mas. no ronco dos aparelhos. Foi quando alguém verificou que a minha ficha era vermelha. e de vez. Isso. despejei-me para o zinc do bistrot a fim de pagar depressa as despesas. uísque. Depois fui chacoalhado por diversos abraços que quase me sufocavam. reencher-lhes os copos. de Villa-Lobos. no embarque e desembarque dos passageiros. o bando me conduziu ao portão A. O meio mais evidente era responder-lhes às perguntas. nos avisos do alto-falante. Pouco antes da Guanabara já o espetáculo à esquerda se ofereceu bizarro e grandioso. Consegui pagar secretamente a segunda despesa. a iluminação profusa dos bairros internos tornava aquela precaução teórica um paradoxo redundando em pleonasmo. por fim serviu um pedaço de arame descoberto dentro duma tina de samambaias. rum. um pouco de tudo enquanto acendia e reacendia o cachimbo. e passei a dar provas de efusão grata a quantos tinham vindo despedir-se de mim. não como paisagem mas como profusão de fosforescências recamando a treva. de Dvořák.. O litoral. uísque. Ao passar por cima de Cunha e São Luís do Paraitinga cuidei estar ouvindo a Sinfonia do Novo Mundo. Logo joguei fora esse estado de alma de passageiro ferroviário. conhaque. Uns beberam cerveja. De vez em quando palpava num dos bolsos o bilhete de passagem e os talões das diversas malas. da altura em que íamos. os motores simulavam orquestração. eu. III 15 de dezembro de 43. prestava atenção na barafunda rente aos balcões. outros. A noite surpreendeu-nos ainda por sobre o mar. Nova rodada de cerveja. ouvi uma senhora que não pertencia ao grupo exclamar: “Decerto é algum oficial à paisana que vai para Campinho ou São Cristóvão servir nos Obuses Autorrebocados da Força Expedicionária Brasileira”. mas o grupo de parentes e amigos me comboiou relativamente cedo para o bar do aeroporto de Congonhas. Coca-Cola. a bem dizer para me capacitar de que me ia embora mesmo. E eu? Estava chegando da Pauliceia? Ia para casa? Então me levariam de carro. Fundo e longínquo. Sim. uma segurando a valise.. Nenhum táxi. Agora ir para casa. Por fim interferência da telefonista perguntando que número eu queria. Nem rente à calçada.. me vejo cercado por abraços e clamores. girando obliquamente. nem estacionado na praça. perguntas.. na residência de verão da tia. subir para lá. fui com ele para o setor das bagagens. ensaiavam e promoviam o programa especial Hora de França. Mas eis que deparo com o novo edifício do Ministério da Educação e Saúde. o Distrito Federal ofertava geometrias coruscantes. Ruído insistente. Retirei apenas uma valise. Dei os talões das malas a um carregador. com as duas mãos ocupadas. a principiar do Natal. Bem. Aconselhou-me a depositá-las até amanhã e então providenciar. onde os ônibus de Ipanema tinham ponto inicial ao lado do Nilomex. Daí a uns vinte minutos. Uma voz. Pensei: “Foi morar com a tia”. como de moinho doméstico. Eu conhecia o seu temperamento. batesse palmas e júbilo e o apanhasse de novo. explosões de entusiasmo. os outros passageiros do último avião o haviam lotado. atento a um possível táxi vazio.. Liguei para outro número. adivinhava! Renata deixara a casa onde morara. Beatrix e José sobraçando flores e pastas.? Sei lá onde estarão agora? Num cinema. Amanhã comunicar-me com Petrópolis. Já me escreveu isto um par de vezes. De mais a mais quero pregar uma surpresa em meus pais”. O marçano perguntou-me se eu tinha carro. decerto da criada. Que alívio! Foi como se eu jogasse o coração para o alto. sob o pórtico moderníssimo. rubi e topázio nos subúrbios. no bar Zeppelin. Agradeci-lhe a excelente ideia. Para início de gratidão prévia fui logo perguntando a Beatrix como ia de poemas provençais. Pensei em ligar para nossa casa. Descobrir o noivo para virem juntos buscar-me no carro dele. para daí a pouco esclarecer: “Aparelho retirado”. Saltei afoito no aeroporto Santos Dumont indo logo telefonar para a casa de Renata. Diante de mim. estavam saindo do ministério onde havia mais de mês dirigiam. e desligou. risadas. de repente. E. informou: “Estão todos em Petrópolis”. Lá estavam elas. a outra a alça da pasta. Mas refleti: “Germana vendeu o Chevrolet para com o dinheiro melhorar o enxoval. Que alegria! Exclamações. cirandas. tratara de safar-se. mas polvilhado com poalhas de safira. E avisou-me: “Não há táxi que leve isso tudo”. Dirigi-me para a esquina da rua México. embarafustei pela Esplanada do Castelo. Ou lotação. formulava projetos. Alforriada afinal. novidades e a exigência: . e em Petrópolis. corroído de negror rente às águas. Não era criatura para permanecer onde sofrera. Eu compreendia. Enquanto eu demorara a procurar e anotar o número do telefone de dona Noêmia. Isso declanchou como demarragem (junto de ambos senti ganas de fazer galicismos). ” E Beatrix tem uns poemas patrióticos. bem grossas. papai e mamãe comentam o dinheirão que Beatrix está gastando nos programas da Hora de França. os livros. Janto aqueles pratos familiares tão sadios. explica como a França estava recuperando a sua soberania. tudo às escuras. vários quarteirões para lá da nossa residência. que sirva o jantar cedo. na avenida Vieira Souto. Meus pais. quer que eu os leia! Ao passar pela esquina da rua de Renata olhei para aquela perspectiva conhecida. toda empolgada. árvores e postes. Beatrix com seu paroxismo ingênito fala angustiadíssima da situação do mundo. Ouço novidades a respeito de tudo quanto é parente e conhecido. José irá buscar-me de carro às nove horas. Os quadros. nos maquis. Ah! Como cresceu a amendoeira no centro do jardim! Depois. vitupera contra Vichy. As frestas calafetadas. José irá buscar-me às nove horas. Do lado da praia. ora essa!. espera-me esta noite. dirigindo-se a mamãe. folhetos e programas. nas janelas e portas da . Sim. Estamos ali na biblioteca. que receberão a visita do embaixador do Canadá. ao entrar para trazer a maleta. O próprio Bernanos a estimulava apesar de tão casmurrão! Precisa que eu colabore também. pois os cassinos de noite são labaredas e sorvedouros. Que vou ficar no Rio para sempre. na Resistência. de antigamente. inflama-se toda com o afundamento da frota em Toulon. às dez horas da noite. Sim. “essa espécie de Herbert Moses do dinamismo diplomático. no opróbrio dos reféns. grita lá para cima. Surpresa.. José. Uma sensação! Todos os grandes espíritos. entre outras coisas. Aquelas fisionomias. Alegria. Informam-me que tio Rangel continua a reagir contra as “contumélias” de Maria Clara. diz que tal escuridão é periférica. da sua campanha pelo rádio a favor da França e em prol do general De Gaulle. E Beatrix fala. Largam-me na calçada de casa. Os vidros das janelas forrados com papel preto. Virá roubar-lhe os filhos às nove horas. Explico que de fato já estou saturado. Minha irmã. os móveis.comparecer à recepção que ela vai dar ao embaixador do Canadá. E ele explica. Essa minha mania de irromper no Rio sem telegrafar! José convida-a terminantemente a estar pronta também às nove horas. perto do Cabral e do jardim de Alah. O lar. em casa dela. Vou ficar de vez? Que história é essa mais estapafúrdia dum amigo como eu estar no interior? Tenho que ficar no Rio definitivamente. Germana vem abrir. Cortinas novas. já que Beatrix me encheu as mãos de papéis. todos os grandes intelectuais ajudando-a. mas logo se reanima. não vi senão calçadas. nas Éditions de Minuit. Estranho a escuridão.. Saio um pouco. pois então eu não sabia. Sim. desanda a falar no general Giraud. enquanto Germana sobe para arranjar-se. Sou intimado a dizer que volto de vez. . Naquele ambiente quase monástico de tão severo. arrasta-nos. toda embevecida. o grupo do Nordeste. segundo diz o José. Resolvo barbear-me. Aquele vão tão lindo de praia está muito lúgubre. Vuillard. mulheres de sociedade. exigira que se fizesse blackout total. declara que da última vez me estranhou muito. ele desce. Não deve tardar. Reconhecem-me. Então nos dividimos em núcleos e me vejo transladado para a biblioteca imensa. gabando a beleza de Germana. Conta então que um guarda da radiopatrulha batera. Chega um segundo grupo: gente de Minas. Mas Beatrix o chama. Gromaire. Sento-me numa poltrona Aubusson reingressando num mundo que não é a minha mansarda. Que deixara a Beatrix lá embaixo a oferecer cognac ao homenzinho. gesticulando. às escuras. pois em casa de Beatrix direitas e esquerdas se fundem dialeticamente. mostrando as corbeilles recebidas. Ipanema vazia. Lhote. Milena. Não. Enquanto José nos serve armagnac em copos bojudos. Mamãe fica a assistir. com as cortinas da frente abaixadas que nem velários. — Parece incrível que um médico. belos. pintores. pois Beatrix quer antes de mais nada que eu dê minha impressão sobre os seus poemas de guerra. chamando-a de ingrata. Subo. Calhambeques com gasogênio. os poemas que estavam em cima da lareira provençal. enquanto lhe declamo os versos. Declaram que sou um foragido. Acha que estou bem.. Crava os olhos em mim. Lá fomos.frente. Invectivam- me. ensaístas. Estava eu ainda em meio quando entra o primeiro grupo amigo. sobe. já não é mais a suave poetisa de Arles.. pede que eu lhe acenda o cigarro. Explico que o embaixador do Canadá estará presente. Falatório embaixo. Abro a maleta. fica radiante. indiferentes às conversas e risadas no vestíbulo e no salão. elásticos. músicos. José fonfona. Primeiro se atiram a nós os cães policiais. Logo se estabelece uma intimidade reflexa. e não para mais de falar. fazendo-nos entrar para a sala cheia de telas. exigem meu regresso quando mais não seja para atiçar-lhes as ciumeiras. que não me barbeio há mais de dois dias. gente de jornal. imediatamente. abraça-me. das vindimas. ficamos uns seis. Às dez chegará o embaixador. vibra como um feixe de nervos. Nisto sobe a Lambeth. acha que isso é perigoso depois da refeição. das primeiras comunhões. Poetas. Mamãe intervém. das azinhagas bucólicas. no último andar. Carros de tração animal. com um pelo que faz parecer que saltaram dos Gobelins para receber-nos.. Agora é uma bandeira tricolor flamejante. Meniscos pretos nos globos de luz das esquinas. ela me faz ler. Depois acorre Beatrix em pessoa. que me achou tão triste. vem a mim. embarafusta — o cachimbo feito fogueira — pela casa adentro. a perguntar-lhe se a achava com cara de . José pompeia com suas gargalhadas. pergunta da minha vida.º 5. Só para os íntimos. não é verdade? Todavia pior do que imitar não será. vozes femininas e.. Da mesma maneira que provei não acreditar como. Mas fica de vez no Rio. daí a pouco. como ainda agora me disse. Pois é. Caiu no abstracionismo! Coisa impessoal.. Já estou tentando planos moventes. encara a minha fisionomia. e imita Beatrix a enchê-lo de charutos e descomposturas. Larguei o onirismo. Pergunta-me se trouxe algum romance pronto. desde a minha fase titubeante. Vê só como sou camarada? Vou dar tempo para você armar-se contra mim. com seu aspecto vivaz de locutora cosmopolita de broadcasting. — Pois é. Ah! Aquela Lambeth! — Preciso muito que você veja e me diga com sinceridade o que acha da minha nova fase. que estou perto.. Ela concorda. como contraponto. E a Lambeth. Isso em voz sussurrante. Está colocada bem perto da lareira cheia de esmaltes e pratas antigas. Mas cessaram. Imagina. Acha que decididamente não acredito nela como artista. toma- se como exemplo. Quer saber o enredo. Você acha que eu conseguirei. mulher. — Riu muito. outra vez.. Primeiro procurar falar com tia Noêmia ao telefone de modo a avisar que cheguei. Jorge? Quero sua impressão não só porque admiro sua análise como porque você anda longe das rodas e portanto está mais capacitado para ser sincero e apreender logo! — Outra risada. De fato. singelas.. E. que o Pedrosa me comparou a Manessier. diz ser um tormento em arte uma pessoa não saber como fugir a influências para ter personalidade. como Singier.quinta-coluna! E a Lambeth imita o guarda a beber e a zangar. ora não? Exposição? Jamais. não é? Quero a sua opinião sobre tudo. prosseguiu: — Que eu tenha adquirido a transparência e a estrutura de Manessier é piada do Pedrosa. — Promete ver. dar sua opinião sincera? Não rirá de eu haver virado abstracionista? O Pedrosa e o Bento gostaram. até a maneira geométrica. Como é que lhe hei de mostrar? Decerto estes dias você andará muito atarefado. É tão mórbido como o mundo de Dalí. Jorge. Olha-me brejeiramente. Telefono-lhe daqui a quatro dias. desculpando-se. Chegou hoje. sabe? sempre me valeram aquelas aulas com o Nagy em 1928 em Berlim. dizendo que estou saturado. havia risadas lá embaixo. Mas que estou fazendo umas coisas puras. Aquela história do telefone retirado. no gênero de Kupka. que não verei a sua evolução. lá isso estou. Nego-me a um resumo. dos meus trabalhos. que subi. Penso na minha ida amanhã cedo a Petrópolis. Deixei de vez aquela constante Chagall. ruído de taças. Muito loquaz. Por fim um violoncelo se faz ouvir e ficamos sem saber quem será que está cantando a ária e dança do martelo da Bachiana n. para não atrapalhar o silêncio dos que ouvem a música e o canto.. as risadas do José. Mas tem certeza de que desaparecerei outra vez. deve ter muito que fazer. E assim saber ao certo qual a situação. Agora. Tanto que não deixei meu marido tratar com . só depois do prédio feito. se esquecesse por exemplo de fazer as portas!. Doze andares... Você acha. Sempre no Leme desde que nos casamos. e já nem se lembra! — Já compreendi. Jorge! Nunca. Só tenho medo duma coisa: que do décimo segundo andar eu não tenha vista nenhuma. Ficaremos no último. Eu mesma fiz a planta do apartamento. A tia velha foi morar com vocês no Leme. Jorge. Jorge. — Credo! É mesmo. Jorge. cuidadosos. E desde 32 a casa esteve alugada até agora. se eu me arrepender. Mostrei ao Flávio. — Ora. que foi da tia de Arnaldo.. E que dificuldade para arranjar que a Caixa Econômica financiasse. Inquilinos ótimos... se eu reparar. vamos ficar mas é pagando aluguel a vida inteira e só com a sugestão de proprietários. você os botou na rua para poder levantar uma torre inclinada como a de Pisa. o subúrbio! Aproveitamos o terreno da única propriedade que meu marido tinha. Lambeth. Jorge? Ah! Estou tão aflita! Sou uma burra. Você sabe. no fundo não é uma situação pior. se mudar o gosto. Por quê? Ah! Você pensava que nós morássemos nessa casa que mandamos demolir agora? Não. o senso das construções. Aturou até aos oitenta e um anos. Afinal. — Mais prudente? Hum! E se o proprietário dum edifício ou os donos dos condomínios onde você tivesse estreado como “arquiteta” lhe dessem depois dor de cabeça? Se você.. — E por serem ótimos. Vou decorá-lo eu própria. resolveu estrear o mausoléu que mandara edificar no Caju desde o tempo do império. tabelas price etc. mais escravizada do que ser inquilino? E depois. quando estive em São Paulo. mas um dia. o mês de novembro. Tinha!. que isso de construção financiada. não? — E você já começou a construção? — Que nada! Apenas meu marido e eu encarregamos uma firma de demolir a casa velha. — Ah! Jorge! Eu ia fazer uma coisa dessas!? . que me vão tapar a vista com outros arranha-céus? Hein. como é que vou desmanchar doze andares. Melhor errar em casa.. Jorge?) por que motivo hei de estrear logo no meu prédio de apartamentos? Não seria mais prudente arriscar “genialidade” numa construção alheia? Nem sequer me lembrei que os Lambeth eram proprietários da residência de Renata.. Herdou! Mas é tão perto do mar! Você acha. na “intimidade”. Começaremos logo a construir.. Jorge!! A tia do Arnaldo morreu em 32. — E enquanto isso onde é que vocês estão morando? — Sempre no Leme. Pois você já não esteve lá?! Elogiou tanto o meu studio.. Já que pretendi ser arquiteta (é assim o feminino dessa palavra.. cuidadosos. Deus me perdoe. não é todo mundo que pode comprar terrenos na praia. Aliás não podemos comprar nem no subúrbio. Que horror. que ficou um aleijão.ninguém a planta da nossa casa nova. Jorge. Jorge?! Tenho tanto medo. ele disse que parecia McGreevy. como se meus dedos procurassem transmitir não sei para onde um apelo desesperado de S. coitada! Tão bonita! Tão interessante! Nunca cheguei a conhecê-la pessoalmente. Dois semblantes esticados sobre mim como gárgulas. — Passou — disse eu. muito zonza. Na expressão de horror estampado nos rostos que me observavam se refletia o esgar do meu assombro. As duas aproximaram- se correndo.. — Jorge! A cinza do cigarro vai cair. com os motores em rotação máxima.S. — Germana. sem agonia. apenas um calor sumindo. Recuei o corpo como ante o estouro dum peso batendo numa queda de seiscentos quilômetros horários. no silêncio absoluto que sobreveio.. Uma náusea ganhava-me como se fosse vomitar a existência.. Trinta segundos? Um minuto? Um quarto de hora? Quando tudo emergiu do estampido percebi a presença de Lambeth boiando numa poalha de fulgores. — Jorge! Está sentindo alguma coisa? Os olhos esbugalhados da Lambeth. esfarelei o cigarro no cinzeiro ao lado. Morte sem sangue. que é que ele tem?. Eu continuava esfregando ainda o cigarro no fundo do cinzeiro de cobre. Aquela notícia passou por mim da cabeça aos pés. Foi como se um avião desgovernado.. a ponto de eu lhe ver quatro olhos em série.O. como um fuso sibilante. candelabros. Tenho . sair depressa. E depois ouvi tropel escada acima. que se fez silêncio súbito lá embaixo.. Fechei as pálpebras. É assim que se morre. Jorge!?. A biblioteca sumiu. parecia dição ventríloqua. — Deve ter sido uma crise de angina falsa. queimar sua roupa. Eu tinha tanta curiosidade. num ronco estertorante. então? — A Renata. livros. A boca em pasmo de Germana. Costuma ter isso? Beatrix! Beatrix!!! O brado da Lambeth foi tão estridente. me analisava como se assistisse à morte dum homem. Tudo: pessoas.. Imóvel. em fúria. despencasse entre labaredas. O mundo todo despencava vivisseccionando-me. paredes. descia as escadas. poltronas. transfixado. — Mudaram-se. haverá quinze dias. via passar estrias e riscos lixando meus sentidos. de pânico e de socorro. Olhava-me aproximando muito o rosto. mas sim os degraus dum subterrâneo cavo produzindo ruídos de efeito agudo. sem estertores. Cada vez mais próxima de mim. (Não ali as escadas da biblioteca. Jorge!? Morreu. ouvia sempre tais louvores! Como é que se morre assim. A Lambeth voltava com minha irmã. E ali fiquei hirto como um eixo virtual. Como é que se pode manter uma cinza de cigarro assim direitinha com mais de dois centímetros.) Atolado naquela agonia volvi os olhos para a escada por onde novos ruídos subiam em curva. a Lambeth. Pela fresta das pálpebras eu a vi recuar. E depois a sua voz. Beatrix exprobrava seu egoísmo: — A culpada fui eu. creio que lhes disse a todos que já estava bom. Nisto me levantei. Nisto. No jardim de casa. disse: — Eu levo você. apoiada ao corrimão. Germana arregalava muito os olhos. Está tudo escuro. Ainda estou com o coração na garganta por causa do susto que levei. E. Jorge. — Como não é preciso? Não há táxis. como prova. Então eu disse à Lambeth que ia aproveitar para sair. magnanimamente: — Já está bom! Já está bom! Mas tem que sentar. desabotoou-me o botão da gola da camisa. batendo palmas. Alguém principiou a tocar piano e uma voz feminina se pôs a cantar o Lullaby. Beatrix dizia a rir. eu não podia ir embora. Sugeri-lhe que me telefonasse marcando quando poderia ver seus trabalhos. deve estar exausto da viagem de mais de mil quilômetros! E eu instei para que viesse dar um abraço nesta sua velha amiga. dei uns passos. pois decididamente já a abraçara bem como a Beatrix. do meio dos índios e das onças. Os que estavam na escada desceram. Germana desfez o laço da minha gravata. Desci com ela e Germana. Agora eu me via cercado por mulheres e homens. procurei sorrir. olhei para uma estante. Diante de mim. assim que José sumiu na Delaunay. Sentamo-nos os três no banco da frente — tendo saído pela porta de serviço da copa e tomado o carro na rua transversal.fumado muito. abotoando o colarinho e compondo a gravata. lá embaixo. silêncio súbito. só ficando eu. chamou a Lambeth de espetacular. a Lambeth e Beatrix. Não aceitei. — Trecho relativamente perto. José indagou se eu queria recostar- me. Vais mas é deitar já e tomar remédio. Não. E vozes transmitindo uma espécie de senha de protocolo: — “O embaixador do Canadá! O embaixador do Canadá!” Beatrix precipitou-se escadas abaixo. veio dos cafundós do sertão. Alguns quarteirões. — Não é preciso. e sua irmã. Mas viu meu semblante. calquei o peito com as mãos bem espalmadas. Lá embaixo recomeçou a alegria. Germana. — Sair?! Absolutamente. eu disse a Germana: — Entra. Gente subia. Tem que deitar. que não me tirassem o ar. O Jorge estava cansado. . José irrompeu com seu cachimbo e sua taça de cognac. A curiosidade em saber quem estaria cantando fez a biblioteca ficar quase vazia. e precisava descansar. fez um escarcéu. Vou sair. A Lambeth disse que se afastassem. resisti à pressão desta última a querer que eu me estirasse. espiava. analisando-me. Dá-me a chave. E procurava levar-me pelos ombros para junto dum canapé. pois Germana me jungiu com ímpeto. segurou-me pelo punho. Bem disse mamãe que não fizesses a barba logo depois do jantar. — Oh! Jorge! A estas horas? Tens amanhã o dia todo.. preciso certificar-me duma coisa medonha. — Deixa de tolices. Escondendo o rosto no seu ombro chorei desatinadamente. cortada. Estás mentindo! Trouxe-me para a biblioteca.. quedou muito atarantada. Deu um passo. depois desistiu. Que é que tem que ver uma coisa com outra? Estou bem. Até que fez menção de.. Fiquei com a cabeça no ar como se. puxei-a para o canapé.. Abri a porta quase a arrastando... Ela procurou abraçar-me. preciso já.. Fala. passei as mãos bem abertas pelo rosto. — Conta. Com as mãos nas ilhargas... uma coisa.. esfreguei a boca. verificar se. depois me deixei ficar de braços frouxos. Raciocinei: “Ir aonde? Não será melhor ligar para Petrópolis? Dizer à telefonista o número da casa e o nome da rua? Mandar Germana chamar dona Noêmia quando atenderem? Depois eu pegaria o fone. Preciso ver uma pessoa. terrível. Seja o que for! Eu entendo tudo. maluca?! Não senti nada... Entregar um documento que em Hacrera me encarregaram de. O sentido das palavras. voltou-o. os meus beiços trêmulos. indagar e tomar nota do telefone de Petrópolis?” Nisto tal pensamento me trouxe uma golfada súbita de pranto. Entrou. Uma ligeira indisposição.. Passou logo. — Preciso sair. — Germana. ficou a analisar-me. acendeu a luz.. é verdade. — Ir aonde? És médico. E a estas horas? Que horas são? Pegou no meu pulso.. Obedeci como uma criança. olhando não sei para onde. sentei no canapé.. — Susto por quê? Tenho culpa da Lambeth ser histérica. perguntou-me baixo: — Que foi que te disse essa espinoteada da Lambeth?. sabes melhor do que eu o que seja uma angina. Mas não seria melhor ligar outra vez para a casa dela aqui no Rio. Preciso sair. subir para avisar mamãe. o meu olhar desvairado lhe aumentaram a dúvida. Aonde queres ir? Então a minha angústia se transformou em raciocínio. Germana me observava. Se havia alguém que entendesse a minha alma nos meus olhos e no tom da minha voz era Germana. fosse cair. Minha fisionomia decerto se deformou toda de sufocação e desespero.. criatura. — Verificar como? Onde? É longe daqui?. leu as horas: — Dez e quarenta. Meus olhos se encheram duma luz cega.. conforme percebi. — Germana. desde a testa até ao queixo. agora mesmo... Sentou-se no sofá. Ela notou a minha pertinácia. . Levantei-me. um exílio. Sentamo-nos. fui-me embora porque não era possível ficar aqui. dessa criatura. entregues a um diálogo doloroso. Algum tempo depois. — Como soubeste? Tinhas chegado com tanta animação! — Vim de fato com a ideia de ficar definitivamente. de tal maneira ele nos apavorava. civil. Queria certificar-me. Largou-me. Cobrou ânimo. através da criada. Respondeu-me que a família estava à sua espera sem falta porque você ia ser padrinho de casamento dela quatro dias antes do Natal. Contou-me ao acaso. Renata era casada. fez sinal que papai e mamãe poderiam acordar e ouvir. Transferi-me para lá no dia 28. — Que coisa! Eu já estava em São Paulo. Tuberculose. a senhora não estava. houve um motivo... Fui fazer conferências na Associação de Medicina e no auditório da Biblioteca Municipal e autografar obras minhas numa livraria.. Vendi a aparelhagem. e assim o precedíamos com um diálogo que de antemão esclarecesse enigmas mútuos. mesmo. conseguiu perguntar: — Foi a Lambeth que te contou? — Foi. a realidade doméstica. não? Havia a vida. Germana instava: — Que foi. com as mãos sobre os joelhos. Jorge? — Renata morreu! Instantaneamente uma criatura como Germana entendeu tudo. — Quem fala? Da casa de dona Noêmia? — Ela própria. Escuta. Com que então ela era a personagem do teu segundo livro? Fiz que sim com a cabeça. mas sem dizer o motivo. Vou contar conforme me for possível.. embora fosse verdade ires ser sócio duma casa de saúde na Alta Paulista. — Cheguei de Petrópolis neste instante. sumir. sumir! Agarrou-se a mim. Telefonei do aeroporto. Não recebeu? Extraviaram-se? Mas como? Enderecei para a Casa de Saúde. (Subconscientemente protelávamos o assunto ainda mantido em suspenso. — Aqui é o Jorge. Desço de dois em dois dias para ver se há respostas suas aos meus telegramas e à minha carta de 30 de novembro. . pois Renata era sua inquilina. Iludiste-nos quanto ao motivo. Germana: quando fui para Hacrera.. região em franco desenvolvimento. — Bem que estranhamos fechares de repente o gabinete de radiologia e venderes a aparelhagem. Mesmo porque o combinado era eu regressar ao Rio na segunda metade de dezembro... Tu compreendes. Em última análise. Ficamos ambos inclinados para a frente.) — Ante o seu estranho silêncio e demora telefonei para sua irmã. Agora vou voltar de vez.. Há três anos e meio eu a radiografei. enquanto telefonava outra vez para Copacabana. — Escute.) Mas a urgência de informes. a necessidade dum contato esclarecedor nos restituíram ao diálogo. Foi a Lambeth. enquanto naqueles segundos chorávamos. — Vou já para aí. mas os soluços não deixavam. conversar. parecendo tosse e até mesmo paradoxais risadas. .. senhora. — Ela. — Pois é. Não faz mal que seja tarde. a idiossincrasia pelo melodrama. engasgos. (Aquela palavra “tarde” soou nos meus ouvidos com dupla significação.. não está mais aqui. meu pobre Jorge: onde é que você está? Aqui perto. ou em sua casa? Precisamos ver-nos. — Então como foi que soube? Onde? — Beatrix Rey nal e o José me encontraram na Esplanada do Castelo e me arrastaram para uma recepção. que quem nalguma linha cruzada nos ouvisse cuidaria estar escutando por acaso fonemas dum idioma aglutinante ou flexional. (E é esquisito como em transes desse teor o pensamento da gente desvirtua a essência cruciante causadora da inibição. porém.. — Antes de você telefonar do aeroporto já sabia? — Em absoluto! — A criada lhe disse? — Não. E lá. — Eles conhecem-nos? — Não sei. Ainda agora. por mero acaso. tia Noêmia. Queríamos prosseguir a conversa. causando trismos.. E aqui estou. lamentou a morte da inquilina ocorrida em fins de novembro.) Eu o espero no meu jardim. Nossos prantos simultâneos irromperam afinal. fazendo despontar paralelamente disparates sem propósito! Pensei. como se estraçalhassem as palavras. sufocações. Referindo-se à demolição da casa dela que estivera alugada durante anos. Deus a levou. embora visualizado como através duma vidraça que a neve e a fumaça opacificassem. fomos até os degraus da igreja de Nossa Senhora da Paz. mesmo porque o espaço de quase uma hora entre o telefonema e o encontro desafogara . perguntou se trabalhávamos em estação de rádio e nos conduziu ao endereço dado e repetido durante o trajeto para Copacabana. “entendeu”. Quase me joguei do estribo abaixo e até me esqueci de dar a mão a Germana. como se não devesse parar. com maior dificuldade. Mas o cérebro dominou a medula. (Por que será que já não se fala nem se escreve mais assim com semelhantes contrações vernáculas? Está-se a ver que mesmo agora os meus pensamentos procuram divagações gratuitas e pretextos eventuais para que eu fuja à narrativa direta. me restituí a mim mesmo. Tal averiguação e as anteriores provam que os meus sentidos misericordiosamente se interpunham ao meu estado de alma poupando-me para os lances dramáticos que me aguardavam. atravessamos a segunda. Dona Noêmia abraçou-nos sem efusões instintivas de protocolo. bastidores. os postes. Mas o motorista do tal táxi nos atendeu. procedimento este de ordem meramente urbana — vi um táxi despejar um homem obeso e. Afinal distinguimos um bonde no fundo da perspectiva afunilada e opaca. Este verbo aqui. como se fosse recolher. quero afirmar que o motorneiro entendeu logo que havia algum passageiro aflito e por isso parou o bonde de supetão. Dobramos a primeira esquina. tanto assim que puxei o cordão da campainha e o motorneiro entendeu. da farmácia e da padaria. ao longo da qual os trilhos. Tomamo-lo. Nos poucos passos que dei do meio-fio para o jardim me senti despojado instantaneamente da suposta condição numérica e rotineira de pessoa acordada àquelas horas e me reintegrei. apagou a luz e me seguiu depois de fechar a porta de casa e o portão do jardim. um violoncelo. Não. do cinema. Dona Noêmia abriu o portão enquanto descíamos do táxi. Agrupamento e trânsito de gente nas imediações do templo. à espera de táxi ou de bonde. da praça General Osório e os passageiros daquele bonde haviam condicionado em mero comparsa.) Na praça General Osório — onde pela primeira vez se utiliza um chafariz e não uma estátua equestre para se homenagear um herói. os toldos e as pessoas se alinhavam em cenário. deteve-se além do ponto. IV Germana. que em francês equivale ao nosso “ouvir”. não é má tradução de “entendre”. que ouvira as minhas palavras. as árvores. ribaltas e elencos dum permanente repertório. repelindo quem os agrupamentos da praça Nossa Senhora da Paz. O bonde vinha depressa. a impressão de que só concede desquites quando as provas são berrantes. Antes. muitas vezes nos acompanhava incógnito. Tenho. Germana preferiu a banqueta do piano. basta a minha. Mesmo porque confio no tribunal.. mas a pobre de mim não percebia. Que as outras testemunhas intimadas no Recife e . maquiavélica? E o doutor Moutinho recorreu? — Imediatamente. o tribunal reformou. Não vou ao ponto de afirmar que o doutor Loureiro em sua longa e provecta carreira adotasse sempre o critério pessoal e ortodoxo de católico praticante. Foi-nos oferecido o sofá. há duas semanas. ela e a senhora não estavam tão certos da vitória? Tão confiantes? — Se estávamos! Os advogados do conjunto onde trabalha o doutor Moutinho são cinco e ainda recentemente ganharam causas de desquite concedido por esse mesmo juiz. — Mas tal conduta não é. todavia. a urgência agora sendo os pormenores e as minúcias do drama em que eu. lhe passei dois telegramas e lhe remeti a segunda carta. Jorge que tenha paciência por mais alguns meses. digamos assim. Afinal. Que nenhuma das testemunhas apresentadas pelas duas partes jamais assistiu ou teve conhecimento de maus-tratos. Ela refletiu durante alguns minutos e respondeu: “Para quê? Decepção. ele não pertence ao clero e sim ao foro... — Perdeu a causa? Mas o advogado.” — Em que se estribou o juiz? — Admitiu que houvesse impasses no convívio do casal por desnível nos planos familiares de sensibilidade. ele não cerceia o direito a essa espécie de apelação. que lhe apresentei Germana. assim permanece com a consciência tranquila porque sabe que quem perde recorre do despacho para o tribunal e. era desde já uma testemunha acanhada. talvez para ficar mais perto da porta e do jardim. um dos cônjuges sendo burocrata burguês e o outro intelectual distinto. não dialogara. até a sua partida para a Alta Paulista. durante três anos e tanto lhe remeti rolos de revistas e uma vez uma carta a pedido de Renata. Depois.. mas vacila e propende a respeitar na prática o argumento canônico. — Jorge. — E não lhe respondi que ele estava a chegar?! Entramos num salão iluminado apenas por um abajur.um pouco a emoção aguda. Foi somente quando nós três atingimos a varanda. ofensas e rixas.. tendo perdido três que.? — O motivo? Ter perdido a causa em fins de outubro. é a segunda vez que falo pessoalmente com você. devido à ausência. E perguntei a Renata se queria que eu comunicasse o despacho a você. nos falamos pelo telefone.. — Ah! Falamo-nos pelo telefone no princípio deste mês. — Mas Renata não estava curada de vez? Então como foi que. educação e temperamento. porém. Agora. portanto. — Minha irmã... ofegante e nervosíssima. pudera certificar-se através de declarações de gente idônea e através de cópias autenticadas de documentos que o marido logo que soube do estado de saúde da esposa veio do Recife para o Rio e tratou de requerer aposentadoria a fim de permanecer no lar. não! Os escrúpulos. juiz. não!” “A sua causa?” “Que me importa! Vou telegrafar a Jorge. humilhação. a litigiosa. cada qual afirmou que nas cidades onde aquele alto funcionário da Fazenda estagiava de vez em quando. sempre teve procedimento diuturno e noturno correto e exemplar.” — E a senhora não consentiu? .. que espécie de querer bem é esse que ante o primeiro obstáculo suposto logo o afastei? Como é que somente agora sinto pejo. Que ele. incapaz de me salvar? Vi-me diante dum simulacro de dilema e optei pelo sacrifício dele e pela minha reacomodação provisória. Provisória. dificultando o ingresso e a permanência do cônjuge. você quer agravar o seu caso?” Respondeu-me: “O meu caso. remorso em haver caído na armadilha como se ele fosse inútil. vistos. tendo comparecido isoladamente. Temerosa de que ela cometesse um desatino. embora inferisse tratar-se de divergências de caráter íntimo. alucinada: “Vou-me embora para Hacrera”. Tanto insisti que ela. Três anos e meio e mais quantos doravante? Não. antes mesmo de entrar com a ação. negava provimento. as aparências que se danem. Ao passo que a outra parte. assistência e tratamento do elemento humano incumbido legalmente disso e capaz de lhos proporcionar. não raro decorria de contingências mentais e glandulares. de alcova. como foi que teve uma recaída de marcha tão rápida. declarou. Crônica.! Pois sim. julgava do seu dever não privar quem precisava de constante ajuda. e durante quase todo o período contencioso se homiziou em casas de parentes.. Ouvia muito bem que estava a remexer em suas coisas. levei horas no corredor a escutar na porta e horas no jardim a escutar na janela. “Menina.em Porto Alegre. mediante pareceres de peritos e textos de tratadistas. juiz. à vista de tal pertinácia. Já devia ter feito isso muito antes da radiografia e quando os exames de laboratório indicaram o único caminho de que eu dispunha para usufruir o tempo que ainda me restava para lhe provar o meu amor. Por isso. Que ele. cheguei a supor que houvesse decidido voltar para casa a fim de favorecer a sua situação visto o doutor Moutinho ter dito que ia recorrer. — Se ela confiava que o tribunal reformaria a sentença do juiz singular. não abrindo nem mesmo para mim. Assim pois. se compenetrou. galopante? — Assim que lhe foi comunicado o despacho ela se fechou nos cômodos que desde muitos meses ocupava em minha casa. que essa atitude em pessoa enferma. Que mulher sou eu que o deixo acolá no exílio exatamente quando mais precisávamos um do outro? Que mulher sou eu. vítima de mal orgânico específico. escancarando o quarto. examinados e considerados os autos. determinação essa que adotou antes mesmo de findos os trâmites complexos dessa providência. juntar-me a ele. no quarto ao lado. enquanto Germana quase caía da banqueta do piano. — Consultei-a a tal respeito. Ergui-me do sofá. não tardou a vir. amor-sacrifício. fazia a ameaça das lágrimas se ater ao recato e no recanto das órbitas. retirou-o. pediu o termômetro. curvando-se. — Que é que ela queria dizer com isso? — Você pergunta. já então com uma fisionomia sarcástica de quem desafiava o destino. da doença. — Eu? Ajudei-a a retirar do armário e das gavetas e pôr em cima da cama os vestidos. com uma pontada. mas foi somente ao clarear o dia seguinte após uma noite em que não fechamos os olhos. e eu também perguntei. Jorge. a arrumar as duas malas em que tropeçávamos ali no assoalho. de religião?” Passou as mãos uma na outra. Não consentiu em tom de proibição categórica: “Avisá-lo agora? Tenho é que arrumar as malas para outro itinerário. ela parou. que Renata ponderou. — Devia ter-me posto a par de tudo já que concordara em lhe arrumar as malas. Nisto. franziu as sobrancelhas. — queixei-me. Germana foi chorar no jardim. quando ele por sua própria condição é presença.. ao passo que as criadas enrolavam os tapetes e as passadeiras levavam tudo para o tanque no porão. ainda tenha que me haver com escrúpulos de consciência. perplexo. e após um acesso de tosse. Onde já se viu amor-renúncia. os vidros. a fazer tempo. ficou imóvel. diante de dona Noêmia e de Germana. Aparentemente mantendo impassível o rosto. sem a menor experiência da vida? Ou estou sendo castigada por haver infringido a pauta dum sacramento? Será que além da problemática do amor. difusa. — E a senhora não me escreveu. onde se encolheu num banco. soletrou: “Trinta e oito e meio”. agora me vejo diante dum segundo referente não a uma solução mas a um discernimento”. estirou-se na minha cama. de remorso que ao invés de substituir a saudade daqueles quase quatro anos e o desespero agudo das poucas horas de conhecimento do irrevogável se juntava às duas contingências no auge da perplexidade mais atônita. como a limpá-las de quaisquer responsabilidades. pôs-se a olhar para o teto. Deixou-se examinar. contato?” Ali no sofá. indo e vindo da cama para o guarda-roupa. Tomou o remédio. passei a sentir uma forma inicial. se sentiu sufocada e teve uma hemoptise em cima dos tapetes. mas para ela própria: “Estou pagando caro e em forma de falência o investimento absurdo que fiz da minha mocidade quando do regime do colégio interno deixei que a família me transferisse aos dezoito anos de idade para o regime do matrimônio. E quando ficamos sozinhas. não para mim. Deus lhe comutará a pena em exílio e me levará como refém. ponderou: “Se interpretei errado o tal dilema. os sapatos.. — Levei-a com a ajuda da governante para o quarto de banho. Telefonei para o médico. escondida . a roupa branca. Amávamo-nos e amamo- nos tanto que erramos juntos. enfiou-o na axila. só quando ele saía. De modo algum. ele voltava. Quando este se aboletava em minha casa. dona Noêmia não deu mostras de querer finalizar a entrevista. permanecia de ouvido atento à campainha do portão. o especialista. Disse-me a seguir: — Apenas escreveu à mão numa tira de papel: “Chegou a tanto o meu mal Que nam sey estar sem ele. Então telefonei para sua irmã. Nas duas semanas de novembro a febre subia de tarde a trinta e nove graus. aos ruídos no jardim e dentro de casa. um clínico e cirurgião (para o caso de toracoplastia). Nada. sem dizer o motivo. pelo menos de qualquer maneira nos meados do mês você apareceria. “Ele entenderá e tomará decisões. Eu não comentei nada mas refleti comigo mesmo: “O cão por impulso intuitivo a defendia enquanto eu em Hacrera contemporizava”. De certa época em diante.entre folhagens. do telefone. quando Fulano saía para ver o andamento da aposentadoria ou para ir a um banco.. Percebendo talvez este meu raciocínio. Maldita a hora em que a 28 de novembro vim para São Paulo descontar o resto do prazo. não obtendo resposta. foi necessário fazer mais de uma punção. fincava o dedo no botão da campainha elétrica e o fila avançava no gradil. Dona Noêmia aproveitou para calar-se de maneira às palavras já ditas darem lugar às restantes. debaixo das amendoeiras. se tornou ainda mais confrangedora a situação: exigia silêncio. Como Renata soube que eu telegrafara. Quando ela... Na outra. E isso até ir ficando ausente de tudo. então telegrafei a você. Será. e isso mesmo vigiada pelo cão de fila. Aliviou-me um pouco saber que. quer no Rio quer em Petrópolis. ainda faltava o remate lúgubre: — Na primeira semana emagreceu seis quilos. cinco.. Renata passou a fechar com cadeado o portão social e o da garagem. ela vinha para a rede no jardim. daí a três dias lhe escrevi e tornei a telegrafar dizendo que viesse imediatamente por via aérea. que se deitava na grama bem perto. que ela nunca exprobrou como covardia eu ter ido embora? — Nunca. suores frios. caso os telegramas estivessem retidos. ela se fechava à chave no quarto. pois cuidei de minha obrigação dizer-lhe. e o emagrecimento prosseguia. Ainda assim aquela pessoa só desistiu de aparecer depois que o seu advogado apresentou em juízo testemunhas desse procedimento. dona Noêmia. Mas pelo menos jamais se sujeitou à presença de Fulano. Passou a ter dispneia. ladrando. como as respigadoras que aproveitam os menores sobejos para acabarem de formar um ramalhete órfico ou elegíaco. foi desenganada por uma conferência médica. Raramente. O raio X portátil deu derrame nas pleuras dos dois pulmões. Na carta .” — Claro que não recebi. no dia 29 de novembro.” Pediu-me que enfiasse aquela tira numa das revistas que regularmente enviávamos para Hacrera. Germana já voltara. já de si esguio. Ruídos de passos.. Seus cabelos. tão inclinada por sobre o seu rosto. de tanto o ler desde então. E. . Ela a fazer-me sinal de silêncio e de atenção. enegrecendo a fronha. Ela esboçou um sorriso. rodeavam aquele rosto moreno lavado em suor. embora eu.” Fui até à cômoda. Seus braços e seu pescoço ficaram com a pele flácida. estava sentada de costas para o piano. Estava menos lúcida mas não em estado de coma. Compreendi e. devido à rouquidão me passou o volume. a mímica. engatinhando pelo lado e por cima do relevo do seu corpo. enquanto os últimos dons ainda possíveis de comunicação se articularam entre a laringe. decerto assim já um tanto grisalha. disse-lhe. faça o favor. bem mais próximos. embora erguesse o braço descarnado. “Bebe. Abriu-o numa página dobrada. Deixou-o para você.. perguntando-lhe. mesmo agora. Uma espécie de testamento. ele”. rezava ou me pedia para rezar. Ela passava os dedos numa das têmporas como a prender um fio de cabelo. amor”. aquilino mas belíssimo. se queria mais alguma coisa. sem ênfase: “Esta é uma morte de alto quilate. que notei todos estes pormenores na sua boca.” — Nessa mesma noite Deus a chamou. — Emagreceu de modo impressionante. Olhou mas foi para as cortinas da janela. a primeira separada das outras duas: “É. Os passos apressados do leiteiro desde o portão da garagem até os fundos do parque.. Jorge. não? Uma noite pediu que eu lhe pegasse o livro que estava em cima do criado-mudo. devagar. e enquanto isso fazia menção de esticar o busto como a pedir que eu lhe soerguesse mais o travesseiro. rijamente formada. entortando um pouco o rosto. Estendi-lhe o copo enquanto com o braço esquerdo procurava sustê-la. ainda devo ter ares de carpideira. O rosto. o que é mais. Ouvi o que ela já estava ouvindo desde segundos antes. Acordei nos pés da sua cama ao ouvir-lhe os estertores. como se tivesse estado presente. o saiba de cor.. a língua e os dentes incisivos superiores.a você eu pormenorizava o estado dela e os motivos causadores desse estado. depois. solicitou que eu lesse o que estava sublinhado com lápis vermelho. Está aqui o livro. por cima dos paralelepípedos em rampa. o céu da boca. seu rosto se transfigurou. Calou-se. principiou a ler um trecho. Um ar assim hebetado de neófita. E eu obedecia. Quando a falta de ar e a tosse a deixavam um pouco em paz. Insisti: — Vá falando. então se preparava para morrer. mas percebi três sílabas. aquela morte exata. que não prescinde de nós pois que a vivemos desde já. Não ouvi nada. E com o gesto. entendi e estou de acordo. Cinco horas da manhã. Li alto. Estou a rever a cena. a acomodei melhor. era só ossos configurando uma escultura. Mas Renata. acendi a lâmpada da cabeceira antes de entregar o copo. Jorge. voltei. não aconcavou os dedos da mão para pegar o copo. Preciso saber. Leia-me. Eu estava tão perto. “Água. Peguei o livro aberto. o demônio (ou o arcanjo?) que nos lances dramáticos me oferecia close-ups de delírio misturando mágica e rotina. Depois aqueles braços se ergueram e as mangas da camisola escorregaram para os cotovelos. puxado por Germana. O queixo. mostrava essa parte do pescoço que fica sob o centro da mandíbula e a junção das clavículas. até que em determinado quarteirão de determinada rua parei diante dum andaime. passaram a esticar a orla da colcha. esquadrias de janelas e de portas. Despedir-se como. dona Noêmia não tinha coragem de despedir-se. Entre uma casa antiga de frente de rua e uma outra maior ao centro dum jardim. É que lá de dentro investiu contra as tábuas. ausência de teto. pilhas de telhas no chão muito bem superpostas.. me fez achar as duas parecidas respectivamente com Sant’Ana e Santa Isabel. ia transpondo para entrar. vai ficar no Rio. Atrapalhei-me ao querer ampará-la. Agora.. E todavia. Mas. Pondo as mãos na madeira áspera. Germana apanhou de cima da credência o livro “herdado” e o meu chapéu. ampará-la como? Sua cabeça e o seu rosto acabavam de tombar metade sobre o travesseiro. procurei uma fresta. andei. Comecei a andar depressa.. segurando a mão de Germana. Atarantada. havia andaimes tapando um terreno duns vinte metros de largura. cuja água lhe molhou o rosto substituindo lágrimas. fugi para o jardim. no ar. E vi. Quando aquelas duas mulheres de porte davinciano me ladearam. Jorge. Dobrei a próxima esquina. cuja voz entrava pelos meus ouvidos em frases tensas. andei. Ela ficou no portão até nos ver sumir na esquina. Erguendo-me. quis sentar-se. você avaliará. O mais. esquadrias em pé nos muros. e agora olhava mas era para a porta do corredor. Soltei-me daquele amplexo. agora. e me restringi à minha realidade dizendo para mim. de espera matemática. esticado. de confiança absoluta. se eu era a visita?: — Venha sempre ver-me. Sim. Larguei o copo. metade fora do colchão. não é? Balbuciei: — Vou voltar para o exílio. Os olhos muito abertos tinham um luaceiro que logo se vidrou. ladrando.. Sim. para elas. Ele caiu primeiro na cama. me joguei nos braços nem sei se de dona Noêmia ou de Germana. para o gradil (qualquer gradil não imita sempre grades de prisão?).. foi nos braços de dona Noêmia. vacilante. transpondo ruas transversais. juntando-se e afastando-se uma da outra como se medissem os metros que você. lá dentro uma ruína: paredes desmanteladas. Renata preparava o abraço. Suas mãos compuseram fios de cabelos desde a fronte até atrás das orelhas. depois no assoalho.. — Ela reacomodou-se. para a rua vazia: — Três anos e meio de saudades. ajudado por um lampião na calçada. um enorme cão. Nisto recuei. andaimes cujas tábuas a noite calafetava. . contra meu olhar de louco. Casa paterna. uma casa para receber a nossa angústia. uma placa: RODRIGUES & FILHOS DEMOLIÇÕES Compram-se casas velhas para demolir. a beija. Voltara a ser um homem dando acordo total de tudo. E eu? Quem me quiser ouvir. Silêncio cálido. me respeitando. na verdade segurava o quê? O que Germana procurou levar para casa não foi seu irmão. Bem. encosto-o ao rosto. A janela por onde a mãe espia de vez em quando. respirei profundamente. tão certo que nossos passos reboam. Há sempre. não era mais o fantasma dilacerado pelos dentes dum cão. aderida a mim. de iluminação restrita. esboroando-me pelas ruas. não ensina. Que ouço? Nada. pobre mãe. profundamente majestoso. Os móveis. não adverte nada. Se Germana pensava segurar-me muito presa ao meu braço tenso ao longo das calçadas. mas sim um boneco de Kleist. se minha mãe descer lá do quarto. Tudo querendo indiretamente abrandar cansaços. com o olhar estatelado para o firmamento cheio de constelações. Não existe nunca solidão completa a não ser na morte. que me levastes como polia entornando-me numa calçada da avenida Vieira Souto! Onde. Agora eu não estava mais leve. o material em que me fui desmantelando para me demolir de todo. Pego num. assim afoitos.. Ó ruas solitárias e escuras. der com meu desespero. alargando o colarinho. a preço baixo ou caro. mesmo que o nosso desatino a considere estalagem de intervalo para a viagem maior. Do Arpoador aos Dois Irmãos. apoiar o ouvido no meu coração a fim de descobrir o que há. ao cabo de tudo. que o mar estava grosso. Quando atravessamos a última rua antes da praia. parecíamos. essas pessoas que transpõem correndo uma via férrea onde só passa o trem de doze em doze horas. abraçar-me. Estantes e mais estantes. a enseada Ipanema-Leblon era um cenário lívido. que escutará seu ouvido? . não ganhariam. caminhando certo comigo. Germana? Como é que estou sozinho diante deste espetáculo sinistro de negrores e de ecos? Ah! Germana está aqui. esses Rodrigues. Tantos livros. Lembro-me que a areia tinha um livor de solidão final. Todo um arquivo de experiências da vida. Tapetes. atribulada pela demora do filho que entra afinal. O assoalho. Dei dado à noite e ao vento resíduos da minha lucidez. ombro com ombro. A mesa das refeições e dos conciliábulos de família. Germana me levou para casa. o bom gigante! Parei e. No alto do andaime. e não diz nada dos seus sofrimentos. Flores. abaixo e acima. O escritório. Que peso tamanho! Germana puxava-me.. pai e filhos. A vida prensada ali é resíduo de paleontologia. foste viver tão longe dela e de nós. Chegava a reconhecer certas pessoas.. Já me achou no quarto abrindo a maleta. mas sob os golpes de picareta da firma Rodrigues & Filhos. Fechei os olhos. muitos carros. a morte dela. Abandonaste tudo.. que não falasse. Mas foi ela quem arrebatou de entre a roupa o embrulho e desceu fazendo sinal. sorridentes. Isto é. o olhar filial a exprobá-la. compassado.. de trópico. Rodar de carros. corri para a escada. E.. E agora. E eu no meio disso.. com a cadeira um pouco longe. A tua situação?. desta luz.. E via com nitidez incrível. Líamos juntos. flancos. a varanda e o jardim cheios de gente. na verdade me vigiando. Uma grande morte. perto do abajur que acendeu depois de apagar a sala.” Mas meus pais estão dormindo lá em cima. Para parecer Tristão e Isolda. “Tum-tac. Imagina tu aqui. agora. demandando o cemitério. Tum-tac. Demolição): — No livro anterior. dum mundo novo. Depois o rodar de carros. via um velório. fluídico.. no escritório.. Combinação nossa. de olhos fechados.” Pancadas surdas batendo numa porta. os corredores. ombros. puro e poupado.. disto tudo.. os pés estirados sobre uma gaveta aberta. Imediatamente Germana correu e subiu. do Brasil.. Shakespeare. não no cemitério. túnel Velho. a cabeça entortada para trás fazendo da estante travesseiro vertical. Rua da Passagem. Tragédia grega.. enorme.. Que é que poderias fazer? Enxaguava-me uma tristeza de redenção.. . encolhida no divã. também tratas dela nesse livro? (E eu respondendo não ali. E perceberá o quê? Um grande mistério. para acabar bonito. rua Siqueira Campos.. não acordasse papai e mamãe. o que trouxe. depois. paralisando o tráfego da rua preferencial. Via o enterro. Neste.. agora vou rasgá-lo! Ergui-me de ímpeto. E ao mesmo tempo a voz de Germana lá do divã: — Pobre Jorge! E te exilaste. um tropel lento. a fiz passar de relance como um fulgor em meio aos bastidores da Europa e da civilização como a imagem disto. aquela hora particularíssima adstrita a determinada casa de certo quarteirão de dada rua.. que o velho mundo não merecia senão contemplar de relance. Acompanhava e ao mesmo tempo estava ali. a matei. subi aos três e quatro degraus... devagar... a enchi de vida. as salas. Que estuporado vezo de encher de imagens a solidão! Assim. Rua Barata Ribeiro. Cemitério. E esse romance que trouxeste. Estou sentado diante da mesa. pensando alto: — . o que acabei. permeável. Foi melhor teres ido. finge folhear uma revista. com um dedo na boca. Germana. Tum-tac.. querendo dizer a quem lhe deu vida “que o pior mal é sempre o ter nascido. que levaste tantos anos escrevendo. E a voz de Germana. pés. Sentia o cheiro das grinaldas. Via a saída. não me encarregaste disso? Eu entendo tudo. lá embaixo. ameaçou: — Chamo papai! Olha que eu chamo papai!. principalmente. vamos conversar no jardim. seguiu para a varanda. a mata vibrando de sussurros. para reaver-me mais cedo.. eu revisse o livro mais uma vez. fazendo da felicidade antiga suplício e. Oh! Jorge. Fala. ambos. Vem desabafar comigo. Falei com ela ao telefone.. Nunca lhe escrevi para não exasperar sua saudade e. que foi que houve entre vós dois? — Tudo e nada. estirei- me de lado no banco e apoiei a cabeça no colo de Germana como para dormir ao relento. Pediu mais um prazo para a convalescença integral. conta. Ela conseguiu safar-se. Mas entendemos. implorou: — Jorge. foi para o patamar. assoando-me. — E durante a ausência. Renata e eu sentados numa grossa muralha das Paineiras — onde fôramos tantas vezes — contemplando o cair da tarde. que dada a sua situação. não vos escrevíeis? Não te mandou dizer que piorara? — Desde que fui para Hacrera a deixei à vontade. Estuporado vezo de reconstituir imagens saudosas. Enxugando as lágrimas. em respeito ao drama da sua e da nossa vida. piedosamente. no coração. Obedeci. que ela. depois duma ausência de dois anos. Leve aragem acariciando meu rosto. Vi-a a última vez em junho do ano passado. Veio-me um pranto incontido. — Senta aqui. Um céu de cobalto por sobre nós.. do suplício de agora. cinza de lareira. urgia respeitar as circunstâncias. Compreendi que com isso eu colaboraria para a sua cura.. se é que não há nestas palavras uma ironia tétrica. relembrava cenas e mais cenas. Ela. A lâmina muito tensa . querido. — Mas dona Noêmia não te podia escrever? Não procuraste sempre estar ciente de qualquer possível novidade? Por que não me escreveste. veio para a porta. No escritório lutamos. Sugeriu que.. demoradamente. Garantiu-me que estava quase boa. entortando o pacote. Quero e posso ajudar. pelo sacratíssimo nome de Deus. Só me mandava revistas mensais capeando trechos datilografados de poetas célebres. como uma cidade de Argélia. sentou-se no banco diante da amendoeira. Ipanema e Leblon. cubos sobre areia. sempre com o volume fortemente apertado de encontro ao peito.. Eu entendo tudo. se trataria com disciplina. Ali no colo fraterno. quase sólida rente aos gradis e às calçadas! Ó céu constelado onde a Via Láctea parecia lixa fluorescente para esfregar no rosto. E que depois de mais um ano voltasse pois então teríamos direito à vida já que tínhamos pago o nosso resgate a preço tão alto. enquanto isso. Ó treva rasa. Depois apagou a luz do vestíbulo cujo comutador apagava também a escada e o hall de cima. Ela olhava de um modo esquisito enquanto eu descia a escada. soergueu a aba da vitrola. um sofá. Um disco principiou a tocar. Vestíbulo. Quarto de vestir.. Mesa. credenciais com retratos. a terceira eu não conhecia. Procuro entrar com naturalidade. pela estrada abaixo. Eu fico aqui”. no jardim. piano.. com as mãos e a cabeça para trás. Um divã com almofadas. Porcelanas. imitando a voz de Elsie Houston. diz com voz rouca e baixa. Lá vou eu pela rua acima. Sala de jantar. Sumiu. Fez um gesto hirto que lhe sacudiu os cabelos. Luzes acesas decerto porque as janelas estavam fechadas e porque em cima do criado-mudo eu tinha que ver os livros de minha autoria. colhendo pétalas que mastigava. Uma cômoda. estantes. de círios. árvores. Com outro gesto de queixo me indica a escada. entra. Entrei. mostrando-me a saída. Nunca mais a verei. Dois leitos. E agora ouço sua voz atendendo ao telefone: “Vem depressa. ruína pura. Mas não lhe vejo o semblante exato. Sala de estar. Aparador. Três reproduções dependuradas. a cabeça um pouco vergada de encontro ao portal. cheia de flores. com fitas marcando trechos. junto à tia Noêmia. Na porta lateral que dá para a varanda. Apenas um Coração Solitário. uma de Utrillo. Poltronas. Quando passei. Mas não lhe vejo (agora. o corpo imóvel: “Entra. A seguir me evoco rondando a sua residência. Reconstituo a vez última. Estantes com livros. Presente meu. Atenção. que está reduzida a lances de paredes derruídas. antes de me ir embora. esquinas. encadernados.. pois queria ver-me. Começa pela sala de visitas. Renata de pernas cruzadas. Muitas vezes me pedia pelo telefone que ao ir para casa passasse na sua rua. vigiando ora o jardim. exata. Lá estava ela com as mãos para trás. amas. Renata deu uns passos. beijou-me de relance.) Volto. gradis. voltei precipitadamente. me vê entrar. Mas a casa. Quero que conheças onde vivo e sofro. crianças. tal casa vejo. nesta evocação) o rosto. dirigindo o carro. a cabeça no meu colo. Ela voltou para a porta. nervosíssimo. onde penso em ti”. (Depois me disse que era de Derain. O portão está escancarado. sem telhado. Sweet Chariot. tal a emoção e a ousadia. fingindo o vozeirão de Paul Robeson. e logo a descobria um pouco para dentro da sacada do quarto ou do escritório ou embaixo. outra de Seurat. radioeletrola. Subo. Não a vejo direito. quando a vi crucificada na bossagem da parede da sua casa. A orquestra de Marek Weber pondo frenesi em meus nervos. Não o ESTOU VENDO direito! Rememoro atropeladamente uma porção de várias cenas.. Dormitório. intacta. inclinou a cabeça para trás. Cadeiras. ora o “intruso”. Se o portão estiver bem aberto. Uma tela grande. Depois sobe. Casas. mas sinto o sangue revolutear em mim. cantando Swing Low.do Atlântico. Cadeiras de palha. Duas telas. tudo envolto em lufadas guturais de oboé que enchem . a casa que não existe mais. eu. Com um movimento de queixo me indicou o caminho. Renata encostada. Depois. Uma vez na rua olhei por entre o gradil. postes. cantando Foi uma Noite Calmosa. a escuridão. tiro o paletó. é coisa. o mar. Vejo Germana tão bem! Entro. tenho também uma finalidade financeira. quando há este Brasil imenso. recolhe-se ao seu aposento. Assim. a noite. tira os sapatos. Depois do almoço. porém. Cinco e dez. dos pés ao pescoço. E quando vier. Até as horas. Afinal de contas acha que a minha experiência na Alta Paulista é um absurdo. os de passeio. encaminha-se para a outra peça. Mas está acéfala! Germana puxa-me pela mão. até panelas e faqueiros. apoia o rosto no meu ombro. Meu pai intervém: que isso de formar-me na Europa e ficar no Rio de Janeiro. Em cima. entre outras coisas. cautelosamente. depõe o embrulho do romance num degrau. a biblioteca. os matutinos. meu futuro cunhado me leva de carro ao aeroporto. Considera que decerto disponho de tempo para.. é mais fácil. Minha mãe muito sentida comigo. Ela e mamãe estão atarefadíssimas com a embalagem minuciosa do enxoval heterogêneo. juntar umas economias. obedecendo a um intuito. o cristal da mesa. Eu a imito. Com a aviação. os livros. E mostra o romance que Germana está lendo.. beija a minha testa. rodas de colegas e de amigos de tantos anos. Reconstituo Renata como um grande bloco do tamanho do horizonte. as veias das minhas mãos. desde vestidos e sapatos. Vamos buscar as malas. Germana vai casar-se agora no dia 21. uma diminuta mancha no teto. demore mais tempo. que tenha propósito? Respondo-lhe placidamente que voltarei de vez assim que a guerra acabar. voltarei conhecendo deveras uma parte da realidade nacional. Ah! O seu rosto! Escancaro os olhos. Dispõem também de pouco prazo para os preparativos da recepção. os de cerimônia. quadros e louças. minhas mãos. o mar. escancaro a janela e vejo já não mais a noite e sim a madrugada lívida. muito absorta. fecha a janela. a avenida. Acentua. exata. trocar a praia de Ipanema pelo sertão. com todos os pormenores dos seus vestidos. O leiteiro?! Não arredo da janela. o céu. realizando uma programação. Germana está junto de mim. além do mais. colcha e fronha cheiram a alfazema. Vejo a sala. desfaço o nó da gravata. se. pois a cerimônia civil . Que faço muito bem. os de teatro. Ela pega nos sapatos unidos com uma das mãos e com a outra segura o embrulho do livro datilografado. que um reparo devo eu ouvir. e trazendo um bom livro como esse aí. fecho a porta. a areia. birra. se é que estou seguindo um plano. a grande amendoeira! Passos na calçada. e me jogo em cima da cama cujos lençóis. Eu entro no meu quarto antigo. Surge imensa.os meus ouvidos. do chão ao céu. quinquilharia e perfumes. abandonar a clínica numa capital. grupos de intelectuais. dou ao poder da visão sua capacidade funcional máxima. tão bem esticados pelas mãos de mamãe. Demitir-me de lugares ótimos como São Cosme e Caduceu. o seguinte: — Apareça no Rio mais vezes. é tolice e erro crasso. Vejo tudo. Subimos a escada sem barulho nenhum. Ainda assim. Germana procura junto com o zelador. não esclarece se acaso se trata de sentenciado ou de sentenciada. A terra limitada pelo arremedo de cais desaparece. sendo neutro. Mera geometria dum paralelogramo com resquícios de flores secas.. donzelas e bustos de anciãos barbados. umbelas. Germana afinal acha certo sepulcro. gladíolos. cruzes. como os automóveis num parque de estacionamento. Procuro lembrar-me das orações que minha mãe me ensinou mas que depois. folheando um calhamaço. depõe duas coroas. Após muitas quadras assim da nobreza. Enquanto isso. Serventes oferecem-se (serventes ou candidatos a coveiros?) para transportar aquela quermesse floral. Na portaria do cemitério fico vendo entrar gente viva rodeando gente morta e ouvindo o sino avisar horários de partida.. Uma coroa estará certa em relação à outra.. Renata estará debaixo dum vitral. se for ao contrário. entre parentes e convidados. onde Renata. as seguintes são discretas. da grande indústria. amentilhos em nível igual. outra nos pés. da alta burguesia. sobre aquele portal caído no chão. pois vou devagar entre flores que se movem como aquela floresta de nem sei que tragédia de Shakespeare.e a religiosa vão ser em casa mesmo. Faz-me sinal. margaridas. ambos virando as folhas bem devagar. uma na cabeceira. Caminhando. O noivo empresta o carro. algumas sepulturas dispondo apenas de vasos. cúpulas góticas e renascentistas. veio parar! Em determinada quadra constituída quase que apenas por quadriláteros de pedra ou de cimento. Ao todo. Na rua da Passagem — formidável nome que até serviria para título dum dos poemas da série Rosa-Cruz de Fernando Pessoa — adquirimos coroas. observo mausoléus. Ela ajoelha-se. abandonada por mim. Renata gostava de mastigar sépalas e pétalas. de modo que se estiver enganada.. sobrenome e falecimento recente ela citou e teve que repetir. só se veem corimbos. Deus do céu. devido à pressa com que eram proferidas por . Levanta-se. (Lá vem o demônio — ou o arcanjo das divagações — interferir em meus pensamentos. Se esta noite houver luar. reza. esmaltes. barrocas e rococós. cártulas. cravinas e não sei mais que flores. e vice-versa.) Depois ela e os serventes começam a desmanchar ramalhetes e braçadas de rosas. iniciais e datas. anjos. Sem data. esculturas em mármore e bronze. Mas todas têm números. no colégio interno. o número da quadra e do túmulo de determinada pessoa cujo nome. minha irmã concorda em me levar ao cemitério São João Batista. preciso ver a tumba de Renata. O único e misterioso signo de identidade é um número que. Sem nome. no máximo cem pessoas. junta as mãos. tanto faz. ramalhetes e braçadas de flores. Mas Germana me mostra o cartão rubricado pelo zelador lá na portaria. lírios. cumprindo-a com a eficiência dum artesanato ou duma revelação outorgada e que lhe cumpre passar adiante. — Um artista. para receber as águas das chuvas.. ao mundo. potenciais magnéticos.. E agora apenas digo: “Salve.quatrocentos alunos. essas . se me tornaram prosaicas.. conversamos. a gente realiza um livro como quem desrecalca um complexo. Mas o artista é um ser que por mais que possa estar arraigado a um lar. exteriorizando sua vocação. o meu primeiro romance em 1931. Ora.. e percorrendo- lhe com o olhar a superfície rasa mas cromática. Germana me olhava muito como a querer ver onde eu queria ir parar. ninguém. a bem dizer. e o faz deformado por aparências estéticas e por signos sobre- humanos. ainda agora tinha chorado lancinantemente.. Cisterna romana. Longe estava eu de supor que tal romance. Germana. o seu. uma antena. dos que olhavam das calçadas e das esquinas. De volta para casa. é. e dos olhos. Minha irmã já pagou os garotos que ajudaram a transportar as flores. emanando dum sacramento e dum plano ético. Que a tua literatura era um utensílio de descoberta de almas. linhas de indução. Mas és de índole tão reservada!. pressupondo deveres naturais e rendendo vantagens puras. diria que eu. Estando nós sozinhos. Sei perfeitamente que tenho a felicidade na asserção íntima dentro de nossa casa aqui no Rio. opera sempre extra muros. num pátio interno. Asseverou que devido à qualidade sensível dos teus livros só te poderias comunicar com certas almas eleitas. e afinal ele tem sempre alguma criatura que o recebe como mensagem a ser decifrada. — Pois é.. E por mais introvertido que seja.. Durante o trajeto da rua da Passagem até a avenida Vieira Souto. meridianos magnéticos e geográficos — acabasse se transformando literária e vivencialmente na experiência de Gauss. por exemplo. Mostro-a a Germana mas não deixo que ela a tape com flores. mercê.. de coisas que as fórmulas de Thévenin explicam (tu és professora de física num ginásio.. — Sempre tive a certeza da existência dum drama na tua vida. virtude e tempo. aquele homem exposto ao vento. logo me entendes) — fluxos de forças. digamos. Das chuvas. ou de Barlow. A felicidade naquilo em que ela consiste como essência de tradição. ao lado duma jovem que dirigia o automóvel. Rainha!” Ajoelho-me não aos pés mas do lado daquele antimausoléu. Sim.. — Publiquei. explico-lhe: — Complúvio. pois recebe. está exposto à vida. — Tio Rangel já me disse coisas mais ou menos assim. aceita e centrifuga para depois devolver o que o mundo lhe entregou. vejo que na provável altura do coração há uma nesga que me deixa ver a terra. Uma família é um agradável compromisso espiritual. mas. não. nos comunicamos. E o teu livro? Quando o entregas ao editor? . Isto é: se tinha que haver o estilhaçamento. passamos a sublimá-la. certa sensibilidade. sabes qual é o sentido da alegria mística sempre que não é possível haver a alegria panteísta. virando uma Oceania. O fato foi que aquele romance exerceu na esfera lírica uma rede complexa. Agora volto para Hacrera não mais como para uma temporada em Vana Vana. não havia nisso um senso gratuito de evasão literária influenciada digamos por Chadourne — que já leste. tudo falhou. deveras para confinar-me no Patusan. Na verdade. Algo como a cena de paisagem natural e extraordinária que uma lente fotográfica pôde colher num retângulo diminuto. um novo instrumento do destino. tal personagem irrompeu antes como elemento de intervenção. órfica! Já que era impossível o amor total. e pouca gente entendeu. a fuga para o oposto. Disse eu paisagem natural e extraordinária. Ao escrevê-lo.experiências se processam também nas almas. lhe captasse a essência. Objetivemos melhor. Mesmo assim. a prostrou. Evidentemente esse outro personagem era eu próprio. Na verdade o meu exílio e o sofrimento dela eram uma espécie de preço altíssimo de resgate. e. consequência da queda.. do pecado. dual. inabordável. Assim. transpusemos tudo para um plano de platonismo exaltado. “Como consequência.. Um atoll que acabou submergindo. isto é. foi a redução infinitesimal e artística duma grandeza reduzida a microcosmo. uma força eletromotriz. Lembras-te que o personagem masculino principal começa a desejar a fuga para a Oceania. O meu segundo livro teve que ser distorção duma dada realidade subjetiva e interior. Devo ajuntar: paisagem insular. Tu. solteiro. E sim porque algo idêntico. — Não. Ora. não podendo viver a vida. Fui para a Alta Paulista não porque um tiro de revólver na personagem do romance a houvesse prostrado. Tampouco um desvalimento em busca da ‘situação-limite’ tal qual no caso de Gauguin ou de Rimbaud. Jorge! Não transformes tamanho desgosto pessoal num maior que nos abrangerá a todos.” Germana dava indícios de estar compreendendo. para evitar tal cataclismo. uma vez profanado pelo sacrilégio se estilhaçaria moral e espiritualmente. mas sim a fragmentação da alma e da consciência. Nosso amor cresceu e se expandiu primeiro como uma epifania. Naquele meu livro a Oceania não representa a distância antípoda. era que um mundo sagrado como o em que eu estava querendo desembarcar. — Não escrevi tal livro para que toda gente o entendesse. As circunstâncias obrigaram-me a transformá-lo num texto cifrado. Percebes? Servi-me dum double do personagem. Eu. que és religiosa. tal alma e eu. Agora é tempo de voltares para a família. O que eu queria dizer. transferida para um clima sparkenbrokeano. Renata era casada. aquela morte é imagem tão só de afastamento do corpo para a oferta livre da alma. através da metapsíquica. Leste e releste meu livro. longe estava eu de supor que dada alma. tal elemento acode como força decisiva. é pessoa tão comunicativa que a gente logo se sente à vontade. já estão chegando parentes de Hermínio e alguns convidados. a outra diante do altar que era um oratório mineiro. .. porque mais do que nunca precisas agora de solidão. E quando você e Hermínio estiveram ontem no cartório de paz. Germana veio ao meio quarto um instante para me dizer que contara tudo a papai e mamãe. “comedorias”. e sim uma profusão de microacepipes e microssobremesas dentro de escrínios de papéis de seda uns e impermeáveis outros. dona Noêmia alvitrou a ideia de convidá-los a passar estes dias de calor tórrido em sua chácara de Petrópolis. ela apareceu para me trazer um presente. Podes ir embora quando quiseres. — Não. isto é. Roberta Flack e Duke Ellington. — Não sei de nada. por imposição do noivo: Louis Armstrong. Agora. o buffet. servido por três “mordomos” (ainda expressão de tio Rangel) e no qual não havia salgadinhos. Vou arquivá-lo. que temos que nos preocupar! — Foi um modo de dizer. “ágape ecumênico e econômico”. pela sala e pela varanda oferecendo e servindo desde guaraná e Coca-Cola até málaga. tendo eles ficado impressionadíssimos. não. Já vestida de noiva. Só quero uma coisa.. pode ser. apenas blues. Ir-me embora. que espécie de criatura foi a apaixonada de seu dileto filho. — E abraçando-me: — Vão ficar sabendo. Será um Magnificat a essa criatura. duas canetas e o livro de registro. já que eu vou hoje mesmo passar uma quinzena em Cabo Frio. Nada de Brahms. Fora encomendado à Confeitaria Colombo. Amadeu se encarregando de mudar os discos. Preciso duma espécie de hibernação. através dela. — Desde o motivo que me fez ir para a Alta Paulista? — Desde o começo. desses com presépio embaixo — tanto a autoridade do cartório como a da paróquia aceitaram participar da cerimônia laica.. meu. até Reis. Depois. conforme disse tio Rangel em voz baixa acrescentando depois mas baixo ainda. Publica-o. — Claro que tenho. — O meu último romance? Vai voltar comigo. e tanto insistiu com mamãe e papai que eles acabaram aceitando. Cumpre a vontade de Renata. Bud Powell. vai para o vestíbulo. Corre. pastéis nem empadas e muito menos fios de ovos. um Gallé. Mahalia Jackson. porto e cordon rouge. onde se demoraram. Acabadas as cerimônias nupciais — uma diante da mesa coberta com falso arrás e tendo em cima um tinteiro duplo de prata (que tio Rangel achou parecido com um galheteiro). xerez. Sem falar nos círculos concêntricos e excêntricos que os ditos mordomos faziam pelo vestíbulo. madeira. segundo me pormenorizaste. Não te preocupes com o fato de papai e mamãe ficarem sozinhos no Natal e no Ano-Bom. Schubert ou Schumann. Mas é que tendo ido convidar dona Noêmia para assistir ao meu casamento e durante a conversa ficando óbvio que nossos pais permaneceriam sozinhos. isolamento absoluto.. Aliás. Música só mesmo de vitrola. a certificar-se da distância gradual que o ia afastando das . seja expediente utilizável. Conceição. comigo. Roberto. Tivemos que esperar um pouco. Ou.. mais explicitamente: imitam os grupos que passam as noites nas adegas durante os bombardeios e imitam estados-maiores debruçados sobre cartas. então tia Maria Clara. Lauro. fingem solidariedade de vigília!. Mas jogar pif-paf é uma insensatez oriunda da guerra de nervos. Bento Gonçalves e Bernardo de Vasconcelos. blocos de gelo e “dois dedos” de John Haig. Pouco antes do crepúsculo saímos os dois a passear diante da praia. é dum ridículo macabro! Mas. a dona Noêmia. de netas sofisticadas. Tio Rangel e seus ilustres companheiros. para esperar o sono. Conversei muito com dona Noêmia. papai e os progenitores do noivo faziam sala aos demais parentes. atracavam-se espetacularmente a fatias dos bolos e aceitavam copázios com água tônica. que quando jovens tinham sido elogiadas no Binóculo de Figueiredo Pimentel: eram avós. dignos sócios do Instituto Histórico e Geográfico. Mamãe. Evaristo da Veiga. por que tolero eu isso? Ora! Tolero porque sei que é uma consequência da época. Estas matronas. o seu motorista era servido na copa. já travava debates com outros três desembargadores sobre o marquês de Barbacena. para o apartamento de Beltrana. Punhados de arroz lhes atingiram também as calvas e as melenas já alvoroçadas por latejos de alta pressão.. tio Rangel aferrou-se a mim: — Ora. Os desembargadores também se retiraram. por volta das bodas de ouro — falar nisso as nossas estão relativamente próximas e imagino o aranzel que Maria Clara não anda já a premeditar! — se abancam em torno dum guéridon horas e horas a jogar paciência. usavam camafeus e leques. Vários convidados iam saindo à inglesa. agora. Rafaela. e depois voltar tarde para casa lastimando os prejuízos ou gabando os lucros. assustando-se. Sozinho. enquanto ainda perdurava o protocolo dos abraços e “parabéns” em dupla fila a desfilar diante dos noivos. palavra de honra. Olhando para trás. Vestir toilettes como para recepções e levar saindo noites e noites para o palácio de Fulano. Tio Rangel. Nem é por outro motivo que casais velhos. e a diversas matronas. com um carro que saía vertiginosamente da garagem: era dos recém-casados. compreende-se que jogar por distração. não havendo aqui incursões aéreas noturnas que as aglomerem em subterrâneos. Prometemos escrever-nos. Só com a diferença de que em lugar de serem coronelas e generalas se satisfazem em ser Locustas e Proserpinas. na calçada. A noiva foi mudar de roupa para a viagem. João Paulo e Amadeu se esgueiraram para longe daqueles “canastrões” e foram jogar pif-paf no escritório. Ela despediu-se dos pais dos nubentes e que. o barão de Cotegipe. sem contudo aflorarmos sequer o leitmotiv secreto que não saía de nossas mentes. abandonado. a acompanharam até o carro. enrugando as sobrancelhas. O seu velho carro Delage e respectivo motorista ficaram esperando rente ao mangue. a favela. tio Rangel me agarrou pelo braço e me pespegou esta pergunta: — Que é que lhe anda a roer a alma? Que coisa tenebrosa foi que lhe aconteceu? E. . pois eu precisava não só que a sensibilidade de meus pais me compreendesse mas também que uma experiência como a dele me encarrilhasse. — Então. citando o dístico que ainda agora víramos na fachada da companhia do gás. este mangue sujo. Então. mas era todo afabilidade.“contumélias” da esposa. levou-me à estação decrépita da praia Formosa que estava servindo provisoriamente de estação inicial devido às obras monumentais da Pedro II. Transforme num livro a hulha que leva na alma. Até a hora do noturno sair ele não me disse palavra. comentou: — Haverá no mundo lugar mais feio do que este aqui. contei-lhe a minha desventura como quem esgarça um soneto camoniano (arreda. abraçando-me. debaixo das palmeiras cantadas por Múcio Teixeira. através daquele crepúsculo neutro. está bem. o poeta mistagogo. Eu ia voltar de trem noturno porque me seria desagradável contemplar da escotilha dum avião a paisagem da Guanabara e do litoral tão cheia de reminiscências. ou melhor. procurava devassar o meu acabrunhamento. demônio ou arcanjo das divagações!). parado. porque sabia que no dia 23 meus pais subiriam para Petrópolis no carro de dona Noêmia. aquele bojo negrejante do gasômetro? — EX FUMO DARE LUCEM — retruquei-lhe. Quando a sineta tocou então. com a pedreira de São Diogo toda escalavrada. Permaneci mais dois dias em casa. Tio Rangel acompanhou-me. Q UINTO CADERNO Complúvio para lágrimas Na barranca do Araguaia A mão na aldraba A tempestade . cheirando ainda a lavatório. cinemas. de pijama. deixei a cabina. E. ali no Mappin. com a fralda de fora. o das dez e meia da noite já não dispõe de leito vago. (Ainda não havia — naquele tempo — carreira de avião para a Alta Paulista. do táxi onde vou. Mexendo na mala percebo que o pacote do meu romance datilografado se acha reduzido à metade. soergo a cortina. compro passagem para Hacrera como o condenado que pede ao almoxarife uma senha. gasômetro. casas de móveis. demolições. a olhar pela janela as estrias que passavam em sentido oposto. tabuletas de médicos. Em chegando às portas. Olho. era como se estivesse numa padiola encravada num trem-hospital. sentado ou esculpido num barranco. fluorescente. vi de relance. fecho-me no quarto. confeitarias. Após hora e tanto. como se estivesse com uma espécie de máscara de clorofórmio no nariz. centro urbano. I Como aguentar durante uma noite inteira a viagem do Rio a São Paulo. encho uma ficha como quem faz um verbete de dicionário biobibliográfico. Sentei-me na ponta do beliche. a vida nos assalta de rompante. salto no Esplanada. Reentro no táxi que me aguardava com a mala. Então a janela passa a ser uma pantalha lívida. De madrugada sento-me na extremidade do leito. rampa. No balcão da Exprinter. Com que então isto é a estação do Norte! Uma abóbada fuliginosa por sobre vagões que parecem caixas de fósforos e por sobre pessoas que parecem formigueiro. Captava para dentro do cérebro.) Tomo café num botequim da Xavier de Toledo. arames farpados de currais ou de campos de concentração. o coro que dentro daquela aparente cela revoluteava como resultado do diálogo da locomotiva e da composição com os trilhos e os dormentes. Só poderei ir no trem das cinco horas da tarde. estendo as mãos. em estado de absoluta vigília? Só mesmo lançando pelos quatrocentos quilômetros do leito da Central os meus pensamentos quais escaravelhos de Mercúrio. por causa da noite tórrida. reproduzindo paisagens cartografadas. A cidade acordando. onde pouco permaneci porque o efeito era de estar sendo sugado por uma hélice. um sujeito parecidíssimo comigo. ou para um espelho? Deitei-me. com a sua péssima catadura. aquela avenida típica que ondula como pista de montanha-russa. Estirado naquele leito. arranha-céus. e então verifico que ali no embrulho só está a . silêncio de bosques. Calçadas. parque Dom Pedro II. De vez em quando um apito agudo se entorta lá da frente até ali atrás. não sei se depois de Resende ou de Itatiaia. Abro-o. Estaria eu olhando lá para fora. fui para a plataforma dianteira do vagão-dormitório. ter com que visualizar a saudade. e que sendo o Esplanada. Rodas. na Calle Alcalá ou na Pariser Platz. incrustações. cores. romanas. Meu Deus. Torno a refazer o embrulho. outra vez? Hoje mesmo? Agora! Já! Paro na rua. sigo para o Mappin. que variedade. pés.. Compreendo imediatamente: Germana ficou com o original. Pés. movimento. mesopotâmicas. fumo. Bons metais. Manuais. e classificadas com todos os protocolos técnicos. paro em vitrinas. Haverá gente com esse recalque transformado em reflexo condicionado? Alabardas. resvalo pela multidão. Brados. punhais. Quanta gente hoje nas ruas! Voltar para o hotel? Deitar-me. ruídos de bondes e de ônibus. Toledo. acham-se ali por especial deferência. Nurembergue. o Lancaster Gate. chuços.. Fisionomias. Um amigo para sentir uma afirmação humana. o Regina ou o Adlon da minha mocidade itinerante. egípcias. espingardas. gregas. revólveres. estrépito. Então saio. Multidão. saio. Uma cadeira onde abater todo o lastro desta angústia. senhores. pés. dardos. azagaias. imediatamente. Tráfego. na evolução da arte de matar! Armas de golpe de percussão. Por volta do meio-dia almoço num ambiente postiço que parece sala cosmopolita tanto ali nos fundos do Municipal como na praça Vendôme. de arremesso e de fuste. Vitrinas. Amanhã é Natal! Ah! Foi por isso que mamãe me . fisionomias. ouço trechos de conversas. Estão à venda. Devo ir para Hacrera? Devo voltar para o Rio? Ah! Como eu precisava agora de um amigo. vestido como estou.. viro. só algumas pertencem a coleções particulares. Uma sala para aí. Sim.cópia. assistir ao meu processo. Não há mais lugar em nenhum avião hoje. baixos-relevos. espontões. cimitarras.. Entro em cafés. bárbaras e medievais. contundentes. Pregões. duma sala. bons ferros. garruchas. Todavia se morre sem isso. percorro livrarias. deixo que a rotação do povo me leve sempre numa espécie de elipse. E provenientes de origens legítimas.. marfim. cortantes. fisionomias. de jato e de fogo. Damasco. Buzinas. Saio. Nutrir-me do passado. podia ser o Ritz. vítima e réu. Neolíticas. estiro-me na cama. Olho para os dois judeus melífluos que decerto sentem que preciso urgentemente dum instrumento daqueles. Leio. mosquetes. Depois me sento num dos salões mas começo a embirrar com as fisionomias irritantemente au-dessus de la mêlée. Adquirir passagem aérea para o Rio. Desde as mais arcaicas até às mais modernas. Campainhas. Atravesso calçadas e de repente me vejo percorrendo uma exposição de armas ao fundo de uma galeria. duma cadeira. de ponta e de gume. flechas. no Hy de Park.. cobrir o rosto com o travesseiro? Por que motivo voltar para Hacrera? Não será terrível viver lá? Por que razão vim do Rio? E se voltar. madrepérolas. reflexos. A morte de Darlan!! Compro o jornal. ângulos. lojas. Serve para amanhã? Indecisão. Vejo a data. E de novo dou comigo parado numa agência de viagens. de reentrâncias e de gumes. papelão de presépio. onde seria bom cair como lastro de chumbo. Até 1939. eu e ela. À direita. comprávamos presentes para surpresa mútua. a estas horas. De vez em quando perpassam flocos de nuvens esgarçadas. Vértices. pessoas. Mármore e alabastro. Tomo um táxi. a ilha Grande. uma fímbria de gráfico: a Mantiqueira. mas me aconselham a esperar: talvez falte algum passageiro à última hora. Limpo os beiços com o dorso da mão. E esse círculo é metade terra. Uns embarafustam pela área útil como tartarugas paradoxais. Fico ali naquele pandemônio. A paisagem sotoposta. Recortes incisivos de curvas e de arestas. E todavia me sinto a grande altura. O leito da Central é um erro tortuoso gastando aço. Cá estou na balaustrada do Portão 3 do aeroporto. atento sempre aos empregados da Vasp e da Panair.. são paquidermes de alumínio experimentando seu potencial de metamorfose. gengiva de cetáceo. Angra lá no fundo. cilindros e esferas rodando em torno da Gávea. Marambaia. o tom de cobre dos penhascos. Agora. As cidadezinhas a custo se deixam adivinhar surpreendidas como ovelhas bebendo em filetes que são sempre o Paraíba. Aquela paisagem rolando em polias para projeção contínua de Kodachromes de Owen Williams e John Schultz para distrair tripulações e passageiros.. o mar.. Pago a conta. acolhendo-se às suas famílias. vencida. vendo dum golpe só o mapa pesado dos subúrbios do Rio. tanto compreendeu que eu tinha fome urgente de solipsismo que nem me fez o menor reparo! É Natal amanhã! Eis a razão de todo este movimento nas ruas! De todo esse espetáculo de caprichos e enfeites nas vitrinas! Vejo todas aquelas dádivas para outros. não se oferece já que sabe do desdém dos que vão para mais adiante. de súbito virando garças. o flanco . sempre e sempre intata. são unidades aderidas a outras dentro de bojos leves! Parece que as vejo. Viajar na noite de Natal? Se arranjar avião chegarei ao Rio ainda a tempo para a consoada em casa. E quem vai. a escotilha de cristal da lagoa Rodrigo de Freitas. cá embaixo. metade água. como fiapos de paina. Pautas cor de ocre onde deve ser o chão de Sernambetiba. ao rés da terra. Nela as estradas são diagramadas para itinerários de formigas. Não tarda a cidade reduzir-se a um disco de sete cores cujos interstícios estão cheios de cambiantes.. de certo trecho em diante. De quarto em quarto de hora. descobre Caraguatatuba. Volto às pressas para o hotel. Lá vão. mando tocar para Congonhas. nós dois. onde fui feliz! Embaixo. Motores giram no chão. Atam o cinto ao ventre. e as montanhas e as florestas (vistas da altura de dois mil e tanto metros) meros acidentes inúteis. esmeralda e topázio. retouçando a erva. a terra fica para trás. basalto e clorofila. Grandes pássaros mecânicos que todavia. Nos diversos balcões das companhias me respondem que está tudo lotado. Mando descer a mala. neste dia.olhou com aquele silêncio ressentido! Boa mãe. a interferência fora cerimoniosa. por causa do peso. a seguir se tornara afinidade humana e prestígio sobrenatural.de cá do Corcovado. passa outra vez por sobre o cemitério São João Batista. mas na verdade me sinto entrando pelo Rio de Janeiro adentro. do carimbo e do certificado.” . Para que este livro? A leitora. sem inscrição. Agora. depois incentivando. Lá vou com o meu romance datilografado. Vou andando. Na verdade. exteriorizara-se como autenticidade e como símbolo. A minha. E. Agora seus despojos estão na MORADA. morros e casas. Bairros heterogêneos se enviesam com chácaras e prédios velhos. outrora. restos da casa de Domitila. O número do ergástulo. sem mármore. E na verdade é como se estivesse andando no Rio. agradeço. Só vejo mausoléus. “Quando alguém morre. Durante dez segundos ele dá voltas. já estou sobre a Guanabara. a sua voz. apenas com um número. Devo ter um ar submisso de membro do Exército de Salvação. Nem os versos que me acodem explicam coisíssima alguma. ou o ignorará para sempre ou já o sabe de cor. Não direi que a vi parada como estátua primitiva à saída duma catacumba nem como barco na rampa dum estaleiro. primeiro louvando. Chego. a que existiu. consentira ser personagem para poder ser guia. Ouço tal declaração dos empregados das companhias todas. com a sua dialética. Criatura de tabernáculo.” “Também é quando alguém está privado de morrer. em direção ao cemitério. numa criatura predestinada a lê-los e inspirá-los. Todos os que escrevem pensam como conforto e incentivo. Permaneço algum tempo parado ali. entre nós está a pausa do infinito. Entro. o arcanjo de vigília. lá está. a personagem. Quis aliterá-la aos textos de Dáfnis e Cloé. sim. Sem flores. Peleas e Melisanda. Dafne Adeane e Sparkenbroke. ou com arranha-céus e cubos modernos. Tão fácil! Está para tudo isso aí embaixo como reprodução de Herculano ou Pompeia. Imagino localizar a tumba de Renata. nem só isso é a morte.” “‘Morte é quando alguém vive e não sabe. Definitivamente. comportadamente. Ou estou sobrevoando o Mar Morto? Estou aqui na balaustrada do Portão 3 do aeródromo de Congonhas. Ninguém sabe o que seja a morte. e sua alma aderiu à franja do empíreo. de leitora. Galardoara-me toda a sua sensibilidade. saio pela estrada abaixo. surgira. certa voz. Instantaneamente localizo o cemitério São João Batista. com a mala ora numa ora na outra mão. como esses inventores maníacos que penetram comportadamente em antecâmaras de repartições técnicas em busca da patente. Tristão e Isolda. O último avião do dia 24 de dezembro segue lotado para o Rio. a que se retirou para que com a minha saudade eu me tornasse íntegro. No começo. Antes. O avião vai agora tão baixo que vejo ruas. Paro diante da sepultura. FIXOL. passo pelo Posto 5. rente à fachada de horrível mau gosto toda sinapizada de anúncios. Desdenho qualquer explicação metafísica ou metapsíquica. Salto diante do Caduceu. Pago o táxi. picnics. Paquetá inefável. Dois encouraçados eternamente ali. Não existe mais o edifício art nouveau... para mostrar que non est hic. torpedeiras. encaminho-me para a barca. percorro as ruas do Ouvidor. Luminosidade incrível. Andaimes. Sete de Setembro. sem palácios. Claridade ofuscante. atualmente. Fecho os olhos. Tapando o FIM. Atrás da barca a espuma do caminho vencido. a ilha do Governador. Cargueiros enferrujados. a serra dos Órgãos. o Golf Club. o Atlântico. CERA CRISTAL. Lá vou eu. boias. Povo. sem automóveis. Deixo o cemitério. Sensação estereoscópica em tudo. Com restaurantes primitivos atulhados como quermesses. desço. sem hotéis. diques. a muralha. agora quase pronto um arranha-céu. Na rua tomo um táxi. Entro na sala de espera. o Joá. Paquetá colonial. Limpo a boca com o dorso da mão. A pedra da Gávea. frutas boiando. detenho-me diante do largo da Carioca que é. sombra suave ao fim da canícula da semana. Sei que horas sairá para Paquetá. Dali sigo a pé para a praça Quinze. maciça e violácea. recostado naquele calhambeque. noivos de mãos dadas. com coqueirais. boiando. Passo. Dança. GÂNCIA. a represa do Tatu. Limpo a boca. Vazios desde o Leme até à Igrejinha. aleijados que dizem onde é a praia tal e tal. com os cubos cor de alumínio dos depósitos de óleo e gasolina. À toda volta. como um gráfico de estatística. DRAGO. Barra da Tijuca: Vasa. como cesta de flores e de frutas. melancias. cocos. Gonçalves Dias. Uruguaiana (para quê?). a gruta da Imprensa. Nem me volto.. Ao fundo. olho. muricis. dom de Deus aos pobres. São Conrado. À esquerda. Areia. Maturação a termo? Despedaçamento malbaratado? Encolho os ombros. com carrinhos puxados por cavalicoques. MINORATIVAS. RHUM CREOSOTADO. limo. oceano. a Guanabara lustradinha. entro. Embaixo há uma galeria ligando a avenida à rua Gonçalves Dias. música. limpo a boca. mando tocar para a Barra da Tijuca. ANDAIMES. torno a descer pelo outro lado. como estaleiro. (Para quê?) Abeiro- me do parapeito. “Toque para Copacabana. Reabro-os não sei mais como é o mundo.. Espio para o céu por onde em imaginação (tudo é imaginação) passei não faz muito. Mando tocar para a praia.” Salto pouco antes da sua casa. O molhe! Paus. Depois. subo. sorvetes. aningas. ELIXIR DE NOGUEIRA. Espio. presente domingueiro à pequena burguesia e ao funcionalismo público. Volto para o táxi. vou sentar-me lá em cima onde há bancos como pautas antes e depois da chaminé. vendo a montanha. Lojas. como ferros de engomar reverberando ao sol. . subo pela da Assembleia. vejo no pontilhão de cá uma barca atracada. GUMEX. Conheço-a bem. o antigo Cais Pharoux. Morte. botes coloridos. Enquanto ela não sai contemplo alvarmente o edifício da Cantareira. Mando voltar para a cidade. ilha Fiscal. um imenso anfiteatro disponível. sem arranha-céus. mas com liberdade. velhinhas que não pedem. As mangas parecem bochechas de irlandês. devo ir a Petrópolis? Irrita-me a ideia de ir. Uma casa rente a um morro e com estátua de louça em cada canto dos telhados. e em uma pessoa destacando uma não para mais. navios. para novos motores. tribais. e não tarda uma profusão de bolinhas envernizadas. Passo rente ao muro. Limpo a boca. Por que não vou ali para trás espiar o rastro de espuma? Não quero. sem tirar nem pôr. máquinas. aquilo se torna túmido. Fecho os olhos e penso. cor de vinho. de Salerno. Domingos depois.. perus e leitões assados. O jasmineiro. Em ocasiões do ano as mangueiras vergam ao peso de tantas frutas. de Dieppe.. (Noite longínqua. pesadamente. Árvores velhíssimas. as árvores. Todo o aço disponível no mundo está sendo triturado nas usinas. anfíbio. penhascos onde se tiram retratos em atitude feliz. aumentasse. intato nas minas. da Cantareira. cuja fímbria alva e translúcida é cortada pelo lampejo súbito dos peixes- agulhas que parecem fiapos.) Volto ligeiro. Todo ele está sendo preparado também para plataformas que adiram ao chão da Sicília. os arranha-céus. São Francisco. quase corro ao longo da praia. Se esta proa aumentasse. as flores formam um templozinho anamita. ora essa! O melhor é dormir. néctar e pólen. Paraíba. Ruído de correntes de desatracação. Iang-Tsé-Kiang. O cais. o mercado. bailaricos debaixo de mangueiras. estiro as pernas por cima do banco fronteiro. a catedral. e desinserisse este prédio velho. Chácara sem viva alma. Pulo a tempo. A manta. num banco qualquer. vou para a frente. Será que ainda conseguirei tomar a mesma barca? Pensando. sobre tábuas alcatroadas. Um quintal que é uma chácara. em lugar de murchar intumescem. no teor de uvas. com os seus anúncios todos! Lâmina de aço? Não há mais aço no mundo! Todo quanto havia a guerra requisitou. bem na ponta.. Levanto-me. Como a passarada gosta! E as flores ficando diferentes. Casa fechada. Sento-me ali embaixo. Sobressalta-me a ideia de que talvez tenha a coragem de não ir. O portão está fechado com enorme cadeado. canhões. Mississipi.farofas. Capítulo quase de Paulo e Virgínia.. pastéis. como a lâmina duma imensa Caterpillar. pois são. fico vendo a cidade aproximar-se. grudadas na árvore toda com insetos grudados em mel. Barca vazia. E o outro. quase. Um rantran contínuo de máquina exausta de percorrer não a Guanabara mas todos os rios tristes do mundo da escravidão: Nilo. Jabuticabeiras que são maternidades (das raízes aos ramos) tantas são as flores e frutinhas. estepes e arquipélagos. está sendo retorcido e mastigado pelos monstros apocalípticos dos bombardeios e das batalhas nas praias. E as mangueiras? Na extremidade de cada subdivisão de ramo. rasinho.. Eufrates.. A proa roliça vai tocar a cidade por baixo. Rodeada por um mar manso. onde . mosto. os morros. Onde o caramanchão? Será preciso podar aqueles jasmineiros. Passa um sujeito. como em fotocópias. se não posso comigo? Então?! Voltar para o hotel. um táxi. deveras.. Ótimo. Tiro uma pilha bem fina. Estão apinhados. querer estraçalhar ainda mais a alma já em molambos? Tenho eu o direito de conspurcar ainda mais a minha dor?. só no noturno das dez e meia. da página 1 à página ٣٦. sacrossanta e minha? A única coisa que me sobrou de tudo? (O sonho continua. Decerto não haverá leito mais. Não é ela grandiosa e solene. humano e miserando.. este coração com sete espadas à minha mãe e a Germana! Que presente lindo! Dir-se-ia que o tirei dum altar de Burgos ou de Salamanca! Entro em casa. Que pensa ele? Decerto cuida que estou queimando literatura subversiva.. nesta véspera de Natal. depois um bonde para o Brás. Aproximo-o do papel. neste aeródromo de madeira. Minha mãe. Como custa incendiar um livro! Como o estupor reage! Aquele monte de cinza não esbruga. Natal! Natal! A que horas é a ceia? Haverá castanhas. Às vezes o bloco se apaga.. Por que de Cardiff? Ora esta! Fica negro.. Pego pedaços onde. Abro-o. são formigueiros entre lantejoulas. era para o trem das cinco! São sete e meia! Agora. já que todos os dedos estão dilacerando reciprocamente corações de irmãos? O melhor é ir para casa.. adormeço e sonho. Fumo. ou pelo menos sensação de inércia mesmo. Sentado num banco. abro-a.. me recebe com uns braços que Ingres lhe deu. Que é? Ah! Já sei. mais nada. Sim. reacendo fósforos. Hoje sou autômato. Meu lenço fica negro como a fralda da camisa dum mineiro de Cardiff. dormir. com seu ar de donata. Mas.. tão quieto!. Puro delírio. só amanhã viverei. Ó derrisão!. se podem ler verbos. entregar dado. Levanto a mala. avelãs. Fico quieto. tão cansado que só Deus sabe. por mais que eu o pise e esfregue com a sola dos sapatos. Ir sentado? Como. Repito. não pulveriza. E agora tratar de tomar o ônibus para o Anhangabaú. Onde? Um bonde. como se sofressem. Bem. resolver tudo amanhã. apesar da cor cinérea. Será melhor atirá-lo para um terreno devoluto. de vez. Alguém acharia. fico em dúvida outra vez. figos. Que chama azul encarquilhando a celulose! As páginas se retorcem.quem os vá esgravatar. lá em Ipanema. Um ônibus. Não. Bem. O remédio é ir para casa. sentar num vagão soturno entre gente de Grosz e Levine. respiro fundo. Mas há qualquer coisa que não deixa o meu sono ser completo. tâmaras. Mas.. As lojas. Sim. Não será terrível viajar numa noite de Natal? Isso não é sadismo..) Procuro no bolso a passagem para Hacrera. depois da Missa do Galo. Estou aqui. Acendo um fósforo. na praça do Patriarca. Que filas imensas de pretendentes! Eis-me no centro urbano do Rio. Aquele romance que levei tanto tempo a escrever fiz bem em queimá-lo? Ou foi . entrar na estação de luzes mortiças. há que limpar as mãos. Com as mãos sujas de fuligem. É este livro datilografado. adjetivos. passas. ) Solução intermediária? Andar. embarafusto rua acima. vejo-me não sei como na rua dos Gusmões. vou desembocar na praça da República. Mando voltar para o Esplanada. duma vez só. E se entrasse em não importa qual e me aninhasse sozinho num desvão de treva. mas adormecida como uma criança oriental nas costas dum avô macróbio. No Bristol. mas que me agrada como um menisco de jujuba. Lâmpadas multicores nas árvores. Amanhã me julgarei. não há lugar. supondo estar num nicho. ou do Palace. supondo não sei quando nem sei onde. hoje não. com sapatos cambados de pobreza itinerante e com barbas de estupor grosso. Janto com catadura sinistra de ruminante. sinto pavor. o que levo de maior importância é a saudade. Sim. banhadas de marasmos. detenho- me infantilmente diante dos cartazes. a todos os filmes que ficaram na minha memória como beleza plástica e comovedora. passo por botequins. Noto na boca certa amargura. não há lugar. Perpasso diante de cinemas. no Rio?!Não é possível tal ilusão. a minha infância?! Andar. Dou com o edifício da Luz. A gorjeta da tarde sempre valeu como ricochete. cruzo esquinas. A que cinema poderia eu ir esta noite? A qualquer um para dormir no escuro? Não. atravesso-a. continuo. caminho.) No Esplanada. como tabaréu zonzo. Um táxi me leva de porta em porta. bem fora do tempo. subo outra vez. ombro contra ombro. todavia num lugar real. (O sonho prossegue. ando. prédios velhos. (O sonho não acaba. Que fazer. Daí a pouco um projetor invisível (dentro de mim) começou a passar vagarosamente uma porção de . E em sonho. tapumes. não sei explicar. ando. também não. não agora. ou certo amargor. A verdade é que me sentei como desempregado ou mendigo num banco da praça da República tendo por companheiros não crianças nem amas (por causa da hora noturna) mas algumas raras criaturas sem Natal. nem falar. desço a avenida São João. No hotel do Oeste. Estou decidido a seguir para Hacrera. Mas sinto que tal decisão me envenena a vontade. Será o que Deus quiser. Andando. O presépio já está sendo armado. assistir não mais um filme combinado com ela pelo telefone e sim. E eis que apareceu uma telazinha que ficou suspensa entre dois plátanos. recuo. Deixemos que o acaso ou o subconsciente me dirijam. andar.insensatez? Não sei. chego ao aspecto miserável e velho de tudo quanto é bairro rente a estações terminais. dobro para a rua Vitória. E o que acabou acontecendo. lojas fechadas. estar sentado com ela num vão escuro. Chego à avenida São João. de mãos dadas. ou foi o passado que avançou uma alavanca da sua máquina de andar em marcha a ré e me atingiu. Ou emiti um pseudópodo que aderiu ao passado. pois? Entro numa igreja. cheirando a vício e malandragem. viro. Deixo a mala no balcão de expedição. como quando outrora nós nos aninhávamos em duas cadeiras do Metro. não de 1934 a 1940. Onde. No Rex. Sei a hora do trem. edifícios de apartamentos. sarjetas. calçadas. Ou estou. não é mesmo? não lhe dava liberdade). Pépé le Moko. tão em voga ao tempo do primeiro filme. dos cadáveres do Della Porta. o que me custou arrancá-la. Mouraria. uns com gestos apressados de pantomima. bebo. A Vendedora de Cigarros de Mosselprom. O Amigo Fritz. Beau Geste. fumo. A Besta Humana. outra vez. a pianista tinha gola alta escorada por barbatanas. Clichy. asfaltos. desde a rua Santo Antônio até às travessas da Bela Vista. Ratos e Homens. O Cavalo de Ferro. Embaixo da tela onde se refletiam filmes mudos e sonoros. coitada (a sua vida. me enxotaram daquela inércia de catatonia. Vinhas da Ira. com assistência singela.. sozinho já agora. me levantei dali. teve que voltar à fímbria do empíreo. nem sei a que horas. varrendo com ela paralelepípedos. A bem dizer eu estava numa sala suburbana. muros. Quando tudo acabou. Imiscuo-me em labirintos de ruas e bairros. Horas Roubadas. vendo que haviam desaparecido também a senhora da gola alta. prossigo. Heinrichplatz ou Whitechapel? Entro num botequim. postes.filmes estragados. O Lírio Partido. Jardim da praça da República? Sim. o senhor de paletó de alpaca e o velhote do sobretudo judaico. Chego até o “cais das brumas” não sei de que porto. Carnet de Baile. Evidentemente sou eu que estou andando. Terra dos Deuses. Não Estamos Sós. La Maternelle. andando. transformado numa espécie de marinheiro ruivo ou de clandestino escorraçado. distante. peço Macieira. pela Alfama. Tempestade sobre a Ásia. Tal árvore. longe daqui. dos irmãos Lumière e de Max Linder! . com raízes adventícias e tudo. um indivíduo corcunda com um violino enganchado sob o mento. Levantei-me porque os caminhões da limpeza pública. Romance de um Trapaceiro. O paletó de alpaca do violinista lhe dava um ar de amanuense. abraçado a um rabecão. estava um trio constituído por uma senhora com uma blusa de gola alta. Sétimo Céu. mas não na realidade consciente. sem saber. Rebocando-a sempre. compro fósforos (pois o romance deu cabo dos que eu tinha).. e não. vendo vitrinas com enormes figuras de Papai Noel. principalmente quando uma festa de tradição lhe põe nas gengivas um absinto tórpido. pois Renata com pressa sempre. O Cais das Brumas. alguns mesmo ótimos. Jogado de chofre na vida de agora. sentado. à sua esquerda um senhor alto. visto como tal cavalheiro dava a impressão de abraçar de lado alguém e dar pêsames a esse alguém (na verdade o contrabaixo) que lhe respondia com uns grunhidos. em pé. Hotel do Norte. Sim. Tempos Modernos. dei em andar. Os Vinte e Seis Comissários. com seus jatos. Mola para caminhar sem saber durante muitas horas tem sempre todo aquele que sabe o que seja a ausência lancinante dum lar. Variété. sentada diante dum piano. outros já com técnica melhor. já o sobretudo do homem do contrabaixo parecia sobrecasaca de luto. arrastando a árvore genealógica do cinema. à sua direita. e grandes flocos de algodão imitando neve. O Grande Motim. Manhã. A água escorre pela sarjeta. Apenas vejo cartazes pregados em andaimes. Que porção de tresnoitados atrás de mim. Já agora sozinho. Eisenstein. a barba já áspera. sem conseguir tirar do corpo nem da alma esta saudade incoercível. Chaplin. Onde as filas de fregueses nas calçadas junto de padarias e açougues. a história dos crimes de indivíduos e nações. folhas. motorneiros. escroques. Madrugada. Duvivier. quer de noite! De modo que esta é a conclusão única: arrastar esta saudade pela cidade imensa até dar com a manhã autêntica numa praça lívida onde a banca de jornais expõe. marafonas. Abel Gance.. Ah! Não poder tirar de mim esta saudade! Saber que nunca mais em rua alguma verei quem busco. Isso arrancado do tronco. Puxavam e se punham a ver por transparência. E de fato o pego esvaziado até de cinza. quer de dia. moleques. galhos. E berravam alegremente nomes em evidência: Roosevelt. continuei andando. incêndios. garis. a gola do casaco soerguida. em algazarra patusca! Motoristas. Inclino-me depressa a fim de apanhá-lo. E a turba investia. que vi ontem. mas em mim. Von Sternberg. . lanternas acesas (como.. aviões. vendedores de bilhetes. jornaleiros. aleijados. as mãos nos bolsos. Eis que me cai da boca o cachimbo. John Ford. Blackout total e difuso não ali. não sei!). Churchill. Lubitsch. encouraçados. Ou diziam que estavam vendo. entrando em São Paulo de manhã cedo? E os bondes superlotados e com cachos de operários nos balaústres? Ah! Hoje é dia santo. retângulos diminutos de película representando instantâneos da guerra tirados pelos sinaleiros dos exércitos aliados. Não penso em nada. Até de madrugada. bêbados. Mamoulian. Olho este chão de calçada e de estalagem que mulheres lavam. King Vidor. recente e cálida. vim parar num bairro com toldos. Pudovkin. assinzinhos. frequentadores de baiucas e gafieiras. vagabundos. insetos refulgentes. René Clair. Por fim me arrancaram a árvore e a jogaram pelo viaduto de Santa Ifigênia abaixo. Sam Wood.. Orson Welles. Dos galhos. pássaros cromáticos e frutos policromos. ramos. arrancava etiquetas luminosas lendo errado nomes assim: Griffith.. placas de empórios e cartazes. gente de botequins da praça da Sé donde saem hálitos e gírias que são blasfêmias ao seu próprio nome. paraquedistas. Dos ramos. bombardeios. Ando. Natal! Após haver vagado até agora. Vaias e risadas por causa do espetáculo dum homem arrastando uma grande árvore cheia de raízes. Renoir. com o cachimbo apertado entre os dentes. anúncios de móveis. diante dos lampiões. Mas ao abaixar-me muito para agarrá-lo então me cai o coração que esguichos e vassouras vão lavando. este mundo mudou. uma ilha suspensa. com vergéis.) . Bairro do Lavapés. e que enche a rua. A voz do garoto dos jornais brada bem alto o que está acontecendo no mundo. porque tu morreste. como nuvem transparente atravessada pelo sol. Renata. lava meu coração! (O sonho — ou pesadelo? — acabou. lava meu coração! Andando. vales e fontes. Bairro do Lavapés. as superfícies esfregadas das vitrinas e os cartazes dos andaimes. colinas. vejo diante de mim. Sim. Ouço sucessivamente Germana. papai e tio Rangel. Notícias normais. num vislumbre de lucidez e responsabilidade. já que saúde e vida eram silêncio em mim e que literatura passara a parecer-me desafogo vão. De que me adiantou pôr os retratos de Renata em cima da mesa? Ou os meus olhos estavam diferentes. escrevi cartas respectivamente a mamãe. tendo tropeçado num alçapão. Em todas as fotografias o mesmo semblante igual mas metamorfoseado em cariátide. o telefone tocou. verdadeiros tratados sobre angústia. Depois . contra todas as leis físicas. Como se. embora devendo chegar no fundo ao mesmo tempo que um fiapo. Do Rio chegaram três telegramas espaçados reclamando notícias e cartas. Germana. Passaram-se semanas. dona Noêmia e tio Rangel. mas ensinando a tática de transformar o desespero em lance supremo para a existência autêntica. apoiados contra a caixa de madeira como aquelas raparigas do Erecteion formando colunata humana num templo. Severa repressão pelo silêncio guardado. ou as efígies tinham virado imagens baças de incunábulos? Em vão os alinhei vezes inúmeras em cima da estante. me sentisse tão pesado como um escafandro. de cada qual. Perguntas várias. Ou como aquele funâmbulo do conto de Kafka que exigiu dois trapézios já que uma morte só não lhe bastava. Sete dias depois recebi os livros prometidos por tio Rangel. Pura mentira. de casa. Certa manhã. papai. Eram de Jaspers e de Heidegger. desta vez sobre Hacrera. Era como se eu estivesse fora do tempo. então esperasse para relativamente breve o aparecimento de meu livro! Como? De noite pedi uma ligação interurbana para o Rio. II Cheguei a Hacrera com a alma marcada de piche como um inseto que entomologistas quisessem submeter a experiências de Pávlov. ouvindo horas e horas seguidas o lado B dum disco imutável: a segunda parte da abertura de Berenice. houvesse caído num vácuo onde. mamãe. Em resposta minha mãe e logo a seguir Germana me comunicavam que. — Após mais de quarenta minutos de espera. Apenas os folheei. contando entre outras coisas que meu silêncio só podia indicar saúde e vida normal bem como “imersão” num outro romance. meses. já que eu falava em literatura e estava escrevendo outra vez. fingindo naturalidade. Preferi trabalhar de dia como autômato e de noite pensar. forçado por convites de amigos de Hacrera. tão oportuno sobre o mundo! Vou mandar a carta da editora com a opinião dos leitores categorizados. banqueiros.. o Lemos e o Cunha. iria em época propícia fazer uma excursão às margens do Araguaia. o Fernando e o Mendes. fazendeiros e donos de armazéns gerais — que todos os anos programavam e realizavam incursões à selva. que ia levar naquele dia mesmo. Dirá. Primeiro entrei com a contribuição da minha quota. ou as levar pessoalmente numa possível ida ao Rio e cuja data não especifiquei. deixando para mais tarde então a descoberta dum motivo razoável para eximir-me a essa combinação de convívio itinerante tão desajustado ao meu feitio. dizendo que não conhece sequer o rio do Peixe. Na verdade o Argolo e o Seixas. o Avanhandava. o Andrada e o Mauro. as caixas de gasolina no galpão dos Armazéns Gerais de Hacrera.. — Mais um motivo para aproveitar o ensejo. que eu não passava dum carioca ignorantão da vida rústica. isso sim. ora. prometendo mandar minhas impressões e fotografias. Depois me mostraram o roteiro feito pelo Cunha. ela automaticamente dissera que estava pronto. o rio Paraná. um dia. modificar uma porção de coisas! — Eu e papai fizemos a última revisão. e as provas? Preciso corrigir. da Casa de Saúde. deixas todos aqui apreensivos e ainda te queres abespinhar? De mais a mais um livro tão bonito. De fato vieram as cartas. aviso de cartas e súplicas de resposta. E os seus colegas do Distrito Federal o respeitarão. saudosas instâncias de imediato aparecimento. — Categorizados? Que palavra é essa? O telefonema acabou com reciprocidade de compreensão. Em resposta.. Pelo menos não sairá de volta para o Rio. os anzóis e o motor de popa na loja do Andrada. a lista de sortimentos organizada pelo Lemos.o desvendamento do enigma: Germana atendera a um telefonema da sucursal da minha editora a lembrar que se esgotara o prazo contido no contrato de 1940 a respeito do meu romance. E de fato entregara. E. que esteve até entre bugres nas selvas. que nunca deu um tiro. — Por que não me consultaram antes? — Ora. — Mas. Expliquei-lhes que só os poderia atrapalhar. a fim de aplacar-lhes a insistência. que não esperasse para quando a edição aparecesse daí a meses. Em resposta avisei que.. os cães de caça na fazenda Jatobá. escolhendo de cada vez regiões de interesse máximo — viviam instando para que eu aderisse ao grupo. durante a semana me levaram a ver as armas na casa do Seixas.. que nunca pescou. o que aliás será muito provável — . clínicos. capeando a correspondência de Germana com a editora. que não tinha jeito para essas coisas.. Conte-lhes que matou onças. e exigindo que eu fosse amiudadamente ao Rio. Jorge! Nem dás notícias. Cartas do Rio. Colônias com crianças. Entro no meu quarto. o servente Kimura debruçado na mesa da secretaria arma com papelão. . O armazém de carga. no chilreio de pássaros. “Não pareço o ex-rei Ferdinando da Bulgária?” (Renata correndo..” “Lembrança de Maluero a Zavahúri. vendo desde 1940 o meu isolamento. fingindo apanhar borboletas. a cólera da enfermeira. cafés. Da Casa de Saúde para a minha residência. Estradas... de calças de montaria..” (Renata prendendo em cima do meu coração três orquídeas. modelos de bombardeios alemães. discorrendo sobre Picasso e Braque. a despedir-me. Vida de autômato. no frescor de floresta limpa. De tarde. misteriosamente franzindo de cara. asseverando que ele. A paisagem estandardizada recua em boleios. Spitfire. Durante o plantão do hospital.. de família italiana. Douglas. infinitos. Jornais de São Paulo. depois de passar pelas portas de residências. diminutos modelos de aviões Mitchell. Dos cafés para o correio. A guerra. tinha no almoxarifado. da realidade rotineira para a recordação acabrunhante. Mudo a roupa. filho dum banqueiro.chapou-me o Cunha. Crepúsculos. Chego ao jardim da Casa de Saúde depois duma carreira de vinte minutos. E o Kimura. Consolidated. recordando meus tempos de escola de equitação em Paris e Berlim. nascido em Aix-en-Provence.” Bom amigo Nelson. pensando em Paineiras.) Que estranho fato eu vir a saber da sua morte pela boca da Lambeth! Esporeio o cavalo. cães e criação raquítica no fundo de fazendas prósperas. sibilino. bancos. respeitando meus mistérios. Eu a acompanhá-lo ao Pullman. “Paul Cézanne. entre cinco e seis. Curtiss.. nascido em Volos em 1888. que já construíra com celuloide pequeninos espécimes de aviões Messerschmitt. Stuka e Heinke... fumando cachimbo. passo a galope rente às saias verdes do cafezal graúdo. Eucaliptos. E eu de botas envernizadas. munido de tesoura e cola. escritórios. de quinta-coluna. sua noiva! O Nelson é transferido para a sucursal de Rio Claro da autarquia onde trabalha.. Vou para o centro da cidade como um civil que fosse embarcar no trem das seis da tarde. restaurantes... Cafezais. sozinho. analisando calado o meu marasmo.” “Giorgio di Chirico. Da janela que abro para arejar a sala vejo a estação. lojas. Carreiros monótonos. E a olhar. A plataforma. Trilhos. a rir. Hawker e Hurricane. Gado. ouvindo música. entre as goteiras para fraturas e as máscaras para anestesia.. amigo de infância de Zola. aproveitando o régio presente duma sela que o Guimarães me deu em paga dum exame em série do seu duodeno. Kimura. comecei a andar a cavalo.) “Presente de Comandira a Dobaré. esquálido. Vagões parados nos desvios. a dizer que sim. dando-lhe livros de arte. A enfermeira nordestina chama-o de espião. Um rio. Apesar de tudo. Casas. ex- . não sei em que parte longínqua destes sertões imensos. Lá vou eu como um corpo numa rede.. Estou me lavando com sabão de cinza. Gália. portadores de fichas encarnadas.. mineral e zoológico. à direita. Estações. Bondes. eucaliptos. Vagões da Noroeste. do meu ortônimo. canta tristemente a cauã. Beliche no carro-dormitório. Garça. glebas e fazendas. Estou todo arranhado e ferido. O Olímpio. no compartimento dos fumantes. Depressa! Mas. Amanhecer. A grande estação oca. sentado na cadeira giratória. Começa a escurecer deveras. Portão 4. por causa das mordidas dos carrapatos e das taiocas. A noite densa. eucaliptos... Fábricas. assando cateto num jirau. Trens em velocidade contrária. Parece que me sinto acolá. Ruas. que horas agradáveis. De nada vale o Olímpio estes dias todos querer animar-me declarando que isso não é nada. currais. Agora assisto engatarem o vagão- restaurante e o carro Pullman. que eu não poderia sequer fazer ideia do que seja a dor causada pelo ataque das tocandiras cujos panelões e cocurutos. Enquanto isso. com o motor de popa desligado. assistindo ao perpassar da série dupla e contínua da paisagem. do Repulse ou de Anopopei.Viajar!. ex-marinheiro da Costeira. os pedrais de gorgulho e os travessões espumarentos sacolejam a embarcação e todos nós. Diante do rio: amplidão livre. isto é. Ônibus. a barraca entreaberta mostra pela nesga da lona o servente Eugênio debaixo dum toldo de palha najá. Trapiches. por causa da urticária do mundo. descemos de batelão. Vejo o trem que vem de Tupã. Subúrbios. pastos. ele se esforça por descrever. tocar depressa para Congonhas. descer na Luz. Armazéns gerais. Bairros. Locomotiva elétrica. Outra cidade. Só lá para as nove e meia é que podemos descer à borbulha. na copa do angico. para quê? Para quê?! Largando tudo e de tudo fugindo como o desertor da mochila. “Alô! Alô! Tripulação da Vasp do avião das oito! Alô! Alô! Passageiros para o Rio pelo avião das oito. vendo passar Vera Cruz. do Afrika Korps. mas sim como desarraigado da minha veracidade pessoal. Retirantes nordestinos. Esqueço até o tormento que os borrachudos e os pólvoras nos infligiam naquele dia em Araguari e as muriçocas e os maruins naquela noite em Goiandira. Chaminés. ao sabor da correnteza. O corpo. Jaú. o Argolo e o Seixas manobrando cabos e varejões por entre a gostosura perigosa dos rápidos e corredeiras. o galé das correntes e o mineiro do grisu. desde madrugada até ao anoitecer! Esta manhã. Vargens. Duartina. Névoa. de cimento armado. A alma. No pouso. belas e bárbaras. Baldeação. Bauru. Viagem. por exemplo. Usinas. Boa viagem!” Lá está o pássaro mecânico querendo gente em sua gaiola afunilada. Dos lados: recesso denso de reservas do reino botânico. matas. cafezais. Morros. bem cedinho. São Paulo! Agora. vou para a selva não como evadido de Dachau. pergunta a si mesmo o que estarão fazendo no acampamento o Marcelino e o Eugênio. porém. reunidos como expedicionários empíricos. mas agora o estirão será contra a correnteza. à esquerda. e o apelidou. o bando de pesca. puc-puc-puc. a tais bailados se juntam lontras e ariranhas. As margens se abaixam. O motor de popa. cozinheiros. com seu barulho de vedeta naval. Chegamos enfim ao trecho onde dias antes preparáramos entre saranzais uma ceva para o êxito fácil da nossa pescaria. O Argolo. Passamos resvalando por um mundo poupado até agora. com sua responsabilidade de chefe. almoçamos gulosamente o que. leva horas e horas picotando o tempo. corta regiões intatas de tesouros. O Mendes e o Argolo atingem a especialização técnica de só escolher matrinxãs. fazem estardalhaço nos renques das garirobas. ex-lavrista fluvial. pacas correm aos pulos. enquanto o rio augusto. Mais tarde. resultando disso o Cobra Norato entrar em delírio narrando peripécias da sua vida ulisseana. o Luizão e o Kimura. recordam fatos para eles corriqueiros. desde o começo. braço rude de imensa rede hidrográfica. o Olímpio e eu nos atiramos aos pacus e dourados. Que entusiasmo! O bando todo se afoita. Para maior enredo plástico e acústico. estridentes araras e periquitos. Fica para trás a barranca onde os restos do nosso almoço a restringem a pouso eventual no Congo. apresentam agora aluviões de areia onde antas dormem em promiscuidade com capivaras. Em dado trecho. Ali estamos. e riscadas pelos desenhos de troncos. Depois. ao passo que o Mauro. Kimura ri através da cara oblonga de feto e de ídolo oriental. Os que têm experiência da selva e dos rios. para mim que ouço. O Seixas. conforme a distância. às vezes. Saímos a tempo de chegar com dia ao acampamento. conta casos de caucheiros em luta com os gorotirés. Vamos acompanhados por ondulantes séquitos de botos. de Cobra Norato. uma tribo que não sei onde vivia ou se existe mesmo. com o sol já a pino. extraordinários. Quando formos estatística . acabam preparando. o sol ainda está alto. O Argolo já dissera que o Olímpio não mente: delira. Quase modorrando. Sim. com a proa da barcaça cheia como banca de mercado. ora do Colt 45. ex-sacristão dos salesianos. respectivamente nosso cozinheiro e servente. tamanho é o bastidor selvagem de troncos e folhagens. conta passagens interessantes do São Francisco. O Mendes se serve ora do rifle automático. macacos e recongos. bem como. Abandonamos os miguelinhos rajados. tendo todos nós arrastado seu cavername para cima da margem. ouvindo o Olímpio lhe contar (com trejeitos) de como as piranhas comem os miolos dos jacarés baleados deixando em minutos as caveiras vazias que nem potes.seringueiro no Xingu. ali somos tataravós de nós mesmos. seus mergulhos e emersões são espetáculos. elasticamente. uma hora depois. às piabas e bicudas. o Olímpio e o Eugênio carregam os peixes. Olhem. como a dissolver-me. Eugênio. só trouxe o corpo com os sentidos. Sim. altos e fortes. aos berros. conta que pegou um cateto tresmalhado do bando e que já o preparou para o jantar. ao léu de declives. Quero. começando a nadar galhardamente. Içado o batelão e bem recoberto com lona encerada. perder a configuração humana. isso sim. a da floresta! Espiem seus cretinos! Que realidade plástica. como querendo roubar ao Olímpio o delírio de vítima da peçonha da Cobra Norato. Lá de terra o Eugênio e o Marcelino se preparavam para salvar dos saranzais quem vem como uma hélice furibunda. ergo-me de junto das piabas reluzentes e dum salto me atiro nas águas. A bombordo. não tardando a acertar tiros na testa de . Aqui me diluirei voluntariamente. de bueiro do El Dorado! E eu. a deste rio! Que enormidade guardada. sintam como eu. Mendes e Mauros a devastem e sistematizem deuteronomicamente! Que realidade maciça e ainda não bem enxuta. Dito isto. rio abaixo. mas porque quero. virar tronco e raiz. Por sua vez o Marcelino diz que teremos sobremesa: mandioca e mel. o Argolo declama. Os cachorros latiam. Para atiçar-me a inspiração nefelibata. conforme a lei pelas megeras piranhas! Sim. guardada aqui para que mais tarde os outros Seixas e Argolos. serão devorados pela fauna vigilante e vingadora! Aqui ficarão suas carcaças utilitaristas! Eu também ficarei. olho-me como um suicida nauseado. imerso neste batismo hialino. vocês outros. desando a exteriorizar beatitude e pasmo. radiante.lendária de hoje transformado em milênios. assustando os paturis. O espaço segundo uma geometria sobrada do Gênese. refestelado ao rés da água: — Não me amolem! Não vim pescar nem caçar. contemplem. Meu corpo é uma draga raspando as horas majestosas e a paisagem empolgante. ali desabrocharão paródias de civilizações clássicas. arrastadamente. descobriu grandes colmeias numas moitas de pequizeiros. o reino das piranhas para que estas cumprissem aquele testamento de Heiligenstadt. Ninguém se assusta porque desde vários dias era assim que eu chegava à barranca do acampamento. Enquanto isso o Seixas afagava a sua carabina Schönauer. Ao desembarcarmos levamos um grande susto: é que o Marcelino está com as orelhas inchadas. o Seixas e o Argolo. Atirei a alma nas cachoeiras. fingindo querer liquidar o monstro anfíbio em que eu me transformara. o espaço e o tempo. chamando aquela correnteza de veia cava do trópico. Paro. profanadores do sortilégio. o Kimura e o Luizão transportam para a barraca o motor. o Mendes e o Mauro conclamavam. as abelhas tiúbas o atacaram. assumem cataduras hirsutas de chefes de monções naquele cenário deslumbrante. o Argolo. pareço. lataria. e então ajudo a procurar a caça. O grupo que hoje caçou amanhã irá pescar. (Para quê?. De fato. O Cunha e o Lemos gabam o dia. de bichos. envergonho-me desta comparação. barris. previdentes e práticos. Com seu apetite de antigo sinhô-moço nutrido a adolescência toda na exuberante cozinha afro-ameríndia. pois o Seixas e o Mendes. A nossa barraca. Ninguém se lembra de suas profissões e interesses longínquos. o Argolo e o Seixas derrubam um jacu-cigano. serventes. Impossível apanhá-lo em meio àquela confusão de macambiras e japecangas. Jantam com apetite voraz. Sinto cheiros de óleo. engenheiros. tiveram tempo para programar não somente o itinerário como o êxito e o conforto que eu invectivara de cópia “colonial” de colonialismo frustrado. um Fernão Mendes Pinto emergindo dum naufrágio. e o nosso bando irá caçar. de rapadura. De fato. Vozes diferentes acrescentadas às anteriores. altos funcionários. parece uma tenda de feira. utensílios. O Andrada faz a programação do dia seguinte. ficando de atalaia no acampamento o Brito e o Emerêncio. escorrendo água. Antes de anoitecer. Disfarço com a máscara de intelectual urbano estranhando a selva. fazendeiros. Irão com o primeiro grupo o Marcelino e o Kimura. Passo por pequenas modorras de vez em quando. ao passo que eu. e com o segundo grupo irão o Luizão e o Eugênio. do aturdido de escombros. estão as massas inertes dum tapir. só uma vez ouvimos o esturro duma onça. me parece um pizzicato ostinato. de três pacas e duma veada-catingueira. lá junto da fogueira onde o Marcelino parece um soba e o Luizão um feiticeiro. com seu rico murmúrio. enquanto os mutuns e os jaós dependurados são troféus menores sob a palha najá. diretores de bancos. latido de cães ao longe e a resposta dos daqui evidenciam a chegada do grupo que foi caçar. Em cima da minha cama um facão e um machado. advogados. caçaram bastante. enquanto eu confundo o cateto primeiro com tapir e depois com veado- campeiro. O Eugênio não mentira: lá está a carne do cateto assando no jirau. Lembro-me de meu pai dizer que eu ignorava o Brasil autêntico. Estão agora todos reunidos numa aldeia.. perto da maior. ferramentas. o Argolo funga em longos sorvos o cheiro acre e adstringente. de peles. cozinheiros. assim só de calção. A conversa vai pela noite adentro: começou desde muito o martírio que nos infligem os mosquitos. A caminho do pouso os dois continuam a ser contrafações ridículas de Theodore Roosevelt.jacarés que dão enormes rabanadas como troncos eletrificados. ouvimos o Lemos .. Essa é farta. Pela noite adentro. ) Vejo ovos de tartarugas e cuias. A estadia depende da provisão. de gasolina. ferindo-me nos espinhos dos caules das marajás. Caixotes. Há em mim ainda muito do egresso e clandestino de bordo. Mas a floresta. Médicos. armas. De vez em quando bato fotografias ou rodo um filme de oito milímetros. o Planalto Central. Durmo ainda bastante. Igarapava. Já de regresso. constato que entre o meu anterior e o ulterior à viagem houve apenas um hiato. Rio acima. quando deixamos Uberaba. a serra do Catingueiro. Na manhã seguinte o grupo todo resolve ir caçar. não age sobre a anatomia humana dum indivíduo? Pelo menos o que se tornou óbvio é que não foi o deserto que fez o anacoreta. . que na juventude e na mocidade fizera tantas viagens ao estrangeiro. Ambos atraíram-se. Sim. Eu. com a mão no leme. Vou voltar diferente. Ribeirão Preto. Anfiteatro de cores e de claridade. Leopoldo de Bulhões. Faço cautelosamente a minha “regata” ali pelas imediações. Fico no acampamento com o Brito e o Emerêncio. Anápolis. Já fiz isso ao passar por Campinas. a Natureza. Sentado na popa. O Brito enche o reservatório depois de “sangrar” uma lata de gasolina. Goiandira. “esse sangue precioso para a Vitória e que nós estamos desperdiçando aqui”. vencido pela prostração. Rodeado por florestas. Durmo. Araguari. o regresso. ou o mesmo? Será que a densidade geográfica.e o Cunha falarem na Conferência de Casablanca e na derrota nazista em Estalingrado. é a última porção do itinerário por onde procurarei esfregar a memória. Rio abaixo. sacolejado pelos solavancos do caminhão ao longo duma rota quase impraticável. Pelo menos conheci o sertão. Agora. o rastro que deixo atrás de mim. a serra Dourada. Bem que quis dissolver-me em celulose no Araguaia. a guerra de um mês antes. Uberaba. o Emerêncio me ajuda a arrastar o batelão para a água e a atarraxar na popa o pesado motor. Depois do almoço. Anhanguera. gorgulhante e espumarento. nem foi este que fez aquele. depois que a expedição armada até os dentes como modernos antropófagos se interna nas brenhas. tinha a impressão de me achar em zona territorial que ainda recentemente os mapas do Estado de São Paulo não davam. alvoroçadíssimo com o desembarque americano em Salerno e em Nápoles. pois eu telefonara de Congonhas dando a hora da chegada. o torpedeamento de navios mercantes nossos. a queda de Roma. Em contrapartida. Encontrei cartas do Rio intimando-me a dar sinais de vida. Eu já agora não aturava mais Hacrera. Acedi. Parecia locutor da Nacional ou da Tupi. Fascinava-me por demais o instantâneo do molhe de madeira podre de Dumbá Grande. quanto mais os do Brasil! . de Manuel Brandão e de Pinto Gaia. Talvez influxo dos efeitos da selva araguaia. meu cunhado fora esperar-me em Santos Dumont. Ele fez um discurso sobre a vocação do francês para a barricada. minha distração durante dias foi projetar na parede os slides e o filme. Ainda no jardim de casa desandei a brigar com Germana. exigia dedicatória e me atirava nos braços de mamãe e de dona Noêmia. como nos tempos de Frei Custódio. qual personagem de Conrad. o rio impetuoso. Só deixei o Rio após a recepção que o tio Rangel deu para celebrar a entrada de Leclerc em Paris.”. causando deslumbramento em minha mãe e fazendo meu pai distrair-se horas com os slides e o filme. Após tão longa ausência. dir-se-ia que por ali eu sumira da civilização. Daí a semanas ele me escrevia que estava com o coração e aorta entalados na goela de tanto se esbofar em seguir o general Patton na França. a Conferência de Casablanca. a partida para a Itália da Força Expedicionária Brasileira. Por que motivo? Porque em dezembro de 43 ela retirara da minha maleta o original datilografado do meu romance — deixando apenas a cópia — e o entregara à editora. Em resposta ela me entregava um exemplar. eu lhe pespegava a minha aventura no Araguaia... indo acampar em Cocalinho. o armistício italiano. tinha daí a dias que atendê-los numa tarde de autógrafos. A selva intata. e o general Jukov na Rússia. III Em Hacrera. o refrão “A cobra está fumando. a Conferência de Teerã. Tio Rangel a azucrinar-me. a libertação de Sebastopol. como um manager que faz massagens numa vítima a fim de prepará-la para novos rounds. e então o rio e a selva perpassavam frontalmente pela sala. de modo que desde julho eu vinha sendo alvo da curiosidade dos críticos e dos leitores. tive que permanecer no Rio uma temporada maior. o general Clark e o Regimento Sampaio na Itália. Badoglio. conquanto íntima. ao jantar. E para essa gente decerto a ideia que desde muito eu lhes incutia era de usufruir a exclusividade de pairar au-dessus de la mêlée por esnobismo intelectual. pois eu lhes dava prova de malogro. Ou quando José Paulo. a folhear revistas durante as manobras do engraxate. talvez até os manifestasse no meu silêncio e na minha fisionomia quando por exemplo durante a conversa. furioso! — ??? — E com razão.ª DIE. exclamou: — Hi!. em face da hecatombe mundial. filosófico e político. — Caso os vinte e seis mil pracinhas comandados pelo general Mascarenhas de Morais respondessem a um inquérito . Imagine você que em Litoria e durante a rocada para o vale do Serchio se viu reduzido a carregador de sacas postais do Correio Regulador da 1.. escreveu aos pais.. Mann. que jogava xadrez comigo. servindo o vinho. introvertido e misantropo. me sentia sempre que me hospedava em São Paulo ora em casa de Rafaela ora em casa de Conceição. — ??? — Porque se pertencesse a essa arma teria tido que lutar corpo a corpo com os elementos da 42. Escreveu-me. e que mesmo assim vivia com os meus complexos por. que conversava com você sobre Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa? Que foi meu colega em Eton de 33 a 37? Sabe onde ele se encontra agora? — ??? — Partiu no Primeiro Escalão a bordo do transporte General W. em fevereiro. É intérprete no estado-maior do marechal Sir Alexander.. às voltas do degredo.. E essa atitude alheia às vezes atuava em mim a ponto de eu próprio me perguntar se não teria sido preferível diluir o meu drama na ressaca da tragédia universal. Amadeu me disse: — Lembra-se do Luís Manfredo. O Erasmo Pontes. O fato de ter vindo reassumir meus encargos trazer ainda por cima o compromisso de novas traduções me parecia embuste de desertor. E em situação pior. a assistir no cinema os Paramount News e o Pathé Journal como alguém que terminou os seus afazeres profissionais diários. ser um civil poupado. — Mas lógico! — interveio Amadeu. Manda-lhe lembranças. Essa gente desconfiava que eu. Os que se haviam despedido de mim no dia 28 de novembro estranharam o meu regresso e isso me mortificava. A. Pois era quase impossível eu esconder os complexos. vinha pagando com alta alíquota o imposto do exílio. Ao que Amadeu interferiu. a ler jornais de pernas cruzadas num café. mas voltado para mim e não para o primo: — Já o Dioguinho escreveu contando que foi uma sorte ele não pertencer à infantaria. do regimento de Quitaúna.ª DI alemã na tomada difícil de Monte Castelo. se sentia afetada pelo boomerang da hecatombe militar. com selos e carimbos. a editora. com interstícios de goles de uísque. o protocolo. o luxo. enfim. se alinhava o número 3 000 000 000. na gíria.. E eu me atribuía o papel de divisor. artilharia de dorso. como conjunto ordinal. top set. quantitativo. pelas revistas e pelas conversas deste teor. Lutar. companhia de petrechos blindados. Na angustiante problemática da morte. queria saber o quociente. Visitas cerimoniosas: professores de direito. Ou via esse conjunto desmesurado fluidificar-se e inserir-se na minha pessoa. Na segunda residência o assunto foi a morte (por assassínio) de Mussolini e os aspectos macabros do velório do seu corpo pendurado num gancho em certa praça de Milão. de bilhões de unidades. A editora achou-a excelente. namorados precursores nas roupas. ou vice-versa. estudantes. nos primeiros dias de maio. críticas e ensaios sobre o meu romance.. Queria afoitamente verificar quantas vezes o divisor cabia no dividendo. Passei aquela sexta-feira última de abril de 45 em casa de Rafaela e o sábado em casa de Conceição. nos sapatos de tênis com cadarços de cor. oniricamente. O quociente?! Ora. me entregou enorme envelope com recortes de notícias. eu estava mais do que ciente de quanto a humanidade. juízes. mas sem o close-up medonho dos feridos. pelos jornais. que é que o número 1 divide? Apenas repete. do sangue.. Na primeira residência o assunto foi a morte de Roosevelt: verdadeiras exéquias oral e retórica. — Me aborrece tanto ou mais do que aturar debates imbecis de vocês sobre football. quando a BBC de . o quociente era igual ao dividendo. Pudera. a ordem. nas guedelhas. da Morte. os meus complexos e escrúpulos se manifestavam em ensaios incompletos de divagações gráficas e plásticas: no quadro negro e didático da treva noturna absoluta. — Chega desses assuntos de guerra! — bradou Conceição. sim. Numa. pessoa singular. nas barbas. eu entendia do riscado! Ela. traslada. dos futuros beats e hippies. com M grande.confessariam preferir obuses autorrebocados. a pragmática. quase opostos. autópsia verbal do ex-civil e socialista desnudado da farda tipo indumentária de ópera. individual. Ambientes diversos. mais outro envelope fechado. Já me achava em Hacrera. Mesmo sem os pormenores fornecidos pelas estações de rádio. Noutras noites de insônia. Acabei a tradução de Recordação da Casa dos Mortos. nos revezávamos. acadêmicos imortais. dos mortos. Agora. Portanto. como um dividendo. vizinhas. Nem se julgue que eu me valia das traduções a fim de me desviar desse ricochete. entre os três bilhões de civis meus contemporâneos. Nos solilóquios em horas de vigília me via. rês abatida e conspurcada pela populaça que o endeusara. a humanidade e eu. Na outra. dos miolos expostos feito geleia.. Enfim. anônimo. Nisto. Falou pelos cotovelos. e uma segunda carta fechada. tio Rangel irrompeu em casa de Rafaela. esteve deitado até o chamarem para o jantar. Tucídides. acordou na rua como expulsa de casa por abalos sísmicos. Na primeira semana de agosto vim a São Paulo trazendo a tradução de O Vermelho e o Negro. seu sobrinho em quem punha todas as suas complacências: — A história é um fichário de morticínios. no dia seguinte.. Vamos para a varanda. Obrigou-me a medir-lhe a pressão arterial. Jorge. As manchettes dos jornais e o vozeirão dos locutores só tinham uma tônica: a bomba atômica lançada sobre Hiroxima. Dispensou o motorista por algumas horas. abalam-na. e suicidar-se o outro. Pega depois ao acaso um exemplar unitário. da universidade mas que morreu pela pátria. data do lançamento da bomba atômica sobre Hiroxima). para os netos e para mim. Você. E por mais extemporâneo que pareça. Já pode acender o seu cachimbo. com selos e carimbos. Não pode ser doutra forma. O automóvel de . Comeu um pouco de tudo. depois desta guerra. sucede ser sangrado um dos responsáveis mais insensatos por esse estado de coisas no mundo. desconhecido. iniciou o esperado exórdio. A peroração foi depois que a criada veio recolher as xícaras esparsas e levá- las na bandeja para a copa: — A turma exótica e maníaca dos futurologistas — esses gozados que querem marcar o dia exato do Juízo Final — não precisa mais fazer cálculos cabalísticos. quando a população resolveu se recolher com a preguiça untuosa dos caramujos aos seus apartamentos helicoidais. E lhe rende grata homenagem. Na editora me entregaram volumoso envelope repleto de recortes referentes ainda ao meu livro. Resigna-se (como se tivesse procuração para isso!) a emocionar-se sumariamente com a perda de milhões de si própria. virando-se para a filha e o genro. mesmo que sejam trágicos e cruéis como os de Edgar Allan Poe e Villiers deL’Isle-Adam. Jorge. As duas notícias causam impacto na humanidade. da lavoura. põem-na atarantada. Passou as duas mãos pela boca. passe a empregar alta voltagem na ficção. esse número é o logaritmo do apocalipse. Atrasou o horário. emocionar-se com personagens e enredos. O número 6 (referia-se a 6 de agosto. tomou banho e substituiu a roupa branca. — ??? — Como hão de os leitores. se tudo o que assistimos embotou a nossa receptividade em esgares de catatonia? E se sabemos desde já que as atuais experiências maciças se tornarão generalizações súbitas e imediatas? A humanidade tem disparates como os que acabamos de averiguar em abril e maio deste ano de 45. admitiu mesmo o seu suicídio. porque fez a barba. ajeitou a dentadura. Disse Heródoto. Xenofonte.Londres irradiou o desaparecimento de Hitler. Paciência. da usina. Quando veio a sobremesa.. e digo eu. A cidade. o Conselheiro Acácio. Conceição e Roberto entrou todo aceso. Os dois jatos que varreram o jardim iluminaram não o rosto murcho do pai e sogro, mas a efígie do profeta Isaías. Eu tinha afazeres em Hacrera. A Casa de Saúde estava na iminência de ser vendida. O Banco Brasileiro de Descontos, anos antes ainda simples agência bancária particular, mostrava-se disposto a ajudar os compradores, no caso dois terços da classe médica de Hacrera. Argolo terminava a sua tese, se inscrevera no concurso para a cadeira de clínica cirúrgica em Salvador. Eu precisava traduzir O Egípcio, já adiantara a versão bem mais fácil de A Leste do Éden. Depois? Bem, se o mundo ia transformar-se de sucata em... Em o quê?... Meses. Quase um ano. Claro que quando me estafava em Hacrera, aparecia em São Paulo e no Rio. Na Pauliceia ia bebericar na mesa do Paribar, ao lado de Sérgio Milliet. No Rio, tomava banho de sol e de mar em Ipanema; depois, à tarde ia conversar com Graciliano na livraria José Oly mpio ali na rua do Ouvidor, ou na Editora, com Zé Lins, acolá na praça 15; das janelas via com emoção secreta a Cantareira, a barca de ou para Paquetá. Cessaram os artigos sobre o meu livro. Não recebi mais recortes dentro dum envelope grande, desses de ofício. Mas recebi uma terceira carta fechada, com selos e carimbos. Assim que principiava a estranhar o centro do Rio de Janeiro, a sentir-me fantasma, abalava para a Alta Paulista. Atendia clientes de Bastos, Lins, Dirceu, colonos de fazendas e patrimônios com centenas de alqueires de café, algodão e amendoim. Os novos proprietários da Casa de Saúde solicitaram que a antiga diretoria terminasse o mandato; isso lhes facilitaria a estatística e o balancete de 46, a prática com o arsenal cirúrgico, bem como a familiarização com o radiodiagnóstico. Quanto a mim, haja traduzir. Verdadeira corvée. Estava exausto de folhear dicionários, de emendar erros de datilografia segundo as modificações recentes do novo regime ortográfico. De quando em quando ouvia música, pegava naquelas três misteriosas cartas assinadas por uma suposta Calipso. Eram escritas e subscritadas à mão e se iam diferenciando gradativamente. A primeira, cerimoniosa e inibida, girava em torno do binômio obra/autor. Ela, Calipso, supusera, até 44, que eu sempre vivera no estrangeiro tendo vindo de lá somente quando o clímax internacional se agravara. Mas que, numa tarde de lançamento de livros com autógrafos, certa amiga me mostrara na livraria e, em ulterior conversa, lhe dissera que eu tinha cursado humanidades no Condorcet, formando-me em medicina, depois, no Rio, e fora especializar-me em universidades europeias. Que esses informes lhe haviam elucidado muita coisa dos meus livros; inclusive a tendência para o roman-fleuve. Natural que, tendo passado a juventude em Paris e a primeira parte da mocidade lá e em outras capitais, eu me utilizasse às vezes de cenários e lembranças como bastidores dos meus contextos. Achava que eu urdia os capítulos com um sistema desenvolto de distribuição todo meu. Que pairava neles, ao invés do cosmopolitismo à Valery Larbaud, uma estrutura vivencial ecumênica. Que ela, Calipso, se irritava com certos críticos por não verem que a plataforma de lançamento dos meus enredos era sistematicamente o Rio. Mas o Rio bem carioca e bem brasileiro. Quanto ao estilo, sua opinião era que eu aproveitava o meu temperamento barroco inato para, mediante o trato com as ciências, as bibliotecas, os museus, os idiomas, aperfeiçoar o senso estético, a tendência lírica e autobiográfica. A segunda carta, com intervalo de meses, da anterior, a bem dizer debatia o binômio obra/leitor. Falava de suas leituras desde os tempos de colégio religioso interno. Que, quando menina, lia depressa para atingir logo o remate da história ou da estória. Quando adolescente, ainda no colégio e logo a seguir em casa, se interessava simultaneamente pelo assunto e pelo estilo. Agora, vivendo em casa e na fazenda, dispondo na residência urbana de uma biblioteca mais que razoável de literatura brasileira e universal, e na “casa-grande” de várias estantes com livros recentes, preenchia o seu lazer lúdico somente com o que havia de melhor em poesia, romance e ensaio. Qual o motivo dessa determinação preferencial? Explicava: tivera que desistir do piano porque os professores do colégio eram tão ruins que ela ao invés de adquirir desenvoltura ficara com os vícios de teclado e de mão esquerda. Pedia licença para afirmar que devia muito a mim com referência às correntes modernas e de vanguarda, por ser desde algum tempo leitora pressurosa dos meus artigos na Folha. Com relação aos autores nacionais e estrangeiros seus prediletos (e evidentemente eu estava incluído na lista) deixava de enumerá-los a fim de não parecer bas-bleu. Asseverava, ainda assim, que cada vez que relia obras por exemplo de Machado de Assis, Vicente de Carvalho, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, ou de Thomas Mann, Marcel Proust, ou a plêiade russa etc. etc., lhe parecia não estar mais se submetendo aos textos e sim criando paralelamente um intertexto, um diálogo, uma revisão. A terceira carta, de meses, entremostrava curiosidade por mim, pela minha vida, pelo enigma de eu ter ido para tão longe. Que sabia haver eu me metido em política, feito comícios, sido vaiado por integralistas, intensamente como obliterar um desgosto... Não estaria esse enigma camuflado nos meus romances? Não seria de natureza tão bela e ao mesmo tempo tão angustiante que eu o transformara em razão única de vivência ou... de sobrevivência? Nos últimos parágrafos voltava a falar como que mais de perto, como o fotógrafo que muda de posição, que escolhe uma nova angular. Perguntava se aí, no simbólico litoral onde eu queimara a nave para impossibilitar o retorno, ignorava por acaso que a minha alma calada emitia um constante S.O.S.? Lógico que eu, como escritor, sabia. Por que era então que continuava à deriva, indiferente aos escutas que haviam descoberto o meu código, que o captavam e respondiam? Consideraria eu sacrilégio outra criatura dum oásis se abeirar da cisterna para calçar as sandálias da anterior e assim ter o direito e o privilégio de atingir e alcançar a catacumba, de percorrê-la, de reacender a candeia apagada para, descobrindo o cântaro, descer o córrego subterrâneo a fim de poder, depois, vir reanimar quem jazia na duna? Seria possível que eu tivesse ficado como aqueles infantes da Rússia e da Espanha que, tangidos pela fuligem das revoluções, não viam nunca os ninhos nos pomares floridos nem escutavam mais o sussurrar das fontes? Na próxima correspondência com tio Rangel contei-lhe por alto o mistério dessa nova personagem; e, para que ele aquilatasse melhor, incluí no envelope as cartas assinadas com o pseudônimo Calipso. Fiz suposições vagas. Ultimados os negócios em Hacrera, com um banquete oferecido a mim e ao Argolo, toquei para o Rio detendo-me uns dias em São Paulo. Como quase sempre, hospedei-me em casa de Rafaela. Já constituía hábito me armarem no Retiro (entre o pavilhão de música e o court de tênis) uma cama de hóspede. Avisaram-me que à noite haveria recepção, como cada última terça-feira de cada mês. Tratei por isso de vestir um dos melhores ternos que mandara fazer na primeira metade de dezembro de 43. Não estava enxovalhado porque eu o vestira em Hacrera para o banquete e nestes três anos o alternava com outros quando das minhas estadas no Rio. Cumpre declarar que durante a viagem de Hacrera para a Pauliceia usei um dos envelopes vazios das citadas cartas como anteparo em cima da mesinha giratória do Pullman para encher o meu cachimbo com tabaco Navy Cut. Os três envelopes me atrapalhavam, assim frouxos, quando eu metia a mão no bolso. E tal circunstância, repetida mais duma vez, me levou a pensamentos que já me incomodavam antes. Como dispunha de tempo e só chegaria ao termo da viagem muitas horas depois, os monólogos faziam cama de gato não nos meus dedos mas dum lobo frontal para o outro. Carradas de razão tinha Baudelaire em considerar a poesia (enfim, a literatura lírica em geral) um nó de víboras. Provas bem anteriores às Flores do Mal tinham sido as páginas de Werther, causadoras duma epidemia de suicídios. E provas ainda, conquanto ulteriores, haviam sido as páginas de Le Lys Rouge. Agora ali adiante da paisagem que corria em sentido contrário, eu repetia várias vezes: “Derrisão. Nó de víboras”. Sim. Renata tinha sido vítima. E agora outra criatura tinha sido vítima do filtro, do sumo dessa beberagem que se chama romance. Tais fatos advinham do seguinte fenômeno: certas leitoras iam além dos personagens e dos enredos: atingiam o autor, pessoa real. Portanto, processo mais lógico do que atingir apenas o fichário dele. Ora, sendo os meus romances de pauta lírica, o interesse que despertavam decorria da similitude das almas, dos problemas, da procura de soluções. As leitoras se davam conta de que, já que o autor urdia tudo aquilo, e que havia íntimas e mútuas analogias, ipso facto personagens e leitoras se revezavam, facilitadas por sucessivas coincidências. Era óbvio que os ou as personagens morrem. Os leitores ou as leitoras, também. Somente o criador perdura. Se não como homem, como autor, que pode perdurar séculos. Estava eu ali no Retiro, enfarpelado para a recepção. Quando irrompi numa das salas, logo recuei disposto a tocar para o Rio sem me despedir, tamanhos os grupos que impediam o acesso em várias direções. Sem contar os cuidados, as ginásticas para não ser atropelado pelas inúmeras bandejas que se equilibravam no ar como planadores. Em todo o caso, a frequência a embaixadas nas capitais europeias nos idos de 30, ao tempo de Guerra Duval, me ensinou a arte das mesuras, de reconhecer Beltrano e Sicrano, de inserir um aparte numa conversa, um beijo na região tênar de mão que se estendia, de saber se Amadeu continuava a receber cartas de pracinhas amigos. — Sim. De Castelnuovo. De Porretta Terme. Conhece, dona Eusébia de Rezende Cintra? aqui o doutor Jorge? Sim, o romancista. Curvei-me, beijei aquela mão semicoberta por mitaine. A matrona de ar bem matronal sorriu, pegou quase de relance uma taça, meteu-se num grupo. Amadeu, antes de tomar direção oposta à minha, teve tempo de me elucidar: — Nossa vizinha. Mora aqui ao lado. Nossos jardins são laterais e nossas varandas paralelas. É neta do barão de Lorena e bisneta do marquês de Valença. O número de escravos que seus antepassados tiveram é igual ao número de livros raros que há na sua biblioteca. — Lê tanto assim? — Não. Prefere bridge. A livralhada é para a filha, incompreensivelmente ainda solteira. Fazendo diversos desvios, fui subconscientemente parar no jardim lateral. Apenas um gradil separava o gramado da residência de cá da pérgula da residência vizinha. Ladeei a casa de Rafaela, vim ter ao vestíbulo. Era o único local propício para, enfim, conseguir acender o cachimbo. Observava eu uma tela de Matisse, quando veio duma sala quase vazia ou pelo menos silenciosa uma jovem esbelta sobraçando três livros encadernados. Sorriu apenas pro formula; e, aproximando-se, falou com nervosismo: — Quer ter a bondade de autografar estes romances de sua autoria? Não de E. Deixo aqui estes. Sim. abri um volume em cima da mesa. Luz que as duas venezianas filtravam através das fendas paralelas e oblíquas. ela reapareceu. os canteiros com hortênsias. abriu. Uma das parceiras. As tênues listras perduraram até de madrugada. A recepção não ultrapassou a meia-noite. Mas. A mesmíssima caligrafia daquelas três cartas. desses de fechar. — Então vou buscar depressa. só notei claridade nos aposentos do canto. ficou rubra. Não mora ao lado? Levo-os aqui pelo jardim e lhos entrego por cima do gradil. — A coisa mais difícil de se carregar é um pacote desembrulhado de livros. não reapareceu na recepção. quando eu . De fato. No dia seguinte. No frontispício de cada um tem o meu nome. em cada frontispício estava escrito: Maria do Carmo Rezende Cintra. Moro aqui do lado. Sentei-me num banco em X. Creio que as avencas tapavam a eletrola. Nevin. A filha não reapareceu na recepção. Aliás. leu. Postei-me — talvez levianamente — num dos degraus da entrada do Retiro. Assinei o meu nome por baixo da seguinte dedicatória: “PARA CALIPSO. devido ao estado em que já ficaram. dois caíram. Posso ajudá-la. tracei depressa a mesma dedicatória. virei três folhas. Não trouxe os que me servem de constante leitura. se tanto.estranhe estarem novos. as venezianas permaneciam fechadas ainda. os degraus com vasos de magnólias e ela com o vestido azul moldando-lhe na carreira os ombros e os joelhos reproduzisse em tamanho natural uma capa vinte e quatro por trinta da revista Marie Claire. Reconheci instantaneamente a letra. Depois que lhe entreguei os livros por entre o gradil. Aceitou impetuosamente porque precisava sumir. Envolvia-me em censuras mentais e em volutas de fumaça do meu cachimbo. Recebi as três brochuras. ao percorrer o jardim de cá a descobri sentada na varanda da casa de lá (ambas paralelas mas relativamente distantes). as paredes com heras. Quando a mãe chegou.” Daí um quarto de hora. e deduzi essa circunstância pelo fato de tudo sumir daí a pouco na escuridão. Mas Narcissus se extinguiu mais cedo. segundo notei por acaso. a pérgula com buganvílias. Vinha não sei donde a música de Narcissus. precisei reacendê-lo várias vezes. a vi correr para dentro de sua casa como se o todo. Sumiu. devolvi os livros. Ela. — Com muito prazer autografarei os volumes encadernados e as brochuras. em pé. Ou menos tarde. e nisto quis pegar os seis juntos. um até sem capa. escutei o trinco duma folha do portão bater na fechadura. Só se retiraram um pouco mais tarde dois grupos da saleta de bridge. era a matrona descendente do marquês de Valença. Viajei esta noite com tio Rangel que desembarcou em Volta Redonda e que durante a viagem me narrara o seu apólogo A Ladeira da Memória para que eu soubesse tirar ilações. (Depois?.) .. aqui estou eu chegando ao fim do meu viaduto. Bem. Começo a reconhecer as imediações da fazenda Camapuã.segui para Congonhas. Tive diversos conciliábulos com tio Rangel. Não tarda a clarear de vez. Depois.. Demorei-me longos meses em Copacabana. pois enquanto subi de Itatiaia para Camapuã. Qual acampamento? Bem. em cuja ourela estão o amor e a morte. Vários círculos temporais: 1934. como um estilete que estacou na latitude ambígua duma cartografia sem bússola. resvala entre muralhas e abismos. corpo e alma. como gêmeos. E ambos. pois começa a amanhecer. 1943. corpo e alma estão juntos num ponto de estrada. por exemplo. onde antes fui feliz! Enquanto volto a ti. 1946. Volto-me. meu espírito na verdade percorreu uma reta varando o espaço- tempo. transido de frio. a paz e a superação. Mas o espírito trabalha com leis mais velozes do que as que regem o som e a luz. IV Como pôde um autômato chegar até aqui. Atravessa esses círculos um gráfico em nanquim dando a febre do mundo e mostrando o percurso de dois seres. E agora a manhã me alforria . 1936. A lua já agora é um disco translúcido inútil. neste raiar baço dum dia novo que quero que seja igual a um dia antigo e radioso. o exílio. 1938.. Se as evocações de cinquenta anos de vida conjugal do velho desembargador merecem bem o nome de Ladeira da Memória. como duas patrulhas que se reencontram após uma ação de vanguarda na terra da Memória. trabalhos de ourives da natureza que faz o que quer com orvalhos e teias por cima de brotos. É como se estivesse emergindo da massa conglomerada de círculos concêntricos. Oito círculos. avança e retrograda. inspeciono o que posso abarcar com os sentidos e com a inteligência. 1942. torna a inserir- se na sua bainha. E retomam. 1944. sussurros de águas melodiosas. porque ferido. e ficam juntos. a guerra.. evoco a mocidade. Paro na extremidade. para ir ver os altos-fornos. procuro aquecer o rosto e as mãos sorvendo e segurando o cachimbo quase em brasa. ao acampamento. notam o estremunhamento próximo das coisas: névoa se esgarçando no fundo de grotões. encarrilha-se no sulco duma estrada. a morte. isto é um modo de dizer. lá em Volta Redonda. o amor. A estas horas tio Rangel já deve estar pronto. pequena plataforma na serra. corolas e musgos. Camapuã. E juntos notam o acordar majestoso das coisas ciclópicas de que a serra é a amostra bronzeada. à minha evocação se adaptaria melhor a palavra “viaduto”. em meio a uma paisagem lunar que pouco a pouco veio tomando um livor boreal de madrugada? Sinto-me enregelado. Sou um vencido cheio de dignidade. Estou chegando a Camapuã. 1940. Agora. como frisos dum anfiteatro em cuja arena estão o mundo e a guerra. atentos. O corpo é prisioneiro da terra. Tio Rangel! Ladeira da Memória!. como na porta duma guarita. assim baça e indecisa. ao abrir-se.. Mesmo a manhã é. deslumbrado. um halo de vigília. aliso os cabelos. prelibando a felicidade. a porta imperial. a alameda da entrada. estou reconhecendo este trecho de estrada! Estou reconhecendo estas paragens! Aqui. e parou. E por fim entro devagar na alameda. Todas as outras estão descidas. Tudo parado. que tentou subir a serra em plena treva. que o sol nasça vencendo as nuvens que cobrem todo o vale do Paraíba desde a Bocaina até a Mantiqueira. ir . tomar café. com os olhos no esmalte da realidade lírica: a porteira. com o rosto banhado de orvalho.do delírio difuso. eu e Renata.. as três vidraças do sobrado. abrangendo a ala do nascente. com o coração quase na boca. as duas janelas escuras ao rés do andar térreo. Olho para a vidraça onde foi o quarto de Renata. fico fumando. E as portas são rictos opacos na bossagem a que o tempo deu um tom corrosivo. entrar pelo casarão adentro. me mostrasse o grupo da Visitação. Olho para a vidraça seguinte. percorrê-lo todo. Vejo as horas no relógio do meu pulso: seis horas. o telhado. encho-o. neste chão. a fazenda Camapuã . fico dali vigiando a fazenda.Oh!!! Senhor. Tenho a sensação mais que lógica de que vou rever Renata. refletindo. os sentidos quase deiscentes. esvazio o cachimbo da cinza morna. a sebe. Como um catecúmeno reingressando numa basílica. Como se aquela porta fosse o tímpano da igreja abacial de Moissac. esperando que alguém irrompa de lá. vinte manhãs seguidas. que surjam crianças. surgir em dada hora. pois o que emerge é o arvoredo. estas lajes. vinte tardes seguidas. E novamente me detenho já agora colocado em meio ao terreiro. o telhado. Poupo o tempo e o júbilo. desdobro-o. fico olhando para aquilo como se tudo fosse uma fibrilação de cores e contexturas espiritualizadas. como um peregrino. respeitoso e emocionado. e logo paro. um pobre passageiro que saltou em Itatiaia. que por fim se aproveitou da misericórdia da lua e subiu a sua ladeira da memória. como querendo pregar uma surpresa. passamos a cavalo rumo a florestas e cachoeiras! Estes troncos. não querendo interromper aquela saudade que vai se tornando recuperação. onde foi o meu quarto. como um besouro feliz subindo por um camafeu de três camadas. e que. Como se aquela alameda fosse por exemplo a nave de Santo Apolinário em Ravena. Detenho-me. que as janelas e as portas se abram. vendo. Estão descidas. e me concede a graça de ser homem outra vez. imerso em sono. Sento-me em cima duma pedra. Tiro o lenço. me liberta da estrada por onde rastejei metamorfoseado em caramujo. Corro. Nem sequer uma aragem. com suas quinze vidraças em cima e com suas dez janelas e duas portas embaixo. enxugo o rosto molhado de orvalho. de ônix. Que silêncio! Tudo fechado. estes barrancos eram bastidores iniciais. conheço o que seja o êxtase. de ágata e de esmeralda. cruzo as pernas. como se a fachada da fazenda Camapuã fosse um retábulo de marfim bizantino. Atravesso o riacho pulando por cima de lajes. vou em direção à antiga pontezinha de troncos e cipós. invadiu. mas escorrego e trato de apoiar-me como posso. disposto a lavar o rosto naquela água límpida. as árvores. Ao meio-dia. o fogão deve estar aceso. onde as florestas e as penedias formavam muralhas de clorofila e de azinhavre. Limpo as mãos. Onde a relva? As pereiras? O mato cresceu. rodeio a casa. onde outrora o chão estava sempre coberto por uma poalha de pistilos. Ou de tarde. não havia atoleiros lá embaixo perto de Itatiaia. cortados quase rente ao chão. Dou com a porta fechada. no corredor. em cenário íntimo. aqueles homens louros. cantar. reconquistou tudo. mas destruída. E ainda está aqui. a floresta. Como a fugir. atrás dos penhascos. aquelas mulheres que pareciam saídas de telas do Brueghel-o- Velho. cautelosamente: os degraus de cimento . na estrada de Resende e de Queluz? E três dias depois o panorama não era glorificação de minério e de flora? Bem. não era neste ponto? Sim era. os finlandeses.ver o riacho. São limo só. a serra. parando em cada face.. Dou mais uns passos para a margem. e nem nas minhas mãos em concha aquela água parece ao menos pranto e sim. aqueles tabuleiros cromáticos. rir. descalços. querendo ansiosamente ver as árvores onde atávamos as nossas redes. Desço o atalho que dá para a rotunda. carpelas e corolas. Mas. Mas. Mulheres. Bem. os atalhos. oscilando na margem de lá como um farrapo túrgido. “Jorge! Jorge!” Seis e um quarto. a senzala. pisávamos areia fulva e seixos cristalinos. esperar. as cachoeiras.. E esperar que o dia se firme. E as árvores? Rodeio a rotunda baixa. Límpida?! A correnteza tem uma cor lilás. Sete horas. Ou mesmo amanhã. o sol está custando a irromper. há tantos anos passados. nadar naquelas águas encachoeiradas. crianças. Levanto-me. Que o sol irrompa. Subo a escada. Quando Renata aqui chegou. Oito cepos. aquele gado que parecia porcelanas disseminadas? E a serra. Ali está o arroio. Dirijo-me para os fundos do casarão. Enveredo em direção aos telheiros. matriarcal. no vão entreaberto da porta do quarto ali em cima. escutar outra vez a voz de Renata. com o dia assim encoberto. Seis e meia. oito tocos. aquela escultura de bronze. os cipós e os troncos presos por pregos e arames boiando como o resto duma jangada. E os laranjais? E o gado? E a lavoura? E as casas dos finlandeses? Onde aquela gradação de planos. sangue. Torno a subir. a cozinha já deve estar aberta. suas exclamações: “Jorge! Jorge!” ao longo dos pinheirais. tenho que parar porque o atalho é vencido por uma extensão de capim-gordura que enche alqueires como uma onda verde parada. aquelas chaminés. devem estar acolá. Seis e três quartos. como uma vaga do Mar Vermelho. Que a serra e o vale se livrem deste momentâneo estremunhamento. o café decerto estará pronto. sua risada rouca. e as árvores? E a ponte? Desço depressa para junto do arroio onde outrora. Ah! É que. em curva. tomar banho. cães. estames. com seu sortilégio? Névoas resvalam por ela. montar a cavalo. começo a ir e a vir pela alameda e pelo terreiro. na verdade não passa dum terreno baldio. Vou para a porta da fachada. paro no centro da alameda. olhando para as vidraças. angústia tão constringente que corro para a senzala. varandas e cortinas. considerei simbolicamente um claustro. Escuridão. Dou socos.. Murros. A porta escura. E. Espero. A porta áspera. Afasto-me para o centro do terreiro. Daqui a pouco — ainda é tão cedo. uma escuridão completa. As paredes do edifício imperial apresentam aquele aspecto inconfundível. para a alameda. bato palmas. algo entre parede de muro de tela de Utrillo pintada com mofo e resina. O terreiro é uma área que se. fico parado na estrada. subo. para a serra. ofereço-lhe . Será possível? Ninguém! Percorro o cimento que rodeia o casarão. tapera. espero. de barbicha. bárbara. sentar-me. se tanto. cheio de mato e de lixo. Não acode ninguém. Sacolejo freneticamente a aldraba fria e grossa. Um quilômetro. desço até ao arroio. são apenas oito e dez. se eu descer. Sim. deveras sem querer. Vidros opacificados. está fechada com um cadeado. árvores. espero. por onde? De que lado? Aqui à esquerda. para o vale. com uma tez de maleita. nas quatro faces. grito. Vou para o centro do terreiro. Mas. para os atalhos. e bossagem de ruína corroída. Afasto-me. bato com os dedos em nós. tão sôfrego! E nisto dou com uma criatura humana.. nem nos litorais nem nos desertos. bárbara. para a estrada. sacudo-os. Torno a espiar as horas. levanto o olhar para as vidraças da copa e da sala de refeições. Digo-lhe “bom dia!”. Olho pela fresta. depois: — Dona Aimo! Dona Aimo! Senhor Toivola! Senhor Toivola! Aguardo. com um ventre de opilação. trepadeiras. Agarro os travessões. característico que minha inteligência ainda assim não quer reconhecer. para a senzala. marasmo. diante da porteira. ruína. de calças arregaçadas. Uma cor enrugada de lâmina histológica. descidos. vou batendo em todas as janelas e portas. ao entrar. vou aos galpões e por fim sem querer. Sete e quarenta. lugar algum onde não haja alguém. Um êmulo de Jeca Tatu. pelo caminho que margeia o riozinho. Das chaminés não se evola nenhuma fumaça. insisto.parecem cobertos por um forro de musgo. Começo a andar. Empolga-me tamanha decepção. Vou espiar do lado do terreiro. E dali contemplo tudo. As janelas encoscoradas só me deixam entrever. está fechada ainda. grito. Mas é impossível que não apareça alguém. tão aflito. bato nas seis portas e nas seis janelas. áspera. chamo em altas vozes o nome que me vem à baila: — Toivola! Toivola! E. através de fendas. aparecerão pessoas. Devo esperar. E é quando me dou conta súbita da diferença. Desço. com suas sebes. Lembro-me das casas num e noutro lado. Não há mais no mundo. ir até às casas dos finlandeses na baixada? Longe? Não. de funâmbulo. pelos finlandeses. apaticamente. Um galo canta. confesso-lhe que tenho interesse em rever a casa. escancara a porta da frente e abre as janelas. São monossílabos grunhidos. que a “Companhia” tomou a fazenda outra vez. que ar de bicho e de vegetal! E o homenzinho me olha quase com medo. Volto. A porta do lado do terreiro é aberta. estando já em meio. Que voz de falsete. Acompanho-o. pelo menos?” — . sem curiosidade. em cujo barbante está amarrada uma figa da guiné. O caipira desanda a coçar-se. com um facão pendente da cinta.. Entro. considero que talvez ele se ofenda e então tudo se torne pior. A claridade penetra mostrando as traves do teto e o cimento do chão. pela senhora Aimo. Outro responde.. decidido a subir a escada.. diz que preciso ver tudo “dereito”. e mostro muita cordialidade. explico que como estou atrapalhando. E nisto ele me diz que fique esperando um pouco pois vai dar milho às galinhas. de arca. pergunto pelo senhor Toivola. o olhar seco posto em mim. aquele homem dá um pulo elástico. que isso de laranja durante a guerra “teve que acabar. pois decerto ia trabalhar. a amaldiçoar os carrapatos. E. segue muito lerdo. Então ele coça a barbicha. Um cheiro de couro e cereais define o ar confinado. num sabe?!” — Mas. Oito e três quartos. Pergunto-lhe se vai para a fazenda. não agradece. fica mexendo com o saco de aniagem. Remexo dinheiro no bolso. começando pelo porão. O dia se torna duma luz dúbia.. e me declara em tom merencório que os finlandeses foram embora para a terra deles.. disposto a subir os degraus para o sobrado. de lassidão. faz tenção de prosseguir. digo que sou pretendente. Aceita. Sou eu mesmo. Tenho tempo de perceber a causa: uma ratazana passa e some rente . duma agilidade felina. tiro dinheiro do bolso. e solta uma risada explicativa. Nisto. some num atalho. Suas respostas não me elucidam nada.. coça as perebas dos tornozelos. de inércia. Mas o Jeca me chama. que me desculpe se lhe ofereço aquela notinha para comprar fumo de rolo em Itatiaia. com sílabas tão fanhosas! Que fisionomia tão desvalida e ao mesmo tempo resignada. conversando.um cigarro. dou com o tabaréu que volta cortando fumo. Procuro espevitá-lo. Decido descer o atalho. chego a ter ganas de dizer que pretendo comprar a fazenda. numa irresolução enervante. vim ver porque preciso saber do estado em que se acha o edifício. e tira do bolso da calça onde o enfiou uma chave enorme. que li um anúncio. mas me arrependo. “não há um administrador? Um encarregado. a palha de milho nos beiços. Não me aventuro sequer a perguntar se ainda alugam cômodos. digo-lhe que estive hospedado. Ele guarda lerdamente o dinheiro. faço menção de tirar uma nota. legítima gratidão por encontrá-lo na estrada segurando uma aniagem. . sem os bancos. as janelas do banheiro. A vegetação se contorce como cabeleiras e raízes. tonitruante. O trovão cavernoso se despenha por sucessivos degraus. Chego à sala de jantar. lépido como uma onça. E o aguaceiro compacto. As portas batem como catapultas. Chego depressa ao peitoril. Na sala. “Vivas in Deo. aquela mesa que foi o nosso retângulo de mútua contemplação. se prolonga como escala cromática e sacode tudo. Fujo dos marimbondos. cerrando antes a porta do quarto de Renata. Colho ainda o livor tétrico de lá de fora e logo me vejo na obscuridade. como nervos. vendo tudo através de arestas ortorrômbicas. Nem eu estou ali. Novas descargas se enviesam pela distância e a serra as recebe em seu flanco tão rijo que as descargas se enfurecem e centuplicam suas sílabas mitológicas. fluídico. como teclas de instrumento de percussão acompanhando o ressoo de bigorna da serra. guardiões briosos da anterioridade temporal. Compreendo deveras o verso: “Uma coisa central que é coisa nenhuma”. A fazenda Camapuã vibra. Sim. Ouço-o abrir as persianas e as vidraças da sala de jantar.. encravada como necrotério ao cabo de enfermarias. Uma espécie de dilúculo interno. as portas dos quartos. da cozinha e da despensa. O tabaréu segura o cigarro de palha e fica inerte. Novamente as portas batem. Entro no primeiro quarto. Subo aquela escada que tantas vezes subíramos Renata e eu parando demoradamente em cada degrau. E entro no meu antigo quarto. parece agora a mesa da morgue dum posto de Legião Estrangeira. um cheiro telúrico invade tudo. . Nuvens de pó enxameiam o terreiro. Vazio. E eis que um ribombo agudo. alhures. absortos em nossas conversas. Desço a escada. como se eu tivesse dado um mergulho na cachoeira do Maromba. como se as horas daqueles vinte dias e daquelas vinte noites continuassem ali num silêncio comunicativo de sibilas invisíveis. Mas tenho que fugir por causa das abelhas.” “Rapta ad Angelis.” Recuo depressa. Passa por mim o Jeca Tatu que vai fechar as janelas e as portas que batem tomadas de fúria no porão. clamassem: “Filia in Domino”. zumbindo. e o céu está cheio de laivos de gangrena. Meu chapéu é levado de roldão pelo terreiro afora. só está a mesa. como quem sela uma lápide. guardiãs daquela sacralidade cúbica e cujos favos. frouxo. que me encharca imediatamente. Enquanto isso o meu guia sobe. Um cheiro adstringente. e nisto ouço uma espécie de vaia feita de gargarejos.à parede. Corro a apanhá-lo. sem mínima peça dum móvel. As vidraças estremecem. o tabaréu desanda a abaixar as vidraças e a fechar tudo. A sensação angustiante é de estar na cripta duma catacumba e de ver nas paredes as maiúsculas MPT — que significam martírio. da copa. algo assim como vários motores numa sala de máquinas. enquanto. rogo que vá falar com o seu Kurvelo. como numa tela. Todo vale é uma espécie de paisagem submarina. visto a capa. Ouço os cascos do cavalo. entregá-lo ao seu Floriano. segurando-a com o peso do meu ombro bem encostado. a voz em falsete da criatura humana dizendo que seu Kurvelo mandou recomendar muito que entregasse o São Jorge no posto de gasolina de Itatiaia. vendo a estrutura linear da chuva que corta a paisagem com tubulações permeáveis desde não sei onde até à névoa difusa onde deve ficar a serra da Bocaina. diz que então tem que ir falar com o “seu” Kurvelo. em alaridos sucessivos. agarro as rédeas que ajunto numa das mãos. em Itatiaia. amaneiro com a outra o loro para enfiar o sapato no outro estribo bamboleante. Longe. Vejo por fim. de estimação. recuo sem querer cada vez que os relâmpagos avivam a paisagem e espero o troar desesperante do raio. vergasto a garupa do cavalo. no tecido opaco do céu.” Severo de rosto e de atitude. Pergunto aos brados. um homem e um cavalo. quanto é? — Seu Kurvelo disse que num é nada. Depois a serra repete fugas de quiálteras que se despencam em rajadas. como coros dispostos em perspectivas. Depois a considerá-la bem como probabilidade viável ou utopia absurda. volto. meneando a cabeça. num sabe?” — E.. atrás da porta entreaberta. Lembro-me da minha mala guardada na estação de Itatiaia. primeiro como se não a entendesse. Parece uma exclamação nasal. Coça a barbicha. torço-a. lá embaixo. deixar o cavalo no posto de gasolina. ele tem um bom cavalo. enviesadamente atravessando o terreiro com o saco de aniagem metido pela cabeça abaixo feito cogula. todo encolhido. Sim. recebo o rebenque.. curvo-me sobre a tábua do seu pescoço. como se aquilo fosse simples contato. . Nove e vinte. como um convés. luzidio de chuva. Literalmente molhado. como sacramentado por aqueles trovões e relâmpagos. como liquens. “Pro senhô entregá dereitinho o animal. como se não houvesse rédea nem cabresto. jogo-me sobre o cavalo. decido-me mesmo a acompanhá-lo. enfio um pé no estribo. retiro a capa encharcada. abro-a por sobre o corrimão. visceral. A mão esquelética segura como por encanto o focinho do animal. O aguaceiro canta. se não será possível me arranjar um cavalo. O animal. “ali na estrada que vai para Caxambu. Nove e meia. Ele repete a minha pergunta duas vezes. Nove e quarenta e cinco. se desenham eletricamente. Aliso os cabelos. neste caso tenho que lhe pagar antes. Insisto. Mas o Jeca vai pela chuva. sacudo o chapéu. vem esbelto. ao ser humano que ali está resignado e reduzido a mera testemunha inócua. gutural. nervuras luminosas. Fico ali no porão. se consentir. me coso à porta que sacode como uma enxárcia. e depois. mas. vou para Itatiaia. Jorge. vou levado pela velocidade. na Espanha ou na Rússia. seja qual for o código. Brioso e lépido. que neste mundo não havia nenhuma criatura capaz de captar o seu S. que você tenha ficado como esses infantes que. seja qual for o litoral simbólico ou verdadeiro onde tenhamos queimado a nave para o impossível retorno. não veem nunca os ninhos nos pomares nem ouvem mais o sussurrar das fontes?!” . E. e que. como a açular a minha pressa. A estrada é um talvegue sem fim para onde escorre a água da mata. Julga que outra criatura do oásis. ao ver num degrau do altar a candeia apagada não tem o direito de reacendê-la para procurar o cântaro e ir buscar água no córrego subterrâneo a fim de vir reanimar quem se acha prostrado na duna. vergasto-o. Com as mãos juntas segurando as rédeas. então. Dum lado. Senhor. Severo de rosto e de atitude. Onde? Onde. pois o instinto resolve lutar. ao abeirar-se da cisterna e ao descobrir as sandálias da anterior.S. pedirei a mala. embora nos julguemos resignados. enquanto me volto um pouco para rever pela última vez o casarão de Camapuã. floresta e barrancos. não deva calçá-las para ter o direito de atingir e percorrer a catacumba. Para São Paulo. ele desce a estrada coleante. Diante de mim. ou para o Rio? Qualquer um. como liquens se desenhando em pertuitos. das minhas mãos juntas. indiferente ao perigo quanto à alma. “Você ainda se está debatendo em problemas de consciência porque é leal e magnânimo. nervuras luminosas.? Em todas as perplexidades solitárias. a todo instante. mudarei a roupa em qualquer hotelejo. Vou em velocidade. no tecido grosso do céu. névoa e obscuridade. emitimos constante apelo. o vento que perpassa pela crina do cavalo joga nos meus ouvidos a voz de tio Rangel transformado em interpolador de textos alheios: “Cuidava você. aos arremessos e galões. E há sempre escutas capazes de os decifrar. perplexos e atônitos. enquanto vejo recuar em rotação um mundo de troncos em cujo recesso ressoam alaridos e bátegas. entregarei o São Jorge. despenhadeiros e troncos. para mim. Jorge. mas cauteloso quanto ao corpo. Lá. Atiço o cavalo. Do outro lado. num galope contínuo e crescente. haverá bonança? Sim.O. “Será possível. ficarei na plataforma esperando o trem. enveredarei para a estação. Estrépito e mistério. os pormenores da estrada empapada de dilúvio e. com os joelhos enrijados por causa do declive. perpasso através do aguaceiro procurando chegar depressa. o animal percorre a alameda. quais pássaros tangidos pela fuligem das revoluções. O que passar primeiro. diante da cabeça do animal. São Paulo.8. São Paulo. 1 Alfredo Bosi. p. 2003. .. 3ª ed. Editora Planeta. Editora Cultrix. 465. “Noturno da Memória ou a Esperada Volta de um Mestre”. 1975. História Concisa da Literatura Brasileira. in A Ladeira da Memória. 2 Francisco Foot Hardman. p. o amor e o tempo PRIMEIRO CADERNO I II III IV SEGUNDO CADERNO I II III IV TERCEIRO CADERNO I II III IV QUARTO CADERNO I II III IV QUINTO CADERNO I II III IV . Table of Contents A Ladeira. a memória.