A JURISPRUDÊNCIA DO CARF E A RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

June 9, 2018 | Author: Victor Medeiros | Category: Documents


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A JURISPRUDÊNCIA DO CARF E A RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE Victor Medeiros de Barros Planejamento Tributário Professor Alberto Medeiros Resumo Este artigo tem como fundamento pesquisas, textos, livros e artigos sobre planejamento tributário, e utiliza precipuamente a jurisprudência administrativa do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF como fonte de conteúdo para análise. O objetivo do presente trabalho é demonstrar a hodierna relativização do princípio da legalidade nas decisões do CARF, relativização essa baseada em grande parte das vezes em princípios provenientes de uma interpretação extensiva e infundada da Constituição Federal. Um fato que corrobora essa afirmação e serve como exemplo é o fato do citado tribunal exigir a existência de um “propósito negocial” nos planejamentos tributários realizados pelas empresas no Brasil, sendo esse princípio, na atual jurisprudência, um parâmetro validador ou não dos planejamentos tributários. Dessarte é inegável a reformulação estabelecida no CARF o qual ao longo do tempo passou de uma perspectiva formalista à materialista, conseguintemente houve uma mudança jurisprudencial de grande impacto econômico e jurídico sobre os contribuintes pelo fato do princípio da legalidade ser continuamente desestabilizado, criando um ambiente de insegurança jurídica.

Palavras-chave:​ Planejamento Tributário, Princípio da Legalidade, Carf.

1. Introdução A relação fisco-contribuinte é por, sua natureza, marcada desde sempre por um confronto de idéias e interesses. De um lado, o contribuinte tende a ver o tributo como uma interferência estatal em seu patrimônio; de outro, o tributo representa um pilar fundamental para o funcionamento e funções do Estado. O tributo está, assim, no meio termo entre a liberdade do contribuinte em organizar seus negócios e a necessidade do Estado em arrecadar. É neste confronto, portanto, que surge o planejamento tributário.

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Assim como as pessoas físicas as empresas também passaram a fazer uso da figura do planejamento tributário com o objetivo de reduzir os tributos devidos no exercício da atividade empresarial para a realização de suas atividades de forma menos onerosa, buscando facilitar seu desenvolvimento operacional e sua saúde fiscal. O planejamento tributário consiste, basicamente no exercício da liberdade econômica individual. Com o desenvolvimento destes chamados planejamentos, o Estado, por meio do Fisco, e principalmente em âmbito Federal, através do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF1, passou a analisar os aspectos formais e substanciais dessas organizações, propagando uma série conclusões, teorias e opiniões acerca do tema. Anteriormente interpretado pelo Conselho de Contribuintes Federal como sendo lícito sob um aspecto formal, o tema passou a ser considerado uma afronta ao Sistema Financeiro Nacional em decorrência da realização de planejamentos tributários abusivos por algumas empresas, o que propagou caráter ilícito às referidas práticas. Verifica-se que após determinado tempo o CARF passou a fazer uso de uma interpretação essencialmente substancial, inclusive com as normas e princípios de Direito Privado, passando o assunto a ser alvo de discussões de boa parte da doutrina brasileira em relação às motivações e aos reflexos destes institutos nas relações tributárias e sociais. Ao longo da realização do planejamento tributário algumas empresas passaram a executá-lo de forma ilícita, o que aguçou a atuação intensa do Fisco, gerando diversas desconsiderações desses negócios jurídicos, levando em conta, em alguns casos, a norma geral antielisão disposta no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional - CTN. O presente trabalho tem como objetivo precípuo analisar esse contexto que vem afetando o direito do contribuinte ao planejamento tributário, em vista do princípio da primazia da realidade sobre a forma, decorrente de um momento pós-positivista da doutrina que passou a levar em consideração os valores intrínsecos das relações sobre a formalidade que elas apresentam, em outras palavras, a atual jurisprudência do carf vem transpondo os

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O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) é um órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura

do Ministério da Fazenda, que tem por finalidade julgar recursos de ofício (da Fazenda Nacional) e voluntário (dos Contribuintes) contra decisão de primeira instância administrativa, bem como os recursos de natureza especial que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.

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limites impostos pelo princípio da legalidade e conseguintemente causando insegurança jurídica no país.

2. Teorias Sobre Elisão Fiscal Antes de se dirigir à problemática central do presente trabalho se é imprescindível compreender os aspectos propugnados pelas teorias concernentes ao planejamento tributário (elisão fiscal) e suas origens. O Brasil, como em todos os países de tradição civil law, adota um sistema jurídico que eleva a lei como fonte primária normativa e objeto garantidor do Estado de Direito. A hermenêutica jurídica adere nosso ordenamento, como uma teoria científica que tem como objetivo basilar o estudo das interpretações das normas jurídicas, sua principal função é de tentar suprir as lacunas e imprecisões da lei, em outras palavras, resolver possíveis conflitos normativos que venham a ocorrer no ordenamento. Hodiernamente, a jurisprudência adotada no Carf vem entrando em conflito com decisões passadas, porquanto o conselho em questão vem adotando uma postura hermenêutica axiológica (valorativa) acerca dos planejamentos tributários. Essa realidade dá a jurisprudência um papel secundário no sistema jurídico e aproxima os ideais de Direito e Justiça, altamente subjetivos, a lei. Com a promulgação da Constituição democrática de 1988, e o renascimento do direito constitucional brasileiro, cujo marco filosófico é o pós-positivismo, o constituinte atribuiu normatividade aos princípios constitucionais. Mas não sistematizou as relações dos princípios entre si, e destes com regras igualmente positivadas na Constituição, fazendo emergir certas tensões principiológicas e também entre princípios e regras constitucionais. Superado o modelo positivista, que equiparava o Direito à lei, ganharam grande importância as discussões relacionadas à neutralidade do aplicador da norma, e os voluntarismos e personalismos praticados sob ideais subjetivos de justiça. Nesse novo contexto, a jurisprudência assume papel protagonista, e aproxima o modelo brasileiro das jurisdições do common law. Todavia, a vinculação apenas extraordinária dos julgadores aos precedentes, que deita raízes no regime de livre convencimento, induz falta de uniformidade e de coerência dos julgados, acerca de questões jurídicas similares, comprometendo a estabilidade, gerando incerteza e insegurança jurídica, e por via de consequência, relevantes empecilhos ao planejamento empresarial e aos investimentos que dele dependem, o que tende a gerar prejuízos ao ambiente de negócios do País. Essa perspectiva tem o objetivo de demonstrar que 3

o Direito, e mais especificamente, o Direito Tributário enquanto sistema harmônico de normas, requer limites claros, e que esses limites, em nosso sistema constitucional, significam precisamente a imposição de métodos que assegurem à sociedade pronunciamentos uniformes e coerentes por parte do aplicador da norma, mediante a observância dos precedentes e dos limites firmados pelo princípio da legalidade para então conferir ao ordenamento jurídico harmonia, segurança jurídica e previsibilidade. Essas tensões principiológicas concomitantes com as diferentes possibilidades de interpretação ensejam um conflito entre doutrinadores, no Direito Tributário tal conflito se evidencia ainda mais devido a complexidade da área. O atual confronto ideológico entre concepções doutrinárias ditas liberais (tradicionais), que enxergam no princípio da legalidade uma garantia constitucional dos particulares, que proíbe a tributação para além das fronteiras da tipicidade, daquelas, ditas sociais (modernas), que relativizam a tipicidade, permitindo que a lei alcance não só o que prevê, mas “(...) também aquilo que resulta da sua conjugação positiva com o princípio da capacidade contributiva”.

2.1 Princípios Constitucionais Como mencionado, o conflito decorrente da pluralidade de interpretações a cerca das normas também é observado no Direito Tributário. Nessa esfera do direito brasileiro, o maior ponto de dissensão hermenêutica é relativa aos princípios norteadores da área. Nota-se que o essa tensão entre doutrinas ganha maiores proporções no Brasil, pelo fato do país possuir um dos ordenamentos tributários mais rígidos e complexos do mundo, desse modo, devido a maior complexidade do objeto de estudo maiores são os pontos de debate e discordância entre as duas correntes doutrinárias. Abaixo será elucidado alguns dos principais pontos de divergência adstritos a interpretação dos princípios entre as duas correntes de pensamento.

2.1.1 Princípio da legalidade Vivemos sob a égide de um Estado Constitucional de Direito, logo todas as esferas de poderes estão submetidas aos mandamentos constitucionais. No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é fonte de validade das demais normas jurídicas. Ademais, nota-se uma peculiaridade do Direito Tributário brasileiro, seus “pilares fundamentais” estão instituídos na CF/1988, sendo a segurança jurídica e o princípio da legalidade os principais sustentáculos desse. 4

O princípio da legalidade é decorrente do brocardo ​nullum crimen​, nulla ​poena sine lege (não há crime, nem pena, sem lei anterior que os defina), e é indispensável para o estudo do Direito, porquanto é um norteador para leis e dispositivos. Esse princípio é identificado em várias trechos da Carta Maior, bem como em códigos penais e outros documentos. Por meio da lei é possível conceber deveres, direitos e impedimentos, estando a sociedade regulada pelas leis, aqueles que estão dentro de uma organização social fundada sobre esse princípio devem respeitar e obedecer a lei. Outrossim, o princípio da legalidade representa uma garantia para todos os cidadãos, devido ao fato destes estarem protegidos de atos arbitrários cometidos pelo Estado e por outros indivíduos. A partir deste princípio se desenvolve uma limitação do poder estatal em interferir nas liberdades e garantias individuais do cidadão. Portanto, se torna permitido realizar qualquer tipo de atividade, desde que esta não esteja proibida por lei. Tal princípio é citado no artigo 5º, inciso II, da CF/88 e declara que nenhum indivíduo será obrigada a fazer ou deixar de fazer algo, exceto se esta situação estiver prevista na lei, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão e virtude de lei”. Tal inciso demonstra nitidamente o fundamento de um Estado de Direito. Em suma, o povo somente é obrigado a fazer aquilo que está em lei, como a lei é editada pelos seus próprios representantes (parlamentares), é o próprio povo, em tese, que decide ao que estará obrigado a fazer ou deixar de fazer. De forma análoga o brocardo ​“No taxation without representation”2 trata também do princípio da legalidade, mas volta-se especificamente para o campo tributário, porquanto propugna que não haverá tributação sem representação popular. A partir disso se é corroborado o fato de que os tributos só podem ser instituídos por lei. Para mais, evidencia-se que tal princípio é aplicado com mais ímpeto no meio da Administração Pública, o artigo n° 37 da CF, declara “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência(...)“. Como observado, esse disposto normativo busca fortalecer a aplicação do

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O slogan “​No taxation without representation​” foi utilizado nas décadas de 1750 e 1760 pelos colonos

residentes nas Treze Colônias britânicas na América e resumia a sua maior insatisfação: a realização de tributação por leis que não eram instituídas por um parlamento que representasse o povo americano. Tal insatisfação foi um dos principais motivos causadores da revolução que acabou culminando em uma guerra aberta entre os colonos americanos e a Inglaterra no território que hoje é os Estados Unidos.

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princípio da legalidade na Administração Pública, haja vista só é autorizado fazer aquilo que está previsto em lei, pois caso contrário o ato não terá validade. A corrente positivista (tradicional), representada por César Guimarães, Alfredo Augusto Becker, Alberto Xavier, Luciano Amaro, Antônio Roberto Sampaio Dória, entre outros tributaristas brasileiros, propugna contundentemente a reserva absoluta da lei formal na definição em abstrato de todos os elementos necessários à tributação, em outras palavras defende que a tipicidade deve imperar, cabe ao juiz subsumir o fato à norma. Isso possibilita, de uma forma segura e confiável, a identificação de quem está sujeito ao pagamento do tributo, qual o seu montante, e principalmente, se o sujeito praticou, ​in concreto​, o fato previsto, ​in abstrato​, na norma. Desse modo, a lei deve conter, em si mesma, todos os elementos de decisão no caso concreto, de forma que a decisão concreta seja imediatamente subsumida à lei, sem valoração pessoal do órgão de aplicação da lei (XAVIER, 1978), tal pensamento é evidenciado também no artigo n° 150, inciso I, da CF/88. Segundo ainda a corrente tradicional, toda conduta da Administração Tributária deve junto aos critérios objetivos na identificação do sujeito passivo, do valor do montante apurado e das penalidades cabíveis ser tipificados de forma fechada na lei. Pelo fato dela ser a única que pode descrever as hipóteses de incidência da norma tributária. Tal “fechamento” da norma acaba com brechas que possibilitem o aplicador da lei, em específico a Administração Pública, se utilizar de uma interpretação extensiva, para o uso da analogia, recurso esse vedado por lei em casos adstritos a tributação. Essa tipicidade é endereçada ao legislador e ao aplicador da lei, devendo o parlamentar, ao formular a lei, definir de modo taxativo (​numerus clausus​) e completo, as situações (tipos) tributáveis, cuja ocorrência será necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, bem como os critérios de quantificação do tributo. Em resumo, esse é o conceito tradicional, juspositivista, do princípio da legalidade tributária. Arraigado ao valor segurança jurídica, do qual deriva diretamente, é destinado à garantia dos direitos fundamentais do cidadão e dos contribuintes. Deve, portanto, permear toda a atividade da Administração, no que tange à tributação, não permitindo que surjam situações de incerteza e dúvidas em seu agir, argumentam os defensores desta corrente. Por outro lado, sob o pálio de uma concepção que relativiza a reserva absoluta de lei, à luz do pós-positivismo (ligado à hegemonia axiológico-normativa dos princípios), informa uma segunda corrente que, diante da elasticidade dos tipos tributários (ex., empresa, empresário), a legalidade não é um princípio absoluto e fechado. Neste passo, altera-se o 6

alcance e significado do princípio da legalidade tributária, tornando-o aberto à interpretação e à complementação judicial, tendo em vista que o direito tributário se utiliza de cláusulas gerais e de princípios indeterminados, impedindo, desta sorte, o fechamento total de seus conceitos.(28) O que diverge da linha positivista, presa ao conceito cerrado da tipicidade tributária, pela qual desautoriza essa dilatação na interpretação da lei tributária, ex.gr., a interpretação econômica.

2.1.2 Princípio da Capacidade Contributiva Formulada inicialmente por Adam Smith, no contexto de construção do liberalismo moderno, a tributação deveria incidir na demonstração da capacidade econômica do cidadãoo qual custearia as necessidades da sociedade, com objetivo de se garantir o desenvolvimento econômico do Estado. Intrinsecamente adstrita ao valor de Justiça, a tributação expressa a idéia de que cada indivíduo deve contribuir para o custeio do Estado de acordo com sua realidade econômica. Em suma, o ônus tributário deve ser igualmente distribuído, ajustado à capacidade econômica dos cidadãos, na medida em que se diferenciam. Não se trata de tributar os cidadãos de forma igual, todavia de forma proporcional. Essa distribuição igualitária do ônus permite a concretização da justiça distributiva a qual é balizada pelo ideal de igualdade. Nota-se ainda que o princípio da igualdade permeia tanto a capacidade contributiva quanto a legalidade tributária e em conjunto possibilitam a estabilização da justiça fiscal com a segurança jurídica. A capacidade contributiva se divide em sub-princípios que operacionalizam a tributação, são eles: a. Progressividade: O sub-princípio da progressividade consiste no aumento das alíquotas, conforme o aumento da base de cálculo do tributo. Desse modo, quanto maior for a capacidade contributiva, maior será a alíquota a incidir no caso concreto.; b. Proporcionalidade: se trata da aplicação das mesmas alíquotas a bases de cálculo distintas c. Pessoalidade: prevista no artigo 145 da CF 88 a pessoalidade é a relação que o fato gerador do tributo tem com as características pessoais do contribuinte. Por meio da personalização do tributo, é mais fácil alcançar a capacidade contributiva e, por conseguinte, atingir a justiça fiscal. d. Seletividade: Por meio da seletividade, a tributação será menos gravosa de acordo com o grau de essencialidade do produto. Em outras palavras, os bens necessários a uma 7

sobrevivência digna serão tributados com base em alíquotas menores, enquanto que sobre aqueles bens supérfluos incidirão alíquotas superiores. A seletividade está presente em dois tributos no direito brasileiro, o ICMS e o IPI. Quanto ao ICMS, de acordo com o artigo 155, §2º, III, da CF/88, poderá aplicar-se a seletividade, já no tocante ao IPI, a seletividade é obrigatória, a teor do artigo 153,§3, I, da CF/88. e. Neutralidade: é ligado ao fato de que a incidência de tributos para arrecadação de recursos ao erário não pode gerar distorções na formação dos preços dos mercados.

Ademais, constata-se que conflito doutrinário entre as duas correntes supracitadas emerge da diferenciação entre interpretações acerca do princípio da Capacidade Contributiva. Para o pensamento tradicional ou positivista, tal princípio tem uma eficácia negativa, ou seja, ele é definido constitucionalmente para proteger o contribuinte do fisco, o fisco só terá o direito de tributar o contribuinte quando esse demonstrar capacidade contributiva. Antiteticamente, para o pensamento dito moderno, tal princípio tem uma eficácia positiva, ele é definido para garantir o direito estatal de tributar. Segundo a acepção defendida por Alberto Xavier, grande expoente da corrente tradicional, o princípio da capacidade contributiva não tem uma função preceptiva de ordenar o legislador a tributar toda e qualquer manifestação de capacidade contributiva. Pelo contrário, ele tem a função de proteger o contribuinte, porquanto como determinado no §1º do art. 145 da CF/88, tal princípio se trata de um comando constitucional ao legislador, para que, “se possível”, dê tratamento igualitário a idênticas manifestações de capacidade econômica, desse modo, o ordenamento jurídico acata necessariamente a realização de planejamentos tributários, porquanto acata a possibilidade de capacidades contributivas contíguas serem tributadas de formas distintas3. Por fim, identifica-se que não somente o princípio da capacidade contributiva tem função negativa ou proibitiva, todavia o princípio da igualdade, porquanto ambos limitam o Poder Legislativo e Judiciário realizarem uma tributação alheia à capacidade contributiva, discriminatória, arbitrária ou desrazoável entre contribuintes que expressem manifestações de capacidade contributiva análogas. 3

Art. 145, §1° da CF/88. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a

capacidade econômica do contribuinte, facultado a administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

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2.1.3 Princípio da Solidariedade O princípio da solidariedade social teve seu surgimento junto ao Estado Social e Democrático de Direito o qual deu força a tese que observa a necessidade de interpretar a relação jurídica tributária de forma contextualizada com o valor constitucional da solidariedade social. Contudo, é necessário salientar o fato de que tal princípio não é expressado em nenhuma parte do capítulo da Constituição Federal de 1988, dedicado ao Sistema Tributário Nacional – Capítulo I, Título VI. Ele apenas é disposto no artigo 3º, I, da Lei Maior, pelo qual “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; ...”. A hermenêutica da corrente moderna confere a tal princípio uma aplicação obrigatória em relação a todos os demais dispositivos constitucionais, ideia essa um tanto quanto exagerada, pelo fato de se estar estendendo a área de atuação, definida por lei, do princípio. Os autores da corrente moderna identificam o Princípio da Capacidade Contributiva, previsto no artigo 145, § 1º, da Constituição, como o vínculo essencial entre a tributação e a solidariedade social. Isto é, o contribuinte cumpre com seu dever de solidariedade, quando efetivamente contribui para a manutenção dos gastos estatais por meio do pagamento dos tributos que lhe são exigíveis de acordo com sua capacidade contributiva. A aplicação de tal princípio no ambiente tributário promove alguns problemas, entre eles a desconsideração da liberdade do indivíduo pelo fisco, porquanto esse passa a autuar planejamentos tributários lícitos com a justificativa de que a economia de tributos em determinados casos fere o supracitado princípio. Isso é um problema pelo fato da própria Constituição Federal preconizar no artigo n° 170 que a ordem econômica é fundada na livre iniciativa e na livre concorrência. A interpretação sistemática que se faz do texto constitucional autoriza-nos inferir que a economia brasileira adota o modelo de produção capitalista na obtenção de bens e produtos. Conseguintemente, se é assegurado ao cidadão a liberdade de escolha e constituição de sua atividade, observadas as limitações legais e constitucionais, que impõem iguais oportunidades de acesso ao trabalho e uma leal competição dentro do mercado. Evidencia-se, assim, a proteção constitucional sobre as liberdades individuais e a livre iniciativa, realizar tributação com base no princípio da solidariedade social se trata de sobrepor uma ideia subjetiva de “bem social” sobre os direitos individuais. A aplicação desse 9

princípio no Direito Tributário causa insegurança jurídica no ordenamento, pois funda decisões altamente subjetivas. Tendo em vista o conteúdo programático do artigo 3º, inciso I, da CF 884. Realiza-se dois questionamentos: em prol da justiça fiscal deve-se tributar todas as situações econômicas demonstradas pelo contribuinte, mesmo essas sendo lícitas, todavia não previstas explicitamente nas hipóteses de incidência da norma? Configura-se correto, ainda, afirmar que a justiça fiscal autoriza o fisco a intervir na liberdade de gerenciamento da atividade empresarial?

2.1.4 Abuso de Direito Antes de se determinar o que é o Abuso de Direito deve-se diferenciar os conceitos de: elisão, evasão e elusão fiscal. O conceito de elisão fiscal é relativo a realização de negócios ou atos jurídicos lícitos que tenham como objetivo a isenção fiscal ou a não tributação ou a tributação menos onerosa sobre o fato gerador. Observa-se que a elisão é executada, na maioria dos casos, em momento anterior ao fato gerador. Em suma, consiste no planejamento tributário e encontra resguardo no ordenamento jurídico com a justificativa de que nenhum indivíduo pode ser obrigado a praticar negócio de maneira mais onerosa. Antiteticamente, a evasão fiscal consiste em uma conduta ilícita do contribuinte, geralmente após a ocorrência do fato gerador, e tem os mesmo objetivos da elisão fiscal. Contudo, nesse caso, há a realização de atos ilícitos que tem como finalidade evitar o conhecimento do nascimento da obrigação tributária pela autoridade fiscal, normalmente o contribuinte se utiliza de meios fraudulentos para assegurar a operação. Por fim, o conceito de elusão fiscal. Esse, se trata, em suma, da utilização de determinados artifícios no planejamento tributário. Na elusão fiscal se é realizado atos ou negócios jurídicos que, sob formalmente analisados, são determinados como lícitos, todavia são juridicamente anômalos para atingir a finalidade almejada. Envolvem na maioria dos casos vícios jurídicos, como abuso de direito, abuso das formas a utilização das lacunas do direito em prol do contribuinte. Nota-se que tal conceito só é fundamentado pela perspectiva da corrente moderna, porquanto pela corrente tradicional (positivista ou formalista) o fato de 4

Art. 3°,inciso I, da CF/88. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- Construir

uma sociedade livre, justa e solidária;

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um negócio jurídico ser anómalo ou não, não muda nada, pois o mesmo continua dentro da licitude. O abuso de direito se relaciona diretamente com o conceito de elusão fiscal desenvolvido pelos doutrina moderna, pelo fato da elusão fiscal tratar da hipótese do contribuinte realizar determinado negócio jurídico com a finalidade de “camuflar”5 a ocorrência do fato gerador, tratando-se de um ardil caracterizado primordialmente pelo que a doutrina denomina de abuso das formas, pois o sujeito passivo adota nestes casos uma forma jurídica atípica, a rigor lícita, com escopo de escapar artificiosamente da tributação. A aplicação da teoria do abuso de direito passou a ser utilizada após a reforma do Código Civil de 20026, a positivação dessa teoria mudou drasticamente a jurisprudência do CARF, conforme observado na ementa do acórdão n.º 1402-002.325. "Depois do Código Civil de 2002, como o abuso de direito passou a ser expressamente qualificado como ato ilícito, a questão tributária é muito mais relevante, pois o abuso faz desaparecer um dos requisitos básicos do planejamento, qual seja, o de se apoiar em atos lícitos. Vale dizer, a configuração de um ato ilícito (por abusivo) implica não estarmos mais diante de um caso de elisão, mas sim de evasão."

Observa-se, contudo, que a utilização de tal teoria se apresenta altamente problemática, porquanto não há a determinação de parâmetros objetivos que caracterizam o abuso de direito em um negócio jurídico. Essa subjetividade enseja sobretudo um ambiente de insegurança jurídica, pois o fisco passa a atuar com maior discricionariedade em decorrência da falta de critérios objetivos que norteiam seu julgamento.

2.1.5 Propósito Negocial A teoria do propósito negocial também conhecida como ​business purpose​, é proveniente do Direito norte-americano e foi utilizada para limitar as constantes

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Essa “camuflagem” realizada pelo contribuinte, na elusão fiscal, não é caracterizada como simulação ou

dissimulação, pelo fato de se tratar apenas da utilização de “caminhos” normalmente não utilizados, sendo portanto, lícita. 6

​Art. 187, do Código Civil de 2002. “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede

manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

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reestruturações societárias ocorridas nos Estados Unidos. A doutrina do propósito negocial sustenta que não basta a consonância entre os atos e negócios jurídicos com a norma jurídica positivada, a economia tributária só será válida quando existir essencialmente um propósito do ato ou negócio jurídico. No Brasil, o CARF passou a adotar tal teoria com o intuito de desconsiderar planejamentos tributários que até então adotavam atos e negócios jurídicos que tinham como único e exclusivo objetivo evitar a incidência tributária sobre o fato gerador. A justificativa basilar da teoria encontra-se na imprescindibilidade de concordância entre a formalidade e a realidade dos atos e negócios jurídicos. Propugnando, ainda que apenas o propósito de economizar tributos não valida nem justifica um planejamento tributário. Desse modo, para um planejamento tributário ser considerado legítimo na ótica da teoria do propósito negocial ele deve se fundamentar em pressupostos fático-negociais provenientes das atividades econômicas que a empresa ou indivíduo desempenha e deve também resultar na otimização ou aperfeiçoamento operacional da empresa ou da atividade econômica do indivíduo. Nota-se que no Direito brasileiro o propósito negocial não é tipificado. Contudo, já houve tentativas de positivá-lo em nossa legislação. A Medida Provisória n° 66, de 29 de agosto de 2002, declarava que a ausência de propósito negocial nos atos ou negócios jurídicos seria utilizada como critério para a desconsideração desses. Além disso, a MP dispunha que os atos ou negócios jurídicos que tinham como objetivo precípuo a redução da incidência tributária ou o evitamento do tributo seriam passíveis de desconsideração. Não obstante esse trecho da Medida Provisória não foi transformado em Lei o propósito negocial é exigido hodiernamente como critério de validade para os planejamentos tributários (HABER NETO, 2014). Marco Aurélio Greco, doutrinador expoente da corrente moderna, afirma que os atos com propósito exclusivamente fiscal vão em desencontro com o perfil objetivo do negócio e, portanto, assumem caráter abusivo, podendo ser desconsiderados pelos Fisco. Tais atos devem ser reclassificados de forma a se enquadrar no plano normativo tributário, pois ainda que não houvesse o planejamento, haveria a incidência tributária de igual forma. Ainda segundo a ótica do jurista

planejamento deve, necessariamente, ter um motivo além da

economia tributária, deve-se ter um propósito negocial, neste caso, o Fisco não terá como se opor ao planejamento tributário realizado pelo contribuinte (GRECO, 1988). ​Desse modo,

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segundo a perspectiva materialista em situações que o propósito for exclusivamente fiscal, cabe ao Fisco operar a figura do abuso de direito para desconsiderar o planejamento tributário. O fato do propósito negocial ser utilizado atualmente nas decisões do CARF, traz complicações ao ordenamento jurídico. Analisar a teoria sob a luz do princípio da segurança jurídica é essencial para se determinar se esse traz benefícios ou não para o sistema normativo. Em primeiro lugar, o fato de inexistir no ordenamento jurídico brasileiro uma norma que efetivamente regule a eventual desconsideração dos atos ou negócios jurídicos com base na ausência de um propósito negocial, causa dúvida acerca de como o contribuinte deve organizar seus negócios financeiros. Desse modo o contribuinte se encontra em um cenário dominado por incertezas e inseguranças, porquanto o limite entre lícito e ilícito torna-se altamente subjetivo, e esse passa a correr o risco de ser autuado a qualquer momento pelo Fisco. O ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra da Silva Martins comenta acerca de tal fato: “Admitir que o agente fiscal possa desconsiderar uma operação legítima, praticada pelo contribuinte por entendê-la como a solução mais eficiente, do ponto de vista econômico e empresarial, apenas porque, para o Fisco, o melhor seria que o contribuinte tivesse praticado uma outra operação que garantisse aos cofres públicos maior arrecadação, é gerar, permanentemente, a insegurança jurídica. É fazer com que o contribuinte viva em constante estado de incerteza, podendo ser surpreendido, a qualquer tempo, durante o lapso decadencial – ou além dele – pela desconsideração de seus atos fundada em mero palpite da fiscalização, em violação manifesta à estabilidade das relações jurídicas e da ordem social e econômica, queridas pela lei suprema, a julgar pelas normas nela plasmadas”. (GANDRA, 2005)

Por fim, revela-se que inicialmente, o CARF exigia apenas a observância das exigências formais dos planejamentos tributários, não se importando com o conteúdo dos negócios ou atos jurídicos realizados. Nada obstante, a partir do ano 2000, com a introdução da teoria do propósito negocial o conselho passou a demonstrar preocupações adstritas aos aspectos materiais dos planejamentos e suas motivações econômicas.

2.1.6 Princípio da Segurança Jurídica O princípio da segurança jurídica junto ao princípio da legalidade são essenciais a estruturação do Estado Democrático de Direito. Em relação ao direito tributário, tais 13

princípios também são indispensáveis, haja vista são elementos possibilitadores do poder de tributar do Estado e, ainda, garantidores dos limites à tributação. Sem a segurança jurídica, o Direito não é capaz de exercer sua função primordial de regular a sociedade. A falta de segurança jurídica proporcionada pela aleatoriedade das decisões judiciais e da instabilidade do Poder Judiciário acarretam a inefetividade da tutela jurisdicional e o desabono do sistema jurídico como um todo, ensejando um verdadeiro colapso social, pelo fato da estabilização das relações jurídicas serem comprometidas. Em suma, o princípio da segurança jurídica aje como objeto fundamental a promoção dos valores máximos da sociedade, visto que possibilita a edição e boa aplicação das normas de maneira geral. A positivação do direito se apresenta como elemento essencial para a segurança jurídica, pelo fato de desenvolver parâmetros objetivos que ensejam a previsibilidade e a certeza dos cidadãos acerca de seus próprios atos. Dessarte, conclui-se que a certeza e a igualdade são elementos imprescindíveis para a estabilização da segurança jurídica dentro de qualquer ordenamento. Como posto por Roque Carrazza uma das funções mais relevantes do direito é “conferir certeza à incerteza das relações sociais’, retirando do campo de atuação do Estado e dos particulares qualquer resquício de arbítrio. O que se observa na realidade atual de nosso ordenamento jurídico no cenário dos planejamentos tributários é o distanciamento cada vez maior dos preceitos basilares do Estado Democrático de Direito. A atual jurisprudência do CARF como será abordado a seguir transcende diretamente os limites impostos pelo princípio da legalidade causando um cenário de insegurança jurídica.

3. A relativização do princípio da legalidade pelo CARF A doutrina moderna que se norteia pelos princípios anteriormente expostos vem influenciando fortemente os autos de infração do CARF, os quais vêm sendo direcionados para o combate de planejamentos tributários adotados pelos contribuintes com o intuito de se realizar a economia fiscal. Como já dito, segundo tal doutrina, o direito de se organizar para economizar tributos estaria limitado pela sua função social, e esse não pode entrar em conflito com o dever instituído pelo princípio da solidariedade social. Desse modo, quando um particular exercer a sua liberdade negocial com o intuito precípuo de economizar tributos, estaria abusando da forma de direito.

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3.1 Caso Transpinho Essa ideologia, propugnada por alguns doutrinadores, vêm sendo elemento basilar para a manutenção de exigências tributárias atribuídas sobre operações lícitas, que buscam a obtenção de economia de tributos. O Acórdão 9101-002.429 da 1ª Turma da CSRF evidencia perfeitamente o alinhamento do CARF com a corrente moderna. No caso em questão, foi-se considerada abusiva e simulada a operação de reorganização societária que envolveu a cisão parcial de uma empresa do ramo de exploração de madeiras (Transpinho), para a constituição do capital social de outra empresa, essa do ramo imobiliário (Saiqui). O capital social utilizado para compor a segunda empresa consistia basicamente em um conjunto de bens imóveis (terrenos e florestas). A criação de uma empresa cuja integralização de capital foi feita com imóveis os quais seriam posteriormente vendidos, e a determinação dessa venda como atividade operacional fez com que a empresa Saiqui não houvesse, no período em questão, auferido ganho de capital na operação de venda dos imóveis, dessa forma não foi tributada por ganho de capital. Por uma ótica material, a Transpinho conseguiu realizar a venda de seus bens imóveis sem ter que pagar tributos relacionados ao ganho de capital decorrente da alienação desses devido a reorganização societária7. A ordem dos fatos foi a seguinte: A. A cisão parcial da Transpinho e a posterior formação da Saiqui ocorreu em 2005; B. Em 2008, foi-se realizada a venda dos imóveis pela Saiqui, sendo essa tributada sob a sistemática do lucro presumido. Nota-se que a Saiqui esteve durante todo o tempo sujeita ao lucro presumido, porquanto seu objeto social consistia na compra, venda, administração e incorporação de bens imóveis, no florestamento e reflorestamento e

por fim no comércio de produtos

florestais, desse modo a venda dos imóveis realizada foi caracterizada como atividade operacional. Observa-se que a autuação do caso foi pautada no fato da Saiqui ter sido tributada de forma menos onerosa do que a Transpinho teria sido caso essa vendesse os imóveis, em suma , a autuação foi fundamentada na perspectiva de eficácia positiva da capacidade contributiva, pois não acata a possibilidade de fatos geradores que possuem a mesma capacidade 7

Evidencia-se o fato de que formalmente a Transpinho não realizou venda alguma. Toda operação ocorreu

dentro dos limites estabelecidos por Lei.

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contributiva serem tributados de formas distintas. O fisco concluiu que o contribuinte (Transpinho) agiu de forma fraudulenta e simulada, por definir ela como o real sujeito passivo do fato gerador: [...] a empresa Saiqui foi criada apenas para encobrir o real fato gerador da obrigação tributária e o verdadeiro vendedor dos imóveis, com o objetivo único e exclusivo de pagamento a menor

de tributos na alienação desses bens, e consequente

recebimento de valores, a título de rendimentos ou receita isentos, na forma de lucros distribuídos, conforme demonstrado no quadro anteriormente mencionado.

Os fundamentos adotados pelo voto vencedor para manter a exigência fiscal se basearam nos princípios aqui apresentados anteriormente, entre eles o propósito negocial vide a ementa do acórdão “Todas as operações realizadas possuiriam como objetivo único a economia tributária, ausente, portanto, qualquer propósito negocial que justificasse os negócios entabulados” e a capacidade contributiva, em sua exegese positiva. De acordo com essa dita concepção social do Direito Tributário, e chegando a invocar o preâmbulo da Constituição quando dispõe sobre “direitos sociais e individuais”, “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” e “harmonia social”, o relator considerou que aspectos fáticos do caso concreto revelariam uma falta de substância da Saiqui, legitimadora da tributação, a saber: a) sede no mesmo terreno da Transpinho; b) mesmo número de telefone; c) mesmo endereço eletrônico; d) mesmo responsável pelo preenchimento das DIPJs; e) inexistência de empregados em 2006 e existência de dois empregados em 2008. Além da tributação sobre a venda de imóveis pela Transpinho, fato esse que não foi realizado em momento algum, o acórdão definiu a acusação de simulação dolosa com o objetivo exclusivo de economia tributária, mantendo a multa agravada de 150%. É inescrutável o fato de que a constituição e a integralização de capital da Saiqui pelos sócios, foi completamente lícita e legítima. Contudo, o fisco determinou que tal operação foi desprovida de qualquer substância e propósito negocial, uma vez que em sua percepção o fato realmente ocorrido foi a venda de imóveis da Transpinho a terceiras pessoas. Além disso ele se utilizou do fato dos bens usados na integralização de capital não terem sido utilizados como estoque de produtos/mercadorias, uma vez que todo o valor da

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venda que restou após os tributos foi distribuído aos sócios, descapitalizando totalmente a empresa. 3.2. Outros Casos O caso da Transpinho se trata de um caso paradigmático dentro do mundo jurídico. Não se trata de uma jurisprudência pontual e não recorrente no CARF. Em diversas situações, o tribunal administrativo, inclusive, mantém multa de ofício qualificada por entender que houve fraude ou simulação em reorganizações societárias, exatamente, pela ausência de propósito negocial. Em recente julgado houve negativa de provimento de Recurso Especial interposto pelo Contribuinte, rejeitando-o em nome de uma “justiça social” e pelo fato de não deter um propósito negocial, vide acórdão n° 9101-002.429. “Não se pode admitir, à luz dos princípios constitucionais e legais - entre eles os da função social da propriedade e do contrato e da conformidade da ordem econômica aos ditames da justiça social -, que, a prática de operações de reorganização societária, seja aceita para fins tributários, pelo só fato de que há, do ponto de vista formal, lisura per se dos atos quando analisados individualmente, ainda que sem propósito negocial.”

Outrossim, em outro caso de reorganização societária, dessa vez relacionado a amortização de ágio interno, o Conselho também se utiliza de uma hermenêutica materialista para relativizar o princípio da legalidade, como observado na ementa do acórdão n° 1301-002.278. “A reorganização societária na qual inexista motivação outra que não a criação artificial de condições para obtenção de vantagens tributárias é inoponível à Fazenda Pública. Negada eficácia fiscal ao arranjo societário sem propósito negocial, restam não atendidos os requisitos para a amortização do ágio como despesa dedutível, impondo-se a glosa e a recomposição da apuração dos tributos devidos.”

Por último, observa-se um caso autuado relacionado a Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e a emissão de debêntures8 9. 8

Em suma, o que ocorreu foi, a empresa

A debênture é um título de dívida que gera um direito de crédito ao investidor. Ou seja, o mesmo terá direito a

receber uma remuneração do emissor (geralmente juros) e periodicamente ou quando do vencimento do título

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controladora indireta (Yamana) da fiscalizada (Maracá) captou recursos no exterior (por meio de empréstimos e de ações colocadas no mercado internacional) e transferiu esses recursos para o Brasil, a título de empréstimos entre coligadas, para outra empresa do mesmo grupo. Esta, por sua vez, utilizou tais recursos para aquisição das debêntures emitidas pela fiscalizada e por uma terceira empresa do mesmo grupo que também emitiu debêntures. O fisco considerou tal ato como abuso de direito, conforme lê-se abaixo: “No caso concreto, não há dúvidas de que a conduta praticada pelo contribuinte enquadra-se no conceito de elisão abusiva (ou se preferir, elusão), uma vez que as provas indicam que todos os atos foram praticados antes da ocorrência do fato gerador, devidamente

contabilizados

em

calcados

em

documentos

formalmente corretos, e, nesse cenário, quer se enquadre tal conduta como abuso de direito (o que implica a requalificação dos fatos).”

Ademais, o fisco ainda, se utilizando, novamente, de uma hermenêutica materialista e subjetiva, impôs limites ao exercício da autonomia privada com base nos princípios sociais, conforme observado abaixo: “Infere-se que a liberdade de auto organização e de exercício de atividade empresarial, ou seja, de o contribuinte conduzir sua vida, encontra limites nos demais princípios que informam nossa matriz constitucional, em especial, o da capacidade contributiva, da isonomia fiscal e da função social do contrato, valendo dizer que o negócio jurídico entabulado ou o planejamento tributário efetuado devem estar assentados em fundamentos econômicos que não se restrinjam à pretensão de fugir de tributação.”

Desse modo, conclui-se que o fato do contribuinte realizar atos praticados de forma lícita e legitimamente formalizada não garante a esse nenhuma segurança. Haja vista, em caso do fisco não vislumbrar um propósito negocial no conjunto de atos jurídicos, ou qualquer um dos outros parâmetros subjetivos hodiernamente adotados pelo Conselho, o negócio jurídico

receberá de volta o valor investido (principal). No Brasil, as debêntures constituem uma das formas mais antigas de captação de recursos por meio de títulos. (BMFBOVESPA, 2017) 9

Acórdão n° 1402-002.325

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do contribuinte pode ser desconsiderado e até mesmo considerado ilícito com base em teorias ou princípios não previsto constitucionalmente.

4. Conclusões Finais Evidenciado o alinhamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais para com a hermenêutica da doutrina materialista. Ressalta-se novamente a insegurança jurídica que daí decorre, pelo fato de como demonstrado o princípio da legalidade passar a ser relativizado em consequência da utilização de teorias como o ​business purpose ​e o abuso de direito entre princípios não estabelecidos por Lei. O hodierno contexto se apresenta altamente problemático não apenas no aspecto jurídico, todavia no campo econômico, isso devido ao fato do contribuinte passar a não ter certeza sobre o que é lícito ou não, haja vista a jurisprudência atual vem autuando negócios jurídicos que normativamente são legítimos e se enquadram na lei. O contexto tributário passa a ser uma variável negativa para a realização de atividades econômicas no país. Nota-se que as normas jurídicas buscam, em última instância, regular as atividades econômicas, no sentido de tornar os mercados mais eficientes e buscar o aprimoramento da qualidade de vida da população como um todo. O atual posicionamento do CARF acerca da realização de planejamentos tributários constitui um fator que nada colabora com a regulação dos mercados de forma eficiente. Conclui-se, ainda, a necessidade de elaboração de normas anti-elisivas dentro do ordenamento brasileiro, devido ao fato de que é na ausência dessas que posturas de julgamento subjetivos e incertas ganham espaço dentro do sistema jurídico. Se tudo for devidamente positivado, o contribuinte passa a ter noção do que pode e não pode fazer e instaura-se novamente a segurança jurídica. Por fim, sugere-se uma reformulação do CARF, é fundamental que tal órgão seja o mais neutro possível, haja vista deve realizar julgamentos pautados sobretudo na imparcialidade. Para isso, deve-se antes de tudo torná-lo independente da Receita, um modelo a ser seguido é o do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Finalmente, os participantes do Carf devem ser indicados pelo presidente, aprovados pelo Senado e devem ter um mandato claro e objetivo. É inadmissível o CARF estar sob o domínio da Receita.

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