A Irmandade Do Santo Sudário - Julia Navarro

March 24, 2018 | Author: api-3728839 | Category: Shroud Of Turin, Priest, Jesus, Science, Faith


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JULIA NAVARROA IRMANDADE DO SANTO SUDÁRIO TRADUÇÃO: Rubia Prates Goldoni 2004 Ediouro Para Fermín e Alex. .. porque às vezes os sonhos se transformam em realidade. AGRADECIMENTOS A Fernando Escribano, que me revelou os subterrâneos de Turim e está sempre "de plantão" para os amigos. Também tenho uma dívida de gratidão com Gian Maria Nicastro, que me mostrou os segredos de sua Turim; foi meus olhos na cidade, além de me fornecer, de forma generosa e rápida, toda informação que lhe pedi. Meu muito obrigada a Carmen Fernández de Blas e a David Trias que apostaram no romance. E também a Olga, a voz amável da Random House Mondadori. Existem outros mundos, mas estão neste. H.G. WELLS 1 Abgar, rei de Edessa, saúda Jesus, o bom Salvador que apareceu em Jerusalém. Chegaram a meus ouvidos notícias referentes a ti e às curas que fazes sem remédios nem ervas. E, segundo dizem, devolves a visão aos cegos e a faculdade de andar aos aleijados; limpas os leprosos e expulsas os espíritos imundos e os demônios; devolves a saúde aos que sofrem de longas enfermidades e ressuscitas os mortos. Ao ouvir tudo isto sobre ti, pensei: ou és o próprio Deus que desceu do céu e fazes estas coisas, ou és o Filho de Deus e por isso realizas tais portentos. Este é o motivo que me levou a escrever, rogando-te que, tão logo possas, venhas curar-me da doença que me aflige. Ouvi dizer, além disso, que os judeus murmuram contra ti e pretendem fazer-te mal. Sabe, então, que minha cidade é pequena mas nobre e nela há lugar para os dois. (1) (1) Dos Evangelhos Apócrifos. O rei pousou a pena, cravando os olhos em um homem jovem como ele que aguardava imóvel e respeitoso no outro extremo do aposento. - Tens certeza, Josar? - Senhor, crede em mim. . . O homem se aproximou com passo rápido e parou perto da mesa em que Abgar escrevia. - Eu creio em ti, Josar. És o amigo mais leal que tenho desde a infância. Nunca me falhaste, mas são tantos os prodígios que contas desse judeu que temo que o desejo de ajudar-me possa ter confundido os teus sentidos... - Senhor, deveis crer, porque só os que crêem no Judeu se salvam. Meu rei, eu vi Jesus encostar levemente os dedos nos olhos baços de um cego e ele voltar a enxergar; vi um pobre paralítico tocar a ponta de seu manto, e Jesus, com um olhar meiguíssimo, insistir em que andasse. E, para assombro de todos, o homem se levantou e suas pernas o levaram como as vossas vos conduzem. Eu vi, meu rei, uma pobre leprosa olhar o Nazareno escondida nas sombras da rua enquanto todos fugiam dela, e Jesus aproximar-se e dizer: "Estás curada”, e a mulher, incrédula, gritar: "Estou curada! Estou curada!" Porque verdadeiramente seu rosto voltou a ser humano e suas mãos, antes escondidas, apareceram inteiras... E vi com meus próprios olhos o maior de todos os prodígios quando seguia Jesus e seus discípulos e deparamos com o velório de uma família que chorava a morte de um parente. Jesus entrou na casa e ordenou que o morto se levantasse, e Deus deveria estar na voz do Nazareno, porque eu juro, meu rei, que o homem abriu os olhos, levantou-se e ele mesmo estava espantado por estar vivo... - Tens razão, Josar, hei de crer para curar-me, quero crer nesse Jesus de Nazaré que, se tem o poder de ressuscitar os mortos, verdadeiramente é filho de Deus. Mas quererá ele curar um rei que se deixou levar pela concupiscência? - Abgar, Jesus cura não apenas os corpos, mas também as almas; ele garante que o arrependimento e o desejo de levar uma vida digna, sem pecado, bastam para ser perdoado por Deus. Os pecadores encontram consolo no Nazareno... - Tomara que assim seja... eu mesmo não posso perdoar minha luxúria com Ania. Essa mulher deixou meu corpo e minha alma doentes. . . - Como poderias saber, senhor, que ela estava doente, que o presente do rei de Tiro era um embuste? Como poderias desconfiar que ela trazia a semente da doença e que te contagiaria? Ania era a mulher mais bela que já se viu, qualquer homem teria perdido a cabeça por ela... - Mas eu sou um rei, Josar, e não podia perder a minha, por mais bela que a bailarina fosse... Agora ela sofre por sua beleza, porque as marcas da doença vão carcomendo a brancura de seu rosto, e eu, Josar, tenho um suor constante que nunca me deixa e minha vista escurece e o que mais temo é que a doença apodreça a minha pele e... Uns passos cautelosos os alertaram. A mulher, de corpo delgado, rosto moreno e cabelo preto se aproximava esboçando um sorriso. Josar a admirava. Sim, admirava a perfeição de suas feições delicadas e seu sorriso sempre alegre; admirava também sua fidelidade ao rei e que seus lábios não tivessem esboçado a menor recriminação ao ser preterida por Ania, a bailarina do Cáucaso, a mulher que transmitiu a seu marido a terrível doença. Abgar não se deixava tocar por ninguém pois temia contagiar os outros. Cada vez aparecia menos em público. Mas não resistira à obstinação férrea da rainha que insistia em cuidar dele pessoalmente; e não só isso, como também infundia-lhe ânimo na alma, para que acreditasse no relato de Josar sobre as maravilhas que o Nazareno fazia. O rei olhou-a com tristeza. - É você... Eu estava falando com Josar sobre o Nazareno. Ele levará uma carta convidando-o a vir. Dividirei meu reino com ele. - Josar deveria viajar com escolta para que nada lhe aconteça na viagem e possa trazer o Nazareno. - Viajarei com três ou quatro homens; será o bastante. Os romanos são desconfiados e não gostariam de ver chegar um grupo de soldados. Jesus também não. Espero, senhora, poder cumprir minha missão e convencer Jesus a me acompanhar. Levarei, sim, cavalos velozes que possam trazer-vos as novas assim que eu chegar a Jerusalém. - Terminarei a carta, Josar... - Partirei ao amanhecer, meu rei. 2 O fogo começava a atingir os bancos e a fumaça mergulhava a nave principal na penumbra. Quatro vultos pretos dirigiam-se rapidamente para uma capela lateral. Em uma porta próxima ao altar-mor, um homem retorcia as mãos. Ouvia-se, cada vez mais perto, o silvo agudo das sirenes dos bombeiros. Em questão de segundos, eles entrariam na catedral, o que significaria um novo fracasso. De fato, já estavam chegando; por isso correu até os vultos pretos e os chamou. Um dos vultos continuou avançando, enquanto os outros, assustados, recuaram diante das labaredas que começavam a rodeá-los. Já não havia mais tempo. O fogo avançava mais rápido que o previsto e atingiu o vulto que teimava em chegar à capela lateral. Com o corpo em chamas, ainda teve forças para arrancar o capuz que escondia seu rosto. Os outros tentaram se aproximar, mas não conseguiram. O fogo tomava conta de tudo e os portões da catedral cediam à pressão dos bombeiros. Correram na direção do homem que os esperava trêmulo junto a uma porta lateral. Fugiram no mesmo instante em que a água das mangueiras irrompia no edifício, enquanto o vulto em chamas ardia sem emitir o menor som. O que os fugitivos não viram é que um outro vulto, escondido entre as sombras de um dos púlpitos, seguira atentamente cada um de seus passos. Levava na mão um revólver com silenciador que não chegou a disparar. Quando os homens de preto sumiram pela porta lateral, o vulto desceu do púlpito e, antes que os bombeiros pudessem vê-lo, acionou uma alavanca oculta na parede e desapareceu. Marco Valoni tragou a fumaça do cigarro que em sua garganta se misturou à do incêndio. Saiu para respirar, enquanto os bombeiros acabavam de apagar os rescaldos ainda fumegantes junto à ala direita do altar-mor. A praça estava interditada com cavaletes, e os carabinieri continham os curiosos que tentavam saber o que acontecera na catedral. Naquela hora da tarde, Turim fervilhava de gente querendo saber se o Santo Sudário sofrera algum dano. Marco pediu aos jornalistas que cobriam o incidente que tranqüilizassem as pessoas: o Sudário não sofrera dano nenhum. O que ele não disse é que uma pessoa tinha morrido entre as chamas. Ainda não sabia sua identidade. Mais um incêndio. O fogo perseguia a velha catedral. Mas ele não acreditava em coincidências, e na catedral de Turim aconteceram muitos acidentes: várias tentativas de roubo e, até onde sua memória alcançava, três incêndios. No que aconteceu depois da Grande Guerra, foram encontrados os cadáveres de dois homens carbonizados. A autópsia revelou que os dois tinham cerca de 25 anos e que, antes de sofrerem a ação do fogo, foram mortos por tiros de revólver. Para completar, um dado horripilante: nenhum deles tinha língua, fora arrancada numa operação. Mas por quê? E quem atirara neles? Não conseguiram descobrir. Um caso sem solução. Nem os fiéis nem a opinião pública sabiam que o Sudário, no século passado, passara longos períodos fora da catedral. Talvez por isso tenha se salvado das conseqüências de tantos acidentes. Uma caixa-forte do Banco Nacional serviu de refúgio ao Sudário, que só saíra de lá para as exibições públicas, e sempre sob forte esquema de segurança. Mas apesar disso, em várias ocasiões correra perigo, perigo real. Marco ainda se lembrava do incêndio de 12 de abril de 1997. Como poderia esquecer, se naquela madrugada estava se embebedando com seus colegas do Departamento de Arte! Tinha então 50 anos e acabava de se recuperar de uma delicada cirurgia do coração. Dois infartos e uma cirurgia de alto risco foram argumentos suficientes para aceitar os argumentos de Giorgio Marchesi, seu cardiologista e cunhado, de que devia dedicar-se ao dolce far niente ou, no máximo, pleitear um cargo tranqüilo, burocrático, daqueles em que a pessoa passa o tempo todo lendo o jornal e no meio da manhã pode tomar, sem pressa, um café no bar da esquina. Apesar das lágrimas de sua mulher, Marco escolheu a segunda opção. Paola insistiu com ele para que se aposentasse; dizia-lhe, para lisonjeá-lo, que chegara ao topo no Departamento de Arte - era o diretor - e que podia dar por encerrada uma carreira brilhante e aproveitar a vida. Mas ele se recusou a fazê-lo. Preferia ir todos os dias a um escritório qualquer que transformar-se aos 50 anos em um traste aposentado. No entanto, deixava o cargo de diretor do Departamento de Arte e naquela madrugada, apesar dos protestos de Paola e de Giorgio, foi jantar e beber com os colegas. Os mesmos com quem nos últimos vinte anos convivera catorze, quinze horas por dia, perseguindo as máfias que contrabandeiam obras de arte, descobrindo falsificações, em suma, zelando pelo imenso patrimônio artístico da Itália. O Departamento de Arte era um órgão especial que dependia ao mesmo tempo dos Ministérios do Interior e da Cultura. Dele faziam parte policiais - carabinieri -, mas também muitos arqueólogos, historiadores, especialistas em arte medieval, em arte moderna, em arte sacra... Marco dera ao Departamento o melhor de si. Não foi fácil subir os degraus do sucesso. Seu pai era empregado de um posto de gasolina e sua mãe, dona de casa. Viviam com o mínimo; ele estudou com bolsa e atendeu ao desejo da mãe, que queria que procurasse um emprego seguro, que fosse funcionário público. Um amigo de seu pai, um policial que enchia o tanque no posto, o ajudou a prestar o concurso para o corpo de carabinieri. Foi aprovado, mas não tinha vocação para policial. Por isso, estudando à noite, depois do trabalho, conseguiu se formar em história e pediu transferência para o Departamento de Arte. Unia as duas especialidades, a de policial e a de historiador, e pouco a pouco, com muito trabalho e sorte, foi subindo na carreira até chegar ao topo. Tinha adorado viajar pela Itália! Conhecer outros países! Conheceu Paola na Universidade de Roma. Ela estudava arte medieval; foi paixão à primeira vista e alguns meses depois se casaram. Estavam juntos há vinte e cinco anos, tinham dois filhos e eram o que se costuma chamar de casal feliz. Paola era professora universitária e nunca reclamou do pouco tempo que ele ficava em casa. Uma única vez na vida tiveram um discussão séria. Foi na primavera de 1997, quando Marco voltou de Turim e disse que não ia se aposentar, mas que ela não precisava se preocupar porque ele não viajaria mais, nem ficaria indo de um lado para o outro. Trabalharia apenas como diretor, como um burocrata. Giorgio disse que aquilo era loucura. Os colegas comemoraram. O que o fez mudar de idéia foi a convicção de que o incêndio na catedral não fora fortuito, por mais que ele mesmo dissesse o contrário à imprensa. E lá estava ele, investigando mais um incêndio na catedral de Turim. Não fazia nem dois anos que investigara uma tentativa de roubo. Conseguiram pegar o ladrão por acaso. É verdade que ele não estava levando nada, na certa não teve tempo de roubar. Um padre que estava passando perto da catedral desconfiou de um homem correndo assustado com o barulho do alarme que tocava mais alto que os sinos. Correu atrás dele gritando "pega ladrão, pega ladrão!" e com a ajuda de dois jovens que iam passando, depois de alguma resistência, puderam dominá-lo. Mas não conseguiram apurar nada. O ladrão não tinha língua, fora retirada, nem impressões digitais: as pontas dos seus dedos eram cicatrizes queimadas; quer dizer, era um homem sem pátria e sem nome que agora apodrecia na prisão de Turim e de quem Marco nunca conseguiu arrancar nada. Não, ele não acreditava em coincidências. Não podia ser coincidência que os "ladrões" da catedral de Turim não tivessem língua e que as pontas dos seus dedos fossem queimadas. O fogo perseguia o Sudário. Marco mergulhou em sua história e soube que, desde que ficou em poder da Casa de Sabóia, o pano sobrevivera a vários incêndios. Por exemplo, na madrugada de 3 para 4 de dezembro de 1532, a sacristia da capela onde a Casa de Sabóia guardava o Sudário pegou fogo e as chamas atingiram a relíquia, custodiada então numa urna de prata, presente de Margarida da Áustria. Um século depois, outro incêndio quase chegou até onde o Sudário estava guardado. Dois homens foram surpreendidos e vendo-se perdidos se atiraram ao fogo, sem emitir nenhum som, apesar do horrível tormento. Será que também não tinham língua? Ele nunca saberia. Desde que, em 1578, a Casa de Sabóia depositou o Santo Sudário na catedral de Turim, os incidentes se sucederam. Não passou um século sem uma tentativa de roubo ou de incêndio e nos últimos anos o máximo que se conseguiu saber sobre seus autores sempre confirmava um balanço desolador: nenhum deles tinha língua. Teria língua o cadáver que levaram para o necrotério? Uma voz o trouxe de volta à realidade. - Chefe, o cardeal está aqui; acabou de chegar, como sabe, ele estava em Roma... Quer falar com o senhor, parece muito impressionado com o que aconteceu. - Não me admira. Ele está sem sorte. Não faz nem seis anos a catedral pegou fogo, dois anos atrás houve uma tentativa de roubo e agora outro incêndio. - É, ele está arrependido de ter se deixado convencer, de novo, a fazer reformas. Diz que é a última vez. Que a catedral agüentou em pé durante séculos e que agora, com tantas reformas e gambiarras vão acabar com ela. Marco entrou por uma porta lateral que dava acesso aos escritórios. Três ou quatro padres andavam de um lado para o outro numa grande agitação; duas senhoras que dividiam uma mesa em uma salinha pareciam muito atarefadas e alguns dos guardas sob suas ordens examinavam as paredes, recolhiam amostras, entrando e saindo. Um padre jovem, de uns 30 anos, se aproximou dele, estendeu-lhe a mão e apertou a sua com firmeza. - Sou o padre Yves. - E eu sou Marco Valoni. - Sim, eu sei. Por favor, queira me acompanhar, Sua Eminência o espera. O padre abriu a pesada porta que dava acesso ao cômodo, um escritório em madeira de lei, com quadros do Renascimento, uma Madonna, um Cristo, a Última Ceia. .. Sobre a mesa, um crucifixo de prata trabalhada. Marco calculou que teria pelo menos trezentos anos. O cardeal era um homem de semblante afável, alterado, naquele momento, pelo que acontecera. - Sente-se, senhor Valoni. - Obrigado, Eminência. - Conte-me o que aconteceu. Já se sabe quem morreu? - Ainda não sabemos com certeza, Eminência. Até agora tudo indica que um curto-circuito ocasionado pelas obras teria provocado o incêndio. - De novo! - É, Eminência, de novo... Mas, se me permite, vamos investigar a fundo. Ficaremos por aqui alguns dias, quero vasculhar a catedral de cima a baixo, examinar cada canto. Meus homens e eu continuaremos falando com todos os que estiveram na catedral nas últimas horas e nos últimos dias. Pediria a colaboração de sua Eminência... - Pode contar comigo, senhor Valoni. Colaborarei como das outras vezes, investigue quanto quiser. O que houve foi uma verdadeira catástrofe, uma pessoa morreu, além de terem sido queimadas obras de arte insubstituíveis e as chamas quase atingiram o Santo Sudário; nem quero pensar o que aconteceria se chegassem a destruí-lo. - Eminência, o Sudário... - Eu sei, Valoni, sei o que vai me dizer: que segundo os testes de carbono 14 este não pode ser o tecido que envolveu o corpo de Nosso Senhor, mas para milhões de fiéis o Sudário é autêntico independentemente das datações do carbono 14 e a Igreja permite seu culto; além disso, ainda não existe uma explicação científica para a figura impressa tida por nós como sendo a de Nosso Senhor, e... - Desculpe, Eminência, não era minha intenção pôr em dúvida o valor religioso do Sudário. A prImeira vez que eu o vi, fiquei muito impressionado e o homem que nele aparece continua a me impressionar. - Então? - Queria saber se nos últimos dias, nos últimos meses, aconteceu alguma coisa estranha, alguma coisa, por mais insignificante que seja, que tenha chamado sua atenção. - Para dizer a verdade, não. Depois do último susto, quando tentaram roubar o altar-mor há dois anos, ficamos tranqüilos. - Procure pensar, Eminência. - Pensar em quê? Quando estou em Turim, rezo a missa das oito da manhã todo dia na catedral. No domingo, a do meio-dia. Fico algum tempo em Roma. Hoje mesmo estava no Vaticano, quando me avisaram do incêndio. Vêm peregrinos do mundo inteiro para ver o Sudário. Há quinze dias, antes das obras começarem, esteve aqui um grupo de cientistas franceses, ingleses e americanos fazendo novos testes e... - Quem eram eles? - Ah! Um grupo de professores católicos que acham que, apesar das pesquisas e do resultado conclusivo do carbono 14, o Sudário é a autêntica mortalha de Cristo. - Algum deles chamou sua atenção? - Não, para dizer a verdade não. Eu os recebi em minha sala do Palácio Episcopal, conversamos por cerca de uma hora e lhes ofereci um lanche. Eles me expuseram algumas das razões por que achavam que o método do carbono 14 não era confiável, não muito mais que isso. - Notou algo de especial em algum deles? - Senhor Valoni, há anos recebo cientistas que estudam o Sudário. Como deve saber, a Igreja sempre esteve aberta a eles e facilitou sua pesquisa. Estes professores foram todos muito simpáticos; só um deles, o doutor Bolard, me pareceu mais reservado, menos tagarela que seus colegas, mas é porque as obras da catedral o deixam nervoso. - Por quê? - Que pergunta, senhor Valoni! Porque o professor Bolard é um cientista que colabora há anos na conservação do Sudário e teme que seja exposto a riscos desnecessários. Eu o conheço há muitos anos, é um homem sério, um cientista correto e um bom católico. - O senhor se lembra quantas vezes ele esteve aqui? - Muitíssimas, pois não estou lhe dizendo que ele colabora com a Igreja na conservação do Sudário... Tanto é que quando outros cientistas vêm estudar a relíquia, costumamos chamar o professor Bolard que toma as devidas providências para o Sudário não se expor a nenhuma deterioração. Além disso, temos no arquivo os nomes de todos os cientistas que nos visitaram para estudar o Sudário: os homens da NASA, aquele russo, como era mesmo o nome dele? Agora não me lembro... Bom, todos aqueles doutores famosos: Barnet, Hynek, Tamburelli, Tite, Gonella, e tantos outros! Também não posso esquecer de Walter McCrone, o primeiro cientista que insistiu em que o Sudário não era a mortalha de Cristo Nosso Senhor e que morreu há alguns meses, que Deus o tenha em Sua glória. Marco pensava no tal doutor Bolard. Não sabia por quê, mas precisava saber mais sobre aquele professor. - Pode me dizer as datas em que o doutor Bolard esteve aqui? - Posso, claro, mas por quê? O doutor Bolard é um cientista famoso e não sei que relação pode ter com sua investigação... Marco compreendeu que era inútil falar com o cardeal sobre instinto, pressentimentos. Além disso, era bobagem querer investigar um homem pelo simples fato de ele não falar muito. Optou por pedir ao cardeal a lista de todas as equipes científicas que estudaram o Sudário nos últimos anos, com as datas em que estiveram em Turim. - A partir de quando? - Bem, se for possível, dos últimos vinte anos. - Mas, afinal, o que está procurando? - Não sei, Eminência, não sei. - O senhor há de entender que me deve uma explicação sobre a relação que pode haver entre os incêndios da catedral, o Sudário e os cientistas que o estudaram. Há anos que insiste em que o alvo dos acidentes na catedral é o Santo Sudário, e eu, meu caro Marco, não consigo acreditar nisso. Quem iria querer destruir o Sudário? Por quê? Quanto às tentativas de roubo, o senhor sabe que qualquer peça da catedral vale uma fortuna e há muita gente inescrupulosa que não respeita nem mesmo a casa de Deus. Embora alguns dos pobres infelizes que tentaram nos roubar, sejam inquietantes. Não posso deixar de rezar por eles. - O senhor deve ter razão; mas deve concordar que não é normal que entre os envolvidos em alguns destes, assim chamados, acidentes haja homens sem língua e sem impressões digitais. Poderia me fornecer a lista? É apenas rotina, para irmos juntando todas as peças do quebra-cabeça. - Não, claro que não é normal e isso preocupa a Igreja. Visitei várias vezes, discretamente lógico, o pobre infeliz que tentou nos roubar há dois anos. Ele se senta na minha frente e fica impassível, como se não entendesse nada do que estou dizendo. Enfim, direi a meu secretário, esse jovem padre que o acompanhou, que procure esses dados e os entregue o mais breve possível. O padre Yves é muito eficiente. Está comigo há sete meses, desde que meu auxiliar anterior morreu, e tenho de reconhecer que sua ajuda é para mim um sossego. É inteligente, discreto, piedoso, fala várias línguas... - Ele é francês? - É, é francês, mas, como deve ter notado, tem um italiano impecável; domina também o inglês, o alemão, o hebraico, o árabe, o aramaico... - E foi recomendado por quem, Eminência? - Por um amigo, o ajudante do substituto do secretário de Estado, monsenhor Aubry, um homem muito especial. Marco pensou que a maioria dos homens de Igreja que conhecera eram especiais, principalmente os que andavam pelo Vaticano. Mas continuou em silêncio, examinando o cardeal, que lhe parecia um bom sujeito, mais sagaz e inteligente do que aparentava e muito diplomático. O cardeal chamou o padre Yves pelo telefone. Em menos de um segundo o secretário apareceu. - Entre, padre. Já conhece o senhor Valoni. Ele pediu uma lista de todas as equipes que visitaram o Sudário nos últimos vinte anos. Então, mãos à obra, porque meu amigo Marco não pode esperar. O padre Yves observou Marco Valoni atentamente antes de perguntar: - Desculpe, senhor Valoni, mas poderia dizer o que está procurando? - Nem o senhor Valoni sabe o que está procurando, Padre Yves, mas ele quer saber o nome das pessoas que tiveram alguma relação com o Sudário nos últimos vinte anos e nós vamos fornecer essa lista a ele. - Claro, Eminência, tentarei entregá-la o quanto antes, apesar de que com essa confusão toda não será fácil achar tempo para procurar nos arquivos; como sabe, ainda falta muito para ser informatizado. - Não tem problema, padre - respondeu Valoni -, posso esperar uns dias, mas quanto antes me passar essa informação, melhor. - Eminência, posso saber qual a relação entre o incêndio e o Sudário? - Ah! Padre Yves, há anos que pergunto isso ao senhor Valoni, porque cada vez que nos acontece uma desgraça ele insiste em que o objetivo é o Sudário. - Meu Deus, o Sudário! Valoni observou o padre Yves. Não parecia um sacerdote, ou pelo menos não se parecia com a maioria dos sacerdotes que ele conhecia e quem mora em Roma conhece muitos. O padre Yves era alto, bem apessoado, atlético; com toda certeza praticava algum esporte. Além disso não havia a menor brandura nele, essa brandura que é uma mescla de castidade e boa comida e que faz estragos entre os sacerdotes. Se o padre Yves não usasse cabeção, pareceria um desses executivos que cuidam da aparência fazendo esporte. - É, padre - disse o cardeal -, o Sudário. Mas, felizmente, Deus Nosso Senhor o protege, porque nunca foi danificado. - Procuro apenas não deixar nenhuma peça de fora na investigação dos muitos acidentes que têm acontecido na catedral. Padre Yves, aqui está o meu cartão, vou anotar o número do meu celular para o senhor me ligar assim que tiver a lista que eu pedi. E se lembrar de alguma coisa que possa ajudar, por favor, me telefone. - Claro, senhor Valoni, pode ficar tranqüilo. O celular tocou e Marco atendeu no mesmo instante. O relato do legista foi sucinto: a pessoa que morreu queimada na catedral era um homem magro, com cerca de 30 anos e 1,75m de altura. Não, não tinha língua. - Tem certeza, doutor? - Até onde se pode ter certeza, se tratando de um corpo carbonizado. Não tem língua não por causa do fogo, mas porque foi retirada. Não me pergunte quando, porque é difícil saber devido ao estado do cadáver. - Mais alguma coisa, doutor? - Vou enviar um relatório completo. Liguei porque você pediu para eu telefonar quando terminasse a autópsia. - Estava pensando em passar por aí, doutor, pode ser? - Claro, sem problema. Vou estar aqui o dia inteiro. Venha a hora que quiser. - Marco, o que você tem? - Nada. - Ora, chefe, eu te conheço e sei que está de mau humor. - Sabe, Giuseppe, tem alguma coisa me incomodando, mas não sei o que é. - Pois eu sei. Você está tão impressionado quanto nós por ter encontrado mais um mudo. Pedi para a Minerva procurar na Internet se existe alguma seita dada a cortar língua e a roubar. Sei que é absurdo, mas temos de tentar tudo o que possa nos dar alguma pista e a Minerva é um gênio pesquisando na rede. - Está bem; agora me conte o que vocês descobriram. - Em primeiro lugar não falta nada. Não houve roubo. Antonino e Sofia garantem que eles não levaram nada: quadros, candelabros, entalhes..., enfim, todos os tesouros da catedral continuam lá, apesar de que alguns foram atingidos pelo fogo. As chamas destruíram o púlpito do lado direito e os bancos. E do entalhe do século XVIII da Puríssima só sobraram as cinzas. - Tudo isso deve constar no relatório. - Sim, chefe, mas o relatório ainda não está pronto. O Pietro continua na catedral. Ficou interrogando os operários que faziam a nova instalação elétrica; parece que o fogo começou por causa de um curto-circuito. - Outro curto-circuito. - É, chefe, como o de 1997. O Pietro também falou com a companhia responsável pelas obras e já pediu para a Minerva procurar na Internet tudo o que tiver sobre os donos dessa empresa e sobre os operários também. Alguns são imigrantes e vai ser mais difícil conseguir informação sobre eles. Além disso, o Pietro e eu interrogamos todo o pessoal da sede episcopal. Não tinha ninguém na catedral, quando o incêndio começou. Às três da tarde a igreja sempre está fechada; nem mesmo os operários estavam trabalhando, pois é hora do almoço. - Só temos um cadáver. Ele tinha cúmplices? - Não sabemos, mas é provável que sim. É difícil um homem planejar e realizar sozinho um roubo na catedral de Turim. A não ser que fosse um ladrão que trabalhasse por encomenda, que viesse atrás de uma determinada obra de arte, e, nesse caso, não precisaria de mais ninguém. Ainda não sabemos. - Mas, se ele não estava sozinho, por onde os cúmplices fugiram? Marco ficou em silêncio. A queimação no estômago era sintoma da sua preocupação. Paola dizia que ele estava obcecado pelo Sudário e talvez tivesse razão: estava obcecado pelos homens sem língua. Tinha certeza de que algo lhe escapava, que em algum lugar estava faltando uma peça e que, se a encontrasse e conseguisse encaixála, chegaria à solução. Iria à prisão de Turim para ver o mudo. O cardeal disse uma coisa que chamou sua atenção: que quando o visitou, o homem ficava impassível, como se não o entendesse. Podia ser uma pista, talvez o mudo não fosse italiano e não entendesse o que lhe diziam. Dois anos antes, ele o deixara com os carabinieri, quando constatou que não tinha língua e não reagia às suas perguntas. Sim, iria à prisão. O mudo era a única pista, e ele, muito idiota, a descartara. Enquanto acendia outro charuto, resolveu ligar para John Barry, o adido cultural da embaixada americana. Na verdade, John, como quase todos os adidos culturais, era um agente do serviço secreto. Os governos não tinham muita imaginação na hora de procurar disfarces para seus agentes no exterior. John era um bom sujeito, apesar de trabalhar para o Departamento de Análises e Avaliação da CIA. Seu trabalho consistia em analisar, interpretar e enviar a informação dos agentes de campo a Washington. Eram amigos há anos. Uma amizade construída através do trabalho, já que muitas obras de arte roubadas pelas máfias iam parar nas mãos de alguns americanos ricos que, apaixonados por determinada obra, por vaidade ou por simples negócio, não viam inconveniente em comprar mercadoria roubada. Algumas vezes os roubos eram feitos por encomenda. John não correspondia ao protótipo do americano e do agente da CIA. Era um cinqüentão, como Marco, apaixonado pela Europa, doutor em história da arte por Harvard. Casara-se com uma arqueóloga inglesa, Lisa, uma mulher encantadora. Na verdade, ela não era muito bonita, mas era tão vivaz e de um entusiasmo tão contagiante que cativava as pessoas. Como ficou amiga de Paola, de vez em quando, os quatro se encontravam para jantar e até passaram juntos alguns fins de semana em Capri. Sim, assim que chegasse a Roma, ligaria para John. Mas também telefonaria para Santiago Jiménez, o representante da Europol na Itália, um espanhol eficiente e simpático com quem também tinha boas relações. Convidaria os dois para almoçar. Talvez pudessem ajudá-lo a procurar, embora ainda não soubesse exatamente o quê. 3 Josar vislumbrou ao longe as muralhas de Jerusalém. A luz do sol da manhã e a areia do deserto se fundiam às pedras formando uma massa dourada que ofuscava a vista. Acompanhado de quatro homens, Josar dirigiu-se à Porta de Damasco por onde, àquela hora, começavam a entrar camponeses de terras vizinhas e a sair caravanas em busca de sal. Um pelotão de soldados romanos patrulhava, a pé, os limites das muralhas. Tinha vontade de ver Jesus. Aquele homem irradiava algo extraordinário: força, doçura, firmeza, piedade. Acreditava nele, acreditava que fosse o Filho de Deus, não só pelos prodígios que o vira fazer, mas porque se podia sentir que seu olhar transcendia o humano, que ele lia dentro de nós, que nem nossos mais recônditos pensamentos lhe escapavam. Mas Jesus não te fazia sentir vergonha pelo que eras, porque seus olhos estavam cheios de compreensão, de perdão. Josar gostava de Abgar, seu rei, porque sempre o tratara como um irmão. Devia-lhe sua posição e fortuna, mas, se Jesus não aceitasse o convite de Abgar para ir a Edessa, Josar se apresentaria diante de seu rei e lhe pediria permissão para voltar a Jerusalém e seguir o Nazareno. Estava disposto a renunciar à sua casa, a sua fortuna e a seu conforto. Seguiria Jesus e tentaria viver de acordo com seus ensinamentos. Sim, estava decidido. Josar dirigiu-se à casa de Samuel, um homem que, por umas poucas moedas, lhe daria pousada e cuidaria dos cavalos. Assim que se instalasse, sairia para procurar Jesus. Iria à casa de Marcos, ou de Lucas, eles lhe diriam onde encontrá-lo. Não seria fácil convencer o Nazareno a viajar a Edessa, mas ele argumentaria que a viagem era curta e que depois de curar seu senhor, se não quisesse ficar, poderia voltar a Jerusalém. No caminho da casa de Marcos, Josar comprou algumas maçãs de um pobre aleijado a quem perguntou quais eram as últimas notícias da cidade. - O que queres que te conte, forasteiro? Todos os dias o sol desponta no levante e desaparece no poente. Os romanos... tu não és romano, não é? Não, não te vestes como um romano, nem falas como eles. Os romanos aumentaram os impostos para maior glória do imperador, por isso Pilatos teme uma rebelião e tenta ganhar o apoio dos sacerdotes do Templo. - Que sabes de Jesus, o Nazareno? - Ah! Tu também queres saber dele. Não serás um espião? - Não, homem, não sou um espião, apenas um viajante que sabe das maravilhas que o Nazareno tem feito. - Se estás doente ele poderia curar-te, são muitos os que dizem terse curado com um simples roçar de dedos do Nazareno. - Tu acreditas nisso? - Senhor, trabalho de sol a sol, cultivando meu pomar e vendendo minhas maçãs. Tenho mulher e duas filhas para sustentar. Cumpro todos os preceitos que um bom judeu deve cumprir e acredito em Deus. Se o Nazareno é o Messias como falam, não sei, não digo que sim nem que não. O que posso te dizer, forasteiro, é que os sacerdotes não gostam dele e os romanos também não, porque Jesus não teme seu poder e desafia a uns e a outros. Ninguém pode enfrentar os romanos e os sacerdotes e querer se sair bem. Esse Jesus vai acabar mal. - Sabes onde ele está? - Vive de um lado para o outro com seus discípulos, apesar de passar muito tempo no deserto. Eu não sei, mas podes perguntar ao aguadeiro da esquina. É um seguidor de Jesus, era mudo e agora fala. O Nazareno o curou. Josar perambulou pela cidade, até dar com a casa de Marcos. Lá lhe indicaram onde podia encontrar Jesus, perto da muralha sul, pregando para uma multidão. Não demorou a vê-lo. O Nazareno, vestido com um manto simples, falava a seus seguidores com uma voz firme, mas muito doce. Sentiu que Jesus o olhava. Ele o vira, sorria para Josar e com um gesto o chamava para perto de si. Jesus o abraçou e o convidou a sentar-se a seu lado. João, o mais jovem dos discípulos, afastou-se para deixá-lo sentar ao lado do Mestre. Assim passaram a manhã e, quando o sol estava a pino, Judas, um dos discípulos de Jesus, distribuiu pão, figos e água aos presentes. Comeram em silêncio e em paz. Depois, Jesus se levantou para ir embora. - Senhor - disse Josar, num murmúrio -, trago uma carta para ti do meu rei, Abgar de Edessa. - E o que Abgar quer de mim, meu bom Josar? - Ele está doente, senhor, e te pede que o ajudes. Eu também te rogo que o faças, porque ele é um bom homem e um bom rei, considerado justo pelos seus súditos. Edessa é uma cidade muito pequena, mas Abgar está disposto a dividi-Ia contigo. Jesus pousou a mão no braço de Josar enquanto caminhavam. E Josar se sentia privilegiado por estar perto do homem que verdadeiramente acreditava ser o Filho de Deus. - Lerei a carta e responderei a teu rei. Naquela noite, Josar jantou com Jesus e seus discípulos, preocupados com as notícias da crescente desaprovação dos sacerdotes. Maria Madalena tinha ouvido dizer no mercado que eles insistiam com os romanos para que prendessem Jesus, acusando-o de insuflar a revolta contra o poder de Roma. Jesus ouvia em silêncio e comia tranqüilo. Parecia que já sabia tudo o que ali se dizia, como se nada fosse novidade para ele. Depois falou-lhes do perdão, de como deviam perdoar os que lhes fizeram mal, ter compaixão deles. Os discípulos respondiam que é difícil perdoar alguém que nos faz mal, permanecer impassível, sem responder às ofensas. Jesus os escutava e argumentava a favor do perdão como alívio para a alma do próprio ofendido. No final do jantar, procurou Josar com os olhos e pediu que se aproximasse para entregar-lhe uma carta. - Josar, aqui está minha resposta para Abgar. -Senhor, virás comigo? - Não, Josar, não irei contigo, não posso ir contigo, devo cumprir com o que meu Pai quer. Enviarei um de meus discípulos. Mas teu rei me verá em Edessa e, se tiver fé, se curará. - A quem enviarás? Como é possível o que dizes, senhor, como ficarás aqui se dizes que Abgar te poderá ver em Edessa? Jesus sorriu e, olhando-o fixamente, disse: - Não me entendes e não me escutas? Tu irás, Josar, e teu rei se curará, e me verá em Edessa mesmo quando eu não estiver mais neste mundo. E Josar acreditou nele. O sol entrava aos borbotões pela janelinha do quarto em que Josar trabalhava na carta para Abgar, enquanto o hospedeiro providenciava comida para os homens que o acompanhavam. De Josar, para Abgar, rei de Edessa. Senhor, meus homens te levam a resposta do Nazareno. Eu te peço, senhor, que tenhas fé, pois ele diz que te curará. Sei que realizará o prodígio, mas não me perguntes como nem quando. Peço tua permissão para permanecer em Jerusalém, perto de Jesus. Meu coração me diz que devo ficar aqui. Preciso ouvi-lo, ouvir suas palavras e, se me permitires, segui-lo como o mais humilde dos discípulos. Tudo o que tenho, foste tu que me deste, por isso, meu rei, dispõe de meus bens, de minha casa, de meus escravos e reparte-os entre os necessitados. Eu ficarei aqui, e para seguir Jesus não preciso de nada. Além disso, tenho o pressentimento de que alguma coisa vai acontecer, pois os sacerdotes do Templo odeiam Jesus porque ele se diz Filho de Deus e vive de acordo com a Lei dos Judeus, o que eles não fazem. Eu peço, meu rei, tua compreensão e que me permitas cumprir o meu destino. Abgar leu a carta de Josar e foi invadido pela tristeza. O Judeu não viria a Edessa e Josar ficava em Jerusalém. Os homens que acompanharam Josar viajaram sem descanso para entregar-lhe as duas cartas. Primeiro leu a de Josar, agora leria a de Jesus, mas no seu coração não havia esperança e pouco lhe importava o que o Nazareno pudesse escrever. A rainha entrou no quarto e observou-o preocupada. - Ouvi dizer que chegaram notícias de Josar. - É verdade. O Judeu não virá, e Josar pede permissão para ficar em Jerusalém. Quer que eu reparta seus bens entre os necessitados. Converteu-se em discípulo de Jesus. - Tão extraordinário é esse homem que Josar abandona tudo para segui-lo? Como eu gostaria de conhecê-lo! - Tu também me abandonarás? - Sabes que não, senhor, mas creio que Jesus é mesmo um deus. O que ele te diz na carta? - Ainda não rompi o lacre; espera, vou lê-Ia para ti. Bem-aventurado sejas, Abgar, que crês em mim sem me ter visto. Porque de mim está escrito: os que o virem não acreditarão nele para que os que não o virem possam crer e ser bem-aventurados. Quanto ao pedido que me fazes de estar junto de ti, é preciso que eu cumpra todas as coisas para as quais fui enviado e que, depois de cumpri-Ias, volte para junto d'Aquele que me enviou. E quando eu tiver voltado a Ele, mandar-te-ei um dos meus discípulos para que cure tua doença e para que vos mostre, a ti e aos teus, o caminho da bem-aventurança. - Meu rei, o Judeu te curará. - Mas como podes ter tanta certeza? - Tens de acreditar, temos de acreditar e esperar. - Esperar... Não vês como a doença toma conta de mim? A cada dia me sinto mais fraco e logo não poderei aparecer nem sequer diante de ti. Sei que meus súditos murmuram e meus inimigos espreitam, e até aos ouvidos de Maanu, nosso filho, sussurram que logo será o rei. - Ainda não chegou a tua hora, Abgar. Eu sei. 4 A voz melodiosa de Minerva chegava com interferências pelo celular. - Desliga que eu ligo para você. Estamos no escritório. O Departamento de Arte tinha dois escritórios no quartel dos carabinieri, de modo que quando Marco e sua equipe se deslocavam para Turim tinham um lugar para trabalhar. - Então, Minerva - disse Sofia a sua colega -, o chefe não está, acordou cedo e foi para a catedral. Disse que vai ficar lá boa parte da manhã. - O celular dele está desligado porque eu ligo e cai na caixa postal. - Marco está estranho, você sabe que há anos insiste que alguém quer acabar com o Sudário. Às vezes acho que ele tem razão. Com tanta igreja e catedral na Itália, tudo tem de acontecer na de Turim. Já foi roubada não sei quantas vezes e sofreu vários incêndios, um pior que o outro. Tanta coisa assim é para deixar qualquer um chateado. E ainda por cima tem a história dos mudos; concorda que é sinistro que o cadáver que encontraram seja de um homem sem língua e sem impressões digitais? Ou seja, o de sempre, um homem sem identidade. - Marco pediu para eu ver se tem alguma seita que corta as línguas de seus membros. Ele disse que vocês são historiadores, mas não estão conseguindo entender. Não achei nada. Enfim, o que consegui descobrir até agora é que a empresa que está fazendo o restauro opera em Turim há mais de quarenta anos, e vai muito bem. Seu melhor cliente é a Igreja. Nos últimos anos trocou a instalação elétrica da maior parte dos conventos e igrejas da região e inclusive reformou a casa do cardeal. É uma sociedade anônima, mas consegui saber que um dos acionistas é um homem importante, com participação em empresas de aeronáutica, produtos químicos... enfim, que essa empresa de restauro é peccata minuta perco do que ele tem. - Quem é ele? - Umberco d'Alaqua, figura carimbada nos jornais de economia. Um tubarão das finanças que, veja só, também tem participação na empresa que instala fios e encanamentos. Mas não é só isso. Ele também foi acionista de outras que não existem mais, mas que em algum momento tiveram relação com a catedral de Turim. Não sei se você se lembra, mas antes do incêndio de 1997 teve outro, mais exatamente em setembro de 1983, uns meses antes da Casa de Sabóia assinar a cessão do Santo Sudário ao Vaticano. Naquele verão, começaram a limpar a fachada da catedral e a torre estava coberta de andaimes. Ninguém sabe como, aconteceu um incêndio. Umberco d'Alaqua também tinha participação na empresa de limpeza de monumentos. Lembra do rompimento de vários canos que houve na praça da Catedral e nas ruas próximas por causa de umas obras de pavimentação? Muito bem, D'Alaqua tem ações na empresa responsável por aquelas obras. - Também não precisa ficar paranóica. Não tem nada de mais esse homem ter ações em várias empresas que operam em Turim. Tem muita gente como ele. - Não estou paranóica. Estou apenas apresentando os dados. O Marco quer saber tudo, e nesse tudo o nome de Umberto d'Alaqua apareceu várias vezes. Esse homem deve ter muito boas relações com o cardeal de Turim e, claro, com o Vaticano. Aliás, ele é solteiro. - Bom, manda tudo por e-mail que quando o Marco voltar ele lê. - Até quando vocês vão ficar em Turim? - Não sei. O Marco não disse; ele quer falar com algumas pessoas que estiveram na catedral antes do incêndio. Também resolveu falar com o mudo, aquele do roubo de dois anos atrás, e com os operários e os funcionários da sede episcopal. Acho que vamos ficar mais uns três ou quatro dias, mas a gente te liga. Sofia resolveu ir até a catedral para falar com Marco. Sabia que o chefe preferia estar sozinho; caso contrário teria dito a Pietro, a Giuseppe ou a Antonino para o acompanharem. Mas cada um ficou encarregado de uma coisa. Trabalhavam juntos há muitos anos. Os quatro sabiam que Marco confiava neles. Pietro e Giuseppe eram dois tiras dos bons, dois carabinieri incorruptíveis; Antonino e ela, doutores em arte, e Minerva, pesquisando na rede, formavam o núcleo duro da equipe de Marco. Havia outros colegas, claro, mas era neles que o chefe mais confiava. Além disso, com o passar dos anos, tornaram-se amigos. Sofia pensou que passava mais tempo no trabalho do que em casa. Claro que, no fim das contas, não tinha ninguém esperando por ela em casa. Não se casara; consolava a si mesma dizendo que por falta de tempo. Primeiro a graduação, depois o doutorado, sua contratação no Departamento de Arte, as viagens. Acabara de fazer 40 anos e sentia que sua vida sentimental era um desastre, porque não tinha ilusões: apesar de dormir com o Pietro de vez em quando, ele nunca se separaria da mulher e ela também não sabia se era isso que queria. Estava bem assim, dividindo o quarto quando viajavam ou jantando juntos algumas noites depois do trabalho. Pietro a levava para casa, tomavam um drinque, jantavam, iam para a cama e lá pelas duas ou três da manhã ele se levantava silenciosamente e ia embora. No escritório procuravam disfarçar, mas Antonino, Giuseppe e Minerva sabiam de tudo e Marco lhes disse uma vez que já eram bem grandinhos para fazer o que achassem melhor, mas esperava que não deixassem os assuntos pessoais prejudicarem a equipe, nem interferir no trabalho. Pietro e ela combinaram que não levariam para a equipe, e nem sequer comentariam, nenhum desentendimento entre eles. Até então tinham cumprido o trato, se bem que a verdade é que brigavam pouco e sempre por bobagem, nada que não pudessem resolver sozinhos. Os dois sabiam que a relação não ia passar daquilo e, portanto, nem um nem o outro tinha grandes expectativas. - Chefe... Marco virou-se assustado ao ouvir a voz de Sofia. Estava sentado a alguns metros da urna que continha o Sudário. Sorriu ao vê-Ia e, pegando-a pelo braço, fez com que se sentasse a seu lado. - É impressionante, não é? - Se é. E isso que é falso. - Falso? Eu não teria tanta certeza assim. O Sudário tem algo de misterioso, algo que os cientistas não conseguem explicar. A NASA concluiu que a imagem do homem é tridimensional. Há cientistas que garantem que ela é resultado de uma radiação desconhecida para a ciência, outros dizem que as marcas são restos de sangue. - Marco, você sabe que o teste do carbono 14 é irrefutável. O doutor Tite e os laboratórios que trabalharam na datação do Sudário não podiam se permitir errar. O tecido é do século XIII ou XIV; entre 1260 e 1390, três laboratórios diferentes chegaram a essa mesma conclusão. A probabilidade de erro é de cinco por cento. A própria Igreja aceitou esse resultado. - Mas ninguém ainda explicou como se formou a imagem do tecido. E lembre-se que nas fotografias tridimensionais foram encontradas algumas palavras. Ao redor do rosto, está escrito três vezes "INNECE". - É, "À morte". - E do mesmo lado, de cima a baixo, na parte de dentro, tem várias letras: S N AZARE. - Que podem ser lidas como NEAZARENUS. - Em cima tem outras letras, IBER... - E tem gente que acha que as letras que faltam formam TIBERIUS. - E os léptons? - As fotos ampliadas mostram uns círculos sobre os olhos; no direito principalmente foi possível identificar uma moeda. - O que se usava muito, naquela época, para manter os olhos dos mortos fechados. - E se pode ler. . . - Juntando as letras há quem diga que está escrito TIBEPYOY CAICAROC, Tibério César, que é a inscrição que aparece nas moedas cunhadas no tempo de Pôncio Pilatos; eram de bronze e no centro tinham o cajado dos adivinhos. - Você é uma boa historiadora, doutora, e, no entanto, não dá nada por certo. - Marco, posso fazer uma pergunta pessoal? - Se você não puder, quem vai poder? - Você acredita em Deus? Mas acredita de verdade? Porque católicos todos nós somos, somos italianos e sempre fica alguma coisa do que nos ensinam quando a gente é pequeno. Mas ter fé é outra coisa, e eu acho, Marco, que você tem fé, que está convencido de que o homem do Sudário é Cristo e tanto faz o que digam os relatórios científicos; você tem fé. - Sabe, doutora, a resposta não é fácil. Não sei muito bem em que acredito e em que não acredito; poderia dizer umas tantas coisas que a lógica me leva a rejeitar e, é claro, minha crença pouco tem a ver com o que manda a Igreja, com o que eles chamam de fé. Mas este pano tem alguma coisa especial, mágica, se preferir; não é só um pedaço de tecido. Eu sinto que o pano tem algo mais. Ficaram em silêncio, olhando o tecido de linho com a imagem impressa de um homem que sofreu os mesmos tormentos que Jesus. Um homem que, segundo os estudos e as medidas antropométricas feitas pelo professor Judica-Cordiglia, pesava cerca de oitenta quilos, media 1,81 m e tinha características que não correspondiam às de nenhum grupo étnico em particular. A catedral estava fechada para o público. Permaneceria assim por algum tempo e o Sudário seria de novo levado para a caixa-forte do Banco Nacional. A decisão partiu de Marco e contou com a aprovação do cardeal. O Santo Sudário era o tesouro mais precioso da catedral, uma das maiores relíquias da Cristandade e, dadas as circunstâncias, estaria mais protegido no banco. Sofia apertou o braço de Marco; queria que soubesse que não estava sozinho, que ela acreditava nele. Ela o admirava, tinha verdadeira veneração por Marco, por seu caráter. Sabia que por trás da imagem de durão havia um homem sensível, humilde, sempre disposto a ouvir, tão seguro de si, da sua autoridade, que não se importava em admitir que os outros sabiam mais do que ele. Quando discutiam sobre a autenticidade de uma obra de arte, Marco nunca impunha sua opinião, sempre deixava os membros da equipe opinarem e Sofia sabia que ele tinha a maior confiança nela. Alguns anos atrás ele a chamava de "craninho", por seu currículo acadêmico: era doutora em história da arte, graduada em filologia italiana e falava fluentemente inglês, francês, espanhol e grego. O celibato também lhe deixara tempo para estudar árabe: não dominava a língua, mas entendia e se fazia entender. Marco olhou Sofia de esguelha e se sentiu reconfortado por seu gesto. Pensou que era uma pena uma mulher como aquela não ter encontrado alguém à sua altura. Era bonita, muito bonita, nem ela mesma sabia como era atraente. Loura, olhos azuis, esguia, simpática e inteligente, extremamente inteligente. Paola estava sempre procurando namorado para ela, sem sucesso, pois os homens se sentiam inibidos por sua superioridade. Ele não entendia como uma mulher daquelas podia ter uma relação estável com Pietro, mas Paola lhe dizia que isso era o mais cômodo para Sofia. Pietro fora o último a se juntar à equipe. Estava no departamento há dez anos. Era um bom investigador. Meticuloso, desconfiado, não perdia um detalhe, por menor que fosse. Trabalhou na Divisão de Homicídios por muitos anos e pediu transferência, segundo dizia, cansado de tanto sangue. A verdade é que lhe causou boa impressão, quando o mandaram para que o entrevistasse e arrumasse um lugar para ele na equipe, já que vivia se queixando que precisava de mais gente. Marco se levantou, seguido por Sofia. Foram até o altar-mor, o contornaram e entraram na sacristia, onde também chegava um dos padres que trabalhavam na sede episcopal... - Ah, senhor Valoni, eu o estava procurando! O senhor cardeal quer vê-lo. Daqui a aproximadamente meia hora chegará o carro-forte para levar o Sudário. Um de seus homens, um tal Antonino, nos telefonou. O cardeal garante que não ficará tranqüilo enquanto a relíquia não estiver no banco, e isso que o senhor encheu a catedral de carabinieri e não se pode dar um passo sem tropeçar com um deles. - Obrigado, padre, até lá o Santo Sudário estará custodiado e eu também irei no carro-forte até o banco. - Sua Eminência quer que o padre Yves, como representante do bispado, acompanhe o Sudário até o banco e se encarregue de todos os trâmites para sua custódia. - Correto, padre. Onde está o cardeal? - Na sala dele. Quer que eu o acompanhe? - Não precisa. A doutora e eu sabemos onde é. Marco e Sofia entraram no escritório do cardeal. Ele parecia nervoso, incomodado. - Ah! Marco. Entre! E a doutora Galloni! Sentem-se. - Eminência - disse Marco -, a doutora e eu vamos acompanhar o Sudário até o banco, soube que o padre Yves também vai... - Vai, sim, mas não era por isso que eu queria vê-lo. Sabe, no Vaticano estão muito preocupados. O Monsenhor Aubry me disse que o Papa está abalado com este novo incêndio e me pediu que lhe transmita tudo o que for averiguando para que o Santo Padre esteja informado. Por isso lhe peço, Marco, que vá me contando o resultado de suas investigações para que eu, por minha vez, possa informar o Monsenhor. É claro que pode contar com a nossa discrição, sabemos como isso é importante nesses casos. - Eminência, ainda não sabemos nada, a única coisa que temos é um corpo sem língua no necrotério. Um homem de uns 30 anos, sem identidade. Não sabemos se é italiano ou sueco. - Pois eu acho que o que está na prisão de Turim é italiano. - Por quê? - Pela aparência: moreno, não muito alto, pele mate... - Eminência, esse biótipo corresponde a meia Humanidade. - É, tem razão. Bom, Marco, se importa de ir me informando? Vou lhe dar o telefone da minha casa e o meu celular para que possa me localizar as vinte e quatro horas do dia, caso descubra alguma coisa importante. Gostaria de saber cada passo que for dando. O cardeal escreveu uns números em um cartão que entregou a Marco e ele o guardou no bolso. Claro que não pensava informar o cardeal dos passos de cego que estava dando e ia dar. Não ia comunicar suas investigações ao arcebispo de Turim para que este, por sua vez, as comunicasse ao monsenhor Aubry e este ao substituto do secretário de Estado, este ao secretário de Estado e o secretário de Estado sabe-se lá a quem mais, além do Papa. Mas não disse nada. Assentiu com a cabeça, como se concordasse. - Marco, o senhor e o padre Yves me informem quando o Sudário estiver bem guardado na caixa-forte do banco. Marco ergueu uma sobrancelha, perplexo. O cardeal o tratava como se fosse seu empregado. Resolveu que também não responderia ao que considerou uma impertinência e se levantou, seguido por Sofia. - Nós vamos indo, Eminência; o carro-forte deve estar para chegar. 5 Os três homens descansavam em catres, perdidos em seus pensamentos. Tinham fracassado e partiriam em poucos dias. Turim se tornara um lugar perigoso para eles. Seu companheiro morrera vítima das chamas e provavelmente a autópsia revelara que não tinha língua. Nenhum deles tinha. Tentar voltar à catedral seria suicídio. O homem que trabalhava no bispado lhes contara que os carabinieri estavam por todo canto, interrogando a todos e que não descansaria enquanto não fossem embora. Eles iriam, mas ainda precisavam continuar escondidos por mais alguns dias, até que os carabinieri levantassem o cerco e a mídia acorresse em tropel a outro local onde alguma catástrofe estivesse acontecendo. O porão cheirava a umidade e mal havia espaço para andar. O homem do bispado lhes deixara provisões para três ou quatro dias. Disse-lhes que só voltaria quando tivesse certeza de que não havia perigo. Dois dias se passaram, que para eles pareciam uma eternidade. Em Nova York, a milhares de quilômetros daquele porão, em um edifício de vidro e aço, em uma sala hermeticamente insonorizada e com as mais avançadas medidas de segurança para garantir a privacidade, sete homens comemoravam, com uma taça de vinho de Borgonha, o fracasso dos mudos. Esses sete homens, elegantemente vestidos, cuja idade variava dos 50 aos 70 anos, fizeram uma minuciosa análise de toda a informação recebida sobre o incêndio de Turim. Sua fonte não eram os jornais, nem a televisão; dispunham de um informe de primeira mão, feito nos mínimos detalhes pelo vulto vestido de preto que se escondera no púlpito durante o incêndio. Sentiam alívio, o mesmo alívio que seus antecessores sentiram cada vez que conseguiram evitar que os homens sem língua se aproximassem do Sudário. O mais velho ergueu levemente a mão e os outros se preparam para ouvir. - Minha única preocupação é esse policial, o diretor do Departamento de Arte. Se está obcecado com o Sudário, pode acabar encontrando alguma pista que o traga até nós. - Temos de reforçar todas as medidas de segurança e tentar fazer com que os nossos se confundam com a paisagem. Falei com Paul. Ele vai tentar se informar sobre cada passo desse tal Marco Valoni, mas não será fácil, porque qualquer tropeço pode alertá-los. Na minha opinião, mestre, deveríamos ficar quietos, não fazer nada, apenas observar. Quem falou assim foi um cinqüentão, alto, atlético, de cabelo grisalho e rosto anguloso como o de um imperador romano. O mais velho, que respondia ao título de mestre, concordou. - Alguma sugestão? Todos estavam de acordo em que não deviam agir, mas apenas observar à distância cada passo de Valoni. Combinaram se comunicar com Paul, para que ele não pressionasse muito por informação. Um dos presentes, um homem de compleição forte e estatura mediana, com um leve sotaque francês, perguntou: - Eles farão uma nova tentativa? O velho respondeu, sem vacilar: - Não, não agora. Primeiro vão tentar sair da Itália e entrar em contacto com Addaio. Mesmo que tenham sorte e consigam fugir, isso levará tempo. Addaio vai demorar para enviar um novo comando. - A última vez foi há dois anos - lembrou o homem com rosto de imperador romano. - E nós continuaremos lá, como sempre estivemos. Agora vamos combinar nosso próximo encontro e combinar as senhas. 6 Josar seguia Jesus por onde ele fosse. Seus amigos se acostumaram com sua presença e às vezes o convidavam a compartilhar com eles algum momento de folga. Foram eles que lhe contaram que Jesus sabia que ia morrer e que, apesar de suas recomendações e conselhos para fugir, o Nazareno insistia em que tinha que cumprir os desígnios de seu Pai. Era difícil entender que o Pai quisesse a morte do Filho, mas Jesus dizia isso com tanta serenidade que parecia que devia ser assim. Quando Jesus via Josar, sempre tinha algum gesto de amizade para com ele. Um dia, falando-lhe, dissera: - Tenho de cumprir com o que me cabe, para isso fui enviado por meu Pai. E tu, Josar, também tens uma missão a cumprir. Por isso estás aqui e darás fé do que sou, do que viste e me terás perto de ti, quando eu não estiver mais. Josar não entendia as palavras do Nazareno, mas não ousava fazer perguntas, nem contradizê-lo. Nos últimos dias, os rumores eram persistentes. Os sacerdotes queriam que os romanos resolvessem o problema de Jesus, o Nazareno, e o governador Pilatos, por sua vez, tentava fazer com que os judeus julgassem aquele que era um dos seus. Era só uma questão de tempo e uns ou outros perpetrarIam o crime. Jesus fora para o deserto. Sempre fazia isso. Daquela vez jejuara, disse-lhes, preparando-se para enfrentar os desígnios de seu Pai. Uma manhã, o dono da casa onde Josar estava hospedado o acordou. - Prenderam o Nazareno. Pulou da cama e esfregou os olhos; aproximou-se de um cântaro que estava num canto do quarto e jogou água no rosto para acordar. Depois pegou seu manto e foi para o Templo. Lá encontrou um dos amigos de Jesus que escutava temeroso no meio da multidão. - O que aconteceu, Judas? Judas começou a chorar, tentando fugir de Josar, mas este o alcançou e o deteve, segurando-o pelo ombro. - Mas o que tens? Por que foges de mim? Judas, com os olhos rasos d'água, tentava se safar, em vão, do braço de Josar, e, por fim, respondeu: - Ele foi preso. Os romanos o levaram, vão crucificá-lo, e eu... As lágrimas rolavam pelo seu rosto como se fosse uma criança. Mas Josar, estranhamente, não se comoveu e o segurava com força para ele não fugir. - Eu, o trai, Josar. Trai o melhor dos homens. Por trinta moedas de prata eu o entreguei aos romanos. Josar o afastou com um gesto de raiva e saiu correndo, transtornado, sem saber muito bem para onde ir. De volta à esplanada do Templo, topou com um homem que vira, algumas vezes, ouvindo os sermões de Jesus. - Onde está ele? - perguntou-lhe, com um fiapo de voz. - O Nazareno? Vão crucificá-lo. Assim Pilatos agrada aos sacerdotes. - Mas de que o acusam? - Dizem que blasfema por proclamar-se o Messias. - Mas Jesus nunca blasfemou, nunca disse que era o Messias, ele é o melhor dos homens. - Tem cuidado. Tu o seguias; alguém pode te denunciar. - Tu também o seguias. - Certamente, por isso te dou esse conselho. Os que seguiram o Nazareno não estão seguros. - Diga-me pelo menos onde posso encontrá-lo, para onde o levarão. - Morrerá na sexta-feira, antes do sol se pôr. O semblante de Jesus refletia a dor da tortura. Na cabeça lhe enfiaram uma coroa de espinhos que espetavam sua testa. O sangue escorria pelo seu rosto, encharcando-lhe a barba. Josar contava mentalmente as chicotadas com que dois soldados romanos o castigavam. Cento e vinte. O Nazareno arrastava a cruz em que ia ser crucificado e seu peso, unido à dor do flagelo, o vencia, obrigando-o a ajoelhar-se na beira do caminho. Josar deu um passo para levantá-lo, mas o soldado o afastou com um empurrão. Jesus olhou-o agradecido. Seguiu-o até o alto da colina onde seria crucificado junto com os outros réus. Sentiu os olhos rasos d'água, ao ver um soldado colocar Jesus na cruz e pregar nela seu pulso esquerdo. Os pés ele pregou juntos, com um único cravo, colocando o esquerdo sobre o direito. Parecia que o tempo tinha parado e Josar pedia a Deus que Jesus morresse logo. Via-o sofrer, asfixiado. João, seu discípulo mais querido, chorava em silêncio o suplício do Mestre. Josar também não conseguia conter as lágrimas. Um soldado cravou sua lança no flanco de Jesus e da ferida jorrou muito sangue e um pouco de água. Ele estava morto e Josar deus graças a Deus. Naquela sexta-feira de abril, a primavera aparecia envolta em nuvens carregadas. Quando desceram o corpo do Nazareno da cruz, mal havia tempo para prepará-lo devidamente. Josar sabia que a lei dos judeus obrigava a interromper qualquer trabalho, inclusive o de amortalhar um cadáver, quando o sol estava para se pôr. Além disso, por ser Páscoa, era preciso enterrar o morto no mesmo dia. Josar, com os olhos cheios de lágrimas, assistia imóvel a preparação do cadáver, vendo José de Arimatéia amortalhar o corpo de Jesus com um tecido fino e macio de linho de forma retangular. Naquela noite Josar não dormiu. No dia seguinte, também não conseguiu descansar, tão forte era a dor de sua alma. No terceiro dia da crucificação de Jesus, dirigiu-se ao lugar onde o corpo foi depositado. Lá encontrou, Maria, a mãe de Jesus, e João, o discípulo preferido, que junto a outros de seus seguidores diziam que o corpo do Mestre desaparecera. No túmulo, sobre a pedra em que depositaram o cadáver, ficara o tecido com que José de Arimatéia o envolvera e que nenhum dos presentes se atrevia a tocar. A lei judia proíbe ter contato com objetos impuros como uma mortalha. Josar pegou-a em suas mãos. Ele não era judeu, nem o afetavam os tabus de sua lei. Apertou o tecido contra seu corpo e se sentiu invadido por uma enorme placidez. Sentia o Mestre, abraçar aquele simples pedaço de linho era como abraçá-lo. Naquele instante compreendeu o que devia fazer. Providenciaria seu retorno a Edessa, entregaria o sudário de Jesus a Abgar e ele se curaria. Agora entendia o que o Mestre lhe dissera. Saiu do túmulo e respirou o ar fresco. Com o sudário dobrado no braço, procurou o caminho da pousada, para sair o quanto antes de Jerusalém. Em Edessa, o calor do meio-dia convidava seus habitantes a esperarem em casa que a tarde caísse. Naquele momento, a rainha colocava panos úmidos sobre a testa doente de Abgar e o acalmava, garantindo que a doença ainda não carcomera sua pele. Ania, a bailarina, era um farrapo humano. Fazia tempo que estava longe da cidade, mas Abgar não quis abandoná-la à sua própria sorte e mandava mantimentos para a caverna onde ela se refugiara. Naquela manhã, um de seus homens, depois de deixar perto da caverna um saco com cereais e um odre de água fresca, a viu. Ao voltar, contou ao rei que o outrora belo rosto era agora uma massa informe descarnada. Abgar não quis ouvir mais e se refugiou em seus aposentos, onde cheio de horror delirava de febre. A rainha cuidava dele e não deixava ninguém se aproximar. Alguns adversários do rei começaram a conspirar para substituí-lo e a tensão aumentava com o passar dos dias. O pior é que não tiveram mais notícias de Josar. Ele ficara com o Nazareno e embora Abgar se queixasse que Josar o abandonara, a rainha lhe dizia para confiar nele. No entanto, naquele momento, sua própria confiança estava abalada. - Senhora! Senhora! Josar está aqui! A escrava irrompera gritando no aposento onde Abgar dormia, abanado pela rainha. - Josar? Onde? A rainha saiu correndo ante o olhar atônito de todos que se encontravam em seu caminho, soldados e cortesãos, até topar com Josar. Seu leal amigo, ainda coberto pelo pó da viagem, estendeu as mãos para a rainha. - Josar, tu o trouxeste? Onde está o Nazareno? - Minha senhora, o rei se curará. - Mas onde está ele, Josar? Diga onde está o Judeu. A voz da rainha revelava o desespero há tanto tempo contido. - Leva-me até Abgar. A voz de Josar soava forte e decidida e todos que assistiam à cena ficaram impressionados. A rainha o guiou até o aposento onde Abgar estava deitado. o rei entreabriu os olhos e, ao ver Josar, suspirou aliviado. - Voltaste, meu bom amigo. - Sim, Abgar e agora te curarás. Na porta do quarto, a guarda do rei impedia a passagem de alguns cortesãos curiosos que não queriam perder a cena do reencontro do soberano com seu melhor amigo. Josar ajudou Abgar a se levantar e entregou-lhe o linho que o rei apertou contra o corpo sem saber o que era. - Aqui está Jesus e, se creres, te curarás. Ele me disse que te curarias e me envia a ti com essa missão. A firmeza das palavras de Josar, sua convicção, deram segurança a Abgar que apertou o tecido contra o corpo com mais força. - Sim, eu creio - disse Abgar. E seu coração era sincero. Então, se deu o milagre. As cores voltaram ao rosto do rei e as marcas da doença desapareceram. Abgar sentiu o sangue correr forte em suas veias e uma sensação de paz invadir seu espírito. A rainha chorava em silêncio impressionada pelo prodígio, enquanto os soldados e cortesãos apinhados na soleira do quarto não conseguiam entender como se dera a cura do rei. - Abgar, Jesus te curou tal e como prometeu. Este é o tecido com que amortalharam seu corpo; porque deves saber, meu senhor, que Pilatos, com a cumplicidade dos sacerdotes judeus, mandou crucificar Jesus depois de supliciá-lo. Mas não te aflijas, porque Ele voltou a seu Pai e de onde está nos ajudará e ajudará os homens até o fim dos tempos. O milagre da cura do rei se espalhou como rastilho de pólvora por todos os caminhos. Abgar pediu a Josar que lhe falasse sobre Jesus para fazer seus os ensinamentos do Nazareno. Ele, a rainha e todos seus súditos adotariam a religião de Jesus, por isso mandou destruir os templos e fez Josar pregar a ele e a seu povo para que se convertessem em bons seguidores do Nazareno. Josar pregou a Abgar e aos habitantes de Edessa como discípulo de Jesus que era e não houve na cidade outra religião além da cristã. - Que faremos com o sudário, Josar? - Meu rei, deves encontrar um lugar seguro para guardá-lo. Jesus o enviou para que te curasses e devemos conservá-lo, cuidando para que não seja danificado. Muitos de teus súditos me pedem que os deixe tocar o linho e devo dizer-te que operou novos milagres. - Mandarei construir um templo, Josar. - Sim, senhor. Todo dia, na hora em que sol despontava, Josar aproveitava a primeira luz para escrever. Queria deixar testemunho dos prodígios feitos por Jesus que ele presenciara e de tudo que os amigos do Mestre lhe contaram no tempo em que viveu em Jerusalém. Depois, Josar ia ao Palácio e falava a Abgar, à rainha e a muitos outros sobre tudo quanto sabia dos ensinamentos do Nazareno. Via o assombro estampado nos rostos, quando dizia que não se devia odiar, nem desejar o mal dos inimigos. Jesus ensinara a dar a outra face. Além de Abgar, Josar contava com a fé da rainha para ajudá-lo a fazer com que a semente dos ensinamentos de Jesus frutificasse. Em pouco tempo, Edessa era cristã e Josar enviava cartas a alguns dos amigos de Jesus que, como ele, levavam a boa nova por vilarejos e cidades. Quando Josar acabou de escrever a história do Nazareno, Abgar encomendou várias cópias dela a seus escribas, para que os homens nunca se esquecessem da vida e da prédica daquele judeu extraordinário que o curara depois de morto. 7 Enquanto estacionava o carro, Marco pensou que talvez estivesse perdendo tempo. Dois anos antes não conseguira saber nada do mudo. Recorreram a um especialista que, depois de examiná-lo, garantiu que o ouvido do homem estava perfeito e que ele não tinha nenhum problema físico que o impedisse de ouvir. No entanto, o mudo continuava tão encerrado em si mesmo que era difícil saber se realmente ouvia ou não. Provavelmente agora aconteceria a mesma coisa, mas achava que devia vê-lo, tentar descobrir o que podia haver por trás daquele homem misterioso e sem rastro. O diretor da prisão não estava, mas dera ordens expressas para atenderem os pedidos de Marco; este pediu que o deixassem a sós com o mudo. - Tudo bem - disse o chefe dos carcereiros -, ele é muito tranqüilo. Não é de criar problema, além disso é meio místico, prefere ficar na capela em vez de ir para o pátio com os outros. Falta pouco tempo para ele sair; como o crime não foi grave, pegou só três anos. Portanto, mais um ano e está livre. Se tivesse advogado, já podia pedir a condicional por bom comportamento, mas não tem ninguém. - Ele escuta quando falam com ele? - Ah! Isso é um mistério. Às vezes parece que sim, outras que não. Depende. - Assim o senhor não me ajuda muito. - É que este homem é especial, não sei, não parece ladrão. Bom, pelo menos não se comporta como um ladrão. Tivemos um outro mudo aqui, anos atrás, e era diferente, não sei, se notava que era um delinqüente. Mas este, como lhe digo, passa o tempo olhando o vazio ou na capela. - Não pediu nada para ler, um jornal, algo assim? - Não, nunca. Também não assiste televisão, não se interessa nem pela Copa do Mundo. Não recebe cartas, nem escreve para ninguém. Quando o mudo entrou, na sala onde Marco o esperava, não demonstrou surpresa, apenas indiferença. Ficou em pé, perto da porta, os olhos baixos, esperando. Marco fez um gesto para que se sentasse, mas o mudo continuou em pé. - Não sei se está me ouvindo, desconfio que sim. O mudo ergueu ligeiramente os olhos do chão, em um movimento imperceptível para quem não fosse, como Marco, um profissional da condição humana. - Seus amigos tentaram roubar a catedral de novo. Desta vez, provocaram um incêndio. Felizmente o Sudário continua intacto. O mudo tinha total controle das suas emoções e seu rosto continuava impassível. Marco, porém, tinha a impressão de que sua bengala de cego o levava a algum lugar, porque aquele homem, depois de passar anos na prisão, estava muito mais vulnerável do que quando o prenderam. - Imagino que ficar aqui deve ser horrível. Não vou fazer você perder seu tempo, nem quero perder o meu. Você ainda tinha um ano para cumprir. Digo tinha, porque reabrimos seu processo, por causa das investigações desse novo incêndio. O homem que morreu torrado também era mudo. Portanto, você tem pela frente uma longa temporada na prisão, até acabarmos de investigar, de juntarmos as peças do quebra-cabeça o que pode levar dois, três, sei lá quantos anos. Por isso estou aqui; se você me disser quem é e quem são seus amigos, talvez possamos fazer um acordo. Eu poderia pedir que te dessem a condicional e você passaria a ser uma testemunha protegida, o que significa uma identidade nova e que seus amigos nunca poderiam encontrá-lo. Pense bem. Posso resolver esse caso em um dia ou em dez anos, mas, enquanto ele estiver aberto, você vai apodrecer na prisão. Marco lhe entregou um cartão com seus telefones. - Se quiser falar comigo, mostre este cartão aos carcereiros; eles ligarão para mim. Como o mudo não estendia a mão para pegar o cartão, Marco resolveu deixá-lo em cima da mesa. - Pense bem, é a sua vida que está em jogo, não a minha. Ao sair da sala, Marco evitou olhar para trás. Bancou o durão e das duas uma: ou fizera papel de bobo, porque o mudo não ouviu nada ou, ao contrário, conseguira semear a incerteza no homem e ele reagiria. Mas, será que compreendeu alguma coisa? Será que ele entendia italiano? Não sabia. Em algum momento lhe parecera que sim, mas talvez estivesse enganado. Quando o mudo voltou a sua cela, deitou-se no catre e ficou olhando para o teto. Sabia que as câmeras de segurança varriam cada canto e, portanto, devia continuar impassível. Um ano, só faltava um ano para voltar a ser livre e agora vinha aquele policial e dizia que ele nem sonhasse em sair. Podia estar blefando, mas também podia estar dizendo a verdade. Como não assistia televisão com o resto dos presos, ficava sem saber das notícias de fora. Addaio lhes dissera que, se fossem pegos, deviam se isolar, cumprir a pena e procurar um modo de voltar para casa. Agora, Addaio fizera uma nova tentativa, enviando uma outra equipe. Um incêndio, um companheiro morto e outra vez a polícia procurando pistas, desorientada. Na prisão, tivera tempo para pensar e a conclusão era evidente: havia um traidor entre eles. Não era possível que, toda vez que planejavam uma ação, alguma coisa errada acontecesse e eles acabassem presos ou entre as chamas. Sim, havia um traidor em suas fileiras e houve outros antes. Tinha certeza disso. Precisava voltar e convencer Addaio a investigar, para encontrar o culpado de tantos fracassos e de sua desgraça. Mas, por mais difícil que fosse, tinha de esperar. Se esse policial lhe propôs um acordo era porque não sabia de nada; senão estaria em um tribunal. Era um blefe e ele não podia fraquejar. Sua força vinha da mudez e do rigoroso isolamento a que se submetera. Fora treinado para isso, mas como sofrera nesses dois anos, sem ler um livro, sem ter notícias de fora, sem se comunicar com os outros, mesmo que por sinais. Os carcereiros e os guardas estavam convencidos de que ele era um pobre louco inofensivo, arrependido de tentar roubar a catedral e que por isso ia à capela rezar. Era isso o que diziam. Sabia que tinham pena dele. Agora tinha que continuar fazendo seu papel, o papel de quem não só não fala, mas também não ouve, nem entende, seu papel de infeliz, e esperar que tivessem confiança e falassem na sua frente. Sempre faziam isso, porque para aquela gente ele era como um traste. Deixara de propósito, na mesa da sala de visitas, o cartão que o policial lhe dera. Nem tocou nele. Agora era esperar, esperar que outro maldito ano passasse. - Deixou o cartão onde você pôs, nem mexeu nele. - E estes dias notaram alguma coisa de especial? - Nada, está como sempre. Vai à capela nas horas livres e o resto do dia fica na cela, olhando o teto. As câmeras de segurança filmam 24 horas. Se tivesse feito alguma coisa diferente, eu teria telefonado. - Obrigado. Marco desligou o telefone. Sua intuição falhara. Tinha certeza de que o mudo ia reagir, mas o diretor da prisão garantia que nada mudara. Sentia um certo desânimo, porque a investigação não avançava. Minerva estava para chegar. Pedira que ela viajasse a Turim, porque queria fazer uma reunião com a equipe inteira, e ver se, juntos, conseguiam esclarecer alguma coisa. Ficariam lá, mais alguns dias. Depois tinham que voltar a Roma; não podia se dedicar exclusivamente a este caso, no departamento não iriam entender, nos ministérios também não e o pior que podia acontecer era acharem que se tratava de uma obsessão. Os manda-chuvas não entenderiam. O Santo Sudário estava intacto, não fora danificado, não levaram nada da catedral. Havia o cadáver de um dos ladrões; não pôde ser identificado, mas ninguém parecia estar muito preocupado com isso. Sofia e Pietro entraram no escritório. Giuseppe tinha ido buscar Minerva no aeroporto e Antonino, sempre pontual, já estava lá, há algum tempo, lendo documentos. - Alguma novidade, chefe? - cumprimentou Sofia. - Nenhuma. O diretor da prisão garante que o mudo não se abalou, como se não tivesse me encontrado. - É mais ou menos normal - comentou Pietro. - É, acho que sim. Nesse momento, uma sonora gargalhada e passos barulhentos anunciaram a chegada de Minerva. Giuseppe e ela entraram, rindo. De estatura mediana, nem gorda nem magra, nem feia nem bonita, Minerva estava sempre de bom humor. Era muito bem casada com um analista de sistemas que, assim como ela, era um verdadeiro gênio da informática. Depois dos cumprimentos de praxe, a reunião começou. - Bem - disse Marco -, vamos recapitular. Quero saber a opinião de cada um. Pietro... - A empresa encarregada das obras na catedral se chama COCSA. Interroguei todos os operários que estão trocando a instalação elétrica, não sabem de nada e acho que estão dizendo a verdade. A maioria é italiana, mas tem alguns imigrantes: dois turcos e dois albaneses. Estão com os documentos em ordem, inclusive a permissão de trabalho. "Pelo que dizem, costumam chegar à catedral às oito e meia da manhã, no fim da primeira missa. Quando os fiéis saem, as portas se fecham e não há serviços até as seis da tarde. Entre uma e meia e quatro horas da tarde, eles fazem um pequeno intervalo para o almoço. Às quatro em ponto eles voltam a trabalhar e vão embora às seis. Apesar de a instalação elétrica não ser muito velha, estão fazendo uma nova, para iluminar melhor algumas capelas da catedral. Também estão consertando alguns descascados das paredes, por causa da umidade. Calculam que daqui a mais umas duas ou três semanas, terminam. "Não se lembram de nada especial no dia do incêndio. Quem estava trabalhando no lugar onde o fogo começou era o Tarik - um dos turcos -, e dois operários italianos. Não sabem dizer como foi que deu curto-circuito. Os três garantem que prenderam todos os fios, quando saíram para almoçar em um bar perto da catedral. Não entendem até agora como isso aconteceu." - Mas aconteceu - comentou Sofia. Pietro olhou para ela de cara feia e continuou: - Os operários estão satisfeitos com a empresa; garantem que ganham bem e que são bem tratados. Me disseram que o padre Yves é que supervisiona o trabalho na catedral, que ele é muito gentil, mas não deixa passar nada e sabe muito bem o que quer. O cardeal só é visto quando reza a missa das oito e quando visita a obra com o padre Yves. Marco acendeu um charuto, apesar do olhar de censura de Minerva. - No entanto, o relatório dos peritos é conclusivo – continuou Pietro. - O incêndio começou quando alguns fios pendurados sobre o altar da capela da Virgem pegaram fogo. Teria sido um descuido? Os operários garantem que deixaram os fios presos, em perfeitas condições, mas é mesmo verdade ou dizem isso para se justificar? Interroguei o padre Yves. Ele acha os operários muito profissionais, mas está convencido de que alguém cometeu um descuido. - Quem estava na catedral naquela hora? - perguntou Marco. - Parece que só o zelador - continuou Pietro -, um senhor, de 65 anos. Nos escritórios tem gente até as duas. Depois saem para almoçar e voltam lá pelas quatro e meia. O incêndio aconteceu por volta das três horas e a única pessoa que se encontrava lá era o zelador. Ele estava em estado de choque. Quando eu o interroguei começou a chorar, estava muito assustado. Se chama Francesco Turgut, é italiano, de pai turco e mãe italiana. Nasceu em Turim. Seu pai trabalhava na Fiat e sua mãe era filha do zelador da catedral e ajudava a mãe a limpar a nave. Os zeladores têm uma casa contígua ao edifício e, quando seus pais se casaram, como não tinham recursos, foram morar nessa casa. Francesco nasceu lá, a catedral é sua casa e diz que se sente culpado, porque não conseguiu evitar o incêndio. - Ele ouviu alguma coisa? - perguntou Minerva. - Não, estava assistindo televisão, meio dormindo. Levanta muito cedo para abrir a catedral e os escritórios anexos. Diz que se assustou com a campainha, e um homem que passava pela praça o avisou da fumaça que saía do edifício. Saiu correndo e deu com o fogo, chamou os bombeiros e, desde então, está arrasado, tem de ver, não faz outra coisa a não ser chorar. - Pietro, você acha que o incêndio foi provocado por alguma negligência? A pergunta de Marco surpreendeu Pietro. - Se não tivéssemos encontrado o cadáver de um mudo, eu diria que foi negligência. Mas temos o cadáver de um homem de quem não sabemos nada. O que ele estava fazendo lá? Como entrou? O zelador diz que inspeciona a catedral antes de fechá-la e que não tinha ninguém. Parte de seu trabalho consiste justamente em se certificar que ninguém ficou dentro. Ele jura que, quando apagou as luzes, a catedral estava vazia. - Pode ter se distraído, é um velho - conjeturou Sofia. - Ou está mentindo - interveio Pietro. - Ou alguém entrou depois que a catedral estava fechada – disse Giuseppe. - É - continuou Pietro. - De fato alguém forçou a porta lateral que dá para os escritórios de onde se pode chegar à catedral. Também forçaram a fechadura. A pessoa sabia por onde entrar e como chegar. A prova é que entrou sem fazer barulho, sem chamar a atenção e quando não tinha ninguém nos escritórios. - Nós temos certeza - disse Giuseppe - que o ladrão, ou os ladrões, conhece alguém que trabalha na catedral ou tem alguma relação com ela. Alguém que avisou que naquele dia e naquela hora não haveria viva alma. - Por que vocês têm tanta certeza? - perguntou Minerva. - Porque neste incêndio - continuou Giuseppe -, como no suposto roubo de dois anos atrás, e no incêndio de 1997, e nos outros acidentes, os ladrões sempre sabiam que não tinha ninguém dentro. Além da entrada principal, só existe a dos escritórios, porque as outras todas estão vedadas. E sempre forçaram essa entrada lateral. A porta é blindada, mas para profissionais, blindagem não é problema. Nós achamos que havia outros homens com nosso mudo morto e que eles fugiram. Ninguém assalta uma catedral sozinho. Outra coisa que averiguamos é que todos os supostos assaltos foram feitos quando a catedral estava em obras. Aproveitam para provocar um curto-circuito, uma inundação, o caos. E desta vez também não levaram nada. Então, a pergunta é: o que eles estavam procurando? - O Sudário - disse Marco com firmeza -, mas para quê? Para destruí-lo? Para roubá-lo? Não sei. Me pergunto se forçar a porta não é uma pista falsa, é muito evidente... Minerva, o que você descobriu? - Posso acrescentar que um dos acionistas da empresa que executa as obras é Umberto d'Alaqua. Já comentei isso com a Sofia. A tal COCSA é uma empresa conceituada, solvente, que trabalha para a Igreja em Turim e no resto da Itália. D'Alaqua é muito considerado no Vaticano. Uma espécie de assessor financeiro, já lhes aconselhou inúmeros investimentos, fez vultosos empréstimos para operações em que o Vaticano não queria aparecer. É um homem de confiança da Santa Sé e também participou de missões diplomáticas delicadas. Seus negócios vão da construção civil ao aço, passando pela prospecção de petróleo, etc. Tem uma participação importante na COCSA. "Além disso, é um homem interessante. Solteiro, atraente, apesar dos 57 anos, e austero. Nunca faz alarde do dinheiro nem do poder que tem. Nunca foi visto nas festas dos famosos e não tem namorada." - É homossexual? - perguntou Sofia. - Não, não é. Também não é da Opus, nem de nenhuma ordem laica, mas é como se tivesse feito voto de castidade. Seu hobby é a arqueologia: financiou algumas escavações no Egito, na Turquia, e em Israel, onde ele mesmo já passou temporadas escavando. - Não acho que, com esse currículo, D'Alaqua possa estar entre os suspeitos de querer roubar ou destruir o Sudário - comentou Sofia. - Não, mas é um personagem singular - insistiu Minerva. – O professor Bolard também é um personagem singular. Sabe, chefe, esse professor é um reconhecido cientista francês. Químico e microanalista é um dos mais renomados estudiosos do Sudário. Estuda a relíquia há mais de trinta e cinco anos, examinando seu estado. Vem a Turim a cada três ou quatro meses; é um dos cientistas encarregados pela Igreja da conservação do Sudário. Não dão um passo, sem consultá-lo. - É verdade - disse Giuseppe. - Antes de levar o Sudário para o banco, o padre Yves falou com Bolard. Ele deu instruções precisas de como deveria ser feito o traslado. Faz anos que a câmara blindada abriga um cubículo, preparado de acordo com as instruções do professor Bolard e de outros professores, onde o Sudário é guardado. - Pois bem - continuou Minerva -, Bolard é dono de um grande laboratório, é solteiro, tão rico quanto D' Alaqua, e nunca ninguém ouviu dizer que tivesse tido um caso. Também não é homossexual. - D'Alaqua e Bolard se conhecem? - perguntou Marco. - Parece que não, mas ainda estou investigando. Não estranharia se eles se conhecessem, pois Bolard também é apaixonado pelo mundo antigo. - O que descobriu sobre o padre Yves? - Marco continuou perguntando a Minerva. - Um mocinho bem esperto, esse tal padre. É francês, de família aristocrata, influente. O pai, já falecido, era diplomata e foi um dos chefões do Ministério de Relações Exteriores na época do De Gaulle. O irmão mais velho é deputado na Assembléia Nacional, além de ter ocupado vários cargos no governo Chirac. A irmã é juíza do Supremo e ele está fazendo uma carreira meteórica na Igreja. Seu protetor mais direto é o monsenhor Aubry, ajudante do substituto do Secretário de Estado, mas o cardeal Paul Visier, encarregado das finanças do Vaticano, também tem simpatia por ele pois foi colega de faculdade de Jean, seu irmão mais velho. Por isso o promoveu para ganhar experiência na carreira diplomática. Ele ocupou cargos nas nunciaturas de Bruxelas, de Bonn, do México é do Panamá. Foi nomeado secretário do cardeal de Turim, justamente por recomendação do monsenhor Aubry, e há boatos de que logo será bispo auxiliar da diocese. Sua biografia não tem nada de especial, salvo que é um fIlhinho de papai metido a padre, com uma família influente que o apóia em sua carreira eclesiástica. O currículo acadêmico dele não é nada mau. Além de teologia, estudou filosofia pura, se graduou em línguas clássicas e orientais, vocês sabem, latim, aramaico... Além disso, fala fluentemente outros idiomas. "Sua única peculiaridade é gostar de artes marciais. Parece que na infância era um pouco franzino, e, para evitar que apanhasse, o pai colocou-o para aprender caratê. Ele gostou e, além de ser faixa preta de caratê com não sei quantos dan, também é de tae-kwondo, kickboxing e aiquidô. As artes marciais são sua única fraqueza, mas perto das fraquezas que costumam ter no Vaticano, a do padre Yves é café pequeno. Ah!, e apesar de ser tão bonito, pelo menos na foto, nunca se soube que tivesse aventuras amorosas, nem com moças, nem com rapazes. Nada, celibatário convicto." - Que mais? - perguntou Marco, sem se dirigir a ninguém em especial. - Mais nada - disse Giuseppe. - Estamos de novo na estaca zero. Sem pistas, e o que é pior, sem motivo. Se você acha que a estória da porta é uma pista falsa, nós vamos investigar, mas então por que raio de lugar eles entram e saem? Vasculhamos a catedral de cima a baixo e não encontramos nenhuma entrada secreta. Quando perguntamos ao cardeal se havia alguma, ele deu risada. Garantiu que a catedral não tem passagens secretas. Ele tem razão, consultamos mais de uma vez as plantas das galerias que comunicam a cidade subterrânea e nessa região não tem nenhuma. Aliás, os turineses estão ganhando muito dinheiro, levando os turistas para visitar as galerias e ouvir a história de seu herói, Pietro Micca. - O motivo é o Sudário - sublinhou Marco, de mau humor. Eles estão atrás do Sudário, ainda não sei se querem roubá-lo ou destruí-lo, mas o alvo é o Santo Sudário, não tenho a menor dúvida. Bem, alguma outra sugestão? Fez-se um silêncio incômodo. Sofia buscou o olhar de Pietro, mas este, cabisbaixo, estava distraído, acendendo um charuto. Então, ela resolveu falar, dizer o que pensava. - Marco, eu, se fosse você, soltava o mudo. Todos os olhares se cravaram em Sofia. Teriam escutado bem? - O mudo pode ser nosso cavalo de Tróia. Se você está certo e tem mesmo alguém atrás do Sudário, é evidente que só pode ser uma organização que usa matadores profissionais mudos, com as impressões digitais queimadas, porque se forem pegos, como o da prisão de Turim, continuam calados, se isolam e não caem na tentação de falar. Sem impressões digitais é impossível conhecer a identidade de certos homens, sua origem. Eu acho que as ameaças que fez ao mudo não vão adiantar nada; aposto como ele não vai pedir para falar com você. Vai cumprir a pena até o fim, pois só falta um ano. Então, das duas uma: ou esperamos um ano, ou você convence os chefes a aprovarem uma nova linha de investigação que passa por soltar o mudo e, uma vez na rua, ir no seu encalço. Ele vai ter de ir a algum lugar, entrar em contato com alguém. "É o fio que pode nos levar ao miolo do novelo, é nosso cavalo de Tróia. Se você optar por esse plano, terá que elaborá-lo muito bem. O mudo não pode ser solto já, teriam de esperar pelo menos uns dois meses e, além disso, fazer uma bela encenação, para ele não desconfiar por que está sendo posto em liberdade." - Meu Deus, como a gente foi idiota! - exclamou Marco, dando um murro na mesa. - Como pudemos ser tão cretinos! Nós, os carabinieri, todo mundo. A solução debaixo do nosso nariz, e nós, dois anos, fazendo papel de bobo. Todos olharam para ele ansiosos. Sofia não sabia se o chefe estava provando seu plano ou se simplesmente acabava de se dar conta de alguma coisa que passara desapercebida aos demais, mas as palavras que disse a seguir não deixaram dúvidas. - Mas é claro, Sofia! Já devíamos ter feito isso. Seu plano é perfeito. Vou apresentá-lo aos ministros. Eles têm de falar com os juízes, com o fiscal, com quem for preciso para soltar o mudo e, depois que ele sair, montamos um dispositivo e o seguimos por toda parte. - Chefe - interrompeu Pietro -, não podemos nos precipitar. Primeiro precisamos pensar em como vender ao mudo sua soltura. Dois meses, como a Sofia propõe, eu acho pouco, levando em conta que você acabou de ir lá e dizer que ele ia apodrecer na prisão. Se for solto, vai desconfiar que é uma armadilha e não vai fazer nada. Minerva se remexeu incômoda na cadeira, e Giuseppe parecia absorto. Antonino continuava imóvel. Eles sabiam que agora era a vez deles opinarem. Marco sempre exigia que os membros da equipe tomassem uma posição. A decisão final era dele, mas sempre os ouvia. - Antonino, por que você está tão quieto? - perguntou Marco. - O plano de Sofia é brilhante. Acho que devemos adotá-lo, mas concordo com Pietro que não podemos soltar o mudo logo; estou quase achando melhor deixar ele cumprir o ano que falta. - E enquanto isso o que sugere que a gente faça? Que fique de braços cruzados, esperando que voltem a tentar alguma coisa contra o Sudário? - exclamou Marco. - O Sudário - respondeu Antonino - está na caixa-forte do banco e pode continuar lá pelos próximos meses. Não vai ser a primeira vez que passa uma longa temporada sem ser exposto ao público. - Antonino tem razão - comentou Minerva - e você sabe disso, Marco. É lógico que agora que encontramos o cavalo de Tróia dá raiva ter de esperar, mas se nos afobarmos podemos perder nossa única pista, porque não tenho a menor dúvida de que se soltar o mudo agora, ele não dará um passo em falso. - Giuseppe? - Sabe, chefe, para mim, também me dá raiva cruzar os braços, justo agora que encontramos um jeito de investigar de verdade esse caso. - Eu não quero esperar - disse Marco categórico - ; não podemos esperar um ano, como diz o Pietro. - Mas é o mais sensato - argumentou Giuseppe. - Eu faria mais uma coisa. Todos os olhares tornaram a convergir para Sofia. Marco ergueu as sobrancelhas e as mãos, convidando-a a falar. - Acho que precisamos voltar a investigar os operários, até termos certeza de que o curto-circuito foi mesmo um acidente. Também temos de investigar a COCSA e inclusive entrevistar o D'Alaqua. Pode ser que por trás de tanta normalidade haja alguma coisa que nos escapa. - Você tem alguma suspeita, Sofia? - perguntou Marco. - Não exatamente, mas minha intuição me diz que devemos investigar os operários de novo. Pietro olhou para ela contrariado. Ele se encarregara de interrogálos e o fizera exaustivamente. Tinha uma pasta com os dados de todos eles, dos italianos e dos outros e não encontrara nada, nem nos computadores da polícia, nem nos da Interpol. Estavam limpos. - Está suspeitando deles só por que são estrangeiros? As palavras de Pietro atingiram Sofia como um golpe baixo. - Você sabe que não, e essa me parece uma insinuação de má fé. Simplesmente acho que devemos voltar a investigar todos, os estrangeiros e os italianos e, se bobear, até o cardeal. Marco se deu conta do duelo que o casal travava e se chateou. Gostava dos dois, talvez mais de Sofia Galloni, por quem sentia uma certa admiração. Além disso, achava que ela tinha razão, que talvez alguma coisa Ihes escapasse e, portanto, não custava nada voltar a insistir na investigação. Mas tinha de dar razão a Sofia, sem magoar Pietro, que parecia chateado não sabia por quê. Seria ciúme do brilhante plano de Sofia? Ou tinham brigado e agora travavam uma batalha sentimental ali, na frente de todo mundo e à custa do trabalho? Se era isso ia cortar o mal pela raiz. Eles sabiam que não ia tolerar que os problemas pessoais se misturassem ao trabalho. - Todos nós vamos rever o que fizemos até agora e não descartaremos nenhuma linha de investigação. Pietro se remexeu na cadeira. - Que foi, vai transformar todo mundo em suspeito? Marco já estava se aborrecendo com a situação e o tom de Pietro lhe pareceu agressivo. - Vamos continuar investigando. Vou voltar para Roma agora mesmo. Quero conversar com os ministros para eles darem sinal verde ao cavalo de Tróia. Vou pensar em como não ter de esperar um ano para soltar o mudo, sem que ele desconfie. Em Roma temos trabalho, então alguns de vocês ficam aqui mais uns dias e os outros voltam, sabendo que quem volta não está abandonando o caso, simplesmente vai conciliar este, com o trabalho do escritório. Quem vai ficar? - Eu - disse Sofia. - Eu também - disseram ao mesmo tempo Giuseppe e Antonino. - Bom, então a Minerva e o Pietro voltam comigo. Acho que tem um avião às três. Ainda dá tempo de o Pietro e eu irmos buscar a bagagem no hotel. - Acho que sou mais útil com meus computadores em Roma comentou Minerva. 8 O velho levantou o alçapão e iluminou o esconderijo com a lanterna. Os três mudos estavam lá, olhando para ele impacientes. Desceu a desconjuntada escada que levava ao porão oculto e sentiu um leve estremecimento. Estava ansioso por se ver livre dos mudos, mas também sabia que qualquer decisão precipitada podia terminar com todos eles na prisão e, o que era pior, com a vergonha de um novo fracasso e o eterno desprezo de Addaio que podia até excomungálo. - Os policiais de Roma foram embora. Hoje eles se despediram do cardeal e o chefe, o tal Marco, ficou um bom tempo conversando com o padre Yves. Acho que vocês já podem sair, porque, pelo que entendi, os carabinieri não suspeitam que tivesse mais alguém na catedral, além do companheiro morto. Cada um deve seguir seu plano de fuga, conforme as instruções do Addaio. O mais velho dos três, um homem de uns trinta e poucos anos, assentiu e escreveu em um papel: "Tem certeza de que não tem perigo?" - Parece que não. Escreva aí, se precisa de alguma coisa. O mudo que parecia o chefe tornou a escrever no papel: "Precisamos nos lavar melhor, não podemos sair assim. Traga mais água e uma bacia. O que está acontecendo com os caminhões?" - Lá pela uma da manhã, eu desço de novo. Vamos juntos, pelo túnel, até o cemitério monumental. De lá você segue sozinho. Vai ter um caminhão parado na estação de Merci Vanchiglia, do outro lado da praça, mas ele não pode esperar mais que cinco minutos. Aqui está o número da placa - disse, entregando-lhe um papel. - Ele vai te levar até Gênova; lá você embarca como marinheiro no Estrela do Mar e em uma semana está em casa. O chefe assentiu com a cabeça. Seus dois companheiros esperavam ansiosos. Eram bem mais jovens, não deviam ter nem 20 anos. Um era alto, de cabelo preto cortado em estilo militar, ombros largos, braços musculosos. O outro de compleição mais delicada e mais baixo, tinha cabelo castanho e um brilho constante de impaciência no olhar. O velho se dirigiu ao de cabelo preto. - Você vai amanhã de madrugada. Faremos o mesmo percurso até o cemitério. Quando sair na rua, vire à esquerda e ande até o rio; o caminhão vai estar lá. Depois de passar a fronteira com a Suíça, seguirá para a Alemanha. Vão esperá-lo em Berlim; já tem o endereço dos que vão levá-lo para casa. O jovem de compleição delicada olhou fixamente para o velho. Ele sentiu medo, porque os olhos castanhos do mudo refletiam toda a sua ira. - Você vai ser o último a sair. Tem de ficar mais dois dias aqui. O caminhão vai pegá-lo também de madrugada, às duas e vai direto para casa. Boa sorte! Vou trazer a água. O mudo com o cabelo cortado estilo militar agarrou seu braço com força e indicou que queria fazer uma pergunta que escreveu rápido no papel. - O que aconteceu com Mendibj? Como sabem, ele está preso. Agiu como um louco, não esperou os companheiros chegarem, entrou sozinho na catedral e foi até a capela. Não sei o que fez, mas o alarme disparou. Tenho ordens de Addaio para evitar riscos, portanto, não posso ajudá-lo. Mendibj foi pego correndo pela praça do Castelo. Sigam as instruções e não haverá problema, não tem porque haver. Ninguém sabe deste porão, nem do túnel. No subsolo de Turim se cruzam dezenas de túneis, mas nem todos são conhecidos; este ainda não foi descoberto. Se isso acontecesse, seria uma catástrofe. Nos fariam desaparecer da face da terra. Quando o velho saiu do porão, os mudos se entreolharam. O chefe começou a escrever em um papel as instruções que cada um devia seguir. Em algumas horas iniciariam uma longa viagem e ou conseguiam chegar em casa ou seriam presos. A sorte não os abandonara de todo, a prova é que estavam vivos, mas não seria fácil fugir de Turim. Não é fácil três mudos passarem despercebidos. Que Deus ouvisse suas preces e eles conseguissem chegar até Addaio. Abraçaram-se espontaneamente e suas lágrimas fundiram-se nesse abraço. 9 - Josar! Josar! O jovem entrou correndo no quarto onde Josar descansava. O sol acabava de aparecer no horizonte e Josar, cansado, ainda dormitava. Custava-lhe abrir os olhos. Quando, por fim, o fez, deu com a figura espigada de seu sobrinho Izaz. lzaz estava aprendendo o ofício de escriba. Josar o ensinava, por isso passavam muito tempo juntos, embora também recebesse lições de um filósofo, Marcião, com quem aprendia grego, latim, matemática, retórica e filosofia. - Está chegando uma caravana e um mercador mandou um mensageiro ao palácio perguntar por ti. Diz que vem na companhia de Tadeu, um amigo de Jesus, e que trazem notícias de Tomás. Josar se levantou sorrindo e se apressou em refrescar-se, enquanto perguntava a Izaz: - Tens certeza de que Tadeu chegou a Edessa? Não fizeste alguma confusão? - Quem me mandou vir te buscar foi a rainha; foi ela que me disse o que eu, por minha vez, deveria dizer-te. - Ai, Izaz! Não posso acreditar que seja verdade tanta alegria. Tadeu era um dos seguidores de Jesus. E Tomás... Tomás contava com toda a confiança do Salvador, era um dos seus discípulos mais próximos, um dos doze escolhidos. Tadeu trará notícias de Jerusalém, de Pedro, de João... Josar se vestiu rapidamente. Queria chegar logo onde as caravanas descansavam, depois de seu longo percurso. Levaria lzaz com ele, para que seu jovem sobrinho conhecesse Tadeu. Saíram da modesta casa onde Josar morava. Desde que voltara de Jerusalém, ele vendera seus pertences, casa e mobília, e repartiu o dinheiro entre os mais necessitados da cidade. Encontrou guarida numa casa tão pequena quanto humilde, onde tudo o que tinha era, além da cama, uma mesa, bancos e pergaminhos, centenas de rolos que ele lia e onde, por sua vez, escrevia. Josar e Izaz se apressaram pelas ruas de Edessa até chegar nos limites da cidade. Lá se encontrava o caravançará e, naquela hora da manhã, os mercadores preparavam suas mercadorias para ir até a cidade, enquanto um enxame de escravos andava de um lado para o outro, dando de comer e de beber aos animais, carregando fardos, atiçando as fogueiras. - Josar! A voz profunda do chefe dos guardas do rei fez com que se virasse. Lá estava Marvuz com um grupo de soldados. - O rei me enviou para te escoltar ao palácio com o tal Tadeu que chegou de Jerusalém. - Obrigado, Marvuz. Espera aqui enquanto eu o procuro e, depois, nos acompanharás ao palácio. - Já perguntei e a tenda do mercador que o acompanha é aquela grande, cinza cor de chumbo. Eu estava indo para lá. - Espera, Marvuz, espera, eu gostaria de abraçar meu amigo com calma. O soldado fez um gesto para seus homens e aguardaram que Josar fosse até a tenda do mercador. Izaz seguia seus passos, sabendo da emoção que o tio devia estar sentindo por tornar a se encontrar com um discípulo de Jesus. Ele lhe falara muito de todos: de João, o favorito do Mestre; de Pedro, em quem Jesus confiava, apesar de o ter traído; de Marcos e Lucas; de Mateus e Tomás e de tantos outros de cujos nomes mal se lembrava. Josar se aproximou, trêmulo, da entrada da tenda, de onde, naquele momento, saía um homem alto, de feições delicadas, vestido como os mercadores ricos de Jerusalém. - Tu és Josar? - Sou. - Entra, Tadeu te espera. Josar entrou na tenda e lá estava Tadeu, sentado em um almofadão, escrevendo em um pergaminho. Os dois homens se olharam e sorriram, contentes com o encontro. Tadeu se levantou e abraçou Josar. - Meu amigo, que alegria te encontrar - disse Tadeu. - Nunca pensei que tornaria a ver-te. Quanta alegria me dás, como me lembrava de ti! Pensar em vocês me faz sentir próximo do Mestre. - Ele gostava de ti, Josar, e confiava em ti. Sabia que teu coração. estava cheio de bondade e que transmitirias sua palavra onde quer que fosses, onde estivesses. - Foi o que fiz, Tadeu, foi o que fiz, sempre temeroso de não ser capaz de transmitir as palavras do Mestre como devia. Nesse instante o mercador entrou. - Tadeu, te deixarei com teu amigo para que possais conversar. Meus criados vos trarão tâmaras, queijo e água fresca e não vos importunarão salvo se precisardes deles. Devo ir à cidade onde minhas mercadorias me esperam. Voltarei à tarde. - Josar - disse Tadeu -, este mercador se chama Josué e viajei sob sua proteção desde Jerusalém. É um bom homem que costumava ir ouvir Jesus e se escondia temendo que o Mestre o rejeitasse. Mas Jesus, que via a todos, um dia lhe disse para se aproximar e suas palavras foram um bálsamo para a alma de Josué, que acabara de enviuvar. É um bom amigo que nos ajudou, suas caravanas nos mantêm em contato e nos ajudam a levar a palavra do Mestre por todos os caminhos. - Bem-vindo sejas, Josué - respondeu Josar -, aqui estás entre amigos; dize se te podemos ajudar em alguma coisa. - Obrigado, bom amigo, mas não preciso de nada, embora agradeça teu oferecimento. Sei que seguias o Mestre e Tadeu e Tomás te têm em grande estima. Agora irei à cidade e voltarei ao entardecer. Aproveitai o reencontro, que deveis ter muito que falar. Josué saiu da tenda, enquanto um homem negro como a noite arrumava uns pratos com tâmaras, frutas e uma jarra de água. Entrou e saiu sem dizer palavra. Izaz assistia à cena toda em silêncio. Não ousava fazer notar sua presença. Seu tio parecia ter se esquecido dele, mas Tadeu lhe sorriu e fez um gesto para que se aproximasse. - E este jovem? - É meu sobrinho Izaz. Estou ensinando a ele meu ofício de escriba e pode ser que um dia venha a ocupar meu antigo cargo no palácio. É um bom menino, seguidor dos ensinamentos de Jesus. Naquele instante Marvuz entrou na tenda. - Josar, desculpa que interrompa, mas Abgar enviou uma criada do palácio, porque está ansioso de ter notícias tuas e deste homem que chegou de Jerusalém. - Tens razão, Marvuz, a emoção do encontro me fez esquecer que o rei espera notícias nossas. Quer conhecer-te e honrar-te, Tadeu, porque deves saber que Abgar abandonou as práticas pagãs e crê em um só Deus, o Pai de Nosso Senhor. E que a rainha e a corte também professam a fé de Jesus. Construímos um templo, humilde, sem adornos, onde nos reunimos para pedir a misericórdia de Deus Pai e falamos dos ensinamentos de Jesus. Escrevi tudo de quanto me lembrava do que escutei dele, mas agora que estás aqui poderás falar-nos dos ensinamentos do Mestre e explicar melhor do que eu o fiz, como era Jesus e como decidiu morrer para nos salvar. - Iremos ver o rei - assentiu Tadeu - e no caminho me contarás as novidades. Uns mercadores chegaram a Jerusalém com a notícia de que Abgar se curara de sua doença mortal, depois de tocar o sudário de Jesus. Quero que me contes esse milagre do Salvador e que fales de como a fé se propagou por esta bela cidade. Abgar estava impaciente. A rainha, a seu lado, tentava acalmá-lo. Josar e Tadeu demoravam. O sol já brilhava sobre Edessa e ainda não tinham chegado. Ardia em desejos de escutar esse discípulo de Jesus, para aumentar seus conhecimentos sobre o Salvador. Pediria que ele ficasse para sempre, ou pelo menos por um longo tempo, para que todos pudessem ouvir de seus lábios outras histórias de Jesus, além das que Josar lhes contara. A ele, Abgar, rei daquela próspera cidade, às vezes lhe custava entender algumas coisas que o Mestre dissera, mas as aceitava todas, tal era sua fé no homem que, depois de morto, o curara. Sabia que nem todos na cidade concordavam com sua decisão de substituir os deuses que cultuavam desde o início dos tempos por um Deus sem imagem, que enviara seu filho à Terra para ser crucificado. Um filho que, apesar dos tormentos que sabia que o esperavam, pregara o perdão aos inimigos, assegurando ser mais fácil um homem pobre entrar nos reinos do céu do que um rico. Muitos de seus súditos continuavam adorando os deuses ancestrais em suas casas e iam até as cavernas da montanha fazer libações diante das imagens do deus lua. Ele, Abgar, consentia que o fizessem; sabia que não se podia impor um deus e que, como dizia Josar, o tempo iria convencendo os incrédulos da existência de um único Deus. Não que seus súditos não acreditassem na divindade de Jesus; é que pensavam que era mais um deus e como tal o aceitavam, mas sem renunciar aos deuses de seus pais. Josar contou a Tadeu como sentira a necessidade de pegar o tecido que cobrira o corpo do Mestre, sabendo que nenhum de seus amigos ousaria tocá-lo, porque segundo a lei judaica um sudário é um objeto impuro. Tadeu assentia com a cabeça às explicações do amigo. Não deram falta do sudário; na verdade tinham esquecido esse pedaço de linho até que chegaram notícias de que havia operado um milagre, devolvendo a saúde ao rei Abgar. Ficaram surpresos e maravilhados, embora estivessem acostumados aos prodígios operados por Jesus. Tadeu explicou a seu amigo o porquê de sua visita. - Tomás sempre se lembra, com afeto, de ti, de como insistias com o Mestre que viajasse a Edessa para curar teu rei e também do compromisso de Jesus de enviar um dos seus à cidade. Por isso, ao saber que o sudário curara Abgar e que difundias os ensinamentos do Salvador, me pediu que viesse aqui para te ajudar. Ficarei o tempo que julgares necessário e te ajudarei a pregar as palavras de Jesus entre essa boa gente. Mas em algum momento terei de partir, porque são muitas as cidades e muitos os homens aos que havemos de ensinar a Verdade. - Queres ver o Sudário? - perguntou Josar. Tadeu hesitou. Ele era judeu e a lei era a lei, também era a lei do Salvador. No entanto, aquele pedaço de linho trazido por José de Arimatéia com que envolveram o corpo de Jesus parecia impregnado de seus poderes. Ele não sabia o que dizer, nem o que fazer. Quase não sabia o que pensar. Josar percebeu o conflito que afligia o amigo e apertou seu braço amistosamente. - Não te preocupes, Tadeu, conheço vossa lei e a respeito. Mas, para nós, habitantes desta velha cidade, uma mortalha não é um objeto impuro que não deve ser tocado. Não precisas nem vê-lo, só deves saber que Abgar mandou o melhor artesão de Edessa construir uma urna para guardar o Sudário e que se encontra em um lugar seguro, sempre custodiado pela guarda pessoal do rei. Esse pano é milagroso, curou Abgar e curou muitos outros que dele se aproximaram com fé. Deves saber que o sangue e o suor deixaram impressos no tecido o rosto e o corpo de Jesus. Em verdade te digo, meu amigo, que ao olhar o Sudário posso ver nosso Mestre e sofro pelo tormento a que os romanos o submeteram. - Em algum momento te pedirei que me mostres a mortalha, mas hei de perguntar a meu coração quando fazê-lo, já que isso implica desobedecer a lei. Chegaram ao palácio, onde Abgar os recebeu com afeto. A rainha, a seu lado, não podia esconder sua ansiedade por conhecer um amigo de Jesus. - Sê bem-vindo como amigo que foste de Jesus. Podes ficar o tempo que quiseres em nossa cidade, onde serás nosso convidado e nada te faltará. A única coisa que te pedimos é que nos fales do Salvador, que lembres suas palavras e feitos, e eu, com tua permissão, pedirei a meus escribas que fiquem atentos a tuas palavras e as compilem para guardá-las nos pergaminhos e assim os homens da minha e de outras cidades possam conhecer, a vida e os ensinamentos de teu Mestre. Durante todo o dia e parte da noite, Tadeu, que aceitou o convite de Abgar para ficar em Edessa, relatou ao rei e à sua corte os milagres de Jesus. Ele não aceitou mais do que um quarto pequeno, com uma cama, em uma casa próxima à de Josar e se recusou, da mesma forma que Josar o fizera em seu regresso de Jerusalém, a ter um escravo que o servisse. Combinou com o rei que Josar seria seu escriba e anotaria tudo o que ele lembrava de Jesus. 10 Em Nova York brilhava um sol primaveril, algo raro naquela época do ano. O velho afastou os olhos dos vidros que filtravam a luz da manhã e atendeu o telefone que acabava de tocar. O sistema de comunicação do escritório era totalmente à prova de escuta. - Alô? - disse com voz firme. - O primeiro mudo já está a caminho. - Algum problema? - Eles continuam usando os mesmos contactos e as mesmas rotas das outras vezes, sem que a policia suspeite de nada. - E o segundo mudo? - Sairá esta noite. O terceiro, amanhã; vão levá-lo em um caminhão que transporta parafusos. É o mais nervoso. - Hoje mesmo vou falar com os nossos em Urfa. Precisamos saber a reação de Addaio e o que vai fazer. - Vai ficar furioso. - Vamos ver o que ele faz. Alguma novidade do homem de Addaio na catedral? - Está muito perturbado. Mas não desperta suspeitas, é visto como um bom homem, afetado pelo que aconteceu. Nem o cardeal nem a polícia suspeitam dele. - Ele deve continuar sendo vigiado. - É o que farão. - E nosso irmão? - Estiveram investigando. Quem é, de que gosta, como chegou a ocupar o cargo que tem. Também investigaram a mim e a outros irmãos. Esse policial, Marco Valoni, é uma pessoa inteligente e tem uma boa equipe. - Precisamos ter cuidado. - Teremos. - A semana que vem em Boston. - Até lá. Sofia e Pietro estavam em silêncio, incomodados um com o outro. Marco fora ao escritório do chefe dos carabinieri de Turim; Minerva, Giuseppe e Antonino resolveram ir tomar um café no bar da esquina, para deixar o casal conversar. Todos notaram que os dois estavam muito tensos. Enquanto Sofia guardava lentamente seus documentos na carteira, Pietro, que parecia distraído, observava a rua pela janela. Estava calado porque não queria censurar Sofia por não tê-lo posto a par da operação cavalo de Tróia. Sofia, por sua parte, estava com a consciência pesada, agora lhe parecia uma criancice não ter contado seu plano a Pietro. - Você está zangado? - perguntou Sofia tentando romper aquele silêncio constrangedor. - Não. Você não tem porque me contar tudo o que pensa. - Vai, Pietro, eu te conheço e sei quando está chateado com alguma coisa. - Não quero começar uma discussão. Você pensou em um plano, que na minha opinião ainda precisaria amadurecer, mas convenceu o chefe, e por isso ganhou uns bons pontos. Vamos fazer o que você disse, e de agora em diante todos vamos trabalhar para que cavalo de Tróia dê certo. Melhor você parar com suas perguntas, senão vamos começar uma briga absurda que não vai levar a nada, só a mais aborrecimentos. - Tudo bem, mas me diga por que você não gosta do meu plano. Por que é meu ou por que vê mesmo pontos fracos nele? - É um erro soltar o mudo, ele vai desconfiar e não nos levará a lugar nenhum. Quanto a voltar a investigar os operários, façam isso e depois me contem se descobriram alguma coisa. Sofia se calou. Estava aliviada com a partida de Pietro. Preferia ficar com Giuseppe e Antonino. Se ele ficasse, acabariam brigando de verdade, e o pior é que prejudicariam os trabalhos. Não estava obcecada pelo Sudário como Marco, mas resolver o caso era um desafio para ela. É, era melhor que Pietro fosse embora e se passassem alguns dias, depois tudo voltaria ao normal. Fariam as pazes e virariam a página. - Por onde começamos, doutora? - Sabe, Giuseppe, acho que devemos voltar a falar com os operários e ver se nos contam agora a mesma coisa que disseram a Pietro. Também deveríamos saber algo mais deles, onde moram, com quem, o que os vizinhos acham deles, se há alguma coisa estranha em sua vida cotidiana.. . - Mas isso vai levar tempo - interveio Antonino. - Vai, sim. Por isso Marco pediu ao chefe dos carabinieri alguns homens daqui para nos dar uma ajuda. Eles conhecem sua cidade melhor do que nós e vão perceber se alguma coisa do que esses homens dizem foge do normal. Giuseppe pode se encarregar disso, e você e eu voltamos à catedral para falar de novo com os empregados, com o zelador, com o padre Yves, com as carolas da sacristia... - Certo, mas quem tiver alguma coisa para esconder, vai desconfiar da nossa insistência e vai segurar a língua. Estou dizendo porque já persegui muito bandido - disse Giuseppe. - Se alguém ficar nervoso, já vai se delatar. Também acho que devemos pedir uma entrevista com D'Alaqua. - É um peixe graúdo, graúdo demais. Se dermos algum fora e ele se aborrecer, os chefes lá de Roma podem cortar nossas asas. - Eu sei, Antonino, mas precisamos tentar; estou curiosa para conhecer esse homem. - Vá com calma, doutora. Sua curiosidade pode nos dar dores de cabeça! - Não seja bobo. Giuseppe, acho que devemos falar com esse homem porque sua empresa sempre teve a ver com os acidentes, e isso, pelo menos para mim, parece estranho. Para você, que é policial, deveria parecer mais estranho ainda. Resolveram dividir o trabalho. Antonino voltaria a falar com os empregados da catedral, Giuseppe se encarregaria dos operários e Sofia pediria uma entrevista com D'Alaqua. Tentariam terminar em uma semana e depois, se encontrassem alguma pista, decidiriam o que fazer. Sofia convencera Marco a ativar seus contatos para conseguir que Umberto d' Alaqua a recebesse. Apesar dos resmungos, Marco na verdade concordava com ela em que era imprescindível falar com aquele homem. Por isso o diretor do Departamento de Arte fez o pedido diretamente ao ministro da Cultura que perguntou se estava louco para pensar que ia deixá-lo se intrometer com uma empresa como a COCSA e investigar um homem como D'Alaqua. Mas por fim Marco o convencera de que era necessário e que a doutora Galloni era uma mulher refinada, incapaz do menor deslize que pudesse incomodar aquele homem poderoso. O ministro conseguiu o encontro para o dia seguinte, às dez da manhã. Quando Marco contou a Sofia, ela sorriu satisfeita. - Chefe, você é uma jóia, sei o que deve ter te custado. - É, e é melhor você não dar nenhum fora, ou o ministro manda a gente tirar o pó dos arquivos. Por favor, Sofia, vai com calma. Pelo que o ministro disse, D'Alaqua é um empresário importante não apenas na Itália, mas no mundo inteiro. Seus negócios têm ramificações na América do Norte, no Oriente Médio, na Ásia... Enfim, com um homem desses não dá para brincar. - Tenho um palpite. - Espero que teus palpites não nos tragam dores de cabeça. - Confie em mim. - Se não confiasse, você não estaria aí. Agora, enquanto acabava de se maquiar, estava nervosa. Ela se esmerara em se arrumar, escolhendo um tailleur Armani bege. Tomara o café da manhã no quarto, mas antes de sair, se despediria de Antonino e de Giuseppe. - Boa sorte, doutora. Você está linda, parece que vai a um encontro amoroso. - Sem gozação, Giuseppe! Estou uma pilha de nervos. Se eu der algum fora, o Marco vai ter sérios problemas. - Giuseppe tem razão, você está linda. Talvez até demais para se encontrar com um sujeito meio esquisito, que, pelo jeito, não tem muita queda por mulheres. Mas teu maior trunfo é tua cabeça, e eu confio nela. - Obrigada, Antonino, obrigada aos dois. Me desejem sorte. Ficou surpresa ao deparar com o secretário de Umberto d'Alaqua. Primeiro, porque esperava que fosse uma mulher, e não um homem. Segundo, porque aquele cavalheiro de meia-idade, discretamente elegante, parecia um executivo, e não um secretário, por mais importante que fosse seu chefe. Ele se apresentara como Bruno Moretti e Ihe oferecera um café, enquanto, como lhe disse, esperavam o senhor D'Alaqua terminar a audiência anterior. Sofia recusou o café, não queria borrar o batom. Pensou que Moretti tinha a missão de sondá-la, mas percebeu que estava enganada quando ele a deixou sozinha naquela sala impressionante, em cujas paredes havia um Canaletto, um Modigliani, um Braque e um pequeno Picasso. Estava embevecida admirando o Modigliani e não percebeu que a porta se abrira e um homem alto, bonito, elegante, na casa dos cinqüenta, a observava com olhar sério e ao mesmo tempo curioso. - Bom-dia, doutora Galloni. Sofia virou-se e topou com Umberto d'Alaqua. Sentiu o rosto corar, como se estivesse fazendo alguma coisa errada. D'Alaqua era imponente, não só por sua estatura e elegância, mas também pela segurança que transmitia. Segurança e firmeza, pensou Sofia. - Bom-dia. Desculpe, estava examinando seu Modigliani, é autêntico. - Mas claro. - Existem tantas falsificações... Mas este aqui sem dúvida é autêntico. Sentiu-se uma idiota. Como não ia ser autêntico um Modigliani pendurado na sala de espera daquele homem poderoso!? D'Alaqua ia pensar que ela era uma idiota, e era mesmo. Seu comentário fora uma idiotice, mas aquele homem, não sabia por quê, a deixara nervosa com sua simples presença, sem dizer nada. - Na minha sala estaremos mais à vontade, doutora. Sofia assentiu. A sala de D'Alaqua a surpreendeu. Móveis modernos e confortáveis, de design, e as paredes cobertas com quadros dos grandes mestres. Vários desenhos de Leonardo, uma Madonna do quatrocento, um Cristo de EI Greco, um arlequim de Picasso, um Miró... Em uma mesa pequena, em um canto afastado da mesa de trabalho, um crucifixo talhado em madeira de oliveira chamava a atenção por sua simplicidade. Umberto d'Alaqua fez um gesto para que ela se acomodasse no sofá e ele se sentou numa poltrona a seu lado. - Bem, doutora, em que posso ajudá-la? - Senhor D'Alaqua, suspeitamos que o incêndio da catedral tenha sido intencional. Acreditamos que nenhum dos acidentes ocorridos na catedral de Turim foi fortuito. D'Alaqua não mexeu um músculo. Nada em seu rosto denotava preocupação, nem sequer surpresa. Ele a olhava tranqüilo, esperando que continuasse falando, como se o que estava escutando não tivesse nada a ver com ele. - Os operários que trabalham nas obras da catedral são de sua confiança? - Doutora, a COCSA é uma das muitas empresas que presido. A senhora há de entender que não conheço pessoalmente todos os funcionários. Nesta empresa, como em qualquer outra, há um departamento de recursos humanos, que certamente Ihes forneceu todos os dados pertinentes sobre os operários que trabalham na catedral. Mas, caso a senhora necessite de informações adicionais, terei o maior prazer em pôr à sua disposição o diretor de recursos humanos da COCSA, que lhe oferecerá toda a ajuda de que precisar. D' Alaqua pegou o telefone e pediu que o passassem com o diretor de recursos humanos. - Senhor Lazotti, faça-me a gentileza de receber a doutora Galloni, do Departamento de Arte. Ela necessita de informações adicionais sobre os trabalhadores da catedral. Dentro de alguns minutos meu secretário a acompanhará até sua sala. Obrigado. Sofia ficou decepcionada. Pensou que surpreenderia D'Alaqua dizendo-lhe claramente que suspeitavam que os acidentes eram provocados, mas sua única reação foi enviá-la ao diretor de recursos humanos. - Acha que o que eu acabei de dizer é muito absurdo, senhor D'Alaqua? Doutora, vocês são profissionais e fazem bem o seu trabalho. Eu não tenho nenhuma opinião sobre suas suspeitas ou sua linha de investigação. O homem a encarou tranqüilamente; via-se que tinha dado a conversa por terminada, e Sofia ficou contrariada; não queria ir embora, sentia que acabara de desperdiçar a entrevista com D' Alaqua. - Posso ajudá-la em mais alguma coisa, doutora? - Não, na verdade não; apenas queríamos que soubesse que suspeitamos que o incêndio não foi um acidente e que, portanto, vamos investigar a fundo seu pessoal. - O senhor Lazotti lhe dará toda a ajuda que precisar e toda a informação que pedir sobre o pessoal da COCSA. Ela se deu por vencida. D'Alaqua não lhe diria nem uma palavra mais. Sofia se levantou e estendeu a mão. - Fico grata por sua colaboração. - Prazer em conhecê-la, doutora Galloni. Sofia estava furiosa consigo mesma. E confusa, sim. Umberto D'Alaqua era o homem mais atraente que vira em toda sua vida. Nesse mesmo instante resolveu romper o namoro com Pietro; manter esse envolvimento com seu colega de trabalho parecia-lhe insuportável. Bruno Moretti, o secretário de D'Alaqua, acompanhou-a até a sala de Mario Lazotti. Este a recebeu com amabilidade. - Pois não, doutora. Em que posso ajudá-la? - Quero que me forneça toda a informação sobre os operários que trabalham na catedral, inclusive dados pessoais, se tiver. - Toda essa informação foi dada a um de seus colegas do Departamento de Arte e à polícia, mas com muito prazer lhe entregarei um novo dossiê. Quanto aos dados pessoais, sinto não poder ajudar muito; esta é uma empresa grande, onde é difícil conhecer pessoalmente todos os empregados; talvez o capataz da obra possa lhe dar alguma informação mais pessoal. Uma secretária entrou na sala e entregou uma pasta a Lazotti. Ele agradeceu e a entregou a Sofia. - Senhor Lazotti, vocês tiveram mais acidentes como o da catedral de Turim? - Do que a senhora está falando? - A COCSA é uma empresa que presta serviços para a Igreja, responsável por obras de reforma e manutenção em quase todas as catedrais da Itália. - Da Itália e de boa parte da Europa. E os acidentes nas obras, infelizmente, acontecem, mesmo cumprindo com rigor todas as normas de segurança. - Poderia me fornecer uma lista de todos os acidentes ocorridos nas obras de catedrais? - Farei todo o possível para atendê-la, mas não será fácil, porque em todas as obras sempre há desajustes, incidentes, e não sei se todos estarão documentados. Normalmente o chefe de obras costuma fazer um relatório. Enfim, a senhora quer essa informação a partir de que data? - Digamos, dos últimos cinqüenta anos. Lazotti olhou-a incrédulo, mas não contestou o pedido. - Farei o possível. Caso encontre a informação, para onde devo enviá-la? - Vou lhe deixar meu cartão e o número do meu celular. Pode ligar para mim, que, se eu estiver em Turim virei pegá-la. Se não, pode enviá-Ia para o escritório em Roma. - Desculpe, doutora Galloni, mas o que a senhora está procurando? Sofia mediu Lazotti com uma rápida olhada e resolveu dizer a verdade. - Estou procurando o causador dos acidentes na catedral de Turim. - Como? - exclamou um surpreendido Lazotti. - Isso mesmo, estamos procurando o causador dos acidentes na catedral de Turim, porque desconfiamos que não foram casuais. - Vocês suspeitam de nossos operários? Meu Deus! Quem poderia querer danificar a catedral? - Isso é o que queremos saber. Quem e por quê. - Têm certeza do que estão fazendo? É uma acusação muito direta contra os operários da COCSA... - Não é uma acusação, é uma suspeita, e isso é o que nos leva a investigar. - Claro, doutora, e não tenha dúvida de que colaboraremos em tudo que precisar. - Não tenho dúvida, senhor Lazotti. Sofia saiu do edifício de aço e vidro avaliando se usara a estratégia errada ao expor suas suspeitas tanto a D'Alaqua quanto ao diretor de recursos humanos. Agora mesmo D'Alaqua podia estar reclamando diretamente com o ministro, ou não fazer nada, fosse porque as suspeitas que ela expusera não o preocupavam, fosse porque o preocupavam, sim. Resolveu ligar imediatamente para Marco e contar-lhe os pormenores de sua visita à COCSA. Se D'Alaqua falasse com o ministro, Marco teria de estar preparado. 11 - Eu, Maanu, príncipe de Edessa, filho de Abgar, te imploro, Sin, deus dos deuses, que me ajudes a destruir os homens ímpios que confundem nosso povo e o incitam a abandonar teu culto e a trair os deuses de nossos antepassados. Em um promontório rochoso situado a poucas léguas de Edessa, o santuário de Sin aparecia fracamente iluminado à luz das tochas que Sultanept, com a ajuda de Maanu e de Marvuz, distribuíra pela caverna do mesmo. A figura de Sin esculpida na pedra parecia quase humana, tal o realismo com que o artista o entalhara. Maanu queimava incenso e ervas aromáticas que embriagavam seus sentidos e o ajudavam a comunicar-se com o deus. O deus lua, Sin, poderoso, que nunca deixara de adorar, nem ele, nem muitos outros edessianos fiéis às tradições, como seu leal Marvuz, o chefe da guarda do rei, que ele transformaria em seu principal conselheiro quando Abgar morresse. Sin pareceu ouvir a oração de Maanu porque irrompeu com força saindo dentre as nuvens e iluminando seu santuário. Sultanept, o grande sacerdote de Sin, disse a Maanu que aquilo era um sinal de Sin, o modo de o deus afirmar que estava com eles. Sultanept vivia com outros cinco sacerdotes escondido em Sumurtar. Oculto no labirinto de túneis e câmaras subterrâneas de onde serviam aos deuses, ao Sol, à Lua e aos planetas, princípio e fim de todas as coisas. Maanu prometera a Sultanept devolver o poder e a riqueza que Abgar lhes subtraíra ao proibir a religião dos antepassados. - Meu príncipe, deveríamos partir. O rei pode chamar-te, e faz muitas horas que deixamos o palácio. - Não me chamará, Marvuz, pensará que estou com os amigos em alguma taverna ou fornicando com alguma dançarina. Meu pai mal quer saber de mim, tamanha a decepção que lhe causo por não adorar Jesus. A rainha é a culpada. Ela o convenceu a trair os nossos deuses e a fazer desse Nazareno seu único deus. "Mas eu garanto, Marvuz, que o povo voltará seus olhos para Sin e destruirá os templos que a rainha mandou erguer em honra do Nazareno. Quando Abgar se entregar ao sono eterno, mataremos a rainha e acabaremos com a vida de Josar e desse Tadeu." Marvuz tremeu. Não tinha nenhum afeto pela rainha, considerava-a uma mulher dura, a verdadeira governante de Edessa desde que Abgar adoecera contagiado por Ania e depois recuperara a saúde graças ao pano que Josar lhe trouxera. Ela desconfiava de Marvuz, chefe da guarda real. Sentia seu olhar gélido examinando-o, porque sabia que era amigo de Maanu. Mas, se atreveria a matá-la? Porque tinha certeza de que Maanu lhe pediria que o fizesse. Quanto a Josar e Tadeu, não teria problemas. Ele os atravessaria com sua espada. Estava cansado de seus sermões, de suas palavras de censura porque fornicava com a primeira que aparecesse e porque, em honra de Sin, nas noites de lua cheia bebia até perder os sentidos. Porque ele, Marvuz, conservava a fé nos deuses de seus pais, nos deuses de sua cidade, não aceitava a imposição desse deus virtuoso de que falavam Josar e Tadeu. Izaz escrevia com destreza tudo que Tadeu ia relatando. Seu tio Josar lhe ensinara a arte da escritura e sonhava um dia também transformar-se em escriba real. Sentia-se orgulhoso porque Abgar e a rainha elogiaram os pergaminhos em que ele cuidadosamente trasladara tudo que Tadeu contava de Jesus. Tadeu o chamava com freqüência para ditar-lhe as lembranças que com tanto zelo conservava do Nazareno. O jovem sabia de cor as peripécias de Tadeu junto a Jesus. Tadeu fechava os olhos e parecia mergulhar em um sonho enquanto ia contando, para que escrevesse, como era Jesus, o que dizia e fazia. Josar escrevera suas próprias lembranças, mandara copiar e uma de suas cópias era guardada nos arquivos reais. O mesmo seria feito com as histórias contadas por Tadeu. Assim o dispusera Abgar, que sonhava que Edessa pudesse deixar a seus filhos o relato da verdadeira história de Jesus. Izaz estava feliz por Tadeu ter ficado na cidade. Seu tio Josar se sentia acompanhado por alguém que como ele conhecera o Nazareno. Respeitava Tadeu por ter sido discípulo de Jesus e o consultava sobre o que devia dizer aos habitantes de Edessa que iam à sua casa para saber dele e orar. Tadeu ainda não encontrara a oportunidade de partir, pois a rainha e Abgar lhe pediam que ficasse, que os ajudasse a ser bons cristãos, que ajudasse Josar a propagar os ensinamentos de Jesus, fazendo de Edessa um lugar onde teriam acolhida todos os que acreditassem no Nazareno. O tempo passara, e a estada de Tadeu em Edessa se tornara definitiva. Todos os dias, junto a Josar, ia ao primeiro templo que a rainha mandara erguer em honra de Jesus; lá conversava e rezava com grupos de mulheres e homens que iam buscar consolo para suas atribulações, esperando que suas preces chegassem até aquele Jesus que salvara Abgar da mais cruel das doenças. Também atendia os fiéis que se reuniam em um novo templo construído pelo grande Márcio, o arquiteto real. Tadeu pedira a Márcio que o novo templo fosse tão simples quanto o primeiro, pouco mais que uma casa com um grande átrio onde pregar a palavra de Jesus. Explicara a Márcio como o Nazareno expulsara os mercadores do templo de Jerusalém e como o espírito de Jesus só podia estar onde houvesse simplicidade e paz. 12 Amanhecia sobre o Bósforo quando o Estrela do Mar cortava as águas de Istambul. No convés, os marinheiros iam e vinham nas fainas de atracação. O capitão observava o jovem moreno que esfregava o convés em silêncio. Em Gênova, um de seus marinheiros adoecera e tivera de ficar em terra. Então seu imediato lhe levara esse mudo, garantindo que, apesar de não falar, era um bom marinheiro. Nesse momento, movido pela necessidade de partir sem demora, não percebeu que as mãos do suposto marinheiro não tinham um único calo. A pele era macia. Eram mãos de quem nunca trabalhara com elas. Mas o mudo fez tudo que ele lhe ordenou durante a travessia, seus olhos não transpareciam nenhuma emoção, qualquer que fosse o trabalho. Seu imediato garantiu que tinha sido recomendado por um velho freqüentador da taverna do porto O Falcão Verde, e por isso o levara a bordo. O capitão sabia que seu imediato estava mentindo. Mas por quê? O oficial lhe dissera que o mudo desembarcaria em Istambul, que não continuaria trabalhando no navio, encolhendo os ombros quando lhe perguntou o porquê, e como sabia disso. Era genovês e fazia quarenta anos que navegava, conhecera mil portos e todo tipo de gente, mas aquele jovem tinha alguma coisa de especial, tinha o fracasso estampado nos olhos e a resignação no rosto, como se soubesse que chegara ao fim. Mas, afinal, por quê? Istambul parecia-lhe mais linda do que nunca. O marinheiro mudo suspirou em silêncio enquanto esquadrinhava o porto com os olhos. Sabia que alguém iria buscá-lo, talvez o mesmo homem que o escondera quando chegara a Urfa. Queria voltar à sua cidade, abraçar o pai, encontrar sua mulher e ouvir a risada alegre da filha. Temia o encontro com Addaio, sua decepção. Mas naquele momento pouco lhe importava o fracasso, seu próprio fracasso, sentindo-se vivo e voltando para casa. Era mais do que seu irmão conseguira dois anos antes. O homem da catedral lhe contara que Mendibj ainda estava na prisão, embora não soubesse nada dele, desde a fatídica tarde em que fora preso como um vulgar descuidista. Os jornais do dia seguinte informaram que o misterioso ladrão tinha sido condenado a três anos de prisão. Se fosse assim, seria solto dali a um ano. Desceu do barco sem se despedir de ninguém. Na noite, anterior o capitão lhe pagara o combinado, perguntando-lhe se não queria continuar alistado em sua tripulação. Por sinais, disse que não. Saiu do porto e pôs-se a caminhar, sem saber muito bem para onde. Se o homem de Istambul não aparecesse, buscaria um modo de chegar a Urfa por seus próprios meios. Tinha o dinheiro que ganhara como marinheiro. Sentiu uns passos apressados atrás dele e quando se virou deparou com o homem que o hospedara alguns meses antes. - Já faz um tempo que estou atrás de você, observando. Precisava ter certeza de que ninguém o seguia. Esta noite você vai dormir em minha casa, virão buscá-lo amanhã ao amanhecer. É melhor que até lá você não saia. Assentiu com a cabeça. Gostaria de poder passear por Istambul, perder-se pelas vielas do Bazar procurando um perfume para a mulher e um presente para a filha, mas não faria isso. Qualquer outro contratempo aumentaria a ira de Addaio, e ele, apesar de seu fracasso, estava feliz por ter conseguido voltar. Não queria que nenhum incidente comprometesse seu regresso. - Consegui. A voz de Marco soava alegre, triunfante. Sofia sorriu e acenou para que Antonino se aproximasse e escutasse na extensão. - Não foi nada fácil convencer os dois ministros, mas no fim me deram carta branca. Vão soltar o mudo quando quisermos e nos autorizam a segui-lo aonde quer que ele vá. - Muito bem, chefe! - Antonino, você está aí? - Estamos os dois - respondeu Sofia -, e é a melhor notícia que você podia nos dar. - É, sim. Estou muito contente, eu duvidava que fosse conseguir. Agora temos de resolver quando e como soltá-lo. E com vocês, como vão as coisas? - Já contei como foi com o D'Alaqua... - Contou, sim, mas os ministros não me disseram nada, o que quer dizer que ele não reclamou. - Estamos investigando de novo os operários e o pessoal da catedral. Daqui a alguns dias vamos para aí. - Certo, então vamos decidir os próximos passos, mas eu já tenho um plano. - Qual? - Não seja curiosa, doutora. Cada coisa a seu tempo. Ciao! - Puxa, como você é, hem?.. Bom, ciao! 13 Josar estava dormindo quando os dedos nervosos de um homem bateram na frágil porta de sua casa. Ainda não amanhecera em Edessa, mas o guarda que estava na porta lhe transmitiu ordens diretas da rainha. Antes de o sol se pôr, devia ir ao palácio, com Tadeu. Pensou que a rainha, tendo passado a noite em claro velando a cabeceira de Abgar, não se deu conta de como era cedo. Mas o olhar nervoso do guarda era um sinal de que alguma coisa não andava bem. Avisaria Tadeu e ao cair da tarde subiriam a colina do palácio. Pressentia que algo grave podia acontecer. De joelhos, com os olhos fechados, rezou, procurando resposta para a ansiedade que lhe tomava a alma. Horas mais tarde, Izaz chegou a sua casa, quase ao mesmo tempo que Tadeu. Seu sobrinho, um jovem inteligente e forte, trazia notícias sobre os rumores que circulavam no palácio. Abgar piorara a olhos vistos. Os médicos murmuravam que havia poucas esperanças de que saísse vitorioso do que parecia ser seu último duelo contra a morte. Consciente da situação, Abgar pedira à rainha que chamasse alguns amigos para junto de seu leito. Queria dar-lhes instruções para depois de sua morte. Por isso a rainha os convocara; para surpresa de Izaz, ele também fora chamado. Quando chegaram ao palácio, foram imediatamente conduzidos aos aposentos de Abgar. Recostado em sua cama, ele parecia mais pálido que nos dias anteriores. A rainha, que refrescava a testa do rei com um pano umedecido em água de rosas, suspirou aliviada quando os viu entrar. No mesmo instante, outros dois homens entraram no quarto: Márcio, o arquiteto real, e Senim, o mais rico comerciante de Edessa, aparentado com o rei, de quem era amigo fiel. A rainha fez um gesto para que se aproximassem de Abgar, ao mesmo tempo em que dispensava as criadas e mandava os guardas fecharem as portas e não permitir a entrada de ninguém. - Amigos, queria despedir-me de vós e dar-vos minhas últimas ordens. A voz de Abgar soava fraca. O rei estava morrendo, ele sabia disso, e o respeito e o afeto que tinham por ele levou-os a não dizer palavras de falsa esperança. Por isso aguardaram em silêncio para ouvir o que ele tinha a dizer: - Meus espiões me avisaram que, quando eu morrer, meu filho Maanu desencadeará uma cruel perseguição contra os cristãos e atentará contra a vida de alguns de vós. Tadeu, Josar e tu, Izaz, deveis abandonar Edessa antes que eu morra. Depois não poderei proteger-vos. Maanu não se atreverá a assassinar Márcio nem Senim, embora saiba que são cristãos, porque pertencem às famílias nobres de Edessa, e os de sua classe jurariam vingança. "Maanu queimará os templos dedicados a Jesus, e fará o mesmo com as casas de alguns de meus súditos mais identificados com o credo cristão. Muitos homens, mulheres e crianças serão assassinados para aterrorizar os cristãos e obrigá-los a tornar a adorar os deuses antigos. Temo pela mortalha de Jesus, temo que o pano sagrado seja destrUÍdo. Maanu jurou queimá-lo na praça do mercado diante de todos os edessianos e o fará no mesmo dia da minha morte. Cabe a vós, amigos, salvá-lo." Os cinco homens escutaram calados as recomendações do rei. Josar fitou a rainha e pela primeira vez se deu conta de que o altivo porte de outrora cedera e o cabelo que entrevia entre as dobras de seu véu era grisalho. A mulher envelhecera, embora conservasse o brilho no olhar e seus gestos denotassem a mesma majestade de sempre. Que seria dela? Tinha certeza de que Maanu, seu filho, a odiava. Abgar intuiu a preocupação de Josar. Sabia que seu amigo sempre nutrira uma secreta paixão pela rainha. - Josar, pedi à rainha que se vá, ainda é tempo, mas ela não ouve minhas súplicas. - Senhora - disse Josar -, vossa vida corre mais perigo que a nossa. - Josar, sou a rainha de Edessa, e uma rainha não foge. Se tenho de morrer, morrerei aqui, junto dos que, como eu, crêem em Jesus. Não abandonarei quem confiou em nós, os amigos junto aos quais rezei. Ficarei ao lado de Abgar; não suportaria abandoná-lo à morte neste palácio. Enquanto o rei viver, Maanu não se atreverá a fazer nada contra mim. Agora escutai o plano do rei. Abgar ergueu-se na cama, segurando na mão da rainha. Nos últimos dias tinham sido surpreendidos pelo nascer do sol enquanto conversavam e elaboravam o plano que agora ia explicar a seus amigos mais queridos. - Minha última ordem é que salveis a mortalha de Jesus. Em mim operou o milagre da vida e pude chegar à velhice. O linho sagrado não me pertence, é de todos os cristãos e para eles deveis salvá-lo. Mas peço-vos que ele não saia de Edessa, que a cidade o conserve pelos séculos dos séculos. Jesus quis vir aqui e aqui ficará. Tadeu, Josar, deveis entregar a mortalha a Márcio. Tu, Márcio, saberás onde escondê-la para salvá-la da ira de Maanu. De ti, Senim, espero que prepares a fuga de Tadeu, de Josar e também do jovem lzaz. Meu filho não se atreverá a atacar tuas caravanas. Deixo-os sob tua proteção. - Abgar, onde queres que eu esconda o pano sagrado? - perguntou Márcio. - A decisão caberá a ti, meu bom amigo. Nem a rainha, nem eu devemos sabê-lo. Mas hás de escolher alguém para compartilhar o segredo e pô-lo igualmente a salvo, com a ajuda de Senim. Sinto que minha vida se extingue. Não sei quantos dias me restam, espero que o bastante para que possais fazer o que vos peço. Durante a hora seguinte, sabendo que podia ser a última ocasião, o rei se despediu afetuosamente de todos eles. Quando Márcio chegou à muralha ocidental, estava amanhecendo. Os operários o aguardavam para seguir suas instruções. Como arquiteto real, Márcio se ocupava não só de construir edifícios que dessem glória a Edessa, como também se encarregava de comandar todas as obras da cidade, como essa da muralha ocidental, onde estavam abrindo uma nova porta. Surpreendeu-se ao ver Marvuz falando com Jeremim, o capataz. - Eu te saúdo, Márcio. - Que procura aqui o chefe da guarda do rei? Por acaso Abgar mandou me chamar? - Venho por ordem de Maanu, que logo será rei. - Ele o será quando Deus quiser. A risada de Marvuz ecoou no silêncio do amanhecer. - Ele o será, Márcio, e logo, e tu sabes disso, pois ontem estiveste com Abgar, e é evidente que a morte o espreita. - O que queres? Dize logo, pois tenho de trabalhar. - Maanu quer saber que instruções recebeste de Abgar. Sabe que não apenas tu, mas também Senim, Tadeu, Josar e até Izaz, o escriba, estivestes até bem entrada a noite junto ao leito do rei. O príncipe quer que saibas que, se fores leal, nada te acontecerá; do contrário, não garante a sorte que possas ter. - Vieste ameaçar-me em nome de Maanu? É tão pouco o respeito que o príncipe tem por si próprio? Sou velho para temer o que quer que seja. Maanu não pode mais que tirar minha vida, e esta já vai chegando ao fim. Agora vai e deixa-me trabalhar. - Dirás o que Abgar vos disse? Márcio deu meia volta sem responder a Marvuz e foi examinar o pilão de barro que um operários batia. - Ainda te arrependerás, Márcio, ainda te arrependerás – exclamou Marvuz, girando o cavalo e partindo a galope de volta ao palácio. Nas horas seguintes, Márcio pareceu absorto no trabalho. O capataz o observava pelo canto dos olhos. Marvuz o subornara para espionar o arquiteto real, e ele aceitara. Sentia trair o velho que sempre fora bondoso com ele, mas os dias de Márcio estavam contados, e Marvuz lhe garantira que Maanu saberia recompensar seus serviços. O sol brilhava em toda sua plenitude quando Márcio indicou ao capataz que chegara a hora de fazer uma pausa. O suor corria pelo corpo dos operários e o próprio capataz estava cansado, ansioso por sentar e descansar. Dois jovens criados, da casa de Márcio, chegaram nesse instante carregando duas cestas, onde o capataz pôde ver que traziam fruta fresca e água, que o arquiteto compartilhou com os operários. Durante uma hora todos descansaram, embora, como em tantas outras ocasiões, Márcio parecesse absorto em suas plantas, além de subir e descer pelos andaimes para verificar a firmeza da muralha que estavam ampliando e os contornos da grande porta que ele queria que fosse ornamental. O capataz, exausto, fechou os olhos, e os operários mal tinham forças para falar. Até que o sol não começou a despedir-se pelo oeste, Márcio não deu ordem de interromper o trabalho. Pouco podia relatar o capataz sobre a atividade de Márcio, mas se dispôs a ir à taverna do Trevo, para se encontrar com Marvuz. O arquiteto se despediu de todos e foi para casa acompanhado de seus criados. Márcio, viúvo fazia muitos anos e sem filhos, cuidava de seus jovens criados como se o fossem. Eram cristãos como ele, e sabia que não o trairiam. Na noite anterior, antes de abandonar o palácio de Abgar, combinara com Tadeu e Josar que, quando soubesse onde esconderia a mortalha de Jesus, trataria de avisá-los. Conceberam um plano para que Josar a entregasse a ele sem despertar as suspeitas de Maanu, pois, como Abgar lhe advertira, podiam estar sendo vigiados pelo príncipe. Também tomaram uma decisão: Márcio só revelaria a Izaz o local onde o linho ficaria escondido, por isso o sobrinho de Josar, quando recebesse a indicação do arquiteto real, deveria fugir da cidade, com a ajuda de Senim. Tadeu dispusera que viajaria para Sidon, onde se constituíra uma pequena mas próspera comunidade cristã. O chefe espiritual da comunidade, Timeu, fora enviado por Pedro para propagar a palavra de Jesus. Izaz teria amparo em Timeu, e este saberia o que fazer com a mortalha de Cristo. Apesar do pedido de Abgar para que salvassem suas vidas, Tadeu e Josar decidiram ficar em Edessa e ter a mesma sorte dos demais cristãos. Nenhum dos dois queria abandonar o sudário, mesmo sem saber onde Márcio o guardaria. Tadeu e Josar se reuniram no templo com muitos outros cristãos da cidade. Oravam juntos por Abgar e pediam a Deus que fosse de novo misericordioso com o rei. Naquela manhã, Josar enrolara cuidadosamente o linho, escondendo-o no fundo de um cesto, conforme o plano elaborado por Márcio. Antes de o sol esquentar, foi ao mercado com o cesto no braço e se demorou entre as bancas, falando com os comerciantes. Na hora combinada, viu um dos jovens criados de Márcio comprando fruta de um velho foi até a banca e cumprimentou o rapaz, que levava um cesto igual ao dele. Disfarçadamente o trocaram. Ninguém percebeu a manobra, e os espiões de Maanu não viram nada de suspeito no fato de Josar cumprimentar outro cristão, como o criado de seu amigo Márcio. Do mesmo modo, o capataz também não suspeitou de Márcio quando este, do alto de um andaime aonde subira com uma cesta de frutas, apanhou uma maçã e distraidamente a mordeu, enquanto ia de um lado para o outro verificando a solidez do muro, corrigindoo, tapando buracos com os tijolos de barro cozido. Márcio sempre gostara de assentar tijolos, problema dele se não descansava nem na hora em que o calor adormecia os sentidos, pensou o capataz. Márcio refrescou-se com a água fresca que um de seus criados levara a seu aposento. Aliviado do calor do dia, o arquiteto real trocou de túnica. Sentia que eram seus últimos dias. Quando Abgar morresse, Maanu ia fazer de tudo para descobrir onde o Sudário estava para destruí-lo. Torturaria todos aqueles que pudessem saber onde a mortalha se encontrava, e ele estava entre os amigos de Abgar dos quais Maanu certamente suspeitaria que pudessem conhecer o segredo. Por isso tomara uma decisão que nessa mesma noite comunicaria a Tadeu e a Josar e que levaria a cabo quando soubesse que Izaz estava a salvo. Acompanhado de seus dois jovens criados, dirigiu-se ao templo onde sabia que seus amigos estariam rezando. Quando chegou, ocupou um lugar discreto, distante dos olhares das pessoas. Abgar os prevenira dos espiões de Maanu. lzaz distinguiu o velho, oculto entre as sombras. Aproveitou o momento em que Tadeu e Josar lhe pediram que ajudasse a repartir o pão e o vinho entre os fiéis para aproximar-se de Márcio. Este lhe entregou um pedaço de pergaminho cuidadosamente dobrado, que Izaz guardou entre as dobras de sua túnica. Depois procurou com os olhos a figura de um homem alto, forte, que parecia estar esperando seu sinal. lzaz saiu discretamente do templo e, seguido pelo colosso, dirigiu-se com presteza ao caravançará. A caravana de Senim estava pronta para deixar Edessa. Harram, o homem a quem Senim confiara a condução da caravana até Sidon, aguardava impaciente. Indicou a lzaz e ao colosso chamado Obodas o lugar que lhes reservara e deu ordem de partir. Somente depois que amanheceu Izaz desdobrou o pergaminho que Márcio lhe entregara e leu as duas linhas onde o arquiteto assinalava com precisão o lugar em que escondera o Santo Sudário. Picou o pergaminho e foi espalhando seus pedacinhos pelo deserto. Obodas o observava atentamente e observava a seu redor. Tinha ordens de Senim para proteger o jovem com a própria vida. Foi só depois de três noites que Harram e Obodas consideraram a distância de Edessa suficiente para fazer uma breve parada e enviar um mensageiro à casa de Senim. Ele levaria outros três dias para chegar, e então Izaz já estaria a salvo. Abgar agonizava. A rainha mandou chamar Tadeu e Josar, para avisar que em questão de horas, talvez de minutos, a vida do rei se extinguiria. Não reconhecia nem a ela. Passaram dez dias desde que Abgar reunira seus amigos nesse mesmo aposento para falar com eles até que o negrume da noite se fez espesso. Agora o rei era um corpo inerte, já não abria os olhos e somente seu fraco alento, que mal embaçava um espelho, indicava que ainda estava vivo. Maanu não saía do palácio, aguardando com impaciência a morte de Abgar. A rainha não o deixava entrar no aposento real, mas isso era inútil, pois ele sabia de tudo graças a uma jovem escrava a quem subornara prometendo libertá-la, se contasse o que se passava no quarto de Abgar. A rainha sabia que estava sendo vigiada, por isso mandou todos os criados saírem quando Josar e Tadeu chegaram e falou com seus amigos em voz baixa. Sorriu aliviada ao saber que o sagrado linho estava a salvo. Prometeu avisá-los imediatamente quando Abgar morresse. Comunicaria sua morte por meio de um escriba, Ticio, que se convertera ao cristianismo e era leal. Despediram-se emocionados sabendo que não se encontrariam mais nesta vida, e ela pediu a Tadeu e a Josar que a abençoassem e rezassem por ela para que tivesse forças na hora de enfrentar a morte a que seu filho Maanu a condenara. Com os olhos cheios de lágrimas, Josar não conseguia despedir-se da rainha. Já não era a bela mulher de outrora, mas seus olhos brilhavam enérgicos e a majestade de seus movimentos ainda faziam dela uma mulher formidável. Consciente da devoção que o antigo escriba tinha por ela, apertou sua mão e o abraçou, demonstrando que sabia quanto ele a amara e que ela o amava como o mais fiel dos amigos. A agonia de Abgar se prolongou por mais três dias. O palácio estava mergulhado nas sombras da noite, e só a rainha velava o rei. Ele abriu os olhos e sorriu agradecido, o olhar cheio de ternura e amor. Depois expirou em paz consigo mesmo e com Deus. A rainha apertou com força a mão do marido. Depois fechou suavemente seus olhos e o beijou nos lábios. Não se permitiu mais que alguns minutos para rezar e pedir a Deus que acolhesse Abgar. Esgueirou-se pelos corredores escuros até um aposento próximo, onde fazia vários dias que Ticio, o escriba real, descansava. Estava dormindo, mas acordou, ao sentir a mão da rainha em seu ombro. Nenhum dos dois disse nada. Ela voltou ao aposento real oculta pela noite, enquanto Ticio deixou o palácio com todo o cuidado e se dirigiu para a casa de Josar. Ainda não amanhecera quando Josar, tomado de desolação, ouvia de Tício a notícia da morte de Abgar. Devia mandar um recado a Márcio; era o que o arquiteto real lhe pedira a fim de executar seu plano. Também precisava avisar Tadeu o quanto antes, já que a vida de ambos, sem dúvida, chegara ao fim. 14 - Vai Marco, diga logo o que está te preocupando. A pergunta direta de Santiago Jiménez pegou Marco de surpresa. - É tão evidente assim que estou preocupado? - Somos do ramo, rapaz. Você não pode nos enganar! Paola sorriu. Marco pedira a ela que convidasse para jantar em casa John, o adido cultural da embaixada americana, e Santiago Jiménez, representante da Europol em Roma. John viera com a mulher, Lisa. Santiago era solteiro, por isso sempre surpreendia a todos indo aos jantares com alguma acompanhante ocasional. Dessa vez levara a irmã, Ana, uma jovem jornalista, morena e vivaz, que estava em Roma cobrindo uma cúpula de chefes de Estado da União Européia. - Já estão sabendo que houve outro acidente na catedral de Turim? - perguntou Marco. - E você acha que foi intencional? - Eu acho sim, John. A história de acidentes na catedral nos últimos séculos é impressionante, vocês sabem, incêndios, tentativas de roubo, inundações. Assim como todas as vicissitudes por que o Sudário passou. Na nossa profissão, sabemos que é preciso desconfiar das coincidências. - A história do Sudário é interessante, seu aparecimento e desaparecimento nas várias épocas, os perigos a que esteve exposto. Mas você acha que alguém quer danificar o Sudário ou apenas roubá-lo? - disse Lisa. - Roubá-lo? Não, nunca acreditamos que alguém quisesse roubá-lo. Mais parece que querem destruí-lo, já que os acidentes que sofreu poderiam ter sido fatais para sua sobrevivência. - O Santo Sudário está na catedral de Turim desde que a Casa de Sabóia resolveu depositá-lo lá, depois que o então cardeal de Milão, Carlos Borromeu, prometeu ir a pé até Chambery, onde o Sudário se encontrava, para pedir que acabasse a peste que assolava sua cidade. Os Sabóia, comovidos com a piedade do cardeal, decidiram levar o Sudário até Turim, na metade do caminho, para evitar que ele fizesse uma viagem tão longa. E está lá até hoje. Você tem de pensar que, se a catedral sofreu tantos acidentes, e como você, pelo jeito, não acredita em coincidências, é impossível a mesma pessoa que provocou um incêndio há quinze dias ser a mesma que fez isso no século passado. Portanto... - Lisa, não seja impertinente - interrompeu-a John. – Marco tem razão, pode haver algo estranho por trás de tanto acidente. - Claro. O que eu me pergunto é o quê, e por quê, e não consigo encontrar um motivo. Pode ser que algum louco esteja tentando destruir o Sudário. - Certo. Esse louco pode ter provocado os acidentes dos últimos dez, quinze, vinte anos. Mas, e os anteriores? - perguntou Ana. – Que história! Gostaria de escrevê-la... - Ana! Você não está aqui como jornalista! - Tudo bem, Santiago. Tenho certeza de que posso contar com a discrição de sua irmã, apesar de ela ser jornalista. Peço que me ajudem a pensar, a sair deste atoleiro. Não sei se eu e minha equipe estamos envolvidos demais com o problema e não somos capazes de enxergar além do nosso nariz e insistimos, bom, principalmente eu, que há um motivo por trás dos acidentes, e talvez não seja nada além de uma porção de coincidências. Queria lhes pedir uma coisa: que dêem uma olhada em um relatório que preparei, com tudo o que aconteceu na catedral e que tem algo a ver com o Sudário nos últimos cem anos. Sei que estou abusando da nossa amizade e que vocês todos estão com a agenda apertadíssima, mas eu gostaria que lessem esse texto e, depois de tirar suas conclusões, voltássemos a nos encontrar. - Pode contar comigo no que for possível. Além disso, se você quiser dar um olhada nos arquivos da Europol, não tem problema. - Obrigado, Santiago. - Meu caro, vou analisar seu relatório e dizer francamente a minha opinião. Sabe que pode contar com minha ajuda, a oficial e a extraoficial - ofereceu John. - Eu também gostaria de ler o relatório. - Ana, você não é policial, não tem nada a ver com essas coisas; Marco não pode te mostrar um relatório oficial de teor confidencial. - Sinto muito, Ana - desculpou-se Marco. - Azar de vocês, porque minha intuição me diz que, se existe alguma coisa, tem de ser abordada de uma perspectiva histórica, e não policial. Mas vocês é que sabem. Combinaram outro jantar para a semana seguinte. Lisa se ofereceu para ser anfitriã. - Sabe, maninho, acho que vou ficar com você mais alguns dias? - Ana, eu sei que o que Marco contou pode dar uma boa história para o teu jornal, mas acontece que ele é meu amigo. Além disso, você me criaria um problema profissional se ficassem sabendo que minha irmã se dedica a publicar assuntos que estão sendo investigados pela polícia e dos quais só pode ter conhecimento através de mim. Você destruiria a minha carreira, só isso. - Bom, não seja melodramático, prometo que não vou escrever uma linha. - Não vai me aprontar essa, não é? Vai respeitar o off-record? - Não, não vou aprontar nada, fica tranqüilo, que sou tua irmã. Além do mais, respeito todos os off-record. Faz parte das regras do jogo da minha profissão. - Por que você teve que ser justo jornalista? - Pior é você, que virou policial. - Vamos, vou te levar a um bar que você vai adorar. Está na moda, que é para você esnobar quando voltar a Barcelona. - Certo, mas ainda assim eu gostaria que você confiasse em mim. Acho que poderia ajudar, e prometo que faria isso sem dizer nada a ninguém, nem escrever uma linha. É que eu adoro essas histórias. - Ana, não posso deixar você se meter numa investigação que não é minha, mas do Departamento de Arte. Ia me trazer problemas, já falei. - Mas ninguém ia ficar sabendo. Juro, por favor, confia em mim. Estou cansada de escrever sobre política, de farejar escândalos dos governos. Tive muita sorte na minha profissão, fui bem desde o começo, mas ainda não topei com uma grande história, e pode ser esta. - Mas você não acabou de me dizer que eu podia confiar, que você não vai dizer nem escrever nada? - E não vou. - Então, por que disse que ainda não topou com uma grande história? - Olha, vamos combinar uma coisa. Você deixa eu investigar por minha conta, sem dizer nada a ninguém. O que eu for descobrindo, se é que vou descobrir alguma coisa, só vou contar para você. Se no fim eu encontrar uma pista ou algo parecido que possa ajudar vocês a desvendar o mistério dos acidentes na catedral e Marco a resolver o caso, então eu peço para me deixarem contar tudo, ou pelo menos uma parte. Mas nunca antes de o caso ser resolvido. - Não pode ser. - Por que não? - Porque esse assunto não é da minha conta, e não posso nem devo combinar nada sobre o que não me diz respeito, nem com você nem com ninguém. Maldita a hora que te levei para o jantar na casa do Marco! - Calma, Santiago, não se irrite. Eu gosto de você e nunca ia fazer nada que pudesse te prejudicar. Sou jornalista, adoro o que faço, mas você vem antes, nunca poria o jornalismo antes das pessoas, nunca. Muito menos no teu caso. - Quero confiar em você, Ana. Além disso, não tenho outro remédio senão confiar. Mas amanhã mesmo você volta para a Espanha, não vai ficar aqui. 15 O mudo deixava seu olhar vagar pela estrada, cheia de carros e caminhões. O caminhoneiro que o levava para Urfa parecia tão mudo quanto ele, mal lhe dirigira a palavra desde que saíram de Istambul. O motorista se apresentara na casa do homem que o ocultava. - Sou de Urfa, vim buscar Zafarim. Seu protetor assentira e o chamara no quarto em que dormia. Zafarim reconheceu o sujeito. Era de sua cidade e, assim como ele, homem de confiança de Addaio. Seu anfitrião lhes entregou um saco com tâmaras, laranjas e duas garrafas de água e os acompanhou até onde o caminhoneiro estacionara o veículo. - Zafarim - disse-lhe -, com este homem você vai estar em segurança. Ele vai levar você até Addaio. - Quais são as instruções? - perguntou ao caminhoneiro. - Só que eu o leve o mais rápido possível e procure não parar em lugares onde possa chamar a atenção. - Ele tem de chegar são e salvo. - E vai chegar. Eu cumpro as ordens de Addaio. Zafarim sentou-se no banco ao lado do motorista. Gostaria que este lhe desse notícias de Addaio, de sua família, da cidade, mas permanecia fechado em um obstinado silêncio. Só se dirigira a ele umas poucas vezes para perguntar se estava com fome ou se queria ir ao banheiro. Via-se que estava cansado depois de dirigir tantas horas, por isso Zafarim fez um gesto indicando que ele poderia dirigir, mas o caminhoneiro recusou a ajuda. - Estamos quase chegando, e não quero saber de problemas. Addaio nunca me perdoaria se eu metesse os pés pelas mãos. Coisa que você, pelo jeito, já fez de sobra. Zafarim cerrou os dentes. Tinha arriscado a vida, e aquela besta o recriminava por ter metido os pés pelas mãos. Que é que esse sujeito podia saber do perigo que ele e seus companheiros tinham enfrentado!? A quantidade de veículos ia aumentando. A E-24 é uma das estradas de tráfego mais intenso porque é a que liga a Turquia ao Iraque, aos campos de petróleo iraquianos. Além disso, é sobrecarregada pelos caminhões e carros militares que patrulham a fronteira turco-síria, alerta principalmente pelos guerrilheiros curdos que atuam na região. Em menos de uma hora estaria em casa, e essa era a única coisa que lhe interessava naquele momento. - Zafarim, Zafarim! A voz inflamada de sua mãe soou-lhe à música celestial. Lá estava, pequena e magríssima, com os cabelos cobertos pelo véu. Apesar de sua baixa estatura, dominava toda a família. Seu pai, seus irmãos, ele e, claro, sua mulher e sua filha. Ninguém ousava contrariá-la. Sua mulher, Ayat, estava com os olhos cheios de lágrimas. Ela lhe suplicara que não fosse, que não aceitasse aquela missão. Mas como não cumprir uma ordem de Addaio? Sua mãe e seu pai teriam vivido o vexame de serem estigmatizados pela Comunidade. Desceu do caminhão e num segundo sentiu os braços de Ayat em volta de seu pescoço, enquanto sua mãe também pelejava para abraçá-lo e sua filha, assustada, começou a chorar. Seu pai o observava emocionado, esperando que as mulheres deixassem de sacudi-lo com suas demonstrações de afeto. Eles se abraçaram, e então Zafarim, ao sentir a força dos braços camponeses de seu pai, deixou-se levar pela emoção e rompeu em prantos. Sentia-se como quando era pequeno e seu pai o abraçava forte, consolando-o quando chegava em casa com o rosto machucado em alguma briga de rua ou na escola. Seu pai sempre lhe transmitiu segurança, a segurança de que podia contar com ele, de que, acontecesse o que acontecesse, ele estaria lá para protegêlo. E agora sentia que ia precisar de sua proteção quando se enfrentasse com Addaio. Sim, tinha medo dele. 16 O jardim da casa, de arquitetura neoclássica, estava mais iluminado que de costume. Policiais do condado e agentes secretos competiam para garantir a segurança dos convidados da festa exclusiva. O presidente dos Estados Unidos e sua esposa se encontravam entre os convidados, assim como o secretário do Tesouro e o da Defesa, vários senadores e congressistas influentes, tanto republicanos quanto democratas, além dos presidentes das principais companhias e conglomerados multinacionais americanos e europeus e de uma porção de banqueiros, junto a advogados de grandes firmas, médicos, cientistas e uma ou outra celebridade do mundo acadêmico. Naquela noite, não fazia calor em Boston; pelo menos não no bairro residencial onde ficava a mansão dos Stuart. Mary Stuart estava fazendo 50 anos, e seu marido, James, quis brindá-la com uma festa de aniversário que reunisse todos os seus amigos. Na verdade, pensava Mary, na festa havia, mais do que amigos, bons conhecidos. Nunca diria isso a James para não desapontá-lo, mas ela preferia que ele a tivesse surpreendido com uma viagem à Itália, os dois sozinhos, sem pressa nem compromissos sociais. Perder-se na Toscana, onde passaram a lua-de-mel trinta anos atrás. Mas James nunca pensaria nisso. - Umberto! - Mary, querida, parabéns. - Que bom te ver. - Bom foi o James ter-me honrado com o convite para esta festa. Toma, espero que você goste. O homem colocou em sua mão uma caixinha embrulhada em papel espelho branco. - Não precisava se incomodar... O que é? Mary abriu a caixa rapidamente e ficou extasiada ao ver a imagem que surgia do plástico-bolha. - É uma imagem do século II antes de Cristo. Uma dama tão encantadora e bonita quanto você. - É linda. Obrigada, muito obrigada. Estou sem palavras. James... James.. . James Stuart foi até onde a esposa estava com Umberto d'Alaqua. Os dois homens deram um afetuoso aperto de mãos. - Quer dizer que você acabou de surpreender a Mary? Que ótimo! Bom, perto do seu presente, o meu é insignificante. - James, não diga isso, você sabe que eu adorei! Ele me deu estes brincos e este anel. São as pérolas mais perfeitas que já vi. - São as pérolas mais perfeitas que existem, eu garanto. Bom, vá guardar essa jóia maravilhosa, enquanto eu sirvo um drinque para o Umberto. Dez minutos mais tarde, James Stuart deixava Umberto d'Alaqua com o presidente e outros convidados, enquanto ele continuava circulando entre as rodinhas, dando atenção a todos. Aos 62 anos, Stuart sentia-se realizado. Tinha tudo o que podia desejar na vida: uma boa família, saúde e sucesso nos negócios. Fábricas de laminados de aço, laboratórios farmacêuticos, empresas de reconversão tecnológica e um sem-fim de outros negócios faziam dele um dos homens mais ricos e influentes do mundo. Herdara um pequeno império industrial de seu pai, mas soubera multiplicá-lo. Pena que os filhos não tivessem muito talento para os negócios. Gina, a caçula, estudara arqueologia e gastava dinheiro financiando e participando de escavações nos lugares mais absurdos do planeta. Gina era como sua cunhada Lisa, embora esperasse que a filha fosse mais sensata. Tom estudara medicina e não ligava a mínima para os laminados de aço. Ainda bem que Tom se casara e já tinha dois filhos, seus netinhos, que ele adorava e que esperava que tivessem o talento e a garra suficientes para administrar o império que herdariam. Ninguém estranhou o fato de aqueles sete homens passarem algum tempo conversando à parte, mas atentos a tudo que acontecia ao seu redor. Mudando de assunto quando alguém se aproximava, fingindo falar da crise do Iraque, do último fórum de Davos ou de qualquer um daqueles temas que supostamente deviam preocupálos, sendo eles quem eram e dedicando-se ao que se dedicavam. O mais velho do grupo, alto e magro, parecia conduzir a conversa. - Foi uma boa idéia nos encontrarmos aqui. - Foi, sim - respondeu um de seus interlocutores com sotaque francês. - Aqui não chamamos a atenção, ninguém vai reparar em nós. - Marco Valoni pediu ao ministro da Cultura que soltem o mudo da prisão de Turim - disse outro dos homens, em um inglês impecável, apesar de sua língua materna ser o italiano -, e o ministro do Interior aceitou o pedido de seu colega. A idéia foi de uma de suas colaboradoras, a doutora Galloni. Uma mulher inteligente que chegou à conclusão evidente que só o mudo pode levá-los a alguma pista. A doutora Galloni também convenceu Valoni de que devem investigar a COCSA, de cima a baixo. - Existe algum jeito de afastar a doutora Galloni do Departamento de Arte? - Existe, sim. Poderíamos pressionar dizendo que essa mulher é uma intrometida. A COCSA poderia protestar, ativar contatos no Vaticano, fazendo com que também de lá pressionem o governo italiano para deixarem a empresa em paz. Também podemos recorrer ao ministro da Economia, que certamente não vai gostar de saber que estão perturbando uma das maiores empresas do país por causa de um incêndio, felizmente sem conseqüências. Mas, na minha opinião, deveríamos esperar antes de fazer qualquer coisa com Sofia Galloni. O velho cravou os olhos no homem que acabara de falar. Não sabia por quê, mas havia algo preocupante no tom de voz de seu amigo. No entanto, nem o gesto, nem o olhar do homem delatava a menor emoção. Resolveu surpreendê-lo e observar sua reação. - Também poderíamos dar um sumiço nela. Não podemos nos dar ao luxo de permitir que uma investigadora curiosa se intrometa além da conta. Concordam? O homem com sotaque francês foi o primeiro a falar. - Não, eu discordo. Acho desnecessário. Um erro fatal. Por enquanto, não devemos fazer nada. Ela que procure o fio da meada, nós sempre poderemos cortá-lo e afastá-la. - Acho que não devemos nos precipitar - afirmou o italiano -, seria um erro afastar ou eliminar a doutora Galloni. Isso só irritaria Marco Valoni, confirmaria que existe algo mais por trás dos acidentes e o levaria, e ao resto da sua equipe, a não desistir da investigação, mesmo contrariando ordens superiores. A doutora Galloni é um risco porque é inteligente, mas devemos correr esse risco. Contamos com a vantagem de saber tudo o que Valoni e sua gente fazem e pensam fazer. - Ninguém suspeita do nosso informante? - É uma das pessoas em que Valoni mais confia. - Bom, mais alguma coisa? - perguntou o velho. Um homem com ar de aristocrata inglês passou a informar. - Zafarim chegou a Urfa há dois dias. Ainda não fui informado sobre a reação de Addaio. Outro de seus companheiros, Rasit, também chegou a Istambul, e o terceiro, Dermisat, deve chegar hoje. - Bem, já estão a salvo. Agora o problema é de Addaio, não nosso. Temos de cuidar do mudo da prisão de Turim. - Poderia sofrer algum contratempo antes de sair da prisão. Seria o mais seguro; se ele sair, vão seguir sua pista até Addaio - sugeriu o inglês. - Seria o mais prudente - disse outro dos homens com sotaque francês. - Podemos fazê-lo? - perguntou o velho. - Sim, temos gente na prisão. Mas a operação deve ser planejada com o máximo cuidado, porque, se acontecer alguma coisa com o mudo, Marco Valoni não vai aceitar a versão oficial. - Mesmo que ele tenha um ataque de ira, vai ter de aceitar. Sem o mudo, o caso acaba, pelo menos por enquanto - sentenciou o velho. - E o Sudário? - perguntou outro homem. - Continua no banco. Quando as obras de reparo terminarem, deve voltar para a capela onde estava exposto. O cardeal quer rezar uma missa solene para dar graças a Deus por ter salvado mais uma vez o Santo Sudário. - Senhores... fechando negócios? O presidente dos Estados Unidos acompanhado por James Stuart se aproximara do grupo. Os homens abriram a roda para incluí-los. Só duas horas depois puderam tornar a falar, sem levantar suspeitas entre o resto dos convidados. - Mary, quem é aquele homem lá? - Um de nossos melhores amigos. Umberto d'Alaqua. Você não lembra dele? - Lembro, lembro. Agora que você falou o nome, me lembrei, sim. Continua tão imponente como sempre. Como ele é bonito. - É um solteirão empedernido. Uma pena, porque, além de lindo, é adorável. - Faz pouco tempo ouvi alguma coisa sobre ele... mas onde foi... Lisa se lembrou onde. No relatório que Marco enviara a John sobre o incêndio da catedral de Turim falava-se de uma empresa, a COCSA, e de seu proprietário, D'Alaqua; mas não podia dizer nada disso para a irmã. John não a perdoaria. - Se quiser cumprimentá-lo, acompanho você. Ele me deu de presente uma imagem do século II antes de Cristo que é uma maravilha, depois vamos ao meu quarto que eu mostro para você. As duas irmãs se aproximaram de D'Alaqua. - Umberto, você se lembra de Lisa? - Claro, Mary, que me lembro de sua irmã. - Faz tantos anos... - É mesmo, é porque você, Mary, não viaja para a Itália com a freqüência que deveria. Lisa, se não me engano, a senhora mora em Roma, não é? - Sim, moramos em Roma, e acho que não conseguiria morar em nenhum outro lugar. - Gina está em Roma com Lisa, fazendo o doutorado. Além disso, Lisa conseguiu integrá-la à equipe que está escavando em Herculano. - Ah! Agora me lembro que a senhora é arqueóloga. - Sim, e Gina herdou da tia a paixão pela arqueologia. - Não conheço trabalho mais maravilhoso do que investigar o passado. O senhor, se bem me lembro, também é um aficionado pela arqueologia. - Exatamente. De vez em quando, encontro tempo para dar uma escapada e trabalhar em alguma escavação. - A fundação de Umberto financia escavações. James Stuart se aproximou de D'Alaqua e o levou para outra roda, para desolação de Lisa, que gostaria de continuar conversando com esse homem cujo nome era citado no relatório de Marco Valoni. Quando contasse a John, ele não acreditaria. O próprio Marco ficaria surpreso. Riu para si pensando que fora uma boa idéia aceitar o convite de James e fazer uma surpresa para a irmã no dia de seu aniversário. Pensava que, quando Mary fosse a Roma, poderia organizar um jantar e convidar D'Alaqua e Marco. Claro que o próprio D'Alaqua podia não gostar da idéia, e Mary então se aborreceria com ela. Lisa falaria com a sobrinha, e, entre as duas, fariam a lista de convidados. 17 O jovem criado chorava horrorizado. O rosto de Márcio estava coberto de sangue. O outro saíra correndo para avisar Josar da tragédia na casa do arquiteto real. Josar e Tadeu não se surpreenderam com o relato do criado. - Então ouvimos um grito agudo, terrível e, quando entramos no quarto de Márcio, ele estava com a língua numa mão e na outra uma adaga afiada com que se cortara. Perdeu os sentidos e não sabemos o que fazer. Ele nos avisou que esta noite iria acontecer alguma coisa e insistiu para não nos assustarmos com o que víssemos. Mas, meu Deus, ele cortou a própria língua? Por quê? Por quê? Josar e Tadeu tentaram acalmar o rapaz. Sabiam que ele estava assustado. Partiram imediatamente para a casa de Márcio e lá encontraram o amigo desmaiado, a cama encharcada de sangue, enquanto o outro criado encolhido num canto chorava e rezava aparatosamente. - Tratai de acalmar-vos! - ordenou Josar. - O médico logo chegará para curar Márcio. Mas esta noite, amigos, deveis ser fortes. Não podeis deixar-vos abater pelo medo, nem pela dor; do contrário, a vida de Márcio correrá perigo. Os jovens criados foram se acalmando. Quando o médico chegou, mandou todos saírem do aposento e lá ficou acompanhado apenas por seu ajudante. Demoraram muito para sair. - Pronto. Está descansando tranqüilo. Quero que ele fique alguns dias adormecido com estas gotas que devereis pôr na água que ele beber. Diminuirão a dor, e ele dormirá tranqüilo até a ferida cicatrizar. - Queremos pedir-te um favor - disse Tadeu dirigindo-se ao médico -, nós também queremos despojar-nos da língua. O médico, que também era cristão, olhou-os preocupado. - Nosso Senhor Jesus não concordaria com essas mutilações. - Mas é necessário - explicou Josar -, porque é o único modo de Maanu não nos obrigar a falar. Ele nos torturará para saber onde está o sudário que envolveu o corpo de Jesus. Nós não sabemos, mas poderíamos dizer alguma coisa que pusesse em risco quem sabe. Não queremos fugir, devemos ficar com nossos irmãos, porque deves saber que todos os cristãos sofreremos a ira de Maanu. - Por favor, ajuda-nos - insistiu Tadeu -, não somos tão corajosos como Márcio, que foi capaz de cortar a própria língua com sua adaga afiada. - O que me pedem é contra as leis de Deus. Meu dever é ajudar a curar, não posso mutilar nenhum ser humano. - Então nós mesmos o faremos - disse Josar. O tom de voz decidido de Josar convenceu o médico. Primeiro foram à casa de Tadeu e lá o médico misturou na água o conteúdo de um frasco. Quando Tadeu adormeceu, o médico pediu a Josar que saísse do quarto e fosse para sua própria casa, onde ele não tardaria em chegar. Josar aguardava impaciente a chegada do médico. Este entrou em sua casa com o rosto contrito. - Deita-te na cama e bebe isto - disse a Josar -, dormirás. Quando acordares, já não terás língua. Que Deus me perdoe. - Ele já te perdoou. A rainha arrumara seu toucado cuidadosamente. A notícia da morte de Abgar chegara até o último canto do palácio. Esperava que a qualquer momento seu filho Maanu irrompesse no aposento real. Os criados, com a ajuda dos médicos, prepararam o corpo morto de Abgar para mostrá-lo ao povo. O rei lhe pedira que fizessem orações por sua alma antes de guardar seu corpo no mausoléu real. Não sabia se Maanu permitiria que enterrasse Abgar de acordo com as leis de Jesus, mas estava disposta a travar essa última batalha pelo homem que amava. Durante as horas em que ficou a sós com o corpo morto de Abgar, buscou no fundo de seu coração o motivo do ódio de seu filho. Encontrou a resposta; na verdade sempre a conhecera, embora nunca até aquela madrugada conseguira encará-la. Não tinha sido uma boa mãe. Não, não tinha sido. Seu amor por Abgar era excludente, não permitiu que nada nem ninguém, nem mesmo seus filhos, a afastassem um só segundo do rei. Além de Maanu, trouxera ao mundo mais quatro filhos. Três mulheres e um homem, que morreu logo depois de nascer. Teve pouco interesse pelas filhas. Eram umas meninas caladas que logo se casaram para consolidar alianças com outros reinos. Quase nem sentira sua partida, tão intenso era seu amor pelo rei. Por isso sofreu calada a dor do amor de Abgar por Ania, a dançarina que o contagiou com a mortal doença. Não deixou escapar uma única recriminação de seus lábios, para que nada pudesse manchar sua relação com o rei. Não tivera tempo para Maanu, tão absorvente era seu amor por Abgar, tão ligados eram um ao outro. Agora que ia morrer, pois tinha certeza de que Maanu não pouparia sua vida, sentia a traição feita ao filho ao ter-lhe negado sua maternidade. Como fora egoísta! Jesus a perdoaria? A voz alta e histriônica de Maanu chegou no aposento chegou no aposento antes dele. - Quero ver meu pai. - Está morto. Maanu olhou-a desafiante. - Então, sou o rei de Edessa. - Tu o és, e todos hão de te reconhecer como tal. - Marvuz! Leva a rainha. - Não filho, ainda não. Minha vida está em tuas mãos, mas antes enterremos Abgar como um rei. Permite-me obedecer suas últimas instruções, que o escriba real confirmará. Tício aproximou-se temeroso, com um rolo de pergaminho na mão. - Meu rei, Abgar ditou-me seus últimos desejos. Marvuz murmurou algumas palavras ao ouvido de Maanu. Ele correu os olhos pelo aposento e teve de concordar com o que o chefe da guarda real lhe segredara: além dos criados, escribas e médicos, guardas e cortesãos assistiam à cena com grande expectativa. Não podia deixar-se levar pelo ódio, pelo menos explicitamente, sob pena de assustar aqueles que logo seriam seus súditos e, em vez de colaborar, conspirariam contra ele. Ele se deu conta de que a rainha ganhara de novo. Queria matá-la ali mesmo com suas próprias mãos, mas tinha de esperar e aceitar o sepultamento do pai com honras de rei. - Leia, Tício - ordenou. O escriba, com voz trêmula, leu devagar as últimas ordens de Abgar. Maanu engolia em seco, vermelho de raiva. Abgar dispusera que se celebrasse um ofício religioso cristão e que toda a corte fosse rezar por sua alma. No ofício devia estar presente Maanu, acompanhado da rainha. Por três dias e três noites, seu corpo deveria repousar naquele primeiro templo que Josar mandara construir. Passados os três dias, um cortejo encabeçado por Maanu e pela rainha o levaria ao mausoléu real. Ticio deu uma tossidela e olhou primeiro para a rainha, depois para Maanu. Da dobra de sua manga tirou outro pergaminho. - Se me permites, senhor, também lerei o que Abgar quer que faças como rei. Um murmúrio de surpresa percorreu a sala abarrotada. Os dentes de Maanu rangeram, certo de que seu pai, mesmo morto, lhe preparara uma cilada. Eu, Abgar, rei de Edessa, ordeno que meu filho Maanu, uma vez rei, respeite os cristãos, permitindo-lhes praticar seu culto. Também o faço responsável pela segurança de sua mãe, a rainha, cuja vida me é tão cara. A rainha poderá escolher o lugar onde queira morar, será tratada com o respeito devido à sua posição e nada lhe há de faltar. Tu, meu filho, serás o garantidor de tudo quanto aqui disponho. Se não cumprires meus últimos desejos, Deus te castigará e não encontrarás a paz, nem na vida, nem na morte. Todos os olhares se dirigiram ao novo rei. Maanu tremia de raiva, e foi Marvuz quem tomou a iniciativa. - Daremos a Abgar a despedida que ele pediu. Agora, que cada qual volte a seus afazeres. Lentamente os presentes começaram a deixar o aposento real. A rainha, pálida e calada, esperava o filho decidir sua sorte. Maanu esperou o aposento ficar vazio, então se dirigiu à mãe. - Não saias daqui, enquanto não te mande chamar. Não fala com ninguém, nem de dentro nem de fora do palácio. Duas criadas ficarão aqui contigo. Enterraremos meu pai como ele pediu. E a ti, Marvuz, faço responsável pelo cumprimento de minhas ordens. Maanu deixou o quarto a passo rápido. O chefe da guarda real dirigiu-se à rainha. - Senhora, será melhor cumprires as ordens do rei. - Eu as cumprirei, Marvuz, A rainha cravou-lhe os olhos com tal intensidade que o homem baixou a vista envergonhado e, despedindo-se, saiu apressado. As instruções de Maanu foram precisas: Abgar seria enterrado tal como dispusera e, um segundo depois de fechado o mausoléu real, a guarda prenderia os principais líderes cristãos, Josar e Tadeu, que ele tanto odiava. Também deviam destruir todos os templos onde os cristãos se reuniam para rezar. Além disso, Maanu recomendara pessoalmente a Marvuz: o linho sagrado devia ser entregue a ele no palácio. A rainha foi impedida de deixar seu aposento até o terceiro dia da morte de Abgar. Durante esse tempo, o corpo do rei permaneceu sobre um leito ricamente recamado no centro do primeiro templo que Abgar mandara construir em honra de Jesus. A guarda real velou aquele que fora seu rei, e o povo de Edessa lhe rendeu sua última homenagem indo contemplar o corpo inerte do homem que por tantas décadas garantira a paz e a prosperidade. - Senhora, estais pronta? Marvuz fora buscar a rainha para conduzi-Ia ao templo. De lá, junto a Maanu, faria parte do cortejo até o mausoléu onde Abgar descansaria para toda a eternidade. A rainha se vestira com sua melhor túnica e seu mais rico véu e se enfeitara com suas melhores jóias. Estava majestosa, embora as rugas e o sofrimento tivessem marcado seu rosto. Quando chegaram ao pequeno templo cristão, o recinto estava abarrotado de gente. A corte inteira estava lá, assim como os homens mais eminentes de Edessa. A rainha procurou Josar e Tadeu com os olhos, mas não os viu. Ficou preocupada. Onde estariam seus amigos? Maanu levava a coroa de Abgar e estava mal-humorado. Requerera a presença de Tadeu e Josar, mas seus guardas não conseguiram encontrá-los. Também o linho sagrado não fora encontrado no lugar onde por tantos anos estivera guardado. Um jovem discípulo de Tadeu deu início à oração, dirigindo a cerimônia do adeus. Quando a comitiva real estava prestes a iniciar a marcha rumo ao mausoléu, Marvuz se aproximou do rei. - Senhor, vasculhamos as casas dos principais cristãos, mas não encontramos o linho sagrado. Também não há pistas de Tadeu, nem de Josar. O chefe da guarda real se calou. Naquele momento, abrindo alas, Tadeu e Josar, pálidos como a morte, se aproximavam de onde eles estavam. A rainha abriu os braços e, lutando para conter as lágrimas, estendeu-lhes a mão. Josar olhou-a com ternura, mas não lhe disse nada, Tadeu também não. Maanu deu ordem para o cortejo seguir. Era hora de enterrar Abgar, depois ajustaria as contas com os cristãos. Uma multidão silenciosa os acompanhou até o mausoléu. Lá, antes de o mestre de obras voltar a fechar a entrada, a rainha pediu alguns minutos para rezar. Quando a pedra foi encaixada, fechando a tumba, Maanu fez um gesto para Marvuz, e este, por seu turno, fez um sinal para os guardas, que se apressaram a prender Josar e Tadeu, diante de todos os presentes. Um rumor de terror começou a correr entre a multidão, que de repente compreendeu que Maanu não respeitaria a vontade de Abgar e perseguiria os cristãos. Uns com passos atropelados, outros correndo, as pessoas começaram a se dispersar, buscando refúgio em suas casas. Alguns murmuravam que naquela mesma noite deixariam Edessa, fugindo de Maanu. Não teriam tempo nem sequer de tentar a fuga. Naquele mesmo instante, a guarda real estava destruindo as casas dos principais cristãos, enquanto outros eram presos e executados lá mesmo, diante do mausoléu real. O horror se desenhou no rosto da rainha, arrastada por Marvuz de volta ao palácio. A mulher viu Tadeu e Josar serem presos sem que nenhum dos dois oferecesse resistência, sem emitir um único som. A fumaça dos incêndios chegava até a colina em que se erguia o palácio real. Os gritos das pessoas soavam como uivos desesperados. Edessa tremia de terror, enquanto Maanu, na sala do trono, bebia vinho e olhava satisfeito o medo estampado no rosto dos cortesãos. A rainha permanecia em pé, assim o ordenara Maanu. Muito perto, Josar e Tadeu, com as mãos atadas às costas e as túnicas rasgadas pelas chicotadas que haviam recebido da guarda real, continuavam sem proferir uma palavra. - Açoitai-os mais, quero que me implorem para acabar com seu tormento. Os guardas empregavam toda a sanha contra os velhos, mas eles continuavam sem emitir som algum, para assombro da corte e ira do rei. A rainha gritou quando Tadeu caiu desmaiado, enquanto as lágrimas quase cobriam o rosto de Josar, que tinha as costas em chagas. - Chega! Parem! - Como te atreves a dar ordens! - gritou Maanu. - És um covarde, torturar dois velhos não é digno de um rei! Com as costas da mão, Maanu esbofeteou a mãe. Ela cambaleou e caiu no chão. Um murmúrio de horror brotou em uníssono na sala. - Morrerão aqui, diante de todos, se não disserem onde esconderam o linho, e morrerão todos os seus cúmplices, sejam eles quem forem. Dois guardas entraram com Márcio, o arquiteto real, seguidos por seus dois jovens criados assustados. Maanu dirigiu-se a eles. - Disse onde está o linho? - Não, meu rei. - Açoitai-o até que fale! - Podemos açoitá-lo, mas não falará. Seus criados confessaram que o arquiteto fez algo terrível: há alguns dias, cortou a própria língua. A rainha olhou para Márcio, depois seu olhar foi até os corpos inertes de Tadeu e de Josar. Deu-se conta de que os homens decidiram mutilar-se para não serem vencidos pela tortura, e dessa forma guardar o segredo do Sudário. Começou a chorar, condoída pelo sacrifício de seus amigos, sabendo que seu filho cobraria caro essa afronta. Maanu tremia. A ira lhe avermelhara a pele. Marvuz se aproximou dele temendo sua reação. - Meu rei, encontraremos alguém que saiba onde esconderam o linho, procuraremos por toda Edessa, o encontraremos... O rei não o ouvia. Dirigiu-se até a mãe, levantou-a do chão e, sacudindo-a, gritou-lhe: - Dize onde está! Dize, ou te arrancarei a língua! A rainha chorava convulsivamente. Alguns dos nobres da corte resolveram intervir, envergonhados de sua covardia por permanecerem impassíveis diante dos golpes que Maanu dava na própria mãe. Se Abgar estivesse vivo, o mandaria matar! - Senhor, deixai-a! - rogava um. - Meu rei, acalmai-vos, não golpeeis vossa mãe! - pedia outro. - Sois o rei, deveis mostrar clemência! - dizia um terceiro. Marvuz segurou o braço do rei quando ele ia tornar a golpear a rainha. - Senhor! Maanu deixou cair o braço, e se apoiou em Marvuz. Sentia-se burlado por sua mãe e pelos dois velhos. E exausto, esgotado pela ira. Márcio contemplava toda a cena manietado. Rogava a Deus que fosse misericordioso, que se apiedasse deles. Pensou no sofrimento de Jesus na cruz, na tortura que os romanos lhe Infligiram e em como ele os perdoara. Procurou dentro dele o perdão para Maanu, mas só sentia ódio pelo rei. O chefe da guarda real tomou conta da situação e ordenou que levassem a rainha para seus aposentos. Marvuz fez o rei sentar e pôs em suas mãos uma taça de vinho que ele bebeu com avidez. - Devem morrer - disse quase em um sussurro. - Sim - respondeu Marvuz. - Morrerão. Fez um sinal para os soldados, e eles arrastaram Tadeu e Josar, desmaiados de dor. Márcio chorava em silêncio. Agora se vingariam nele. O rei ergueu os olhos e cravou-os nos de Márcio. - Todos os cristãos morrerão. Suas casas, suas terras, tudo o que possuírem eu o repartirei entre os que me são leais. Tu, Márcio, me traíste duplamente. És um dos maiores nobres de Edessa e vendeste teu coração a esses cristãos que tanto te enfeitiçaram, ao ponto de arrancares tua própria língua. Encontrarei o linho e o destruirei. Juro. A um gesto de Marvuz, um soldado levou Márcio. - O rei quer descansar. Foi um longo dia - disse Marvuz, dispensando os cortesãos. Quando ficaram sozinhos, Maanu abraçou-se a seu cúmplice e pôsse a chorar. Sua mãe lhe arrebatara o sabor da vingança. - Quero que a rainha morra. - Morrerá, senhor, mas deveis esperar. Antes procuremos o Sudário e acabemos com todos os cristãos. Então será a vez da rainha. Naquela noite, os gritos de horror e o crepitar do fogo chegaram até o último canto do palácio. Maanu traíra a última vontade do pai. 18 Sofia telefonou para o padre Yves. O sacerdote a intrigava. Não sabia por quê, mas tinha a impressão de que por trás de sua amabilidade e boa vontade havia um recanto esconso e inabordável. Pensou que surpreenderia o padre convidando-o para almoçar, mas este não pareceu surpreso e disse que, se o cardeal não visse nenhum inconveniente, almoçaria com ela. E lá estavam os dois, em uma pequena trattoria perto da catedral. - Fico contente que o cardeal tenha permitido aceitar meu convite. Sabe, gostaria de falar com o senhor sobre a catedral, sobre o que aconteceu. O padre a ouvia com atenção, mas sem demonstrar nenhum interesse especial. - Padre Yves, diga a verdade. O senhor acha que o incêndio foi acidental? - Não ficaria nada bem eu não dizer a verdade... - devolveu o sacerdote sorrindo. - Lógico que eu acho que foi acidental, a menos que a senhora saiba alguma coisa que eu não sei. O padre Yves olhou-a fixamente. Seu olhar era limpo, amável, mas Sofia continuava achando que o sacerdote escondia alguma coisa. - Suponho que seja vício do ofício, mas desconfio das coincidências, e na catedral de Turim houve acidentes demais. - Suspeita que esse acidente foi provocado? Por quem? Por quê? - Isso é o que estamos investigando, o porquê e por quem. Não se esqueça de que temos um cadáver, o cadáver de um homem jovem. Quem era? Que estava fazendo lá? Aliás, a autópsia revelou que o homem calcinado não tinha língua. Temos outro mudo na prisão. Lembra-se da tentativa de roubo de alguns anos? Não é preciso ser um gênio para suspeitar que há alguma coisa estranha. - Estou desnorteado... Eu não pensei que... Enfim, acho que acidentes acontecem, principalmente em edifícios tão antigos como a catedral de Turim. Quanto ao cadáver sem língua e ao mudo da prisão, não sei que relação pode haver entre eles. - Padre, o senhor não me parece um sacerdote como qualquer outro. - Como assim? - É isso, o senhor não é um padre simplório. Seu currículo é o de um homem inteligente e preparado. Por isso quis vê-lo e conversar com o senhor, e insisto em que seja franco comigo. Sofia não escondia a irritação que lhe causava o fato de o padre Yves tentar brincar de gato e rato com ela. - Sinto desapontá-la, mas sou um padre, e meu mundo é diferente do seu. De fato, tive a sorte de contar com um bom preparo, mas meus conhecimentos não têm nada a ver com os seus. Não sou policial e não faz parte das minhas preocupações e deveres suspeitar de nada, nem de ninguém. O tom de voz do padre Yves endurecera. Ele tampouco escondia sua irritação. - Desculpe, talvez tenha sido um pouco brusca e não soube pedir sua ajuda. - Pedir minha ajuda para quê? - Para desvendar o mistério dos acidentes, para encontrar alguma pista. Vou ser franca com o senhor: não achamos que o incêndio foi casual. Achamos que foi provocado. O que não sabemos é por quê. - E no que acha que posso ajudá-la? Diga-me concretamente em quê. O padre continuava contrariado. Sofia se deu conta de que tinha metido os pés pelas mãos ao mostrar tão às claras sua desconfiança. - Gostaria de saber sua opinião sobre os operários que trabalham na catedral. O senhor tratou com eles durante esses meses. Há algum que lhe tenha parecido suspeito, que tenha dito ou feito alguma coisa que tenha chamado sua atenção? Também gostaria que me dissesse o que acha do pessoal que trabalha na sede episcopal, não sei, as secretárias, o porteiro, inclusive o cardeal... - Doutora, tanto eu como todos os membros do bispado colaboramos com os carabinieri e com os senhores do Departamento de Arte. Seria uma deslealdade de minha parte começar a espalhar suspeitas sobre os operários ou sobre as pessoas que trabalham no bispado. Já disse tudo o que tinha para dizer. Se a senhora acha que não foi um acidente, deve investigar. Sabe que pode contar, é evidente, com a colaboração do arcebispado. Sinceramente, não entendo seu jogo. Deve entender que informarei o cardeal sobre essa conversa. A tensão entre ambos era evidente. Sofia pensou que o padre Yves parecia sincero em seu aborrecimento. Ela também se sentia incômoda, tinha a sensação de não estar conduzindo a investigação de maneira inteligente. - Não estou pedindo que fale mal dos operários ou de seus colegas... - Ah, não? Das duas, uma. Ou a senhora acha que sei alguma coisa que não disse, e neste caso é evidente que suspeita de mim, porque se sei algo e não o disse é porque tenho algo a esconder, ou está me pedindo que lhe dê não sei que tipo de detalhes sobre os operários e meus colegas do bispado e que os dê aqui, extraoficialmente, não sei não sei com que finalidade. - Eu não estou fazendo fofoca. Só me diga por que aceitou almoçar comigo. - Boa pergunta! - Então responda! O padre cravou os olhos em Sofia. A intensidade de seu olhar perturbou-a tanto que sentiu seu rosto corar. - A senhora me pareceu uma pessoa séria e competente. - Isso não é uma resposta. - É sim. Nenhum dos dois comera nada. O padre Yves pediu a conta. - O convite foi meu. - Se não se incomodar, a despesa corre pelo arcebispado. - Acho que houve um mal-entendido. Se fui responsável por ele, me desculpe. O padre Yves tornou a olhá-la. Mas desta vez o olhar era tranqüilo, de novo indiferente. - Deixemos isso para lá. - Não gosto de mal-entendidos, gostaria... Ele a interrompeu com um gesto da mão. - Não faz mal, vamos deixar para lá. Na rua, um sol fraco iluminava tudo. Saíram andando juntos, em silêncio, em direção à catedral. De repente, o padre parou e tornou a olhá-la intensamente. Sofia sustentou o olhar e se surpreendeu quando ele sorriu. - Aceita um café? - O senhor está me convidando para tomar um café? - Bom, para o que quiser. Talvez eu tenha sido um pouco ríspido com a senhora. - E por isso me convida para um café? - Ufa! Certas pessoas brigam por qualquer coisa, e parece que a senhora e eu pertencemos a essa categoria. Sofia riu. Não sabia porque o padre Yves mudara de idéia, mas ficou satisfeita. - Certo, vamos ao café. Ele segurou levemente em seu braço para atravessar a rua. Passaram pela catedral e caminharam tranqüilos e em silêncio até chegar a um velho café, com mesas de mogno polido e garçons grisalhos. - Estou com fome - disse o padre Yves. - Não me admira. Por causa da sua implicância não comemos nada. - Bom, vamos pedir um doce, que acha? - Não como doce. - Então, o que quer? - Só um café. Fizeram o pedido ao garçom e ficaram um de frente para o outro, olhando-se. - De quem suspeita, doutora? A pergunta a desnorteou. Na verdade, era ele que a desnorteava constantemente com sua atitude. - Tem certeza de que quer falar do incidente da catedral? - Vamos lá! - Certo. Não suspeitamos de ninguém em especial, não temos pistas, só sabemos que as peças não encaixam. Marco, meu chefe, acha que os acidentes têm a ver com o Santo Sudário. - Com o Sudário? Por quê? - Porque a catedral de Turim é a que mais acidentes sofreu entre todas as da Europa. Porque o Sudário está na catedral de Turim, porque ele tem esse palpite. - Mas com o Sudário, graças a Deus, nunca aconteceu nada. Não entendo a relação entre os acidentes e o Sudário, sinceramente. - Os palpites são difíceis de explicar, mas Marco tem um e contagiou a todos os membros da equipe com ele. - Acha que alguém pode querer destruir o Sudário, como aconteceu com a Pietá de Michelangelo? - Essa seria a resposta mais simples. Mas e os mudos? - Bom, só há dois mudos. E as coincidências existem, por mais que a senhora não acredite nelas. - Achamos que o mudo da prisão... - Sofia se calou; estava quase contando o plano para aquele padre bonito e envolvente. - Continue. - Bem, achamos que o mudo que está na prisão sabe de alguma coisa. - Imagino que devam tê-lo interrogado de algum modo. - É mudo e parece não entender nada do que se diz a ele. - Devem tê-lo interrogado por escrito. - Sem nenhum resultado. - E se tudo fosse mais simples, doutora? E se as coincidências existissem? Conversaram durante uma hora, mas a conversa não teve muita serventia para Sofia. O padre Yves não lhe disse nada de relevante. Tinham passado momentos agradáveis, e mais nada. - Até quando a senhora vai ficar em Turim? - Vou embora amanhã. - Não deixe de me ligar, se achar que posso ser útil em alguma coisa. - Vou pensar duas vezes. Só falta o senhor se aborrecer de novo. Despediram-se amigavelmente. O padre Yves disse que, se passasse por Roma, telefonaria para ela. Sofia também prometeu ligar se voltasse a Turim. Mera formalidade de parte a parte. Marco tinha marcado a reunião para o começo da tarde. Queria contar-lhes o plano que ia pôr em prática para soltar o mudo. Sofia foi a última a chegar. Marco não sabia por quê, mas achou que ela estava diferente. Bonita como sempre, mas mudada, não sabia ainda em quê. - Bem, o plano é simples. Como vocês sabem, todos os meses, em todas as prisões se reúne a Junta de Segurança, da qual participam o juiz e o promotor de execuções penais, os psicólogos e os assistentes sociais, além do diretor da prisão. Costumam visitar todos os presos, principalmente os que estão terminando de cumprir a pena, têm bom comportamento e merecem algum benefício penitenciário, como a liberdade condicional. Amanhã eu vou a Turim para me reunir com todos eles. Vou lhes pedir que façam um pouco de teatro. Todos o ouviam em silêncio, com atenção, e Marco resolveu continuar. - Quero que no mês que vem, quando os membros da Junta de Segurança forem à prisão de Turim visitem o mudo e que falem com naturalidade na presença dele, como sempre fizeram, pensando que ele não os entende. Pedirei à assistente social e ao psicólogo que deixem escapar que não tem muito sentido o mudo continuar preso, que seu comportamento é exemplar e que, segundo a lei, ele já poderia desfrutar da liberdade condicional. O diretor fará alguma objeção, e eles irão embora. Quero que essa cena se repita por três ou quatro meses, até que por fim o soltem. - Vão colaborar com você? - perguntou Pietro. - Os ministros falaram com seus respectivos chefes. Acho que não vão se opor. Afinal de contas não se trata de soltar nenhum assassino ou terrorista, mas um ladrãozinho. - É um bom plano - disse Minerva. - É sim - concordou Giuseppe. - Tenho mais notícias. Dessa você vai gostar, Sofia. Lisa, a esposa de John Barry, me ligou. Lisa é irmã de Mary Stuart, que, se vocês não sabem, é casada com James Stuart que, se não sabem, é um dos homens mais ricos do mundo. Amigo do presidente dos Estados Unidos e dos presidentes de meio mundo, da metade rica, é claro. Em sua lista de amigos também estão os homens de negócios e banqueiros mais importantes do planeta. A filha caçula dos Stuart, Gina, é arqueóloga como Lisa e está passando uma temporada em Roma, na casa da tia, além de colaborar com o financiamento da escavação de Herculano. Bom, Mary e James Stuart vão chegar a Roma daqui a duas semanas. Lisa vai organizar um jantar para o qual vai convidar muitos dos amigos que os Stuart têm na Itália, entre eles Umberto d'Alaqua. Eu já fui convidado para esse jantar, e pode ser que John e Lisa sejam benevolentes e me permitam levála, doutora. O rosto de Sofia se iluminou. Não podia esconder sua satisfação diante da perspectiva de rever D'Alaqua. - Acho que é o mais perto que poderemos chegar desse homem. Quando a reunião acabou, Sofia se aproximou de Marco. - É surpreendente que uma mulher como Lisa tenha uma irmã casada com um tubarão das finanças. - Não, não é não. Mary e Lisa são filhas de um professor de história medieval de Oxford. Ambas estudaram história: Lisa arqueologia e Mary história medieval, como o pai. Lisa ganhou uma bolsa para fazer o doutorado na Itália, sua irmã a visitava sempre, mas a vida de Mary seguia por outros caminhos. Foi trabalhar na Sotheby's como especialista em arte medieval. Isso a levou a conhecer gente importante, como seu marido, James Stuart. Eles se conheceram, namoraram e se casaram. Lisa conheceu John e se casou com ele; as duas parecem muito felizes com seus respectivos maridos. Mary pertence à alta sociedade internacional; Lisa, com seu esforço, fez um nome no mundo acadêmico. A irmã a apóia, como agora faz com sua filha Gina, patrocinando algumas escavações. É só isso. - Demos sorte de você ser amigo do John. - É, os dois são gente muito boa. John é o único americano que eu conheço que não tem o menor interesse em subir e resiste a que o transfiram para outro lugar. Naturalmente, a influência dos Stuart tem contribuído para a manutenção dele por tantos anos no cargo que ocupa na embaixada. - Acha que vão deixar você me levar à festa? - Vou tentar. Você ficou impressionada com D'Alaqua, não é? - Muito. É um homem pelo qual qualquer mulher poderia se apaixonar. - Imagino que não seja seu caso. - Bom, melhor você não imaginar nada - riu Sofia. - Cuidado, doutora! - Não se preocupe, Marco. Tenho os pés no chão e por nada no mundo vou tirá-los de onde estão. D' Alaqua está fora do meu alcance. Portanto, você pode ficar sossegado. - Vou te fazer uma pergunta pessoal. Se incomodar, pode me mandar à merda. O que está acontecendo com Pietro? - Não vou mandar você à merda, vou dizer a verdade: ponto final. A relação se esgotou. - Você já falou isso para ele? - Vamos jantar juntos esta noite para conversar. Mas ele não é bobo e já percebeu. Acho que está de acordo. - Fico contente. - Ah é? Por quê? - Porque Pietro não é um homem para você. É boa pessoa, com uma mulher ótima, que vai ficar imensamente feliz de recuperar o marido. Você, Sofia, qualquer dia deve nos deixar e começar outro percurso profissional, com outras pessoas, com outras perspectivas. Na verdade, o Departamento de Arte é pequeno para você. - Que é isso? Pelo amor Deus! Você sabe como eu sou feliz no meu trabalho. Não quero ir embora, não quero mudar. - Você sabe que tenho razão. Outra coisa é que você tem medo de tentar. Pietro os interrompeu. Despediram-se de Marco, que de manhã cedo viajaria para Turim. - Vamos para tua casa? - perguntou Pietro. - Não, prefiro jantar em um restaurante. Pietro levou-a a uma pequena cantina do Trastevere. Sofia se deu conta de que era o mesmo lugar onde jantaram juntos da primeira vez, quando a relação começou. Fazia muito tempo que não iam lá. Pediram o jantar e falaram de amenidades, adiando o momento de se enfrentarem um ao outro. - Pietro... - Tudo bem. Eu sei o que você quer me dizer, e estou de acordo. - Você sabe? - Sei, qualquer um saberia. Para algumas coisas, você é transparente. - Pietro, eu gosto muito de você, mas não estou apaixonada e não quero criar um compromisso. Queria que nós dois continuássemos amigos, que continuássemos trabalhando como até agora, com companheirismo e sem dramas. - Eu te amo. Só um idiota não estaria apaixonado por você, mas também sei que não estou à tua altura... Sofia fez um gesto interrompendo-o, contrariada. - Não diga isso, não diga bobagem, por favor. - Sou um rato e pareço um rato. Você é uma universitária, uma mulher de classe, tanto faz se está de jeans ou com um tailleur de Armani, sempre parece uma dama. Tive muita sorte em ter tido você, mas sempre soube que um dia você me daria o fora, e esse dia chegou. É D'Alaqua? - Nem sequer olhou para mim! Não, Pietro, não tem a ver com ninguém. Simplesmente nossa relação se esgotou. Você ama sua mulher, e eu entendo. Ela é boa pessoa, e além disso bonita. Você nunca vai se separar dela, não agüentaria ficar sem seus filhos. - Sofia, se você tivesse me dado um ultimato, teria largado tudo para ficar com você. Ficaram em silêncio. Sofia tinha vontade de chorar, mas se conteve. Estava decidida a romper com Pietro, a não se deixar levar por nenhuma emoção que adiasse mais a decisão que já devia ter tomado há muito. - Acho que o melhor para os dois é terminarmos, mesmo. Você vai continuar meu amigo? - Não sei. - Por quê? - Porque não sei. Sinceramente não sei como vou reagir ao te ver e não te ter. Não sei como vou me sentir no dia em que você contar que há outro homem na tua vida. Seria muito fácil eu dizer que vou ser teu amigo, mas não quero te enganar, não sei se vou conseguir. E, se eu não conseguir, vou dar um jeito de ir embora antes de te odiar. Sofia se impressionou com as palavras de Pietro. Marco tinha razão em dizer que era um erro misturar prazer e trabalho. Mas a sorte estava lançada, e não tinha volta. - Eu é que vou. Só quero terminar a investigação sobre o incêndio na catedral, ver o que acontece com o mudo. Depois me demito, e vou embora. - Não, não seria justo. Sei que você é capaz de me tratar como um amigo, como a uma pessoa qualquer. O problema sou eu, eu me conheço. Vou pedir transferência. - Não. Você gosta do Departamento de Arte, foi um salto na tua carreira e não vai perder isso por minha causa. Marco disse que eu devia procurar outros caminhos profissionais, e na verdade tenho vontade de fazer outras coisas, de dar aula na universidade, de procurar trabalho em alguma escavação ou, quem sabe, talvez me arrisco e abro uma galeria de arte. Sinto que estou fechando um ciclo na minha vida. Marco já percebeu isso e me incentivou a procurar outro caminho, com razão. Só quero te pedir um esforço para continuar mais alguns meses, até a investigação sobre o incêndio acabar. Por favor, vamos nos ajudar a passar esses meses do melhor jeito possível. - Vou tentar. Pietro tinha os olhos cheio de lágrimas. Sofia ficou surpresa, nunca imaginou que ele a amasse tanto. Ou seria apenas orgulho ferido? 19 Izaz e Obodas devoravam o queijo e os figos com que Timeu os obsequiara. Estavam cansados pelos longos dias de viagem, mas principalmente porque temiam que os soldados de Maanu os alcançassem para levá-los de volta a Edessa. Mas lá estavam, na casa de Timeu, em Sidon. Harram, o chefe da caravana, lhes garantira que mandaria um mensageiro a Senim para dar fé de que terminaram a viagem com sucesso. Timeu era um velho de olhar penetrante que os recebera com afeto e Insistira para que descansassem antes de lhe contarem as peripécias da viagem. O velho não ficou surpreso com sua chegada. Na verdade já os esperava há meses, quando recebeu uma carta de Tadeu em que lhe dizia de sua preocupação com a frágil saúde de Abgar e explicava a difícil situação dos cristãos quando o rei morresse, apesar de contar com o apoio da rainha. O velho os observava paciente, sabendo que estavam esgotados de corpo e alma. Dispusera que Izaz e o colosso Obodas ficassem em sua casa, compartilhando um quartinho, o único de que dispunha além do seu, já que sua casa era modesta como devia ser a de um seguidor dos verdadeiros ensinamentos de Jesus. O velho lhes contou que em Sidon tinham constituído uma pequena comunidade de cristãos. Reuniam-se ao entardecer para rezar e aproveitavam para contar as novidades; sempre havia algum viajante que trazia notícias de Jerusalém, ou algum parente que enviava missivas de Roma. Izaz escutava o velho com atenção e, quando ele e Obodas acabaram de comer, pediu a Timeu que o ouvisse a sós. Obodas fechou a cara. As instruções de Senim tinham sido expressas: não devia perder de vista o jovem Izaz, devia defender com sua vida a do sobrinho de Josar. O velho Timeu, vendo a sombra da incerteza refletida nos olhos do gigante, tranqüilizou-o. - Não te preocupes, Obodas. Temos espiões e saberemos se a gente de Maanu chegar a Sidon. Descansa tranqüilo, enquanto falo com Izaz. Tu poderás ver-nos da janela do quarto onde dormirão. Obodas não se atreveu a contrariar o velho e, já no quarto, postouse ao lado da janela com um olhar vigilante em Izaz. O jovem falava com Timeu em voz baixa. As palavras se perdiam com a brisa suave da manhã. Obodas pôde ver que o rosto do velho ia se transfigurando conforme ouvia Izaz. Assombro, dor, preocupação... estas e outras emoções afloravam no rosto de Timeu. Quando Izaz acabou de falar, Timeu apertou seu braço com afeto e o abençoou com o sinal da cruz, em memória de Jesus. Depois entraram na casa. Timeu foi para o quarto onde Obodas esperava, e os dois jovens seguiram a recomendação de Timeu: descansariam até a tarde, quando iriam se juntar à pequena comunidade de cristãos de Sidon, sua nova pátria, porque sabiam que nunca mais poderiam voltar à terra de seus antepassados. Se eles o fizessem, Maanu os mandaria matar. Timeu entrou no templo contíguo à casa. Lá, de joelhos, rezou a Jesus e pediu que o ajudasse a saber o que fazer com o segredo que Izaz lhe confiara e pelo qual Josar, Tadeu, o tal Márcio e outros cristãos se sacrificaram. Somente Izaz e ele sabiam agora onde estava depositada a mortalha do Senhor. Timeu se angustiava pensando que em algum momento eles deveriam, por sua vez, confiar o segredo a alguém porque ele era velho e morreria. Izaz era jovem, mas o que aconteceria quando viesse a velhice? Podia ser que Maanu morresse antes deles e os cristãos pudessem voltar a Edessa, mas e se não fosse assim? A quem confiar o lugar onde Márcio ocultara a mortalha? Não podiam levar o segredo para a tumba. As horas transcorreram sem que Timeu se desse conta delas. Lá onde estava, de joelhos rezando, o encontraram Izaz e Obodas, ao cair da tarde. Naquele momento o velho já tomara uma decisão. Timeu levantou-se devagar. Tinha os joelhos inchados, doloridos. Sorriu para seus hóspedes e pediu que os acompanhassem à casa de seu neto, da qual só os separava um pequeno pomar. - João! João! - chamou o velho. Da casa branquíssima, protegida do sol por uma parreira, saiu uma jovem mulher com uma menina no colo. Ainda não chegou, vovô. Não deve demorar, sabes que ele sempre vem na hora da oração. - Esta é Alaida, a mulher de meu neto. E esta é sua filhinha, Miriam. - Entrai para tomar uma água fresca com mel - convidou Alaida. - Não, filha, agora não; nossos irmãos estão quase chegando para rezar a Nosso Senhor. Só queria que João e tu conhecêsseis estes dois jovens que morarão comigo daqui em diante. Dirigiram-se ao templo onde já havia um grupo de famílias conversando amigavelmente. Camponeses e pequenos artesãos que se converteram à fé de Jesus. Timeu foi lhes apresentando Izaz e Obodas e pediu aos dois jovens que contassem sua fuga de Edessa. Um pouco tímido, Izaz começou a dar novas de Edessa e a responder às singelas perguntas que os membros da comunidade lhe faziam. Quando terminou de falar. Timeu pediu a todos que rezassem para que Jesus ajudasse os fiéis de Edessa. Assim fizeram, rezaram e cantaram e compartilharam uma ração de pão e vinho que Alaida levara consigo. João era de compleição forte, nem alto nem baixo, de cabelo preto, tão preto como a barba. Chegou tarde, acompanhado por Harram e uns quantos homens da caravana carregados com sacos. Timeu os fez entrar em sua casa. - Senim, meu senhor - disse Harram -, queria que vos entregasse estes presentes que vos ajudarão no sustento de Izaz, o sobrinho de Josar, e seu guardião Obodas. Também me mandou entregar-te esta bolsa com ouro, vos será útil em caso de necessidade. Izaz viu assombrado a entrega de tantos bens. Senim era muito generoso. Antes de partir também lhe entregara uma bolsa cheia de ouro, o suficiente para viver folgadamente pelo resto da vida. - Obrigado, Harram, meu bom amigo. Rezarei para que encontres Senim como o deixaste e para que a ira de Maanu não se abata sobre ele. Dize a teu senhor que estes presentes, como os que me trouxeste de parte da rainha há meses, serão usados para ajudar os pobres, tal como nos ensinou Jesus, e a buscar o bem-estar de nossa pequena comunidade. Como ainda ficarás alguns dias em Sidon antes de voltar a Edessa, terei tempo de escrever a Senim. Os pesadelos não deixaram Izaz dormir. Em seu sonho via rostos carcomidos pelas chamas e um campo regado de sangue. Quando acordou estava encharcado de suor, o suor do medo. Saiu para refrescar-se na pia do pomar e lá encontrou Timeu podando um limoeiro. Timeu pediu que o acompanhasse num passeio pela praia, aproveitando o frescor do amanhecer. - Obodas não se assustará quando acordar? - Certamente, mas pedirei a João que fique atento e, quando teu guardião acordar, lhe diga onde estamos. Uma vez dadas as instruções a seu neto, que já se levantara e começara a trabalhar no pomar que dividia com o avô, dirigiram-se à praia. O Mare Nostrum, como o chamavam os romanos, estava furioso naquela manhã. As ondas golpeavam com força o cascalho e a areia da praia. Izaz olhava o mar extasiado. Era a primeira vez que via aquela imensidão de água que lhe pareceu um milagre. - Izaz, Deus quis que fôssemos depositários de um grande segredo, o lugar onde se encontra a mortalha de seu Filho, que tantos milagres já fez. Deve permanecer onde Márcio a depositou, não importa por quanto tempo, mas nunca antes que Edessa volte a ser cristã e se possa ter certeza de que o linho não correrá perigo. Talvez nem tu nem eu vejamos esse dia, por isso, quando eu morrer, deverás escolher um homem que guarde o segredo e o transmita, por sua vez, a outro homem, assim até que nenhuma sombra ameace a presença dos cristãos em Edessa. Se Senim sobreviver, ele nos manterá a par de tudo que acontece no reino. Em todo caso, hei de cumprir uma promessa que fiz a Tadeu, a teu tio Josar e à rainha quando, meses atrás, me mandaram missivas explicando o que podia acontecer quando Abgar morresse. Eles pediram que, acontecesse o que acontecesse, eu fizesse o possível para que a semente de Cristo não fosse arrancada de Edessa e que, se acontecesse o pior, depois de algum tempo enviasse cristãos para lá. - Mas seria enviá-los à morte. - Eles irão sem expor nossa crença. Uma vez instalados no reino, trabalharão e procurarão os cristãos que possam reconstruir a comunidade em segredo. Não se trata de provocar a ira de Maanu, nem de desatar uma perseguição, mas de fazer que a semente de Jesus viva para sempre em Edessa. Ele assim o quis quando determinou que Josar levasse sua mortalha para Abgar. Ele santificou esta terra com sua presença e seus milagres, e nós devemos cumprir os desejos do Senhor. "Esperaremos Harram regressar com uma caravana e então decidiremos o que fazer, e quando. Mas deves saber que a mortalha nunca deve sair de Edessa e que devemos trabalhar para que a fé em Jesus nunca se extinga na cidade." Ao longe, a figura imponente de Obodas aproximava-se deles. O gigante estava furioso. - lzaz, Timeu! Burlais minha vigilância, quando eu jurei proteger lzaz com minha vida. Se algo lhe acontecer, será minha responsabilidade, e nunca me perdoaria. - Obodas, precisávamos conversar - disse lzaz. - Mas eu não te incomodarei quando precisares falar sem testemunhas com Timeu, ou com quem quer que seja. Ficarei por perto, onde te possa ver mas não ouvir. Só te peço que não fujas da minha vista, que não dificultes minha promessa. lzaz deu sua palavra de que assim seria. Com o tempo, confiaria em Obodas mais do que em qualquer outro homem. 20 Addaio estava sentado atrás de uma imensa mesa de madeira entalhada. A poltrona abacial não diminuía seu porte imponente. Não tinha um único fio de cabelo, mas as rugas em volta dos olhos e dos lábios não deixavam dúvidas quanto à idade do homem, que as mãos nodosas e com as veias saltadas também delatavam. No quarto havia duas janelas, mas as pesadas cortinas não deixavam passar nenhum raio de luz. Imperava a penumbra. Dos dois lados da enorme mesa havia quatro cadeiras de espaldar alto e sentados nelas oito homens, totalmente vestidos de preto, com os olhos baixos. Um homenzinho magro, vestido com simplicidade, abrira a porta e os conduzira até a sala de Addaio. Zafarim tremia. Só a presença de seu pai o impedia de sair correndo. Sua mãe agarrava seu braço e sua mulher, Ayat, com a filhinha, caminhava a seu lado sem dizer nada, tão assustadas quanto ele. O homenzinho conduziu as mulheres a um aposento. - Esperem aqui – indicou-lhes, e com passo apressado acompanhou os homens até uma grande porta de madeira, ricamente trabalhada; abriu uma das folhas e fez Zafarim e o pai entrarem. A voz de Addaio retumbou contra as paredes de madeira, cobertas de livros. Zafarim baixou a cabeça, sem esconder um gesto de dor, de dor na alma. Seu pai deu um passo à frente e, sem medo, cravou os olhos em Addaio. - Eu lhe dei dois filhos. Os dois foram corajosos, sacrificaram-se renunciando à própria língua. Serão mudos até que Deus Nosso Senhor os ressuscite no dia do Juízo. Nossa família não merece suas recriminações. Há séculos os melhores dentre nós dedicaram a vida a Jesus, o Salvador. Somos homens, Addaio, apenas homens, por isso fracassamos. Meu filho acha que há um traidor entre nós, alguém que sabe quando vamos a Turim e que conhece os planos que você vai urdindo. "Você fracassou. Zafarim é inteligente, você sabe. Você mesmo insistiu para que, assim como Mendibj, ele fosse à universidade. A falha está aí, Addaio, você deve procurar o traidor que se esconde entre nós. A traição tem persistido em nossa comunidade ao longo do tempo. Só assim se explica que todas as tentativas de recuperar o que é nosso tenham fracassado." Addaio ouvia sem mover um músculo, com os olhos soltando fagulhas de ira, que continha a duras penas. O pai de Zafarim se aproximou da mesa e entregou a Addaio mais de cinqüenta páginas, escritas na frente e no verso. - Toma, nestes papéis encontrará o relato do que aconteceu. Meu filho também dá conta aqui de suas suspeitas. Addaio nem olhou para os papéis que o pai de Zafarim deixou em cima da mesa. Levantou-se e pôs-se a dar voltas em silêncio. Com andar firme, postou-se diante de Zafarim, cerrando os punhos. Parecia que ia desfechar um murro no rosto do jovem, mas deixouos cair na cintura. - Você sabe o que significa este fracasso? Meses, meses! Talvez anos antes que possamos tentar de novo! A polícia está investigando a fundo, alguns dos nossos podem ser presos. E se eles falarem? - Mas eles não sabem a verdade, não sabem porque foram... interrompeu o pai de Zafarim. - Quieto! Você não sabe nada. Nossa gente na Itália, na Alemanha, em outros lugares, sabe o que precisa saber e, se caírem nas mãos da polícia, eles os farão falar, e assim poderão chegar até nós. Então, o que faremos? Vamos todos cortar a língua para não trair Nosso Senhor? - O que acontecer será vontade de Deus - afirmou o pai de Zafarim. - Não! Não será! Será resultado do fracasso e da estupidez de quem não é capaz de cumprir com sua vontade. Será culpa minha por não saber escolher os melhores para cumprir com o que Jesus nos mandou. A porta se abriu e o homenzinho entrou com dois jovens acompanhados por seus pais. Rasit, o segundo mudo, e Dermisat, o terceiro, se fundiram em um abraço com Zafarim diante do olhar colérico de Addaio. Zafarim não sabia que seus companheiros tinham chegado a Urfa. Addaio deve ter imposto o silêncio entre familiares e amigos para que até esse momento os três não se encontrassem. Os pais de Rasit e Dermisat falaram em nome dos filhos, suplicando compreensão e clemência. Addaio parecia não ouvi-los, estava como que ausente, ruminando seu próprio desespero. - Pagarão o pecado que, com seu fracasso, cometeram contra Nosso Senhor. - Já não te basta que nossos filhos tenham sacrificado a língua? Que outro castigo quer lhes dar - atreveu-se a perguntar o pai de Rasit. - Como se atreve a desafiar-me! - gritou Addaio. - Não. Não o permita, Deus! Você sabe que somos fiéis a Nosso Senhor e que o obedeceremos. Eu só peço compaixão - respondeu o pai de Rasit. - Você é nosso pastor - atreveu-se a interromper o pai de Dermisat tua palavra é lei, faça-se a tua vontade, já que você representa o Senhor na terra. Ficaram de joelhos e começaram a rezar de cabeça baixa. Só lhes restava esperar a decisão de Addaio. Até então os oito homens que acompanhavam Addaio não tinham aberto a boca. A um sinal deste, saíram da sala e ele os seguiu. Entraram em outra sala para deliberar. - E então? - perguntou Addaio. - Vocês acham que há um traidor entre nós? O silêncio ominoso dos oito homens renovou a fúria de Addaio. - Vocês não têm nada a dizer? Nada, depois do que aconteceu? - Addaio, você é nosso pastor, o eleito de Nosso Senhor; você deve nos iluminar - disse um dos homens de preto. - Só vocês oito conheciam o plano inteiro. Só vocês sabem quem são nossos contatos. Quem é o traidor? Os oito homens se remexeram inquietos, entreolhando-se incomodados, sem saber se as palavras do pastor eram apenas uma provocação ou de fato ele os estava acusando. Eles eram, junto com Addaio, os esteios da comunidade, suas linhagens se perdiam no tempo, fiéis a Jesus, fiéis a sua cidade, fiéis à sua comenda. - Se há um traidor, morrerá. A afirmação de Addaio estremeceu os homens, cientes de que ele era capaz de aplicar tal castigo. Seu pastor era um homem bom, que vivia com simplicidade e todos os anos jejuava por quarenta dias em memória do jejum de Jesus no deserto. Ajudava a todos que o procuravam, fosse pedindo trabalho, dinheiro ou que arbitrasse um conflito familiar. Ele sabia impor sua palavra. Era um homem respeitado em Urfa, onde passava por advogado e como tal era conhecido e reconhecido. Assim como os oito homens que o acompanhavam, Addaio vivia na clandestinidade desde a infância, rezando longe dos olhos de seus vizinhos e amigos, porque era depositário de um segredo que assinalava suas vidas como assinalara a de seus pais e antepassados. Ele teria preferido não ser nomeado pastor, mas, quando o escolheram, aceitou a honra e o sacrifício e jurou o que outros antes dele haviam jurado: que cumpriria a vontade de Jesus. Um dos homens de preto pigarreou. Addaio entendeu que ele queria falar. - Fale, Talat. - Não deixemos o fogo da suspeita se acender e acabar com a confiança que temos uns nos outros. Eu não acho que haja algum traidor entre nós. Nós enfrentamos forças poderosas e inteligentes, por isso impediram que recuperássemos o que é nosso. Devemos começar a trabalhar e elaborar um novo plano e, se fracassarmos, tentaremos de novo. Será o Senhor quem decidirá quando seremos dignos de ter sucesso em nossa missão. Talat se calou e permaneceu à espera. Os cabelos brancos cobriam sua cabeça como um manto de neve, as rugas de seu rosto davam um ar venerável à sua velhice. - Mostra tua benevolência aos três escolhidos - suplicou outro dos homens de preto que respondia pelo nome de Bakkalbasi. - Benevolência? Você acha, Bakkalbasi, que poderemos sobreviver mostrando benevolência? Addaio cruzou as mãos com força e deu um suspiro. - Às vezes eu acho que fizeram mal em me escolher, que não sou o pastor que Jesus precisa para esta era e estas circunstâncias. Jejuo, faço penitências e peço a Deus força, que me ilumine e mostre o caminho, mas Jesus não responde, nem me envia nenhum sinal... A voz de Addaio transparecia desespero, mas logo se recuperou. - Enquanto eu for o pastor, agirei e decidirei de acordo com minha consciência, com um único objetivo: devolver a nossa Comunidade o que Jesus lhe deu, buscando não apenas o bem-estar, mas principalmente a segurança de todos. Deus não nos quer mortos, e sim vivos. Não precisa de mais mártires. - Que fará com eles? - perguntou Talat. - Por um tempo viverão retirados em oração e jejum. Eu os observarei e, quando chegar a hora, os devolverei a suas famílias. Mas devem penar o fracasso. Você, Bakkalbasi, que é um grande matemático, se encarregará de fazer os cálculos. - Que cálculos você quer que eu faça, Addaio? - Quero que você calcule se entre nós há margem para traição, que pense onde e por que há uma fuga. - Então você concorda com as palavras do pai de Zafarim? - Concordo, e não devemos fechar os olhos à evidência. Nós o encontraremos, e ele morrerá. Os homens de preto sentiram um leve calafrio. Sabiam que Addaio não falava por falar. Quando voltaram à sala onde os três mudos esperavam, encontraram estes e seus pais de joelhos, os olhos baixos, rezando. Addaio e os oito homens de preto voltaram a seus lugares. - Levantem-se - ordenou Addaio. Dermisat chorava em silêncio. Rasit tinha uma sombra de ira no olhar e Zafarim parecia ter-se acalmado. - Purgarão o fracasso com retiro e oração por quarenta dias e quarenta noites de jejum. Ficarão aqui comigo. Trabalharão na horta enquanto tiverem forças. Quando esse tempo acabar, direi o que fazer. Zafarim olhou seu pai com preocupação. Ele entendeu o olhar do filho e falou por ele. - Permitirá que se despeçam de suas famílias? - Não. A expiação já começou. Addaio tocou um sininho que estava sobre sua mesa. Segundos depois, o homenzinho que abrira a porta entrou. - Guner, acompanhe-os aos aposentos que dão para a horta. Arranje-Ihes roupa adequada e que disponham de água e sucos. Este será seu único alimento enquanto durar sua estadia conosco. Também explique a eles os horários e costumes da casa. Agora, vão. Os três jovens abraçaram seus pais. A despedida foi breve para não impacientar Addaio. Quando os jovens saíram atrás de Guner, Addaio falou para os velhos: - Voltem para suas casas com suas famílias. Saberão de seus filhos dentro de quarenta dias. Os homens fizeram uma reverência, beijaram sua mão e inclinaram a cabeça com respeito diante dos oito acompanhantes de preto que permaneciam impassíveis como estátuas. Depois que os velhos partiram, os demais também deixaram a sala. Addaio conduziu os oito homens por um corredor mergulhado em sombras até uma portinhola trancada, que ele abriu usando uma chave que carregava num bolso. Era uma capela, que só abandonaram já entrada a noite. Addaio não dormiu. Com os joelhos esfolados depois de tantas horas rezando, ainda sentia necessidade de se penitenciar. Deus sabia quanto o amava, mas esse amor não o eximia, não bastava para que lhe perdoasse a ira. Essa ira que nunca conseguira arrancar de si. Satã se regozijava perdendo sua alma com esse pecado capital. Quando Guner entrou silenciosamente em sua cela, a alvorada já dera lugar à manhã. O fiel criado lhe trazia uma xícara de café e uma jarra de água fresca. Ajudou Addaio a pôr-se de pé e a sentarse na única cadeira do austero dormitório. - Obrigado, Guner, precisarei deste café para enfrentar o dia. Como estão os mudos? - Já faz algum tempo que estão trabalhando na horta. Têm o espírito alquebrado, estão com os olhos vermelhos das lágrimas que não puderam conter. Você não concorda com o castigo, não é? - Eu obedeço, sou seu criado. - Não! Não é! Você é meu único amigo, e sabe disso. Me ajude... - E o sirvo, Addaio, e o sirvo bem. Minha mãe me pôs a seu serviço quando completei dez anos. Ela achava uma honra que o filho servisse a você. Morreu pedindo que eu sempre estivesse a seu lado. - Sua mãe foi uma santa mulher. - Foi uma mulher simples que aceitou os ensinamentos de seus pais sem fazer perguntas. - Por acaso você duvida de nossa fé? - Não, Addaio, creio em Deus e em Nosso Senhor Jesus Cristo, mas duvido da bondade dessa loucura que os pastores de nossa comunidade perpetuam há séculos. Deus deve ser honrado com o coração. - Você se atreve a questionar as bases de nossa Comunidade! Atreve-se a dizer que os santos pastores que me precederam estavam errados! Acha que é fácil cumprir os mandamentos de nossos predecessores? Guner baixou a cabeça. Sabia que Addaio precisava dele e o amava como a um irmão, pois era a única pessoa que participava de sua intimidade. Depois de servi-lo por tantos anos, Guner sabia que só diante dele Addaio mostrava-se como realmente era, um homem iracundo, sufocado pela responsabilidade, que desconfiava de todos e exercia sua autoridade majestosamente perante todos. Mas não diante dele, Guner, que se ocupava de lavar sua roupa, escovar seus ternos, manter impecável o quarto de dormir. Que o via com remelas nos olhos ou suado e sujo depois de ter sofrido algum acesso de febre. Que conhecia suas misérias de homem e seus esforços por aparecer revestido de majestade perante as almas cândidas que pastoreava. Guner nunca se separaria de Addaio. Fizera voto de castidade e obediência, e sua família, seus pais enquanto viveram e agora seus irmãos e sobrinhos, desfrutavam da tranqüilidade econômica com que Addaio os gratificava e também se sabiam honrados na Comunidade. Fazia quarenta anos que servia a Addaio, e chegara a conhecê-lo tão bem como conhecia a si mesmo. Por isso o temia, apesar da confiança que tinham construído ao longo dos anos. - Você acha que há um traidor entre nós? - Pode ser. - Suspeita de alguém? - Não. - E, se suspeitasse, não me diria, não é? - Não, não o diria até ter certeza de que minhas suspeitas fossem verdadeiras. Não quero condenar nenhum homem por uma suspeita. Addaio olhou-o fixamente. Invejava a bondade de Guner, sua temperança, e pensou que, na verdade, Guner seria melhor pastor que ele, que os que o escolheram cometeram um erro, levados pelo peso de sua linhagem, por aquele absurdo e ancestral costume de premiar os descendentes dos grandes homens, rendendo-lhes honras e dando-lhes prebendas, em muitos casos, imerecidas. Guner era de uma humilde família de camponeses cujos antepassados, assim como os seus, mantiveram o segredo da fé. E se renunciasse? E se convocasse um concílio e recomendasse que escolhessem Guner para pastor? Não, pensou, não o fariam, pensariam que tinha enlouquecido. Na verdade estava mesmo enlouquecendo no posto de pastor, lutando contra a sua natureza de homem, tentando afastar o pecado da ira, oferecendo certezas aos fiéis que as pediam e preservando o segredo da Comunidade. Lembrava com pesar o dia em que seu pai, emocionado, o acompanhara até essa casa onde antes vivia o antigo pastor Addaio. Seu pai, um homem eminente de Urfa, militante clandestino da verdadeira fé, dizia-lhe desde pequeno que, se se comportasse bem, um dia poderia suceder a Addaio. Ele respondia que não queria, que preferia correr entre as hortas, nadar no rio e trocar olhares e acenos com as adolescentes que, como ele, despertavam para a vida. Gostava especialmente da filha de uns vizinhos, a doce Rania, uma moça de olhos amendoados e cabelo escuro com quem sonhava na penumbra de seu quarto. Mas seu pai tinha outros planos para ele, e assim, mal saiu da adolescência, o condenou a viver na casa do velho Addaio e fazer os votos, preparando-se para a missão que, diziam, Deus lhe reservara. Tinham decidido por ele que ele seria Addaio. Seu único amigo naqueles anos dolorosos foi Guner, que nunca o traiu quando fugia para aproximar-se da casa de Rania tentando vêIa à distância. Guner também era prisioneiro da vontade dos pais, que ele honrava com a obediência. Os pobres camponeses tinham encontrado para seu filho, e portanto para toda a família, um destino melhor que o de trabalhar de sol a sol. Os pais de Addaio tinham reservado a ele as honras de que julgavam ser merecedora sua família. Os dois homens aceitaram a vontade dos pais, deixando de ser para sempre eles mesmos. 21 João encontrou Obodas trabalhando no pomar. O gigante estava ensimesmado lavrando a terra. - Onde está Timeu? - Falando com Izaz. Como tu sabes, ele o está instruindo para que um dia seja um bom guia da comunidade. Obodas enxugou o suor da testa com o braço e seguiu João dentro da casa. - Trago notícias. Timeu e Izaz esperaram ansiosos que João falasse. - Harram chegou com a caravana. - Harram! Que alegria! Vamos vê-lo - disse Izaz, levantando-se. - Espera, Izaz. Esta caravana não é a de Senim, embora Harram viaje com ela. - Então? Por Deus, fala, João! - Sim, é melhor que tu saibas. Harram está cego. Quando voltou a Edessa, Maanu mandou arrancar seu olhos. Seu amo Senim foi assassinado e seu corpo entregue aos animais do deserto. Harram jurou que nada sabia de ti, que te deixara no porto de Tiro e que agora estarias na Grécia, o que provocou ainda mais a fúria de Maanu. lzaz desatou a chorar. Sentia-se culpado pela desgraça de Harram. Timeu apertou afetuosamente seu braço. - Iremos buscá-lo no caravançará e o ajudaremos, ficará conosco se assim o desejar. - Insisti em que me acompanhasse, mas ele não quis. Queria que soubesses de seu estado, antes de vir aqui. Não quer que te sintas obrigado a carregar seu peso. lzaz, acompanhado por Obodas e João, dirigiu-se ao caravançará. Um dos guias da caravana indicou-lhes onde encontrar Harram. - O chefe desta caravana é parente de Harram. Por isso concordou em trazê-lo até aqui. Harram não tem mais ninguém em Edessa: sua mulher e seus filhos foram assassinados, e seu amo Senim, torturado e morto na praça aos olhos de quantos quiseram assistir ao espetáculo de seu sofrimento. Maanu castigou com crueldade todos os amigos de Abgar. - Mas Harram não era amigo de Abgar... - Mas seu amo, Senim, era, e ele se negou a revelar ao rei onde está escondida a mortalha de Jesus que curou Abgar. Maanu destruiu a casa de Senim, queimou seus bens, fez até uma grande pira em que sacrificou os animais e mandou açoitar os servos. De alguns deles mandou cortar os braços; de outros, as pernas. Harram foi privado de seus olhos, os olhos com que guiara as caravanas de Senim pelo deserto. Harram pode-se dar por satisfeito por ter escapado com vida. Encontraram Harram sentado no chão, e lzaz o ergueu, abraçandoo. - Harram, meu bom amigo! - lzaz? És tu? - Sim, Harram, sou eu, vim te buscar. Virás comigo, cuidaremos de ti, nada há de faltar-te. Timeu recebeu Harram com afeto. Determinara que João o acomodaria em sua casa enquanto construía outro quarto na casinha que dividia com lzaz e Obodas. Harram sentiu-se reconfortado ao saber que o acolhiam e que não precisaria vagar pedindo esmola. Com voz trêmula, contou-lhes que Maanu mandara queimar as casas dos cristãos, sem respeitar sequer os nobres que professaram a fé em Jesus. Não tivera piedade nem dos velhos, nem das mulheres, nem das crianças. O sangue dos inocentes turvara o branco mármore das ruas da cidade, ainda impregnado do cheiro da morte. Obodas, com a voz embargada, perguntou por sua família, seu pai, e sua mãe, criados de Senim e cristãos como ele. - Estão mortos. Sinto muito, Obodas. As lágrimas inundaram o rosto do gigante, sem que as palavras de Timeu e lzaz o pudessem consolar. Por fim, lzaz fez a pergunta que tanto temia fazer: o que acontecera a seu tio Josar e a Tadeu. - Josar foi assassinado na praça, como Senim. Maanu queria que a morte dos nobres servisse de advertência ao povo, que soubessem que não teriam misericórdia com os cristãos, fossem quem fossem... Josar não deixou escapar um gemido. Maanu foi ver seu martírio e obrigou a rainha a presenciá-lo. De nada serviram as súplicas de sua mãe. A rainha se ajoelhou e suplicou pela vida de teu tio, enquanto o rei ria satisfeito por vê-Ia sofrer. Sinto muito, lzaz... Sinto ser portador de notícias de morte. O jovem tentava conter as lágrimas. Todos tinham motivo para deixar-se levar pelo desespero. Todos tinham sido ultrajados e perdido seus entes queridos. lzaz sentia um bolo no estômago ao mesmo tempo em que crescia nele um desejo de vingança. O velho Timeu o observava, sabendo a luta que se travava em seu coração, a mesma que acontecia no coração de Obodas. - A vingança não leva a nada. Sei que vos sentiríeis reconfortados se Maanu fosse castigado, se pudésseis vê-lo morrer em meio a grande sofrimento. Eu vos asseguro que ele será castigado, porque terá de prestar contas a Deus de tudo o que fez. - Não dizes, Timeu, que Deus é infinita misericórdia? - queixou-se Obodas, chorando. - E também infinita justiça. - E a rainha, ainda está viva? - perguntou Izaz, temendo pela resposta. - Depois da morte de teu tio ninguém voltou a vê-Ia. Alguns criados do palácio garantem que ela morreu de tristeza e Maanu mandou atirar seu corpo no deserto, para que servisse de alimento aos animais. Outros dizem que o rei mandou matá-la. Ninguém voltou a vê-Ia. Sinto muito, Izaz, sinto ser o portador de tão más notícias. - Meu amigo, não é o mensageiro o culpado do que conta afirmou Timeu. - Rezemos juntos e peçamos a Deus que arranque a ira dos nossos corações, que nos ajude a suportar a dor da perda dos entes queridos. 22 A noite cheirava a flores. Roma brilhava aos pés dos convidados de John Barry e Lisa que lotavam o amplo terraço da cobertura, dominante sobre a cidade. Lisa estava nervosa. Quando voltou de Washington e disse a John que decidira dar uma festa para Mary e James e já convidara Marco e Paola, ele se zangou. O marido a acusara de deslealdade para com a irmã. - Você vai contar a Mary por que convidou o Marco? Não, claro que não. Não pode nem deve fazer isso. Marco é nosso amigo e estou disposto a ajudá-lo no que for preciso, mas isso não implica envolver a família, e muito menos você se meter nas investigações do Departamento de Arte. Lisa, você é minha mulher, nós não temos segredos um com o outro, mas, por favor, não se intrometa no meu trabalho, assim como eu não me intrometo no seu. Nunca imaginei que você pudesse usar sua própria irmã. Além do mais, não entendo por quê? Que é que você tem a ver com o incêndio da catedral? Era a primeira discussão séria que tinham em muitos anos. John a fizera sentir-se culpada. Na verdade, ela se deu conta de que agira levianamente para agradar seus amigos. Mary não fizera nenhum reparo à lista de convidados que a irmã lhe enviara por e-mail. Sua sobrinha Gina também não manifestara nenhuma objeção, ao ver o nome de Marco Valoni e de sua mulher Paola; sabia que eram amigos de seus tios. Tinha encontrado com eles algumas vezes e lhes pareciam pessoas agradáveis e simpáticas. Perguntou, sim, quem era essa doutora Galloni que viria com os Valoni. Sua tia lhe explicou que era uma acadêmica que trabalhava no Departamento de Arte, de quem os Valoni gostavam muito. Gina não fez mais perguntas. Quatro garçons passavam bandejas com bebidas entre os convidados. Quando Marco Valoni, acompanhado por Paola e Sofia, entrou na casa, não conseguiu disfarçar seu assombro: dois ministros, um cardeal, vários diplomatas, entre eles o embaixador dos Estados Unidos, homens de negócios, meia dúzia de catedráticos amigos de Lisa e mais alguns arqueólogos amigos de Gina formavam o alentado grupo de convidados. - Estou me sentindo totalmente deslocado - sussurrou Marco às duas mulheres. - Eu também - respondeu Paola -, mas agora não podemos voltar atrás. Sofia começou a procurar Umberto d'Alaqua com os olhos. Lá estava ele, conversando com uma mulher loira, bonita e sofisticada, ligeiramente parecida com Lisa. Os dois riam, notava-se que se sentiam à vontade um com o outro. - Que bom que vocês vieram. Paola, você está linda. E você deve ser a doutora Galloni, imagino. Muito prazer. Marco percebeu o desconforto de John. Ele estava tenso desde que Lisa os convidara para a festa. Inclusive fizera o possível para que recusassem o convite. Com sutileza, amavelmente, mas tentou impedir que fossem. Perguntava-se por quê. Lisa aproximou-se deles, sorrindo. Está tão tensa quanto John. Ou será que estou ficando paranóico?, pensou Marco. A verdade é que o sorriso de Lisa era um ricto, e os olhos sempre tranqüilos do John brilhavam inquietos. Gina também foi cumprimentá-los, e sua tia a encarregou de apresentá-los ao resto dos convidados. John notou o efeito que Sofia causava entre os homens. Todos a observavam com o canto dos olhos, até o cardeal. Logo ficou conversando em uma roda formada por dois embaixadores, um ministro, três homens de negócios e um banqueiro. Vestida de branco com uma bata de Armani, o cabelo loiro solto, sem nenhuma jóia além de dois minúsculos brincos de brilhantes e um relógio Cartier, Sofia era, sem dúvida, a mulher mais bela da festa. A conversa girava em torno da guerra do Iraque, e o ministro amavelmente perguntou sua opinião. - Sinto muito, mas sou contra. Acho que Saddam Hussein não é uma ameaça para ninguém, exceto para seu próprio povo. Sua opinião era a única contrária, por isso a conversa se animou. Sofia foi desfiando argumentos contra a guerra, deu uma lição magistral de história e provocou em seus interlocutores olhares embevecidos. Enquanto isso, Marco e Paola conversavam com dois arqueólogos amigos de Gina que se sentiam tão deslocados quanto eles. Sofia não perdia de vista a loira que conversava tão animadamente com D'Alaqua; aproveitou que John se aproximava do grupo para desculpar-se com seus interlocutores e juntar-se a seus amigos. - Muito obrigada pelo convite, senhor Barry. - Estamos encantados que tenha vindo com meus bons amigos Marco e Paola... A loira se virou sorrindo e fez um gesto de cumprimento com a mão. - É minha cunhada. Mary Stuart. - Parece muito com Lisa - disse Marco. - Você não vai nos apresentar? Sofia baixou a cabeça, sabia que Marco estava jogando suas cartas. Mary Stuart falava com D'Alaqua, portanto era a chance de se aproximar daquele homem. Nesse momento, Lisa veio até eles. - Querido, Marco quer conhecer a Mary e o James. - Oh, sim, claro! Lisa acompanhou o grupo até onde sua irmã estava com D'Alaqua e outros três casais. Sofia cravou o olhar em D'Alaqua que nem pestanejou. Ele a teria reconhecido? - Mary, quero te apresentar dois de nossos melhores amigos, Marco e Paola Valoni, e a doutora Galloni, que veio com eles. A loira os recebeu com um largo sorriso. Gentilmente, integrou-os ao grupo e também os apresentou. D'Alaqua inclinou a cabeça com cortesia e sorriu indiferente. - Muito prazer. Vocês também são arqueólogos como minha irmã? perguntou amavelmente Mary Stuart. - Não, Mary. Marco é diretor do Departamento de Arte, Paola é professora na universidade e Sofia trabalha com Marco. - O que é o Departamento de Arte?? - É um corpo especial que se dedica a combater os crimes contra o patrimônio artístico. Roubo de obras de arte, falsificações, contrabando... - Ah, que interessante! - exclamou, sem nenhum interesse, Mary Stuart. Estávamos justamente falando do Cristo de EI Greco que foi leioado em Nova York... Estou tentando fazer Umberto confessar se o comprou ou não. - Infelizmente, não consegui - afirmou D'Alaqua. Sofia, nervosa, não abria a boca, apesar de olhar D'Alaqua embevecida. Este, com naturalidade e um tom distante, dirigiu-se a ela. - Como vão suas investigações, doutora Galloni? Mary e o resto do grupo o olharam espantados. - Vocês se conhecem? - perguntou Mary. - Sim. Recebi a doutora em Turim há algumas semanas. Vocês sabem que houve um incêndio na catedral; o Departamento de Arte estava, não sei se ainda está, investigando os pormenores. - E o que você tem a ver com isso? - perguntou Mary. - Acontece que a COCSA é a empresa encarregada das obras da catedral. A doutora investigava se o acidente foi fortuito ou intencional. Marco mordeu o lábio. Pensou que D'Alaqua tinha um extraordinário domínio de si e estava demonstrando publicamente sua absoluta indiferença diante da investigação do Departamento de Arte. Era um modo de alardear sua inocência. - Diga, doutora, o acidente pode ter sido provocado? - perguntou uma das mulheres do grupo, uma princesa que sempre aparecia nas revistas de fofocas. Sofia dirigiu um olhar cheio de rancor para D' Alaqua. Ele a fizera se sentir deslocada, como se fosse uma penetra. Paola e Marco também não pareciam nada à vontade. - Quando acontece um acidente em algum lugar, no caso a catedral, onde há muitas obras de arte, nossa obrigação é investigar todas as possibilidades. - Mas já chegaram a alguma conclusão? - insistiu a princesa. Sofia olhou para Marco, e este pigarreou antes de intervir. - Princesa, nosso trabalho é mais rotineiro do que pode parecer. A Itália é um país com um patrimônio artístico extraordinário, e nosso trabalho é preservá-lo. - Sim, mas... Lisa, nervosa, interrompeu a princesa, chamando o garçom para lhes servir outra taça. John aproveitou para puxar Marco suavemente pelo braço e levá-lo, seguido por Paola, para outro grupo. Mas Sofia não saiu de: onde estava, e continuou encarando D'Alaqua. - Sofia - disse Lisa tentando tirá-la dali -, quero te apresentar o professor Rosso. Ele dirige as escavações em Herculano. - Qual é sua especialidade, doutora? - perguntou Mary. - Sou doutora em história da arte, com graduação em letras clássicas e italiano. Falo inglês, francês, espanhol, grego e bastante bem o árabe. Disse aquilo com orgulho, mas, de repente, sentiu-se ridícula. Tentara impressionar aquele grupo de ricos, para os quais era indiferente o que ela pudesse ser e saber. Sentiu uma raiva enorme ao se ver examinada, observada como um inseto estranho por aquelas mulheres bonitas e aqueles homens poderosos. Lisa tentou tirá-la dali de novo. - Vamos, Sofia? - Lisa, permita-nos desfrutar da conversa da doutora. As palavras de D'Alaqua surpreenderam Sofia. Lisa fez um gesto de resignação, mas, tentando desfazer a roda, levou a irmã com ela. De repente, Sofia e D'Alaqua ficaram sozinhos. - Vejo que está inquieta, doutora. Por quê? - Na verdade, estou mesmo, e não sei muito bem por quê. - Não deveria estar, e muito menos ficar ofendida com Mary por ela ter perguntado sua especialidade. Mary é uma mulher extraordinária, inteligente e sensível. Não perguntou com segundas intenções, acredite. - Digamos que acredito. - Na realidade, a senhora e seus amigos vieram a esta festa para me ver. Estou certo? A afirmação de D'Alaqua a fez corar. De novo se sentia pega em flagrante. - Não. Bom, meu chefe é amigo de John Barry, e eu. . . - E a senhora saiu de meu escritório de mãos abanando, por isso resolveram armar um encontro casual comigo. Óbvio demais. Sofia sentia o rosto arder. Não estava preparada para esse duelo, para a franqueza daquele homem que a olhava entre distante e divertido, certo de sua superioridade intelectual. - Não é fácil encontrar o senhor. - Não, não é mesmo. Portanto aproveite e pergunte o que quiser. - Eu já disse: suspeitamos que o acidente da catedral foi intencional e que as únicas pessoas que poderiam fazer isso seriam alguns de seus operários. A pergunta é por quê? - Sabe que não tenho a resposta. Já a senhora tem, sim, uma suspeita. Diga-me qual é, e verei se posso ajudá-la. No outro extremo do terraço, Marco os observava espantado, assim como Lisa. John, que não conseguia esconder seu nervosismo, mandou Lisa libertar D'Alaqua. - Desculpe, Sofia, mas Umberto tem muitos amigos aqui querendo falar com ele, e você o está monopolizando. Meu cunhado James está procurando você Umberto... Sofia se sentiu ridícula. Lisa estava tão nervosa que a ofendera, sem querer. - Lisa, quem está monopolizando a doutora Galloni sou eu, e você vai deixar eu continuar fazendo isso, não é? Fazia tempo que não tinha uma conversa tão interessante. - Oh, sim claro, eu...! Enfim, se precisarem de alguma coisa... - A noite está linda, o jantar delicioso e você e John são excelentes anfitriões. Estou feliz de ter sido convidado para estar com Mary e James, obrigado Lisa. Lisa olhou-o espantada, e deixou-os sozinhos. Foi até onde John estava e cochichou algo no seu ouvido. - Obrigada - disse Sofia. - Por favor, doutora, não se subestime! - Nunca fiz isso. - Eu diria que esta noite o fez. - Foi uma tolice vir aqui. - Estava muito óbvio. A tensão dos nossos anfitriões delata que toda esta encenação foi preparada. Eu só estranharia que Mary e James soubessem da armação. - Não sabem. Devem estar se perguntando por que fomos convidados. Sinto muito, foi um erro. - Ainda não respondeu à minha pergunta. - Sua pergunta? - Sim, diga-me qual é sua suspeita. - Suspeitamos que alguém quer o Santo Sudário, não sabemos se para roubá-lo ou destruí-lo, mas temos certeza de que o objetivo do incêndio era o Sudário, e que também o foi no passado, nos vários acidentes ocorridos na catedral. - É uma teoria interessante. Mas me diga de quem suspeitam, quem acredita que pode querer roubar ou destruir o Sudário, e principalmente por quê? - É isso que estamos investigando. - E não têm pistas que confirmem suas suposições, certo? - Certo. - Doutora, a senhora acha que eu quero roubar ou destruir o Sudário? As palavras de D' Alaqua tinham um tom de brincadeira que aumentou a sensação de ridículo de Sofia. - Eu não disse que suspeitamos do senhor, mas é possível que algum empregado seu possa estar envolvido no acidente da catedral. - O diretor de recursos humanos da COCSA, o senhor Lazotti, colaborou com a senhora? - Sim, não temos nenhuma queixa dele. Foi muito prestativo e eficiente e nos enviou um memorando muito extenso com todos os dados que solicitei. - Permita-me que lhe faça uma pergunta: o que seu chefe e a senhora esperavam do encontro comigo esta noite? Sofia baixou os olhos e tomou um gole de champanha. Não tinha resposta, ao menos não uma resposta convincente. A um homem como D'Alaqua não se podia apresentar desculpas como a de que tinham um palpite. Sentia que tinha passado por uma prova e fora reprovada, porque as perguntas feitas por esse homem faziam as respostas soarem ocas e infantis. - Encontrá-lo, falar com o senhor tanto quanto possível e ver o que acontecia. - Que tal jantarmos? Olhou-o, surpresa. D'Alaqua pegara suavemente em seu braço, encaminhando-se para uma mesa onde havia um bufê. James Stuart se aproximou deles, acompanhado pelo ministro da Fazenda. - Umberto, Horacio e eu estamos discutindo sobre o efeito que a gripe asiática vai ter nas bolsas européias... D' Alaqua falou por um bom tempo sobre a crise da economia asiática. Para espanto de Sofia, não só discorreu sobre o tema como a fez participar da conversa. Ela se viu discutindo com o ministro da Fazenda e rebatendo algumas das afirmações de Stuart. D'Alaqua a ouvia interessado. Enquanto isso, Marco Valoni não podia acreditar ao ver Sofia integrada àquele grupo de homens importantes, mas principalmente porque era óbvio que ela conseguira despertar o interesse de Umberto d'Alaqua. - Sua amiga é encantadora. A voz alegre de Mary Stuart trouxe Marco de volta à realidade. Ou teria sido a cotovelada que Paola lhe deu disfarçadamente? - É, é sim - respondeu Paola. - É uma mulher muito inteligente. - E muito bonita - frisou Mary. - Nunca vi o Umberto tão interessado em alguém. Sem dúvida deve ser extraordinária para que o Umberto preste tanta atenção nela. Nota-se que está contente, tranqüilo em sua companhia. - Ele é solteiro, não é? - perguntou Paola. - É. Nunca entendemos por quê, já que tem tudo: é inteligente, bonito, culto, rico, e, além disso, boa pessoa. Não sei por que não o convidam mais, John, e você, Lisa. Mary, o mundo de Umberto não é o nosso. Assim como o teu também não é, por mais que seja minha irmã. - Ora, Lisa. não diga bobagens. - Não, não digo. Na minha vida cotidiana, na minha profissão, não há ministros, nem banqueiros, nem empresários. Não tem por que haver. Nem na do John. - Não caia no velho clichê de dividir as pessoas de acordo com seu cartão de visita. - Não estou fazendo isso. O que quero dizer é que sou uma arqueóloga e, portanto, um ministro dificilmente pode fazer parte do meu círculo de amigos. - Pois eu acho que com o Umberto você deveria se relacionar. Ele tem paixão pela arqueologia, já financiou várias escavações, e tenho certeza de que vocês têm muito em comum - insistiu Mary. Sofia e Umberto d'Alaqua se sentaram à mesa junto aos outros convidados. D' Alaqua mostrava-se atencioso com ela, e Sofia irradiava contentamento. Marco queria falar com ela, saber o que acontecera, o que tinham conversado. Mas não queria se aproximar deles, sua intuição lhe dizia que não devia fazê-lo. Era quase uma da manhã quando Paola lembrou a Marco que no dia seguinte teria de acordar cedo. Dava a primeira aula às oito, e não queria chegar muito cansada. Marco pediu-lhe para avisar Sofia que estavam indo embora. - Sofia, nós estamos indo, não sei se você quer uma carona... - Obrigada, Paola, vou com vocês, sim. Sofia esperava que D'Alaqua se oferecesse para levá-la em casa, mas ele não o fez. Levantou-se e beijou sua mão como despedida. Fez o mesmo com Paola. Quando se dirigiam à porta acompanhados por Lisa e John, Sofia ainda deu uma espiadela no terraço. Umberto d'Alaqua já conversava animadamente numa roda de convidados. Ficou desapontada. Logo que entraram no carro, Marco deu rédea solta à sua curiosidade. - Vamos, doutora, conte o que o grande homem falou. - Nada. - Como assim? - Não falou nada. Só fez questão de deixar claro que era muito evidente que tínhamos ido à festa para vê-lo. Ele me fez sentir-me ridícula, apanhada em flagrante. E me perguntou, com ironia, se suspeitávamos que ele queria roubar ou destruir o Sudário. - Só isso? - O resto da noite falamos da gripe asiática, do petróleo, de arte, literatura. - Pois pareciam muito à vontade um com o outro - disse Paola. - E eu estava mesmo. Mas foi só isso. - Ele também estava - insistiu Paola. - Voltarão a se encontrar? - perguntou Marco. - Não, não, acho que não. Ele foi gentil, só isso. - Apaixonada? - Se me deixasse levar por minhas emoções diria que sim. Mas já estou grandinha para essas coisas, portanto espero que a razão continue mandando. - Ou seja, apaixonada! - disse Marco, sem esconder um sorriso. - Vocês formam um belo casal- sugeriu Paola. - Vocês são ótimos, mas não quero me enganar. Um homem como Umberto d'Alaqua não se interessa por uma mulher como eu. Não temos nada em comum. - Têm muito em comum. Mary nos contou que ele tem paixão pela arte, inclusive participa de escavações arqueológicas que ele mesmo financia. E você, se é que ainda não sabe, não é só inteligente e culta, mas muito bonita. Não é, Paola? - Claro que é. Até a Mary Stuart veio nos dizer que nunca tinha visto D' Alaqua tão atencioso com uma mulher. Melhor mudarmos de assunto. O que eu sei é que ele deixou bem claro que estávamos na festa de penetras. Só espero que ele não reclame com nenhum ministro da nossa insistência. Chovia a cântaros. Os seis homens acomodados em confortáveis sofás de couro falavam animadamente. A sala, uma biblioteca com lareira crepitante e vários quadros de mestres holandeses, revelava o gosto sóbrio de seu proprietário. A porta se abriu e entrou um velho, alto e magro. Os seis homens se levantaram e o abraçaram, um por um. - Desculpem a demora, mas a essa hora o trânsito em Londres é muito difícil. Não podia deixar de jogar bridge com o duque e alguns de seus amigos e de nossos irmãos. Um suave tilintar na porta anunciou a entrada do mordomo para recolher as xícaras de chá e oferecer bebidas aos sete homens. Quando ficaram novamente a sós, o velho tomou a palavra. - Bem, recapitulemos. - Addaio castigou Zafarim, Rasit e Dermisat por seu fracasso. Confinou-os no casarão da periferia de Urfa. A penitência durará quarenta dias, mas meu contato garante que Addaio não se contentará em fazê-los penar durante esse tempo, que está preparando mais alguma coisa. Quanto a enviar um novo comando, ele ainda não decidiu, mas cedo ou tarde o fará. Está preocupado com Mendibj, o mudo que está na prisão de Turim. Diz que teve um sonho e que, por culpa de Mendibj, a desgraça se abaterá sobre a Comunidade. "Meu contato está preocupado, diz que, desde que Addaio teve esse sonho, mal se alimenta e está completamente fora de si. Teme por sua saúde e pelo que possa fazer." O homem que tinha falado guardou silêncio. De meia-idade, moreno, com um basto bigode, bem vestido e com uma impecável pronúncia inglesa, seu porte lembrava o dos militares. O velho fez um sinal a outro dos assistentes, para que falasse. - O Departamento de Arte sabe muito, mas não sabe que sabe. Olharam-no preocupados e com curiosidade. O velho fez sinal para que continuasse. - Eles suspeitam que tudo o que vem acontecendo na catedral de Turim não é acidente, e sustentam que alguém quer roubar ou destruir o Sudário, mas não encontram a causa. Continuam investigando a COCSA, convencidos de que através da empresa podem achar o fio da meada. Como já disse, a operação cavalo de Tróia está em andamento, e o mudo Mendibj será solto daqui a alguns meses. Outro fio para puxar da meada. - Chegou a hora de agir - disse um homem entrado em anos, de aparência agradável e com um leve sotaque que denotava não ser o inglês sua língua materna. - Mendibj deve desaparecer - continuou dizendo o mesmo homem -, quanto ao Departamento de Arte, é hora de pressionar nossos amigos para frearem esse Marco Valoni. - Pode ser que Addaio tenha chegado à mesma conclusão, que Mendibj deve desaparecer para proteger a Comunidade - disse o homem de bigode e porte militar. - Talvez devêssemos esperar os próximos passos de Addaio antes de agir. Embora possa parecer hipócrita, prefiro que a morte desse mudo não pese em nossas consciências. - Mendibj não tem por que morrer, basta ajudá-lo a chegar a Urfa sugeriu um dos presentes. - Seria muito arriscado - interveio outro. - Uma vez em liberdade, o Departamento de Arte seguirá seus passos, não são bobos, é gente experiente. Montarão um dispositivo abrangente, e a tentativa de salvar a vida de um pode provocar o sacrifício de muitos outros. O que, além de pesar em nossas consciências, seria perigoso, já que estamos falando de policiais e carabinieri. - Ah, a consciência! - exclamou o velho. - Tantas vezes a deixamos de lado dizendo a nós mesmos que não temos outra saída. Nossa história não é estranha à morte. Como também não nos é estranho o sacrifício, a fé, a misericórdia. Somos homens, nada mais, agimos de acordo com o que acreditamos ser o melhor. Erramos, pecamos, acertamos... Que Deus tenha piedade de nós. O velho se calou. Os outros homens baixaram os olhos e mergulharam em seus pensamentos. Durante alguns minutos ninguém falou. Em seus rostos se desenhou um rastro de pesar. Por fim o velho ergueu os olhos, pôs-se de pé e voltou a falar. - Bem, vou lhes dizer o que eu acho que devemos fazer e depois quero ouvir a opinião de cada um de vocês. Era de madrugada quando o velho deu a reunião por encerrada. A chuva continuava, estendendo um manto úmido sobre a cidade. Ana Jiménez não parou de pensar no incêndio da catedral de Turim. Costumava falar com seu irmão no mínimo uma vez por semana e sempre perguntava sobre a investigação de Marco. Isso só irritava Santiago, que recriminava seu interesse e não lhe contava nada. - Você está obcecada, e essa obsessão não vai levá-la a nada. Por favor, Ana, esqueça o incêndio da catedral e o Sudário. - Mas é que eu tenho certeza de que posso ajudar. - Ana, o caso não é meu, é uma investigação do Departamento de Arte. Marco é um bom amigo que acha que quatro olhos vêem mais que dois, e por isso nos pediu que déssemos uma olhada em seus papéis, mas só para dar uma opinião. Foi o que John e eu fizemos, e pronto. - Mas, Santiago, deixa eu dar uma olhada nos papéis de Marco. Sou jornalista, posso ver coisas que escapam aos policiais. - Claro, os jornalistas são espertíssimos e capazes de fazer o nosso trabalho melhor do que nós. - Não seja bobo, e não se zangue. - Não estou zangado, e também não sou bobo. Mas que fique bem claro, Ana, que não vou deixar você meter o bedelho na investigação de Marco. - Pelo menos me diz o que você acha. - Às vezes as coisas são mais simples do que parecem. - Isso não é uma resposta. - Pois é o máximo que vou dizer. - Ando com vontade de ir a Roma. Estou pensando em tirar uns dias de férias. .. Posso ir agora? - Não, não pode porque você não anda com vontade de vir a Roma de férias, e sim de tentar que eu te deixe meter o nariz onde não deve. - Você é insuportável. - Você também. Ana olhou a pilha de papéis que havia sobre sua mesa, junto a mais de uma dúzia de livros, tudo sobre o Santo Sudário. Havia dias que só fazia ler sobre o assunto. Livros esotéricos, livros de religião, livros de história... Tinha certeza de que a chave estava em alguma passagem da história do Santo Sudário. O próprio Marco Valoni dissera: os acidentes começaram a acontecer depois que o Sudário foi para a catedral de Turim. Tomou uma decisão: depois que estivesse bem por dentro das peripécias do Santo Sudário, pediria uns dias de férias e iria a Turim. Jamais gostara muito da cidade e não a escolheria para passar férias, mas tinha o palpite de que Marco Valoni tinha razão, que por trás dos acidentes havia uma história, uma história que ela queria escrever. 23 - Eulálio, um jovem quer ver-te. Vem de Alexandria. O bispo acabou de rezar e ergueu-se com esforço, apoiando-se no braço do homem que o interrompera. - Dize, Efrém, esse jovem que chegou de Alexandria é tão importante assim para que interrompas minha oração? Efrém, um homem maduro, de rosto nobre e gestos pausados, já esperava a pergunta. Eulálio sabia que não o interromperia se não fosse importante. - É um jovem estranho. Veio mandado por meu irmão. - Abib o enviou? E que notícias ele traz? - Não sei, disse que só falará contigo. Está exausto, viajou semanas para chegar até aqui. Eulálio e Efrém saem da pequena igreja e se dirigem para uma casa contígua. - Quem és tu? - perguntou Eulálio ao jovem moreno que evidenciava o esgotamento nos lábios secos e no olhar perdido. - Procuro Eulálio, bispo de Edessa. - Eu sou Eulálio. E tu quem és? - Louvado seja Deus! Eulálio, tenho uma revelação extraordinária para fazer-te. Poderíamos falar a sós? Efrém olhou para Eulálio, que assentiu com a cabeça. Ficaria a sós com o jovem de Alexandria. - Ainda não me disseste teu nome. - João, meu nome é João. - Senta-te e descansa enquanto me contas o que dizes ser extraordinário. - E é. Custarás a crer em mim, mas confio na ajuda de Deus para provar-te tudo que vou dizer. - Começa já. - É uma longa história. Eu te disse que me chamo João, assim se chamava meu pai, e o pai de meu pai, e seus avós, e seus tataravós. Posso remontar em minhas origens até o ano 57 de nossa era, quando em Sidon vivia Timeu, chefe da primeira comunidade cristã. Timeu foi amigo de Tadeu e de Josar, discípulos de Nosso Senhor Jesus, que viveram aqui, em Edessa. O neto de Timeu se chamava João. Eulálio ouvia interessado o jovem João por mais que seu relato lhe parecesse confuso. - Deves saber que nesta cidade houve uma comunidade cristã apoiada pelo rei Abgar. Maanu, filho de Abgar, perseguiu os cristãos, tomou seus bens e muitos sofreram martírio por manter sua fé em Jesus. - Conheço a história da cidade - afirmou impaciente Eulálio. - Então sabes que Abgar, doente de lepra, foi curado por Jesus. Josar trouxe até Edessa a mortalha que envolveu o corpo de Nosso Senhor. O contato do linho sagrado com o corpo doente de Abgar operou o milagre, e o rei sarou. No Sudário há algo extraordinário: a imagem de Nosso Senhor com as marcas do martírio. Enquanto Abgar viveu, a mortalha foi venerada, pois nela estava o rosto de Cristo. - Dize-me, jovem, para que te envia Abib? - Desculpa-me Eulálio, sei que abuso de tua paciência, mas ouveme até o fim. Quando Abgar pressentiu que ia morrer, recomendou a seus amigos, a Tadeu, a Josar e a Márcio, o arquiteto real, que guardassem a mortalha onde ninguém a pudesse encontrar. Márcio foi o encarregado de sua custódia, e nem sequer os discípulos de Jesus, Tadeu e Josar, sabiam onde ele a escondera. Márcio cortou a própria língua para que, por mais que o torturassem, não pudesse dizer onde o escondera. Sofreu grandes tormentos, os mesmos que os cristãos mais eminentes de Edessa. Só um homem sabia onde Márcio escondera o Sudário com a imagem de Jesus. Os olhos de Eulálio brilhavam surpresos. Sentiu um arrepio. O jovem não parecia um louco e, no entanto, a história que contava era fantástica. - Márcio disse a lzaz, sobrinho de Josar, onde escondera a mortalha. lzaz fugiu antes que Maanu pudesse matá-lo e chegou a Sidon, onde viviam Timeu e seu neto João, meus antepassados. - Fugiu com a mortalha? - Fugiu com o segredo de onde ela estava. Timeu e lzaz juraram cumprir a vontade de Abgar e dos discípulos de Jesus: a mortalha nunca sairia de Edessa, pertence a esta cidade, mas deveria permanecer escondida até terem certeza de que não corria nenhum perigo. Combinaram que, se antes de eles morrerem, os cristãos continuassem a ser perseguidos em Edessa, confiariam o segredo a outro homem, e este, por sua vez, só poderia revelar o segredo se tivesse certeza de que a mortalha não corria nenhum perigo, e assim até que os cristãos pudessem viver em paz. Confiaram o local do esconderijo a João, o neto de Timeu, e assim, geração após geração, um homem da minha família foi depositário do segredo do linho que envolveu o corpo de Jesus. - Santo Deus! Tens certeza do que estás dizendo? Não é uma fábula? Se for, merecerias um castigo. Não se toma o nome de Deus em vão. Dize-me, onde ele está? Tu o tens? João, esgotado como estava, parecia não ouvir Eulálio e continuou seu relato. - Há alguns dias atrás, meu pai morreu. Em seu leito de morte me confiou o segredo do Santo Sudário. Foi ele que me falou de Tadeu e de Josar e daquele lzaz que, antes de morrer, fez uma mapa de Edessa para que meu antepassado João soubesse onde procurar. O mapa está comigo e mostra o lugar onde Márcio escondeu a mortalha de Nosso Senhor. O jovem ficou em silêncio. Seus olhos febris revelavam o esforço a que submetera o corpo e o espírito desde que soubera do segredo. - Dize-me, por que tua família não quis revelar o esconderijo até agora? - Meu pai me disse que guardaram o segredo por tanto tempo, temendo que o linho pudesse cair em mãos indevidas e ser destruído. Nenhum de meus antepassados ousou revelar o que sabia, deixando essa responsabilidade para seu sucessor. Os olhos de João brilharam úmidos. A dor pela morte de seu pai ainda o dilacerava, além da angústia que sentia ao saber-se depositário de um segredo que abalaria a cristandade. - Trazes o mapa contigo? - perguntou Eulálio. - Sim. - Então dá-me ele - pediu o velho bispo. - Não, não posso. Tenho de ir contigo até o lugar em que está escondido e não devemos confiar o segredo a ninguém. - Mas, filho, o que temes? - O Sudário é milagroso, mas por sua posse morreram muitos cristãos. Devemos ter certeza de que não correrá nenhum perigo, e temo ter chegado a Edessa em um mau momento; minha caravana se encontrou com viajantes que nos contaram que a cidade pode ser novamente sitiada. Os homens de minha família foram os guardiães silenciosos da mortalha de Cristo por gerações inteiras, não posso cometer um erro pondo o linho em perigo. O bispo assentiu. Via dor e cansaço refletidos no rosto de João. O jovem precisava descansar, e ele pensar e rezar. Pediria a Deus que o iluminasse sobre o que fazer. - Se o que dizes for verdade e em algum lugar da cidade se encontrar a mortalha de Nosso Senhor, não serei eu quem a colocará em perigo. Descansarás em minha casa, e, quando te recuperares do cansaço da viagem, falaremos e decidiremos o que é melhor. - Não contarás a ninguém o que te disse? - Não, não o farei. O tom firme da voz de Eulálio convenceu João. Rogava a Deus que não estivesse enganado. Quando seu pai moribundo lhe contou a história, advertiu-lhe que o destino do linho com o rosto do Jesus estava em suas mãos e o fez jurar que só revelaria o segredo quando tivesse absoluta certeza de que chegara o momento de os cristãos o recuperarem. Mas João sentira uma necessidade imperiosa de partir para Edessa. Em Alexandria lhe informaram da existência de Eulálio e de sua bondade, e ele achou que chegara o momento de devolver aos cristãos o que sua família guardara em segredo. Talvez tivesse se precipitado, disse João para si mesmo. Era uma temeridade recuperar o linho agora que Edessa estava à beira de uma guerra. Sentia-se perdido e temia ter-se enganado. João era médico, como seu pai. À sua casa iam os homens mais eminentes de Alexandria, confiando em seus conhecimentos. Estudara com os melhores professores, e seu próprio pai lhe ensinara tudo o que sabia. Tivera uma vida feliz até a morte de seu pai, a quem amava e respeitava acima de todas as coisas. Amava-o mais que à sua esposa, Miriam, esbelta e doce, de belo rosto e profundos olhos negros. Eulálio acompanhou o jovem até um quartinho onde havia uma cama e uma tosca mesa de madeira. - Logo te mandarei água para te refrescares e alguma coisa para comeres. Descansa quanto quiseres. O velho, ensimesmado, voltou para a igreja, e ali, de joelhos diante da cruz, escondeu o rosto entre as mãos, pedindo a Deus que lhe mostrasse o que devia fazer caso o relato do jovem viajante fosse verdade. Em um canto, oculto na penumbra, Efrém observava seu bispo preocupado. Nunca vira Eulálio perturbado, nem aflito diante da responsabilidade. Decidiu aproximar-se do caravançará e procurar uma caravana que fosse até Alexandria para enviar uma carta a seu irmão Abib, pedindo informações sobre o estranho jovem que tanto pesar parecia ter provocado em Eulálio. A lua iluminava a noite debilmente, quando o bispo foi para casa. Estava cansado, esperava escutar a voz de Deus, mas só deparara com o silêncio. Nem a razão, nem o coração lhe apontavam o menor sinal. Encontrou Efrém esperando na porta. - Deverias estar descansando, é tarde. - Estava preocupado contigo, posso ajudar em algo? - Gostaria que enviasses alguém a Alexandria e que Abib nos falasse sobre João. - Já escrevi uma carta a meu irmão, mas será difícil fazê-la chegar a Alexandria. No caravançará me disseram que há dois dias partiu uma caravana para o Egito e que tão cedo não partirá outra. - Os comerciantes andam preocupados, acham que a guerra com os persas é inevitável. Por isso o número de caravanas que abandonam a cidade tem aumentado nos últimos dias. Eulálio, permite-me que te pergunte o que te contou esse jovem que tanta preocupação te provocou. - Ainda não posso dizer. Quem dera pudesse fazê-lo, porque sentiria alívio em meu coração. O peso compartilhado é mais leve, mas dei minha palavra a João de guardar segredo. O sacerdote baixou os olhos, sentiu uma onda de pesar. Eulálio sempre confiara nele, compartilharam os dissabores e os perigos que por vezes ameaçaram a comunidade. O bispo, consciente do estado de ânimo de Efrém, ficou tentado a revelar tudo o que João lhe contara, mas soube guardar silêncio. Os dois homens se despediram com tristeza. - Por que sois inimigos dos persas? - Não somos. São eles que, invejosos, desejam tomar nossa cidade. João conversava com um jovem mais ou menos de sua idade que estava a serviço de Eulálio. Kalman estava se preparando para ser sacerdote. Era neto de um velho amigo de Eulálio, e o bispo o tomara sob sua proteção. Para João, Kalman se transformara em sua melhor fonte de informação. Explicava-lhe os pormenores da política edessiana, as vicissitudes que a cidade atravessava, as intrigas palacianas. O pai de Kalman era mordomo real e seu avô fora arquivista do rei; ele acalentara a idéia de seguir os passos do avô, mas, influenciado pela convivência com Eulálio, agora sonhava em ser sacerdote e, quem sabe, um dia chegar a bispo. Efrém entrou silenciosamente na sala onde João e Kalman conversavam, sem que percebessem sua chegada. Durante alguns segundos ouviu sua conversa animada e depois, tossindo, preveniuos de sua presença. - Ah, Efrém! Procuravas por mim? Estava falando com João. - Não, não procurava por ti, embora, já que o dizes, deveríamos estar estudando as Escrituras. - Tens razão, perdoa minha indolência. Efrém sorriu compreensivo e se dirigiu a João. - Eulálio quer falar contigo. Ele te espera em sua sala de trabalho. João agradeceu e saiu à procura do bispo. Efrém era um bom homem, um sacerdote, mas notava que o olhava com receio, que manifestava desconforto em sua presença. Bateu de leve na porta da sala onde Eulálio trabalhava e esperou sua resposta. - Entra, filho, entra, tenho más notícias. A voz do bispo denotava preocupação. João esperou que voltasse a falar. - Temo que em breve sejamos sitiados pelos persas. Se isso acontecer, serás impedido de sair da cidade e tua vida correrá perigo, assim como a de todos nós. Já estás há um mês em Edessa, e sei que ainda não achas que é chegado o momento de confessar-me onde está a mortalha de Nosso Senhor. Mas temo por ti, João, e temo por esse linho em que ficou refletido o verdadeiro rosto de Jesus. Se é verdade tudo que me contaste, salva o Sudário e sai de Edessa quanto antes. Não podemos correr o risco de que a cidade seja destruída e o rosto do Jesus se perca para sempre. Eulálio observou como a incerteza tomava o rosto de João. Sabia que o jovem não estava preparado para receber um ultimato, mas via-se na obrigação de fazê-lo. Desde a chegada de João, o bispo não conseguira dormir tranqüilo, temeroso da sorte daquele pano sagrado de que lhe falara. Em alguns momentos duvidava de sua existência, em outros, os olhos limpos do jovem o levavam a acreditar nele sem pestanejar. - Não! Não posso ir! Não posso levar o Sudário que cobriu o corpo de Nosso Senhor! - Calma, João, resolve o que é melhor para ti. "Tua mulher está em Alexandria, não podes ficar aqui por mais tempo, não sabemos o que vai ser do reino. És depositário de um grande segredo e deves continuar a sê-lo. Não te pedirei que me digas onde está o Sudário, dize-me apenas como posso te ajudar a recuperá-lo para que possas salvá-lo." - Eulálio, devo ficar, sei que devo ficar, não posso partir agora, e muito menos expor o linho aos perigos da viagem. Meu pai me fez jurar que cumpriria a vontade de Abgar, do apóstolo Tadeu e de Josar. Não posso levar a mortalha de Edessa, jurei não fazê-lo. - João, deves obedecer-me - recriminou-o Eulálio. - Não posso, não devo fazê-lo. Ficarei e me submeterei à vontade de Deus. - Dize-me, então, qual é a vontade de Deus. João sentiu a voz cansada e grave de Eulálio como um golpe no coração. Fitou o bispo e de repente entendeu a incerteza que lhe provocara sua chegada, sua fantástica história sobre o sudário com que José da Arimatéia envolvera o cadáver de Jesus, e como o sangue estampara seu corpo e seu rosto como um decalque. Eulálio fora generoso e paciente com ele, mas agora insistia em que partisse. A decisão do arcebispo o obrigava a enfrentar-se com a verdade. Sabia que seu pai não mentira para ele, mas e se o tivessem enganado? E se ao longo daqueles primeiros quatro séculos desde o nascimento de Nosso Senhor alguém se tivesse apoderado do linho sagrado? E se tudo não passasse de uma lenda? O velho bispo viu um turbilhão de emoções refletido no olhar de João e se compadeceu da angústia do jovem. - Edessa sobreviveu a sítios, guerras, fomes, incêndios, inundações... Sobreviverá aos persas. Mas tu, meu filho, deves agir de acordo com os ditames da razão, e pelo teu próprio bem e pelo segredo que tua família guardou por tantas décadas, deves salvar tua vida. Prepara tua partida, João, dentro de três dias sairás da cidade. Um grupo de comerciantes organizou uma caravana; é a última oportunidade de te salvares. - E se eu te disser onde está o Sudário? - Eu te ajudarei a salvá-lo. João deixou a sala confuso, com a vista enevoada pelas lágrimas. Saiu à rua onde o frescor do amanhecer ainda não fora suplantado pelo ardente sol de junho e, vagando sem rumo, pela primeira vez se deu conta de que os habitantes de Edessa estavam se preparando para o sítio iminente. Os operários trabalhavam incansavelmente reforçando as muralhas, e os soldados andavam apressados de um lado para o outro, com gesto preocupado. Os comerciantes expunham pouquíssimas mercadorias, e todos com que cruzava denotavam no olhar a apreensão pelo ataque iminente. Pensou em como havia sido egoísta não reparando no que acontecia a seu redor, e pela primeira vez desde sua chegada sentiu saudades de Miriam, sua jovem esposa, a quem não mandara avisar que se encontrava bem. Eulálio tinha razão: ou saía imediatamente de Edessa, ou teria o mesmo destino de seus habitantes. Sentiu um calafrio na espinha ao pensar que esse destino podia ser a morte. Não sabia quantas horas vagara pela cidade, mas, quando voltou à casa de Eulálio, sentiu que a sede o acompanhara o dia inteiro e que seu estômago roncava de fome. Encontrou Eulálio junto a Efrém e a Kalman, falando com dois nobres circunspetos enviados do palácio. - Entra, João; Hannam e Maruca nos trazem tristes notícias disse. Seremos mesmo sitiados, Edessa não se renderá aos persas. Hoje chegaram às portas da cidade dois carros. Dentro dele estavam as cabeças de um grupo de soldados que saíram para avaliar as forças de Cosroes. A guerra começou. Os dois nobres, Hannam e Maruta, observaram o alexandrino sem muito interesse e, depois de pedir licença ao bispo, continuaram informando-o sobre os detalhes da situação. João os escutava aniquilado. Dava-se conta de que, mesmo que quisesse, seria difícil deixar a cidade. A situação era pior do que Eulálio pensava: já nenhuma caravana deixaria Edessa. Ninguém queria correr o risco certo de perder a vida logo no início da viagem. João viveu os dias seguintes como um pesadelo. Das muralhas de Edessa viam-se com nitidez os soldados persas em volta das fogueiras. Às vezes os ataques duravam o dia inteiro. Os homens mantinham as famílias recolhidas atrás dos muros das casas, enquanto os soldados respondiam aos contínuos ataques. Ainda não havia escassez de mantimentos nem de água, porque o rei requisitara o trigo e animais para que nada faltasse a seus soldados. - Dormes, João? - Não, Kalman, há dias que não consigo dormir. O assobio das flechas e os golpes contra as muralhas invadiram minha cabeça, e não sou capaz de conciliar o sono. - A cidade está para cair. Não podemos resistir por muito mais tempo. - Eu sei, Kalman, eu sei. Não dou conta de curar os ferimentos dos soldados, nem de atender as mulheres e as crianças que morrem em meus braços, presas das convulsões ou da peste. Tenho as mãos calejadas de tanto cavar a terra para enterrar os cadáveres. Também sei que os soldados de Cosroes não pouparão a vida a ninguém. Como está Eulálio? Não pude cuidar dele... sinto muito. - Ele prefere que prestes socorro a quem mais o necessita. Está muito fraco por causa do longo jejum, e a dor lhe atenaza os ossos. Sua barriga está inchada, mas não se queixa. João suspirou. Fazia dias que mal dormia, correndo de lá para cá entre as muralhas. Cuidando das feridas mortais dos soldados, que já não podia curar porque não restavam plantas para preparar suas poções. Algumas mulheres desesperadas batiam à sua porta implorando que salvasse seus filhos, e ele deixava escapar lágrimas de impotência porque não podia fazer nada por aquelas crianças cuja vida se extinguia levada pela fome e pela miséria que a guerra traz consigo. Como sua vida mudara desde que deixara Alexandria, fazia já quase dois anos. Quando conseguia dormitar, sonhava com o cheiro limpo do mar, com as mãos macias de Miriam, com a comida quente que sua velha aia lhe preparava, com sua casa rodeada de laranjeiras. Nos primeiros meses do sítio, maldizia sua sorte e se recriminava por ter ido a Edessa atrás de um sonho, mas já não fazia mais isso. Não lhe restavam forças para fazê-lo. - Irei ver Eulálio. - Certamente lhe fará bem. Acompanhado por Kalman, dirigiu-se ao aposento onde o bispo jazia, rezando. - Eulálio... - Bem-vindo sejas, João. Senta-te a meu lado. O médico ficou impressionado com a aparência do velho. Tinha encolhido e seus ossos transpareciam sob uma pele finíssima, cuja cor prenunciava a morte. A visão do ancião moribundo comoveu João. Ele, que chegara a Edessa orgulhoso para mostrar à cristandade o rosto do Senhor, não se atrevera a cumprir sua missão. Nem sequer pensara no linho sagrado durante os meses do sítio; agora, ao ver a morte rondar o leito de Eulálio, entendeu que logo chegaria a vez dele. - Kalman, deixa-me a sós com Eulálio. O bispo fez um gesto ao sacerdote para que obedecesse à ordem de João. Kalman saiu preocupado, sabendo que nenhum dos dois homens estava bem. Era evidente que a dor calara no espírito de João, enquanto em Eulálio era a carne que se decompunha a olhos vistos. João fitou o bispo e, pegando em sua mão, sentou-se a seu lado. - Perdoa-me, Eulálio, fiz tudo errado desde que cheguei. E o pior de meus pecados foi não confiar em ti. Pequei por soberba, ao não te confiar o lugar secreto onde está o Sudário. Agora te revelarei o segredo e decidirás o que devemos fazer. Que Deus me perdoe se o que vou expressar é uma dúvida, mas, se de fato o linho contiver a imagem de seu Filho, então Ele nos salvará, como salvou Abgar de uma morte certa. Eulálio ouviu assombrado a revelação de João. Quer dizer que, por mais de trezentos anos, a mortalha de Jesus estivera enterrada sob os tijolos de um nicho escavado na muralha, em cima da porta ocidental da cidade, o único lugar que suportara as investidas do exército persa. O velho se levantou a duras penas e, chorando, abraçou o alexandrino. - Louvado seja o Senhor! Sinto em meu coração uma alegria imensa. Deves ir à muralha e resgatar o Sudário. Efrém e Kalman te ajudarão, mas deves ir quanto antes, sinto que Jesus ainda pode ter piedade de nós e fazer um milagre. - Não, não posso me apresentar ante os soldados que arriscam suas vidas guardando a porta ocidental e dizer-lhes que vou procurar um nicho oculto na muralha. Pensarão que estou louco, ou que escondo um tesouro... Não, não posso ir lá. - Tu irás, João. De repente a voz de Eulálio recuperou a firmeza. Tanta, que João baixou a cabeça, sabendo que desta vez obedeceria. - Permite-me, Eulálio, que diga que tu me envias. - E é verdade que sou eu quem te envia. Antes de entrares com Kalman para me ver, em meu sonho escutei a voz da mãe de Jesus dizendo-me que Edessa se salvaria. Assim será se Deus quiser. Os gritos dos soldados chegavam até o aposento, misturados ao choro das poucas crianças que permaneciam com vida. Eulálio mandou chamar Kalman e Efrém. - Tive um sonho. Acompanhai João até o portão ocidental e... - Mas, Eulálio - exclamou Efrém -, os soldados não nos deixarão passar... - Ide e obedecei as ordens de João. Edessa pode ser salva. O capitão, furioso, mandou os dois sacerdotes se retirarem do lugar. - A porta está quase cedendo, e quereis que nos ponhamos a procurar um nicho oculto... Estais loucos! Não me importa que o bispo vos tenha enviado. Ide! João se adiantou e, com voz firme, garantiu ao capitão que com sua ajuda ou sem ela escavaria a muralha, acima da porta ocidental. As flechas caíam ao seu redor, mas os três homens escavavam, sem descanso, ante o olhar atônito dos soldados que, com suas últimas forças, defendiam essa parte da muralha. - Encontrei alguma coisa! - gritou Kalman. Minutos depois, João tinha nas mãos um cesto escurecido pelo tempo e pela areia. Abriu-o e acariciou o tecido cuidadosamente dobrado. Sem esperar Efrém nem Kalman, foi correndo para a casa de Eulálio. Seu pai lhe dissera a verdade: sua família era depositária do tecido com que José da Arimatéia amortalhou Jesus. O bispo tremeu de emoção ao ver João entrar tão agitado. Este tirou o tecido do cesto e o estendeu diante do velho, que, levantando da cama, caiu de joelhos maravilhado ao contemplar o rosto de um homem perfeitamente delineado no linho. 24 - Você deve estar lendo algo muito apaixonante, porque nem percebeu que eu entrei. - Ah! Desculpa, Marco - respondeu Sofia -, você tem razão; não percebi que você estava aí, mas você também não fez barulho. - O que você está lendo? - A história do Santo Sudário. - Mas se você já sabe essa história de cor. Para dizer a verdade, todos os italianos sabemos. - É, mas pode ser que ainda encontre alguma coisa que nos dê uma pista. - Algo que tenha a ver com a história do Sudário? - É só uma especulação, para não deixar nenhum ponto obscuro. Marco olhou-a espantado. Ou estava ficando velho e já não enxergava um palmo à frente do nariz, ou Sofia tinha razão e talvez fosse preciso investigar algum acontecimento do passado ligado ao Santo Sudário. - E encontrou alguma coisa? - Não, estou só lendo e esperando a luzinha se acender – disse Sofia tocando a testa. - Em que parte da história você está? - Comecei agora, por isso ainda estou no século IV; quando um bispo de Edessa chamado Eulálio teve um sonho em que uma mulher lhe revelou onde estava o Sudário. Você sabe que até então o Sudário esteve perdido, ninguém sabia onde ele estava. Na verdade, não se sabia de sua existência, mas Evágrio... - De que Evágrio você está falando? - perguntou Minerva, que acabava de entrar. - Você já vai ver. Segundo Evágrio, em sua História eclesiástica, no ano 544 Edessa venceu as tropas de Cosroes I que sitiaram a cidade, e tudo graças ao Mandylion (2) que levaram em procissão pelas ameias das muralhas e... - Mas quem é esse Evágrio e o que é o Mandylion? – insistiu Minerva. - Se você me deixar falar - queixou-se Sofia -, já vai entender. - Desculpa, tem razão. Vocês dois estavam aí conversando; e eu cheguei metendo o bedelho - respondeu Minerva, fazendo uma careta: Marco observou Minerva divertido. Notava sua impaciência e mau humor. - Sofia - devolveu Marco - está revendo a história do Sudário, e estávamos falando de sua aparição em Edessa no ano de 544, quando a cidade foi sitiada pelos persas. Os edessianos estavam desesperados, quase sucumbindo ao cerco. Por mais que disparassem flechas com fogo contra as máquinas de guerra persas, estas não se incendiavam. - E o que aconteceu? - perguntou Minerva. - Bom, segundo Evágrio - continuou Sofia -, Eulálio, bispo de Edessa, teve um sonho em que uma mulher lhe revelou onde estava escondido o Santo Sudário. Procuraram por ele e o encontraram no portão ocidental, em um nicho cavado na muralha. A descoberta devolveu-lhes a fé e levaram o Sudário em procissão pelas ameias, de onde continuaram disparando flechas incendiárias contra as máquinas persas, que agora sim se incendiaram, e os persas acabaram fugindo. (2) O Mandylion, ou Santa Face, é o próprio Sudário dobrado de modo que só o rosto fica à mostra. (N. do E.) - É uma bela história, mas é verdade? - perguntou Minerva. - Os historiadores dão como certos alguns fatos que são lenda, e nós achamos que são lenda alguns acontecimentos que são história. Os melhores exemplos disso são Tróia, Micenas, Knossos... cidades que por séculos se pensou que pertenciam ao mundo dos mitos, mas cuja existência Schliemann, Evans e outros arqueólogos se empenharam em provar, e conseguiram - respondeu Sofia. - Na certa esse bispo sabia que o Sudário estava lá, porque, por mais crédulos que sejamos, não vamos acreditar na história do sonho, não é? - Isso é o que chegou até nós - respondeu Marco a Minerva – e provavelmente você tem razão. Eulálio devia saber onde estava o Sudário, ou talvez ele o tenha mandado colocar lá para que aparecesse no momento certo e dizer que acontecera um milagre. Vai saber o que realmente aconteceu há mais de mil e quinhentos anos. Quanto a sua pergunta sobre o que é o Mandylion, é a palavra grega que designa os trajes eclesiásticos. Pietro, Giuseppe e Antonino chegaram juntos. Falavam animadamente de futebol. Marco tinha convocado sua equipe para anunciar que dentro de dois meses o mudo de Turim seria solto, e, portanto, tinham de começar a preparar o dispositivo para segui-lo. Pietro olhou Sofia com o canto do olho. Os dois vinham se evitando e, embora procurassem manter uma relação profissional e amistosa, o certo é que não ficavam à vontade um com o outro, demonstrando um desconforto que às vezes contagiava o resto da equipe. Tanto Marco como os demais evitavam deixá-los a sós ou que tivessem que dividir uma tarefa. Era evidente que Pietro continuava apaixonado por Sofia e que esta começava a sentir uma certa repulsa por ele. - Bem - explicou Marco -, dentro de alguns dias, a Junta de Segurança tornará a visitar a prisão de Turim. Quando chegarem à cela do mudo, perguntarão ao diretor, à assistente social e à psicóloga do presídio sua opinião sobre ele. Os três concordarão em que o mudo é um ladrãozinho inofensivo e que não representa o menor perigo para a sociedade. - Óbvio demais - comentou Pietro. - Não, não será tão óbvio, porque a assistente social vai propor que o levem a um centro especial, a um centro psiquiátrico onde os médicos determinem a capacidade do mudo para viver, sem depender de outros. Veremos se ele fica nervoso diante da possibilidade de ser internado em um hospital psiquiátrico ou se continua impassível. O passo seguinte será o silêncio. Os guardas não falarão da possível liberdade do mudo na presença dele, pelo menos nos primeiros dias, e observarão suas reações. Passado um mês, a Junta voltará à prisão, e duas semanas mais tarde o mudo será posto em liberdade. Sofia, quero que vá a Turim com o Giuseppe e comecem a organizar o dispositivo. Digam o que acham que vamos precisar. Quando terminaram a reunião, cada um voltou para seu trabalho. Marco lembrou-lhes que à noite estavam todos convidados para jantar em sua casa: era seu aniversário. - Então vão soltar o mudo. É um risco e tanto, não? - É, mas é a única pista que temos. Ou o mudo nos mostra o fio da meada, ou continuaremos com este caso aberto para o resto da vida. Marco e Santiago Jiménez falavam animadamente enquanto bebiam um copo de Campari que Paola acabara de servir. Paola organizara minuciosamente o aniversário de Marco e convidara seus amigos mais íntimos. Como não tinha uma mesa suficientemente grande para que todos pudessem sentar, tinha preparado um bufê e, com a ajuda das filhas, tratava de abastecer os copos e pratos dos vinte convidados. - Sofia e Giuseppe se encarregarão de montar o dispositivo em Turim. Vão para lá na semana que vem. - Minha irmã Ana também vai para Turim. Está obcecada com o Sudário, desde aquela noite em que você nos convidou para jantar. Ela me mandou um informe onde sustenta que a chave dos acontecimentos que envolvem o Sudário está no passado. Enfim, estou te contando sobre a Ana porque, embora não vá publicar uma linha de tudo que soube naquela noite aqui em sua casa, decidiu investigar por conta própria e, como lhe deixei bem claro que não a quero em minha casa em Roma, decidiu ir a Turim. É uma boa moça, inteligente, decidida e intrometida como todos os jornalistas. Mas tem instinto. Imagino que a investigação dela não vai lhes causar problemas, mas, se você ficar sabendo que tem uma jornalista metendo o nariz onde não deve, é só me avisar. Sinto muito, são os inconvenientes de tratar com a imprensa, apesar de ser da família. - Vai deixar o informe comigo? - O de Ana? - É. É curioso, mas, outro dia, a Sofia andou estudando a história do Sudário e me disse que talvez encontrássemos uma pista no passado. - Olha só! Bom, vou enviá-lo, sim, mas é um informe muito especulativo, não há nada que você possa aproveitar. - Eu o darei a Sofia, embora seja uma temeridade colocar um jornalista nesta ou em qualquer outra investigação. Acabam confundindo tudo, e por uma reportagem são capazes... - Não, Marco, isso não, mesmo. Se a critiquei também tenho que elogiá-la. Ana é uma pessoa honesta, que gosta muito de mim e nunca faria nada que pudesse me prejudicar. Ela sabe que, como representante da Espanha na Europol de Roma, não posso ter problemas com as autoridades daqui, e muito menos porque um parente meu sabe de assuntos oficiais sobre os quais não deveria saber. Enfim, garanto que ela não vai fazer nada que possa me prejudicar. - Mas você acabou de dizer que ela é um pouco intrometida e que vai a Turim para investigar. - É verdade, mas não vai publicar nem uma linha da história e, se encontrar alguma coisa, vai me avisar. Ana sabe muito bem o risco que eu corro, se ela publicar uma investigação do Departamento de Arte que está em andamento. - Ela vai te contar o que descobrir, se descobrir alguma coisa? - Vai, sim. Ela queria te propor um acordo, passar para você tudo o que ela pensa que logo vai saber e que, em troca, você conte a ela tudo o que sabe. Naturalmente, eu disse que nem pensasse em propor acordo nenhum, nem para você, nem para ninguém que tenha a ver comigo. Mas eu a conheço e sei que, se descobrir algo, vai precisar contrastá-lo, e aí vai me ligar e pedir para eu falar com você. - Quer dizer, então, que ganhamos uma auxiliar voluntária... Bom, não se preocupe. Direi ao Giuseppe e a Sofia que fiquem alertas quando forem a Turim. - Com que temos de ficar alertas? - Ah! Sofia, Santiago estava aqui me falando da irmã dele, a Ana. Não sei se você chegou a conhecê-la. - Acho que sim, faz alguns anos. Ela não estava com você na despedida do Turcio? - É verdade. Ana estava em Roma e foi comigo. Ela sempre vem me ver, sou seu único irmão, o mais velho. Meu pai morreu quando ela era pequena, e isso fez com que ficássemos muito ligados. - Eu me lembro dela, porque ficamos conversando sobre as relações entre imprensa e polícia. Ela disse que, às vezes, se dava um casamento de interesse entre ambas as partes, mas que sempre acabava em separação. Me pareceu muito simpática e inteligente. - Fico contente de que tenha gostado dela, porque é bem capaz que a encontre em Turim, investigando sobre o Sudário - explicou Marco. Sofia fez cara de espanto, e Santiago se apressou a explicar por que Ana se interessara pelo Santo Sudário e como estava obcecada pelo assunto. - Sabe o que Santiago acaba de me contar? Que a Ana pensa que a chave dos acontecimentos em torno do Sudário está no passado... - Sim, eu também acho isso, já te falei... - Foi o que eu disse ao Santiago. Ele vai nos passar um informe que a irmã dele mandou. Vamos dar uma olhada; quem sabe a jornalista nos entrega de bandeja umas dicas. - E por que não falamos com ela? - perguntou Sofia. - Por enquanto vamos deixar assim - respondeu Marco pensativo. - Não seria a primeira vez, você sabe muito bem, que a polícia chegaria a algum acordo com um jornalista durante uma investigação. - Eu sei, mas gostaria que esta história ficasse circunscrita ao nosso departamento, ao menos por enquanto. Se a Ana descobrir alguma coisa que possa ser útil, então veremos o que fazer. Lisa e John Barry entraram no salão acompanhados por Paola. Marco abraçou John. - Estou feliz de que tenha vindo. - Acabo de chegar de Washington. Você sabe como são os chefes, e os do Departamento de Estado não são uma exceção. Passei a semana inteira em reuniões absurdas que só servem para uns poucos justificarem seus altos salários. - Sabem que o John recebeu uma proposta de transferência para Londres? - anunciou Lisa. - Vocês querem mudar para lá? - perguntou Paola. - Não, respondi que não, prefiro fica:r em Roma. O Departamento de Estado considera a transferência para Londres uma promoção. E de fato é, mas prefiro continuar em Roma, vocês acham que sou um ianque, mas eu me considero romano. 25 Guner terminou de escovar o terno preto de Addaio e o pendurou no amplo closet. De volta ao dormitório, arrumou os papéis que Addaio deixara embaralhados sobre a escrivaninha e colocou alguns livros numa estante. Addaio trabalhara até tarde. O aroma adocicado do tabaco turco impregnava o sóbrio aposento, Guner abriu a janela de par em par e demorou-se alguns segundos olhando o jardim. Não ouviu os passos silenciosos de Addaio, nem viu que o observava com preocupação. - No que está pensando, Guner? Virou-se, tentando não transparecer nenhuma emoção. - Nada em especial. Está um belo dia, e dá vontade de sair. - Poderá sair, quando eu viajar. Você poderia até aproveitar para passar alguns dias com sua família. - Você vai viajar? - Sim. Vou à Alemanha e à Itália. Quero visitar nossa gente, preciso saber qual foi nosso erro e onde se aninha a traição. - É perigoso, você não deveria ir. - Não posso fazer com que todos eles venham aqui. Isso sim seria perigoso. - Encontre-os em Istambul. A cidade está cheia de turistas o ano inteiro, ali passarão despercebidos. - Não poderiam vir todos. É mais fácil eu me deslocar que fazer eles virem. Está decidido. Viajo amanhã. - Que desculpa dará? - Que estou cansado e vou tirar uns dias de férias. Vou à Alemanha e à Itália onde tenho bons amigos. - Quanto tempo ficará fora? - Uma semana, dez dias, não muito mais que isso, portanto aproveite para descansar. Vai te fazer bem não me ver por uns dias. Tenho achado você muito tenso, aborrecido comigo. Por quê? - Vou ser franco: tenho dó desses meninos que você está castigando. O mundo mudou, e você insiste em que tudo continue igual. Não pode continuar mandando jovens morrer deslinguados por medo de que falem e... - Se falassem, nos destruiriam. Sobrevivemos vinte séculos graças ao sacrifício e ao silêncio dos que nos precederam. Sim, exijo grandes sacrifícios, eu também sacrifiquei minha vida, urna vida que nunca me pertenceu, corno a tua também não te pertence. Morrer por nossa causa é urna honra, sacrificar a língua também. Eu não arranco sua língua, eles é que voluntariamente oferecem esse sacrifício, porque sabem que é imprescindível. Assim protegem a todos e protegem a si mesmos. - Por que não deixamos a clandestinidade? - Ficou louco! Acha mesmo que sobreviveríamos se disséssemos quem somos? O que está acontecendo com você? Que demônio tornou conta da sua cabeça? - Às vezes acho que quem está tornado por um demônio é você. Você se tornou duro e cruel. Não tem piedade de nada nem de ninguém. Acho que sua dureza é urna vingança por ser quem você não queria ser. Ficaram em silêncio, fitando-se nos olhos. Guner pensou que falara demais, e Addaio mais uma vez se apanhou aceitando as recriminações de Guner sem retorquir. Suas vidas estavam irremediavelmente entrelaçadas. e nenhum dos dois era feliz. Guner seria capaz de traí-lo? Afastou esse pensamento. Não, não faria isso. Confiava em Guner, de fato confiara sua vida a ele. - Prepare minha bagagem para amanhã. Guner não respondeu, virou-se e se entreteve fechando as janelas, sentia a mandíbula travada por causa da tensão. Respirou aliviado quando ouviu Addaio fechar a porta com um leve ruído. O homem se deu conta de que no chão, ao lado da cama de Addaio, havia um papel. Agachou-se para apanhá-lo. Era urna carta escrita em turco, e não pôde evitar lê-Ia. Às vezes Addaio deixava ele ler cartas e documentos e perguntava sua opinião. Sabia que o que estava fazendo não era correto, mas sentiu urna necessidade imperiosa de conhecer o conteúdo da carta que encontrara no chão. A carta não estava assinada. Quem a escrevera comunicava a Addaio que ajunta de Segurança da prisão de Turim estudava a possibilidade de soltar Mendibj e pedia instruções sobre o que fazer quando ele saísse. Perguntou-se por que Addaio não guardara urna carta tão importante corno essa. Por acaso queria que ele a encontrasse? Achava que ele era o traidor? Com a carta na mão Guner, dirigiu-se ao escritório de Addaio. Bateu de leve na porta e esperou que o pastor o mandasse entrar. - Addaio, esta carta estava no chão ao lado de sua cama. O pastor olhou-o impassível e estendeu a mão para apanhar a carta. - Eu a li. Imagino que a perdeu de propósito para que eu a encontrasse, a lesse, armando urna cilada para saber se sou eu o traidor. Não, não sou. Mil vezes disse a mim mesmo que devia ir embora, mil vezes pensei em dizer ao mundo quem somos e o que fazemos. Mas não o fiz. não o farei pela memória de minha mãe, para que minha família possa continuar vivendo de cabeça erguida e meus sobrinhos tenham uma vida melhor do que a minha. Não o faço por eles, e porque não sei o que seria de mim. Sou um homem, um pobre homem, velho demais para começar uma nova vida. Sou um covarde, como você, os dois aceitamos esse destino. Addaio olhava-o em silêncio tentando descobrir no rosto de Guner algum gesto, alguma emoção, algum sinal que lhe indicasse que ainda contava com seu afeto. - Agora sei por que você parte amanhã. Está preocupado, teme o que possa acontecer a Mendibj. Você contou ao pai dele? - Já que você tem tanta certeza de que não vai me trair, saiba que estou preocupado com a libertação de Mendibj. Se você leu a carta, sabe que nosso contato na prisão viu o chefe do Departamento de Arte visitando Mendibj. Diz também que suspeita que o diretor da prisão está tramando alguma coisa. Não podemos correr riscos. - Que vai fazer? - O que for preciso para que nossa Comunidade sobreviva. - Inclusive mandar assassinar Mendibj? - Quem está chegando a essa conclusão é você. - Eu o conheço muito bem e sei do que é capaz. - Você é o único amigo que tive, nunca escondi nada de você, conhece todos os segredos de nossa Comunidade, mas vejo que não tem o menor afeto por mim, que nunca teve. - Engano seu, Addaio, engano seu. Você sempre foi bom comigo, desde o primeiro dia em que cheguei a sua casa, com dez anos. Sabia como sofria por separar-me de meus pais, e fez o impossível para que os visitasse com freqüência. Nunca esquecerei como ia comigo à minha casa e me deixava passar a tarde lá, enquanto passeava pelo campo fazendo hora para não nos constranger com sua presença. Não posso reprovar seu comportamento comigo, reprovo seu comportamento para com o mundo, para com nossa Comunidade, pela imensa dor que causa. Se quer saber se tenho afeto por você, a resposta é... sim, mas confesso que às vezes sinto uma profunda aversão por você, por estar ligado a seu destino. Mas não o trairei, se é isso o que te preocupa. - Sim, estou preocupado que haja um traidor entre nós, e minha obrigação é não descartar nenhuma hipótese. - Permita-me dizer que esquecer a carta foi uma jogada demasiado óbvia. - Talvez eu quisesse que você a encontrasse, caso você fosse o traidor, mas não para desmascará-lo, e sim para alertá-lo. Você é meu único amigo, a única pessoa que não queria perder. - Você corre perigo indo à Itália. - Se eu não fizer nada, todos correremos perigo. - Temos gente em Turim que cumprirá suas ordens. Se a polícia está preparando alguma coisa, você não deveria se expor. - Por que você acha que a polícia está preparando alguma coisa? - De novo tentando me armar uma cilada, Addaio? A carta é que insinua essa movimentação. - Primeiro vou a Berlim, depois a Milão e a Turim. Gosto da família de Mendibj, você sabe, mas não permitirei que se transforme em um problema. - Você pode tirá-lo de Turim assim que o soltarem. - E se for uma armadilha? E se o soltarem para segui-lo? É o que eu faria no lugar deles. Não posso permitir que ele ponha em perigo a Comunidade, você sabe muito bem. Sou responsável por muitas famílias, também pela sua. Quer que nos aniquilem, que nos despojem do que temos? Quer que traiamos a memória que nossos antepassados nos legaram? Somos o que devemos ser, não o que gostaríamos de ter sido. - Você corre perigo indo a Turim. É uma temeridade. - Não sou temerário, você sabe muito bem. Mas nessa carta nos sugerem que podem estar preparando uma cilada, e devo agir para evitar que caiamos nela. - Os dias de Mendibj estão contados. - Todos os homens nascem com seus dias contados. Agora me deixe trabalhar e me avise assim que Talat chegar. Guner saiu do escritório rumo à capela. Lá, de joelhos, deixou as lágrimas banharem seu rosto e procurou na cruz que repousava no altar uma resposta para seu sofrimento. 26 - Você está ficando neurótico. - Olha, Giuseppe, tenho certeza de que os mudos entram e saem por algum lugar que não é a porta, e o subsolo de Turim é como um queijo gruyère. Está cheio de túneis, você bem sabe. Sofia ouvia os dois homens em silêncio, mas pensava que Marco tinha razão. Os mudos apareciam e desapareciam sem deixar rastro. Os mudos ou seus cúmplices, porque estavam convencidos de que essas operações em torno do Sudário eram obra de uma organização que escolhia mudos para realizar os roubos, se é que o que pretendiam era roubar o Sudário da catedral, como sustentava Marco. O chefe decidira no último minuto que iria com eles a Turim. O ministro da Cultura conseguira uma permissão do Ministério da Defesa para explorar os túneis, os que estavam fechados ao grande público. Nos mapas da Turim subterrânea que o exército tinha, não havia nenhum túnel que desse na catedral. Mas o instinto dizia a Marco que estavam errados, assim, com a ajuda de um comandante do Corpo de Engenheiros e quatro sapadores do regimento de Pietro Micca, ia percorrer os túneis que estavam fechados. Assinara um documento assumindo a responsabilidade pelo risco que corria, e o ministro lhe indicara que não pusesse em perigo a vida do comandante e dos soldados que o acompanhariam. - Estudamos os planos, não há nenhum túnel que chegue à catedral, você sabe muito bem. - Giuseppe - interveio Sofia -, não sabemos tudo o que há no subsolo de Turim. Se escavarmos, sabe Deus o que poderemos encontrar. Algumas galerias que atravessam o subsolo da cidade não foram exploradas, outras parecem não levar a lugar nenhum. Na verdade, pode ser que alguma chegue à catedral. Seria lógico que fosse assim. Lembre-se de que a cidade foi sitiada várias vezes, e que a catedral abriga jóias únicas que os turineses iam querer salvar, caso fossem assaltados ou conquistados pelo inimigo. Não é loucura pensar que alguma dessas galerias que parecem não levar a lugar nenhum na verdade leva à catedral ou para perto dela. Giuseppe ficou em silêncio. Respeitava Marco e Sofia por seus conhecimentos, porque eram historiadores e, às vezes, viam coisas onde outros não viam nada. Além disso, Marco estava obcecado com o caso. Ou o resolvia, ou acabaria com sua carreira, porque fazia meses que só se ocupava do último incêndio da catedral. Hospedaram-se no hotel Alexandra, perto do centro histórico de Turim, e no dia seguinte começariam a trabalhar. Marco percorreria as galerias da cidade, Sofia se encontraria com o cardeal e Giuseppe se reuniria com os carabinieri para definir os efetivos de que necessitariam para seguir o mudo. Mas naquela noite Marco os convidara para jantar peixe no Al Ghibellin Fuggiasco, um restaurante tradicional e aconchegante. Continuavam falando animadamente, quando foram surpreendidos pelo padre Yves. O sacerdote se aproximou amigavelmente de sua mesa e deu um caloroso aperto de mão a cada um, como se estivesse contente de vê-los. - Não sabia que também vinha a Turim, senhor Valoni. O cardeal me informou que a doutora Galloni nos visitaria, acho que amanhã a senhora tem um encontro com sua Eminência. - Sim, tenho sim - confirmou Sofia. - Como vão as investigações? As obras da catedral terminaram, e o Sudário está de novo exposto aos fiéis. Reforçamos a segurança, e a COCSA instalou um moderníssimo sistema anti-incêndios. Não acredito que voltemos a ter problemas. - Tomara que o senhor tenha razão, padre - disse Marco. - Bom, vou deixá-los jantar sossegados. Seguiram-no com os olhos até a mesa onde uma jovem morena esperava por ele. Marco riu. - Sabem quem está com nosso padre Yves? - Uma morena bem atraente. Ah, esses padres - disse Giuseppe surpreso. - É Ana Jiménez, a irmã de Santiago. - Tem razão, Marco, é a irmã de Santiago. - Agora quem vai à mesa do padre Yves sou eu. - Por que não os convidamos para tomar alguma coisa? - Isso demonstraria que estamos interessados neles e não nos convém, não acham? Marco atravessou o restaurante e se aproximou da mesa do padre Yves. Ana Jiménez recebeu-o com um largo sorriso e pediu encarecidamente que reservasse alguns minutos para ela quando tivesse tempo. Chegara a Turim havia quatro dias. Marco não se comprometeu com nada, mas respondeu que teria o maior prazer em convidá-la para um café se lhe sobrasse um tempo, já que não ia ficar muitos dias em Turim. Quando lhe perguntou para onde devia ligar, Ana Jiménez respondeu que para o hotel Alexandra. - Que coincidência, nós também estamos hospedados no Alexandra. - Foi meu irmão quem o recomendou, e para passar uns dias está bom. - Sendo assim, certamente poderemos nos ver. Despediu-se e voltou para junto de Sofia e Giuseppe. - Nossa amiga está hospedada no Alexandra. - Que coincidência! - Não, não é coincidência, Santiago lhe recomendou o hotel, como era de esperar. Enfim, ela vai estar perto demais, portanto é bom despistá-la. - Não sei se quero despistar uma morenaça dessas - disse Giuseppe, rindo. - Mas vai ter que fazer isso, por dois motivos: primeiro, porque ela é jornalista e está empenhada em descobrir o que há por trás dos acidentes envolvendo o Sudário; segundo, porque ela é irmã de Santiago, e eu não quero confusão. Entendido? - Entendido. Eu estava brincando. - Ana Jiménez é uma mulher teimosa e inteligente, não é para levar na brincadeira. - O informe que mandou ao irmão está cheio de especulações interessantes. Eu não me importaria em falar com ela. - Não estou dizendo para não falar, Sofia, mas precisamos ter cuidado. - Que será que ela está fazendo com o padre Yves? – perguntou Sofia em voz alta. - É uma garota esperta e conseguiu que o braço direito do cardeal a convidasse para jantar - respondeu Marco. - O padre Yves me intriga. - Por quê, Sofia? - Não sei, mas ele é tão correto, tão bonito, tão amável, e sempre no seu papel de sacerdote, sem deslizes. Estou observando seus movimentos, e vejo como fala com ela, como é atencioso, mas nenhum sinal de sedução. E isso que, como disse o Giuseppe, Ana é uma moça muito bonita. - Se o padre tivesse intenção de dar em cima dela, não a traria neste restaurante onde muita gente o conhece - concluiu Marco. Ninguém faria isso. O velho desligou o telefone e deixou o olhar vagar alguns segundos através da vidraça. A campina inglesa resplandecia verde-esmeralda iluminada por um sol morno. Os sete homens esperavam ansiosos que o velho começasse a falar. - Vai sair daqui a um mês. A junta de Segurança estudará formalmente, na próxima semana, a proposta de soltura. - Por isso Addaio viajou para a Alemanha e, segundo nosso homem, cruzará a fronteira da Itália. Mendibj se transformou em seu maior problema, em um perigo para a Comunidade. - Vai matá-lo? - perguntou o cavalheiro com sotaque francês. - Não pode deixar que sigam a pista de Mendibj. Addaio se deu conta da jogada, e vem para impedi-Ia - respondeu o cavalheiro com aparência de militar. - Onde será que vão matá-lo? - insistiu o francês. - Decerto na prisão - disse o cavalheiro italiano. - Seria o mais seguro. Haveria um pequeno escândalo, não muito mais que isso. Em liberdade, Mendibj pode, sem querer, expor os homens de Addaio. - O que vocês propõem? - perguntou o velho. - Se Addaio resolver o problema, será melhor para todos. - Está previsto algum esquema de proteção para Mendibj, caso consiga sair vivo da prisão? - perguntou de novo o velho. - Sim - disse o cavalheiro italiano -, nossos irmãos procurarão evitar que a polícia siga seus passos. - Não basta que nossos irmãos tentem. Eles não podem falhar. A voz do velho soou firme como um trovão. - E assim farão - respondeu o italiano. - Nas próximas horas, espero saber de todos os detalhes do plano dos carabinieri para a operação chamada "cavalo de Tróia". - Bem, chegamos ao momento crucial, e o desenlace só pode ser salvar Mendibj dos carabinieri, do contrário... O velho não completou a frase. Todos concordaram, sabiam que, no que dizia respeito a Mendibj, seus interesses coincidiam com os de Addaio. Não podiam permitir que ele se transformasse em um cavalo de Tróia. Um leve toque na porta, anunciando a entrada de um mordomo de libré, serviu para dar por encerrada a reunião vespertina. - Senhor, os convidados começam a acordar para a jornada de caça. - Ótimo. Os homens, em traje de montaria, foram deixando o escritório lentamente e se dirigiram a um sala aquecida, onde os aguardava o café da manhã. Minutos depois, entrou na sala uma velha aristocrata acompanhada pelo marido. - Ora, pensei que fôssemos os mais madrugadores, mas olhe só, Charles, nossos amigos chegaram antes. - Decerto aproveitam para falar de negócios. O cavalheiro francês garantiu que não queriam nada além de começar a jornada de caça. Outros convidados continuaram chegando à sala, até completarem trinta. Conversavam animadamente e alguns comentavam indignados a pretensão dos Comuns de acabar com a caça à raposa. O velho olhou-os com gesto resignado. Ele, assim como os outros sete homens com que estivera conversando minutos antes, detestava a caça. Mas não podiam se furtar a esse passatempo tão inglês. Os membros da família real adoravam o esporte e, como de outras vezes, pediram que organizasse uma caçada em sua magnífica propriedade. E lá estavam eles. Sofia passara boa parte da manhã com o cardeal. Não viu o padre Yves, foi outro sacerdote quem a introduziu na sala de Sua Eminência. O cardeal estava contente com o término das obras. Derramou-se em elogios a Umberto d'Alaqua, que se empenhara pessoalmente para que as obras terminassem em um prazo menor que o previsto, aumentando a equipe de operários sem custo adicional. Sob a supervisão do doutor Bolard, o Sudário voltara à capela Guarini, na sua pequena arca de prata. O cardeal se queixou sutilmente por não ter recebido nenhum telefonema nem de Marco, nem dela para informá-lo do andamento das investigações. Sofia se desculpou, e procurou cair nas graças do cardeal contando-lhe apenas o imprescindível. - Quer dizer que acham que há uma organização ou um particular que quer o Sudário e provoca os incêndios para criar confusão e poder roubá-lo. Nossa! Acho isso muito complicado. E para que vocês acham que alguém quer o Santo Sudário? - Não sabemos. Pode ser um colecionador, um excêntrico, ou uma organização mafiosa que depois pediria um resgate milionário para devolvê-lo. - Meu Deus! - Nossa única certeza, Eminência, é de que todos os acidentes que esta catedral sofreu têm relação com o Sudário. - E você diz que seu chefe está procurando uma galeria subterrânea que leve até a catedral? Mas isso é absurdo. Vocês pediram ao padre Yves que examinasse nossos arquivos, acho que ele lhes enviou uma documentação detalhada da história da catedral, e em nenhum lugar se menciona a existência de uma passagem. - Mas isso não quer dizer que ela não exista. - Nem que exista. Não acreditem em todas as histórias fantásticas que se escrevem sobre as catedrais. - Eminência, sou historiadora. - Eu sei, eu sei, doutora. Admiro e respeito o trabalho que fazem no Departamento de Arte, não tive a intenção de ofendê-la, acredite. - Eu sei, Eminência. Mas o senhor também acredite que nem toda história está escrita, que não sabemos tudo o que aconteceu no passado, e muito menos as intenções dos homens que o viveram, Quando voltou ao hotel, encontrou Ana Jiménez no saguão. Sofia percebeu que a jornalista estava esperando por ela. - Doutora... - Como vai? - Bem. A senhora se lembra de mim? - Lembro, sim. A senhora é irmã de Santiago Jiménez, um bom amigo de todos nós. - Sabe o que estou fazendo em Turim? - Investigando os incêndios da catedral. - Sei que seu chefe não está gostando disso. - É natural. A senhora também não gostaria que a polícia se metesse em seu trabalho. - Não, eu não gostaria mesmo, e tentaria me livrar dela. Sei que o que vou dizer vai parecer uma ingenuidade, mas eu posso ajudá-los e podem confiar em mim. Gosto demais do meu irmão e não faria nada que pudesse prejudicá-lo. É verdade que eu gostaria de escrever uma reportagem, mas não farei isso. Comprometo-me a não escrever uma linha até que a investigação esteja encerrada, até que tudo seja esclarecido. - A senhora precisa entender que o Departamento de Arte não pode integrá-la assim, à toa, à sua equipe de investigação. - Mas podemos trabalhar paralelamente. Eu conto o que for descobrindo, e sua equipe joga limpo comigo. - Ana, isto é uma investigação oficial. - Eu sei, eu sei. Sofia se surpreendeu com a preocupação refletida no rosto da jovem. - Por que isso é tão importante para a senhora? - Não saberia dizer. Na verdade, nunca me importei com o Sudário nem dei atenção aos incêndios e roubos na catedral. Foi na casa de seu chefe, de Marco Valoni, que a o bicho me mordeu. Meu irmão me levou à casa dele achando que seria um jantar entre amigos, mas o senhor Valoni queria a opinião de Santiago e de outro amigo, acho que se chama John Barry, sobre o incêndio. Falaram a noite inteira, especularam, e a história me pegou. - O que descobriu? - Vamos tomar um café? - Vamos lá. Ana Jiménez suspirou aliviada, enquanto Sofia lamentava ter aceitado sentar-se com a jornalista. Gostava dela, achava que podiam confiar nela. Mas Marco tinha razão, por que deviam fazê-lo? Para quê? - Então, me conte - insistiu Sofia. - Li várias versões da história do Sudário, é apaixonante. - É mesmo. - Na minha opinião, alguém quer o Sudário. Os incêndios são apenas para despistar a polícia. O objetivo é levar o Sudário. Sofia se surpreendeu ao ver que a jovem tinha chegado à mesma conclusão que eles, e continuou ouvindo com interesse. - Mas deveríamos procurar no passado. Alguém quer recuperá-lo insistiu Ana. - Alguém do passado? - Alguém que tem relação com o passado do Sudário. - E por que chegou a essa conclusão? - Não sei, é um palpite. Tenho mil teorias, uma mais louca que a outra, mas... - Eu sei, li seu informe. - E o que achou? - Que tem muita imaginação, talento, sem dúvida, e talvez até razão. - Acho que o padre Yves sabe mais do que diz em relação ao Sudário. - Por que diz isso? - Porque é tão perfeito, tão correto, tão inocente, tão transparente que me faz pensar que está escondendo alguma coisa. E bonito. Ele é muito bonito, não acha? - É, de fato é um homem muito atraente. Como o conheceu? - Liguei para o bispado, disse que era jornalista e que queria escrever uma história sobre o Sudário. Há uma senhora mais velha, jornalista, que é a que atende a imprensa. Durante duas horas me contou o que os folhetos turísticos dizem sobre o Santo Sudário, além de me dar uma lição de história sobre a Casa de Savóia. Saí de lá chateada. A boa senhora não era a pessoa mais indicada para me dar alguma pista. Tornei a telefonar e pedi para falar com o cardeal; perguntaram quem eu era e o que queria. Expliquei que era jornalista e que estava investigando os incêndios e os acidentes ocorridos na catedral. Tornaram a me encaminhar à amável jornalista, que, desta vez, me atendeu de má vontade. Pressionei-a para conseguir uma entrevista com o cardeal. Por fim apostei tudo numa carta, disse que estavam escondendo alguma coisa e que ia publicar minhas suspeitas e algumas averiguações que fizera. Anteontem o padre Yves me ligou. Disse que é secretário do cardeal, que ele não podia me receber, mas o colocara à minha disposição. Nós nos encontramos e conversamos por um bom tempo. Pareceu sincero ao expor o que aconteceu no último incêndio, foi comigo visitar a catedral e depois tomamos um café. Combinamos continuar a conversa. Ontem, quando liguei para marcar o encontro, ele disse que estaria ocupado o dia inteiro e me perguntou se me importaria de jantar com ele. Isso é tudo. - É um sacerdote bem peculiar - disse Sofia como que pensando em voz alta. - Imagino que, quando ele reza a missa, a catedral enche respondeu Ana. - Gostou dele? - Se não fosse padre, daria em cima dele. Sofia se surpreendeu ao ver como Ana Jiménez era atirada. Ela nunca teria feito uma confissão dessas a uma estranha. Mas as jovens de hoje são assim. Ana não devia passar dos 25 anos, pertencia a uma geração acostumada a ir direto ao assunto, sem hipocrisia nem ponderações. Se bem que a condição de sacerdote do padre Yves parecia freá-la, pelo menos por enquanto. - Sabe, o padre Yves também me intriga, mas já apuramos e não há nada de estranho com de, nada que indique mais do que se vê. Existe gente assim, limpa e transparente. Mas, então, o que pensa fazer? - Se me der alguma dica, poderíamos trocar informações... - Não, não posso nem devo. - Ninguém saberia. - Não confunda as coisas, Ana. Não faço nada pelas costas de ninguém, e muito menos das pessoas em que confio e com quem trabalho. Vou com a sua cara, mas eu tenho meu trabalho, e a senhora tem o seu. Se em algum momento Marco decidir que devemos contar com a senhora, será um prazer. Se não, terá sido igualmente um prazer. - Se alguém quer roubar ou destruir o Sudário, o público tem o direito de saber. - Estou inteiramente de acordo. Só que quem está dizendo que alguém quer roubar ou destruir o Sudário é a senhora. Nós estamos investigando as causas dos incêndios. Quando encerrarmos a investigação, trataremos de comunicar as conclusões aos nossos superiores, e estes a divulgarão para a opinião pública, se o julgarem pertinente. - Não pedi que traia seu chefe. - Ana, eu entendi o que me pediu. E a resposta é não. Sinto muito. Ana mordeu o lábio contrariada e se levantou sem terminar o café. - Bom, que é que se há de fazer. Em todo caso, se eu descobrir alguma coisa, importa-se de que eu lhe telefone? - Não, não me importo. A jovem sorriu e saiu com passo rápido do café do hotel. Sofia perguntou-se aonde iria tão decidida. Seu celular tocou, e quando escutou a voz do padre Yves, teve vontade de rir. - Agora mesmo estava falando do senhor. - Ah, é? Com quem? - Com Ana Jiménez. - Ah, a jornalista! É uma pessoa adorável e muito inteligente. Está investigando os incêndios da catedral. Ela me contou que seu chefe, Marco, é amigo de seu irmão, o representante da Espanha na Europol da Itália. - É verdade. Santiago Jiménez é amigo de Marco e de todos nós. É uma boa pessoa e um profissional muito competente. - É, parece que sim. Sabe, estou ligando em nome do cardeal. Ele quer convidar a senhora e o senhor Valoni para uma recepção. - Uma recepção? - O cardeal vai receber a comissão de cientistas católicos que de quando em quando vêm a Turim para examinar o Sudário; são responsáveis por mantê-lo em bom estado. O doutor Bolard é o presidente da comissão. Sempre que eles vêm, o cardeal organiza uma recepção; não convida muita gente, trinta ou quarenta pessoas no máximo, e faz questão de que venham. O senhor Valoni já demonstrou interesse em conhecer esses cientistas, e agora poderá fazê-lo. - Eu também fui convidada? - Claro, doUtora, foi o que Sua Eminência me disse. - Bem, onde e quando vai ser? - Depois de amanhã, na residência de Sua Eminência, às sete da noite. Além dos membros do comitê, virão alguns empresários que colaboram conosco na manUtenção da catedral, o prefeito, representantes do governo regional, e pode ser que venha monsenhor Aubry, ajudante do substituto da Secretaria de Estado, e Sua Eminência o cardeal Visiers. - Certo, muito obrigada pelo convite. - Esperamos que venham. Marco estava de mau humor. Passara boa parte do dia nas galerias subterrâneas de Turim. Alguns trechos datavam do século XVI, outros do XVIII, e até Mussolini mandara aproveitar os túneis e ampliá-los em alguns de seus ramais. Percorrer as galerias subterrâneas era um trabalho árduo. Havia outra Turim no subsolo, ou melhor, várias Turim. O velho território dos turineses colonizado por Roma, sitiado por Aníbal, invadido pelos lombardos, até chegar a fazer parte da Casa de Savóia. Era uma cidade onde a história e a fantasia se cruzavam a cada passo. As provas arqueológicas demonstravam que algumas das galerias datavam dos primeiros séculos de nossa era. O comandante Colombaria se mostrou paciente e amável, mas também inflexível quando Marco insistia em seguir por uma galeria em mau estado ou propunha derrubar alguma parede para ver se atrás havia algum túnel que levasse a algum lugar. - Tenho ordens de guiá-lo pelas galerias, e não de ameaçar inutilmente sua vida nem a nossa entrando em túneis que não estão devidamente escorados e poderiam desabar. E não tenho autorização para abrir buracos nas paredes. Sinto muito. Mas quem sentia era Marco, que no fim da tarde tinha a sensação de ter viajado em vão pelo subsolo de Turim. - Vamos, não fique aborrecido, o comandante Colombaria tem razão, ele só cumpriu seu dever. Teria sido uma loucura, se tivessem resolvido sair distribuindo marretadas. Giuseppe tentava acalmar o chefe sem muito sucesso. Sofia não teve melhor sorte. - Marco, o que você quer só é possível se o Ministério da .Cultura fizer um acordo com o Conselho Artístico de Turim e puser à sua disposição uma equipe de arqueólogos e técnicos para escavar mais túneis. Mas assim, sem mais, não pode querer que te deixem escavar onde acha conveniente. Não tem a menor lógica. - Se não tentarmos ir pelas galerias fechadas, nunca saberemos se o que estou procurando existe ou não. - Então fala com o ministro e... - O ministro qualquer dia vai me mandar à merda. Ele já está um pouco cheio do caso do Sudário. Sofia e Giuseppe se olharam preocupados com a revelação de Marco, mas não disseram nada. - Bom, tenho novidades. O cardeal nos convidou para uma recepção depois de amanhã. - Para uma recepção? Nós? - É. O padre Yves me ligou. O comitê científico encarregado da manutenção do Santo Sudário está em Turim e o cardeal costuma homenageá-los com uma recepção que reúne as pessoas ilustres da cidade. Parece que uma vez você se mostrou interessado em conhecer estes cientistas e por isso ele nos convidou. - Não tenho a menor vontade de ir a essa festa, preferia falar com eles uma outra hora, sei lá, na catedral, enquanto examinam o Sudário... Mas, enfim, vamos lá. Vou mandar passar o terno. E você, Giuseppe tem alguma novidade? - O chefe dos carabinieri daqui não dispõe de contingente suficiente para o nosso dispositivo. Terão que nos mandar reforços de Roma. Já falei com a Europol, como você sugeriu, caso o mudo tente fugir. Poderão disponibilizar três agentes para colaborar conosco. Agora cabe a você pedir reforços a Roma. - Não gostaria que nos mandassem policiais de Roma. Prefiro lançar mão de nossa equipe. Quem poderia vir? - O departamento está sobrecarregado de trabalho. Não tem ninguém de braços cruzados - afirmou Giuseppe -, a não ser que alguém deixe o que está fazendo, se é que pode, e você o transfira para cá quando chegar a hora. - Prefiro assim. Fico mais à vontade com nossa gente. Temos que nos contentar com o apoio que os carabinieri daqui puderem nos dar. O problema é que, com isso, todos vamos ter de desempenhar tarefas de policiais. - Sempre achei que éramos isso mesmo - disse Giuseppe, com ironia. - Bom, você e eu sim. Sofia não, nem Antonino ou Minerva. - Você não vai colocar eles para seguir o mudo, vai? - Já disse que todos faremos de tudo, ficou claro? - Claríssimo, chefe. Bom, se não se importa, vou jantar com um amigo dos carabinieri, um bom sujeito disposto a colaborar conosco que convidei para jantar. Virá daqui a meia hora. Gostaria que vocês tomassem um trago com a gente antes de sair. - Por mim, tudo bem - disse Sofia. - Está bom - respondeu Marco -, vou tomar um banho e depois eu desço. E você, doutora, vai fazer o quê? - Nada. Se quiser, podemos jantar juntos por aqui mesmo. - Eu convido, vamos ver se passa meu mau humor. - Não, eu convido. - Tudo bem. Sofia vestia um tailleur de seda preta. Não levara nada adequado para uma recepção, por isso procurara nos arredores da rua Roma uma loja Armani e, além do tailleur, comprara uma gravata para Marco. Gostava de Armani pela simplicidade, por aquele toque informal de suas peças. - Você vai ser a mais bonita - garantiu Giuseppe. - Sem dúvida - corroborou Marco. Vou montar um fã clube com os dois - disse Sofia rindo. O padre Yves recebeu-os na porta. Não estava vestido de sacerdote, nem sequer usava colarinho eclesiástico, mas um terno de um azul quase negro e uma gravata Armani idêntica à que Sofia dera a Marco. - Doutora. .. senhor Valoni. .. Entrem, Sua Eminência terá muito prazer em vê-los. Marco espiou a gravata do padre Yves com o rabo do olho, e o sacerdote esboçou um sorriso. - Tem bom gosto para gravatas, senhor Valoni. - Na verdade, quem tem bom gosto é a doutora, que foi quem me presenteou com esta aqui. - Bem que eu achei! - disse o padre Yves, rindo. Aproximaram-se do cardeal, que os apresentou a monsenhor Aubry, um francês alto e magro, elegante e de rosto bondoso. Tinha cerca de 50 anos e parecia o que era: um diplomata. Mostrou-se imediatamente interessado pelo curso das investigações sobre o Sudário. Já levavam alguns minutos conversando com ele quando perceberam que todos os olhares convergiam para a entrada. Sua Eminência o cardeal Visier e Umberto d'Alaqua acabavam de chegar. O cardeal de Turim e monsenhor Aubry se desculparam com Sofia e Marco e foram cumprimentá-los. Sofia sentiu o coração disparar. Não imaginava que tornaria a ver D'Alaqua, e muito menos ali. Iria ignorá-la com sua fria cortesia? - Doutora, você ficou vermelha. - Jura? Bom, levei um susto. - Era bem provável que D'Alaqua viesse. - Nem pensei nisso. - É um dos beneméritos da Igreja, um homem de confiança. Parte das finanças do Vaticano passam discretamente por suas mãos. E lembre-se que, segundo o relatório de Minerva, é ele quem custeia as despesas do comitê científico. - Sei, você tem razão. Mas, mesmo assim, não pensei que o encontraríamos aqui. - Calma, você está lindíssima. Se D'Alaqua gosta de mulher, é impossível que não se renda a você. - Você sabe que não há mulheres na vida dele, ao menos de público. É estranho. - Bom, vai ver que estava esperando conhecer você. Pararam de falar porque o padre Yves se aproximou deles acompanhado do prefeito e de dois cavalheiros já idosos. - Quero Ihes apresentar a doutora Galloni e o doutor Valoni, diretor do Departamento de Arte. O prefeito, o doutor Bolard e o doutor Castiglia... Começaram uma animada conversa sobre o Sudário, de que Sofia participava a duras penas. Sobressaltou-se quando Umberto d'Alaqua se postou diante dela, acompanhando o cardeal Visier. Depois dos cumprimentos de praxe, D'Alaqua a tomou pelo braço e a afastou do grupo, para espanto geral. - Como vão suas investigações? - Não posso dizer que tenhamos avançado muito. É questão de tempo. - Não esperava vê-Ia aqui hoje. - O cardeal nos convidou; sabia que queríamos conhecer os membros do comitê científico, e espero que possamos nos reunir com eles antes de irem embora. - Quer dizer que vieram a Turim para participar desta recepção... - Não, não exatamente. - De qualquer modo, fico feliz em vê-Ia. Quanto tempo vai ficar? - Uns quatro ou cinco dias, talvez mais. - Sofia! A voz inflamada de um homem interrompeu o momento de intimidade com D'Alaqua. Sofia esboçou um sorriso ao ver que quem a chamava era um velho professor da universidade. Seu professor de arte medieval, um ilustre catedrático com numerosos livros publicados, uma estrela do universo acadêmico europeu. - Minha melhor aluna! Que alegria encontrá-la! O que anda fazendo? - Professor Bonomi! Que bom revê-lo. - Umberto, não sabia que conhecia Sofia. Mas não é de estranhar, em se tratando de uma das melhores especialistas em arte que temos na Itália. Pena que não quis se dedicar à carreira acadêmica. Convideia para ser minha assistente, mas meus pedidos foram inúteis. - Por Deus, professor! - Sim, sim, nunca tive um aluno tão inteligente e capaz como você, Sofia. - É verdade - interveio D' Alaqua -, sei que a doutora Galloni é muito competente. - Competente e brilhante, Umberto, e dona de uma mente especulativa. Desculpe minha indiscrição, mas o que está fazendo aqui, Sofia? Sofia sentiu-se embaraçada. Não tinha vontade de dar explicações a seu velho professor, embora soubesse que não tinha outra alternativa. - Trabalho para o Departamento de Arte e estou em Turim de passagem. - Ah! O Departamento de Arte. Não imaginava que você pudesse trabalhar como investigadora. - Meu trabalho é mais científico, não me dedico à investigação propriamente dita. - Venha, Sofia, vou lhe apresentar alguns colegas, gostará de conhecê-lo. D'Alaqua segurou seu braço impedindo que o professor Bonomi a levasse. - Desculpe, Guido, mas ia apresentar Sofia a Sua Eminência. - Sendo assim... Umberto, você virá amanhã ao concerto de Pavarotti e ao jantar que vou dar em homenagem ao cardeal Visier? - Sim, claro. - Por que não leva a Sofia? Eu gostaria muito que viesse, minha querida, se é que não tem nenhum compromisso. - Bem, eu... - Será um prazer acompanhar a doutora se de fato não tiver nenhum outro compromisso. Agora, se nos permite, o cardeal nos espera... Até já. D'Alaqua aproximou-se com Sofia do grupo onde se encontrava o cardeal Visier. Este a olhou com curiosidade, como se a avaliasse; mostrou-se amável mas frio como um bloco de gelo. Parecia ter uma relação muito estreita com D'Alaqua, os dois se tratavam com familiaridade, como unidos por um fio sutil. Falaram de arte por algum tempo, depois de política e por último do Sudário. Marco observava a naturalidade com que Sofia se integrara ao seleto grupo. Até o empertigado cardeal sorria ante seus comentários e demonstrava interesse por suas opiniões. Pensou que Sofia, além de inteligente, era muito bonita, e que ninguém pode ficar insensível à beleza, nem mesmo esse sofisticado cardeal. Passava das nove quando os convidados começaram a se despedir. D'Alaqua saiu acompanhado de Aubry e dos dois cardeais, além do doutor Bolard e mais dois cientistas. Antes de ir embora, procurou Sofia, que nesse momento estava com Marco e seu velho professor Guido Bonomi. - Boa-noite, doutora, Guido, senhor Valoni. . . - Onde você vai jantar, Umberto? - perguntou Guido Bonomi. Na casa de Sua Eminência o cardeal de Turim. - Bom, espero vê-lo amanhã acompanhado da doutora. Sofia sentiu que se ruborizava. - Claro. Entrarei em contato com a senhora, doutora Galloni. Até manhã. Sofia e Marco se despediram do cardeal e do padre Yves. - Gostaram da confraternização? - perguntou o cardeal. - Sim, muito obrigado, Eminência - respondeu Marco. - Combinaram algum encontro com nosso comitê científico? perguntou o padre Yves. - Sim, amanhã o doutor Bolard vai nos receber – respondeu Marco. - Yves, por que não convida o senhor Valoni e a doutora para jantar? - Com o maior prazer. Se me derem um segundo, vou reservar uma mesa em La Vecchia Lanterna. O que acham? - Não se incomode padre.. . - Não é nenhum incômodo, senhor Valoni, a não ser que não queira jantar comigo por causa da gravata... O padre Yves os deixou na porta do hotel depois da meia-noite. Fora uma noite agradável. Riram, falaram de tudo um pouco e jantaram esplendidamente, como era de se esperar, já que La Vecchia Lanterna era um dos restaurantes mais sofisticados e caros de Turim. - A vida social me cansa! - exclamou Marco a caminho do bar para comentar com Sofia alguns detalhes daquela noite. - Mas foi gostoso, não? - Você é uma princesa e estava em seu ambiente; eu sou um policial e estava trabalhando. - Marco, você é mais do que um policial. Gostaria de lembrar que é formado em história e que ensinou a todos nós mais sobre arte do que aprendemos na universidade. - Não exagere. Aliás, o velho Bonomi te adora. - Era um grande professor, além de ser uma prima-dona do mundo da arte; sempre foi muito gentil comigo. - Acho que era secretamente apaixonado por você.. - Você diz cada coisa! Saiba que eu era uma estudante aplicada que tirava "A" em quase todas as disciplinas. Enfim, era uma tremenda cdf - Mas, e aí? O que me conta de D'Alaqua? - Ah! Não sei o que dizer. O padre Yves se parece um pouco com ele: os dois são inteligentes, corretos, amáveis, bonitos. E inacessíveis. - Não me parece que D'Alaqua seja inacessível para você; além disso, ele não é padre. - Não, não é, mas tem alguma coisa nele que faz com que não pareça deste mundo, como se pairasse acima de todos nós... Sei lá, é uma sensação muito estranha, não sei explicar. - Mas dava para ver que ele estava encantado com você. - Não mais do que com os outros. Queria poder dizer o contrário, que esse homem está interessado em mim, mas não é verdade, Marco, não vou me enganar. Já sou grandinha e sei quando agrado a um homem. - O que ele disse? - O pouco tempo que ficamos sozinhos, perguntou sobre a investigação. Evitei dizer o que estávamos fazendo aqui, salvo que você queria conhecer o comitê científico do Sudário. - Que achou de Bolard? - É curioso, mas é o mesmo tipo de D'Alaqua e do padre Yves. Agora sabemos que eles se conhecem. Bom, na verdade, já era para desconfiar. - Sabe que eu também acho que são diferentes, não sei muito bem por quê, ou em quê, mas são. Eles têm uma coisa imponente, talvez sua aparência física, sua elegância, a segurança que demonstram. Estão acostumados a mandar e a serem obedecidos. Nosso falante doutor Bonomi me disse que Bolard só se interessa pela ciência e que por isso continua fiel a seu celibato. - Muito me admira a devoção que ele tem pelo Sudário, sabendo como sabe que o carbono 14 o datou na Idade Média. - Eu também acho estranho. Vamos ver no que dá o encontro que tenho com ele amanhã. Quero que você venha comigo. Ah!, me fale do jantar na casa do Bonomi. - Ele insistiu com D'Alaqua para me levar à ópera e depois à sua casa, ao jantar que vai dar em homenagem ao cardeal Visier. D'Alaqua não teve outro jeito senão dizer que me acompanharia. Mas não sei se devo ir. - Claro que deve ir, e ficar de orelha em pé. Você vai lá a trabalho; todos esses homens tão respeitáveis e poderosos têm esqueletos no armário e talvez algum deles saiba de alguma coisa que tenha a ver com os incidentes na catedral. - Marco, por favor! É absurdo pensar que esses homens têm alguma relação com os incêndios, com os mudos... - Não, não é absurdo. Quem fala agora é o policial. Não confio nos figurões; para chegar onde estão, tiveram de pisar em muita merda e em muitas cabeças. Lembre-se, além disso, que sempre que desmantelamos alguma organização de ladrões de obras de arte, descobrimos que o destinatário do roubo é algum excêntrico milionário que sonha em ter em sua galeria particular alguma coisa que está num museu porque é patrimônio da humanidade. "Você é uma princesa boa, de conto de fadas, mas eles são tubarões que estraçalham tudo o que encontram no caminho. Não se esqueça disso amanhã, quando for à ópera e ao jantar do Bonomi. Seus modos refinados, suas conversas cultas, o luxo de que se rodeiam é pura fachada, nada mais que fachada. Confio menos neles que nos punguistas do Trastevere, ouça o que eu digo." - Terei de comprar outro tailleur... - Quando voltarmos, vou propor que te dêem uma gratificação por todos os gastos que está tendo com esta investigação. Mas, princesa, tente não ir ao Armani, ou vai torrar todo o salário deste mês. - Vou tentar, mas não prometo. 27 A noiva recebia emocionada os cumprimentos de seus muitos parentes. O salão estava cheio de gente; era a cobertura perfeita, pensou Addaio. O casamento da sobrinha de Bakkalbasi lhe permitira reunir-se com a maioria dos membros da Comunidade em Berlim. Viajara com Bakkalbasi, um dos oito bispos secretos da Comunidade, oficialmente um próspero comerciante de Urfa. Dirigiu-se a um canto discreto do salão, acompanhado dos sete chefes da Comunidade na Alemanha e os sete da Itália, onde acenderam grandes charutos. Um dos sobrinhos de Bakkalbasi ficou por perto vigiando para que ninguém os importunasse. Com paciência, ouviu os informes dos homens, os detalhes da existência da Comunidade naquelas terras bárbaras. - No mês que vem, Mendibj será solto. O diretor da prisão falou várias vezes por telefone com o diretor do Departamento de Arte. Outro dia, uma assistente social se queixou ao diretor; disse que lhe parecia indigno fazer teatro para um detento; disse também que fazia tempo que ela sugerira mandar Mendibj a um centro especial, que estava convencida de que ele não os entendia e que fingir que recomendava sua soltura para ver se ele dava mostras de compreendê-Ios parecia-lhe uma ação reprovável. Deixou claro que nunca mais faria uma coisa daquelas. - Quem é seu contato na prisão? - perguntou Addaio ao homem que acabara de falar. - Minha cunhada. Ela é faxineira. Faz a limpeza dos escritórios administrativos e de algumas áreas da prisão, há muitos anos. Diz que estão acostumados com ela e que nem reparam na sua presença. Que, de manhã, quando o diretor chega e ela está limpando, ele sempre faz um gesto para que continue seu trabalho, mesmo que logo se pendure ao telefone ou se ponha a falar com algum funcionário. Confiam nela. Além disso, já é uma senhora de certa idade, e ninguém suspeita de uma mulher de cabelos brancos com um balde e um pano de chão. - Poderemos saber que dia exatamente ele será posto em liberdade? - Podemos, sim - respondeu o homem. - Como? - perguntou Addaio. - Porque as ordens de soltura são enviadas por fax ao diretor, que as recolhe de manhã. Minha cunhada chega antes dele e já sabe que tem de olhar os faxes para ver quando a ordem de liberdade condicional de Mendibj chegar e ligar para mim imediatamente. Comprei um celular para ela, só para fazer essa ligação. - Quem mais temos na prisão? - Dois irmãos condenados por assassinato. Um deles trabalhou como chofer de um figurão do governo regional de Turim, o outro tinha uma quitanda. Uma noite, em uma discoteca, discutiram com uns sujeitos que se meteram com suas namoradas. Eles foram mais rápidos, e um dos sujeitos morreu de uma facada. São boa gente, e leais. - Deus os perdoe! Pertencem à nossa Comunidade? - Não, não, mas um de seus parentes, sim. Falou com eles e perguntou se poderiam... bem, se poderiam... O homem se sentia embaraçado ante o olhar fixo de Addaio. - O que eles disseram? - Depende do dinheiro. Se entregarmos um milhão de euros a suas famílias, eles fazem. - Como serão avisados? - Um parente vai visitá-los e dizer se entregamos o dinheiro e quando devem... enfim... executar sua ordem. - Amanhã terá o dinheiro. Mas temos que nos preparar para o caso de Mendibj sair vivo da prisão. Um homem jovem, de bigode espesso e gestos elegantes, tomou a palavra. - Pastor, se isso acontecer, ele tentará entrar em contato conosco pelos canais costumeiros. - Como assim? - Irá ao parque Carrara às nove da manhã e passeará pelo lado do parque que dá para o corso Appio Claudio. Todos os dias a essa hora meu primo Arslan passa por ali para levar as filhas ao colégio. Faz anos que, sempre que estão em apuros, os membros da Comunidade vão a esse lugar, quando têm certeza de que não estão sendo seguidos, e ao passar perto de Arslan jogam um papel no chão marcando um encontro para algumas horas mais tarde. Todas as equipes que você envia chegam a Turim e recebem a mesma instrução. Arslan entra em contato comigo, me diz onde é o encontro e montamos um dispositivo para saber se alguém está seguindo nossos homens; se está, não nos aproximamos dele, mas procuramos segui-lo e entrar em contato. Se o contato não é possível, o irmão sabe que está acontecendo alguma coisa e tenta outro encontro. Então tem de ir a uma quitanda na via della Academia Alabertina e comprar maçãs; na hora de pagar, entrega um papel com o lugar do encontro seguinte. O quitandeiro é membro de nossa Comunidade e entrará em contato conosco. "O terceiro encontro..." - Espero que não seja preciso um terceiro. Se ele sair vivo da prisão, não deve sobreviver ao primeiro encontro. Está claro? Corremos um grande perigo. Mendibj será seguido pelos carabinieri, gente especializada. É preciso procurar uma equipe capaz de fazer o que tem de ser feito e desaparecer sem ser pega. Não será fácil, mas não podemos dar a ele a chance de entrar em contato com nenhum de nós, entendido? Os homens assentiram preocupados. Um deles, o mais velho, tomou a palavra. - Sou tio do pai de Mendibj. - Sinto muito. - Sei que faz isso para nos salvar, mas não existe alguma possibilidade de tirá-lo de Turim? - Como? Vão montar um grande dispositivo para segui-lo onde quer que ele vá, fotografarão e filmarão todos os que se aproximarem dele, para depois investigá-los. Podemos cair como um castelo de cartas. Sinto a mesma dor que você, mas não posso permitir que cheguem até nós. Resistimos dois mil anos, muitos de nossos antepassados deram suas vidas, suas línguas, suas riquezas, suas famílias. Não podemos traí-los, nem nos trair. Sinto muito. - Entendo. Permitirá que seja eu quem o faça, se sair vivo da prisão? - Você? É um honorável ancião de nossa Comunidade, como poderia fazê-lo sendo seu tio? - Estou sozinho. Minha mulher e minhas duas filhas morreram há três anos em um acidente de carro. Não tenho ninguém aqui. Pensava em voltar a Urfa para passar meus últimos dias com o que me restou de família. Vou fazer 80 anos, já vivi tudo o que Deus quis que vivesse, e Ele me perdoará se tirar a vida de Mendibj e depois a minha. É o mais sensato. - Você tiraria sua própria vida? - Sim, pastor, eu farei isso. Quando Mendibj for ao parque Carrara, eu o estarei esperando. Me aproximarei dele, não suspeitará, sou um parente, o abraçarei, e nesse abraço meu punhal lhe tirará a vida. Depois cravarei a mesma faca em meu coração. Todos ficaram em silêncio, impressionados. - Não sei se é uma boa idéia - respondeu Addaio. - Farão a autópsia, descobrirão quem você é. - Não, não poderão fazê-lo. Arrancarei todos os meus dentes e queimarei as impressões digitais. Serei um homem sem identidade para a polícia. - Será capaz de fazer isso? - Estou cansado de viver. Deixe-me prestar meu último serviço, o mais doloroso, para que a Comunidade sobreviva. Deus me perdoará? - Deus sabe por que fazemos isto. - Então, se Mendibj sair da prisão, mande me chamar e prepare-me para morrer. - Nós o faremos. Mas, se nos trair, o resto de sua família em Urfa sofrerá. - Não ofenda minha dignidade nem meu nome com ameaças. Não se esqueça de quem sou, de quem eram meus antepassados. Addaio baixou a cabeça em sinal de assentimento, depois perguntou por Turgut. Respondeu um outro homem, baixo, forte, com aspecto de estivador, embora sua profissão fosse a de zelador do Museu Egípcio. - Francesco Turgut está assustado. Os agentes do Departamento de Arte o interrogaram várias vezes, e ele acha que um tal de padre Yves, o secretário do cardeal, suspeita dele. - O que sabemos desse padre? - É francês, tem influências no Vaticano e em breve será ordenado bispo auxiliar de Turim. - Pode ser um deles? - Pode, sim. Tem todas as características. Não é um padre normal. Pertence a uma família aristocrática, fala vários idiomas, tem uma excelente formação acadêmica, é esportista... e celibatário, totalmente celibatário. Como você sabe, Eles nunca quebram essa regra. É protegido do cardeal Visier e de monsenhor Aubry. - Então temos certeza de que são Eles. - Sim, não há dúvida. Foram muito espertos infiltrando-se no Vaticano e ocupando os postos mais altos da Cúria. Não estranharia se qualquer dia desses um deles fosse eleito Papa. Isso sim que seria uma ironia do destino. - Turgut tem um sobrinho em Urfa, Ismet, um bom rapaz. Direi a ele que vá morar com seu tio. - O cardeal é bondoso; suponho que deixará Francesco acolher o sobrinho. - Ismet é esperto, seu pai me pediu que tome conta dele. Vou lhe dar a missão de viver com Turgut e ir se preparando para ocupar seu lugar quando chegar a hora. Para isso é preciso que se case com alguma italiana, assim poderá ficar como zelador, substituindo o tio. Além disso, vai vigiar esse padre Yves e descobrir se é um deles. - É, sim, não tenho a menor dúvida de que é. - Ismet nos confirmará isso. Nosso túnel continua sendo inexpugnável? - Continua. Há dois dias, o diretor do Departamento de Arte visitou as galerias subterrâneas acompanhado de uns soldados. Quando saiu, a cara de frustração falava por si só. Não descobriram o túnel. Os homens continuaram falando e bebendo raki (3) até bem entrada a noite, quando os noivos se despediram de seus familiares. Addaio, abstêmio, não provou a bebida. Acompanhado de Bakkalbasi e de outros três homens, deixou o local e se dirigiu a uma casa segura que pertencia a um dos membros da Comunidade. (3) Versão turca do áraque. (N. da T.) Planejava viajar a Turim no dia seguinte. Isso é o que lhes dissera, mas talvez voltasse a Urfa. Todos sabiam o que tinham de fazer, suas instruções eram precisas. Mendibj devia morrer para salvar a Comunidade. Passou o resto da noite rezando, procurando Deus nas repetidas orações, mas sabia que Deus não o ouvia, nunca o sentira perto, não recebera nenhum sinal, e ele, pobre homem, dando sua vida e a de tantos outros em Seu Nome. E se Deus não existisse? E se fosse tudo mentira? Às vezes se deixara tentar pelo demônio e chegara a pensar que sua Comunidade vivia de um mito, de uma lenda, que nenhuma das histórias que ouviram em criança era real. Mas não tinha volta. Sua vida fora predeterminada, e seu único objetivo era arrebatar dos outros a mortalha de Jesus. Sabia que Eles sempre o impediriam, que há séculos o faziam, desde que roubaram o linho sagrado. Mas um dia haveriam de recuperá-lo, e seria ele, Addaio, quem o conseguira. 28 Sofia não conseguiu disfarçar sua surpresa quando entrou no camarote de D'Alaqua. Ele mandara um carro apanhá-la no hotel para levá-la à ópera e, na porta, o ajudante do gerente do teatro a esperava para acompanhá-la até seu camarote. Lá estavam o cardeal Visier, o doutor Bolard e outros três homens que reconheceu imediatamente: um membro da família Agnelli com a esposa, dois banqueiros, e o prefeito Torriani acompanhado por sua mulher. D'Alaqua levantou-se e a recebeu com afeto e um aperto de mão. O cardeal Visier cumprimentou-a com um leve sorriso. D'Alaqua acomodou Sofia entre o prefeito e sua esposa e o doutor Bolard. Ele estava sentado ao lado do cardeal. Sentiu que todos os homens, com exceção do cardeal, de Bolard e D'Alaqua, a espiavam com o canto dos olhos, e ela sabia que estava especialmente atraente naquela noite, pois se arrumara com capricho. À tarde fora ao cabeleireiro e voltara à loja da Armani, desta vez para comprar um elegante conjunto de casaquinho e calça vermelha, uma cor pouco usada pelo estilista. Estava chamativa, espetacular, garantiram-lhe Marco e Giuseppe. O casaquinho tinha um decote ousado, e o prefeito não conseguia desviar os olhos do lugar insinuado. Marco ficou surpreso ao ver que D'Alaqua não fora apanhá-la pessoalmente e mandara um carro. Sofia entendeu o que D'Alaqua queria dizer com esse gesto: que não tinha nenhum interesse pessoal nela, que seria uma convidada a mais. Esse homem colocava pesadas barreiras entre ambos, e embora o fizesse com sutileza, não deixava margem para dúvida. No entreato foram ao salão privado de D'Alaqua, e ali lhes serviram champanhe e uns canapés que Sofia não provou para não borrar o batom. - Gosta de ópera, doutora? - perguntou-lhe o cardeal Visier, sondando-a. - Sim, Eminência. Pavarotti esteve esplêndido esta noite. - De fato, embora La Bohème não seja sua melhor ópera. Guido Bonomi entrou no salão e cumprimentou efusivamente os convidados de D'Alaqua. - Sofia, você está linda! Sua beleza sempre me surpreende, mesmo que a tenha visto no dia anterior. Isso já me acontecia quando você era minha aluna na universidade, e continua a acontecer. Tenho uma lista de amigos impacientes por conhecê-la, e uma porção de mulheres ciumentas porque os binóculos de seus maridos estiveram dirigidos mais tempo para você do que para o Pavarotti. Você é uma dessas mulheres que deixa as outras nervosas. Sofia corou. Os elogios de Bonomi lhe pareceram fora de lugar. Tratava-a com frivolidade, e isso a incomodava. Olhou-o furiosa, séria, e Bonomi entendeu a mensagem de seus olhos verdes. - Bem, espero-os para o jantar. Eminência, doutora, prefeito... D'Alaqua observou o embaraço de Sofia e se aproximou dela. - Guido é assim, sempre foi. Ótima pessoa, eminente medievalista, mas com uma personalidade, digamos, um tanto exuberante. Não se aborreça. - Não estou aborrecida com ele, mas comigo. Pergunto-me o que estou fazendo aqui, este não é meu lugar. Se não se importa, quando a função acabar, vou voltar para o hotel. - Não, não vá. Fique, e desculpe seu velho professor que não conseguiu manifestar de outro modo sua admiração. - Sinto muito, mas prefiro ir. Na verdade, não tem sentido ir a um jantar na casa de Bonomi. Fui aluna dele, só isso. Também não deveria ter me deixado arrastar pelo convite dele para vir à ópera, ocupar um lugar em seu camarote, entre seus convidados, seus amigos, enfim impor minha presença. Estou deslocada, lamento o incômodo que possa ter causado. - Você não me causou incômodo nenhum, garanto. A campainha anunciava o início do segundo ato, e os dois entraram no camarote. Sofia notou que D'Alaqua a observava discretamente. Tinha vontade de sair correndo, mas não faria isso, não queria expor-se ao ridículo nem se comportar como criança. Agüentaria até o final, se despediria de todos e nunca mais cruzaria o caminho de D'Alaqua. Esse homem não tinha nada a ver com o Sudário, e por mais que Marco desconfiasse dessa gente poderosa, não achava que estivessem por trás dos incêndios ou da tentativa de roubo da catedral. Era ridículo, e diria isso a seu chefe. Quando terminou a função, o teatro inteiro aplaudiu Pavarotti de pé. Sofia aproveitou para se despedir do prefeito, de sua mulher, do casal Agnelli e dos banqueiros. Por último, aproximou-se do cardeal Visier. - Boa-noite, Eminência. - Já vai? - Sim. Visier, surpreso, procurou D'Alaqua com os olhos. Este conversava animadamente com Bolard sobre o registro de voz da soprano e a perfeição das árias interpretadas por Pavarotti. - Doutora, eu gostaria que fosse conosco ao jantar - disse o cardeal a Sofia. - Eminência, o senhor, melhor do que ninguém, pode compreender meu mal-estar. Prefiro ir embora. Não quero causar nenhum incômodo. - Bem, se está decidida... espero voltar a vê-Ia. Sua análise sobre os métodos arqueológicos modernos me pareceu muito inovadora. Eu estudei arqueologia antes de me dedicar inteiramente à Igreja. D'Alaqua interrompeu-os. - Os carros nos esperam... - A doutora não irá conosco - disse Visier. - Sinto muito, gostaria que viesse. Mas, se prefere ir embora, levarão a senhora até o hotel no mesmo carro que a trouxe. - Obrigada, mas prefiro ir a pé. O hotel não fica muito longe daqui. - Desculpe-me, doutora - interrompeu o cardeal -, mas me parece uma temeridade a senhora ir sozinha. Turim é uma cidade complicada, ficaria mais tranqüilo se aceitasse que a levem. Sofia decidiu aceitar para não parecer teimosa nem irascível se continuasse insistindo em ir sozinha. - Está bem, agradeço. - Não me agradeça. A senhora é uma pessoa séria, com muitas qualidades, não permita que a ofendam. Embora imagine que sua beleza deve ter sido mais um inconveniente do que uma vantagem, justamente porque nunca a usou em seu proveito. As palavras do cardeal reconfortaram Sofia. D'Alaqua acompanhoua até o carro. - Doutora, fiquei contente que tenha vindo. - Obrigada. - Ficará mais algum tempo em Turim? - Sim, é possível que nos próximos quinze dias esteja por aqui. - Eu lhe telefono. Se tiver tempo, gostaria que almoçasse comigo. Sofia não soube o que responder e esboçou um leve "sim" enquanto D'Alaqua fechava a porta do carro e dava instruções ao chofer para que a levasse ao hotel. O que Sofia não sabia é que Guido Bonomi ia ser duramente repreendido pelo cardeal Visier. - Professor Bonomi, o senhor faltou com o respeito à doutora Galloni e a todos os que estávamos com ela. Sua contribuição à Igreja é inegável, e todos lhe somos muito gratos por tudo que faz na qualidade de principal especialista em arte sacra medieval, mas isso não lhe dá o direito de se comportar com tamanha grosseria. D'Alaqua assistiu atônito à chamada do cardeal. - Paul, não pensei que a doutora tivesse te impressionado tanto assim. - Achei a atitude de Bonomi revoltante. Ele se comportou como um velho tarado e ofendeu a doutora sem motivo. Às vezes me pergunto como o talento artístico de Bonomi não o acompanha em outros aspectos da vida. Galloni me parece uma pessoa íntegra, inteligente, culta, uma mulher pela qual eu teria me apaixonado, se não fosse cardeal, se não fosse. .. se não fosse o que somos. - Estou surpreso com tua sinceridade. - Vamos, Umberto, você sabe tão bem como eu que o celibato é uma opção difícil, tão difícil quanto necessária. Eu a cumpri, sabe Deus como cumpri a norma, mas isso não significa que, ao ver uma mulher inteligente e bonita, não saiba apreciar suas qualidades. Seria um hipócrita se dissesse o contrário. Temos olhos, enxergamos e, da mesma forma que admiramos uma estátua de Bernini, nos comovemos com os mármores de Fídias ou nos estremece a dureza da pedra de uma tumba etrusca, sabemos reconhecer o valor das pessoas. Não ofendamos a nossa inteligência fingindo que não vemos a beleza e o valor da doutora Galloni. Suponho que fará algo para desagravá-la. - Sim, vou ligar para ela convidando-a para almoçar. É o máximo que posso fazer. - Eu sei. É o máximo que podemos fazer. - Sofia... Ana Jiménez estava entrando no hotel quando Sofia desceu do carro. - Nossa! Como a senhora está linda. Está vindo de uma festa? - Venho de um pesadelo, e a senhora, como vai? - Mais ou menos, isto é mais difícil do que eu pensava, mas não me rendo. - Faz bem. - Já jantou? - Não, mas vou ligar para o quarto do Marco; se não jantou, direi que desça ao restaurante do hotel. - Se incomoda se eu jantar com vocês? - Eu não, meu chefe não sei, espere um minuto, e já lhe digo. Sofia voltou da recepção trazendo um bilhete. - Ele e o Giuseppe foram jantar na casa do comandante dos carabinieri de Turim. - Então vamos jantar sozinhas, eu a convido. - Não, eu convido. Pediram o jantar com uma garrafa de Barolo, e as duas se examinaram com o rabo do olho. - Sofia, há um episódio confuso na história do Sudário. - Um só? Eu diria que todos. Sua aparição em Edessa, seu desaparecimento em Constantinopla... - Li que em Edessa havia uma comunidade cristã muito arraigada e influente, tanto que o emir de Edessa teve de enfrentar as tropas de Bizâncio, porque não queriam entregar o Sudário. - É, foi isso. Em 944 os bizantinos se apossaram do Mandylion lutando contra os muçulmanos, então senhores de Edessa. O imperador de Bizâncio, Romano Lecapeno, queria o Mandylion, como era chamado pelos gregos, porque acreditava que graças a ele contaria com o amparo de Deus, que o tornaria invencível e o protegeria. Enviou um exército sob o comando de seu melhor general e propôs um pacto ao emir de Edessa: se entregasse o Sudário, o exército se retiraria sem causar danos, pagaria muito bem pelo Mandylion e, além disso, libertaria duzentos cativos muçulmanos. Mas a comunidade cristã de Edessa se negou a entregar o Mandylion ao emir, e este, embora muçulmano, temendo que aquele linho fosse mágico, decidiu lutar. Os bizantinos venceram, e o Mandylion foi levado a Bizâncio em 16 de agosto de 944. A liturgia bizantina comemora esse dia. Nos arquivos vaticanos encontra-se o texto da homilia do arquidiácono Gregório ao receber o pano. "O imperador mandou guardá-lo na igreja da Santa Maria de Blanquernas, onde todas as sextas-feiras era venerado pelos fiéis. Depois que desapareceu dali, só foi reaparecer na França no século XIV." - Os templários o levaram? Alguns autores sustentam que eles é que ficaram com o Sudário. - É difícil saber. Tudo é atribuído aos templários, como se fossem super-homens capazes de qualquer coisa. Pode ser que tenham ficado com o Mandylion, ou não. Os cruzados deixaram um rastro de morte e confusão por onde passaram. Pode ser que Balduíno de Courtenay, que foi imperador de Constantinopla, tenha penhorado o Santo Linho, e a partir daí se perdeu. - Ele pode ter penhorado o Sudário? - É uma das muitas teorias. Não tinha dinheiro para sustentar seu império, mendigou ante os reis e senhores da Europa e chegou a vender muitas relíquias trazidas da Terra Santa pelos cruzados. Entre outros, para seu tio, o rei São Luis da França. Pode ser que os templários, os banqueiros da época, que também se dedicavam a recuperar as relíquias sagradas, tenham pago a Balduíno pelo Santo Sudário. Mas não há nenhum documento que o prove. - Pois eu acho que os templários o levaram. - Por quê? - Não sei, mas você mesma levantou essa possibilidade. Eles o levaram para a França que é onde reapareceu. As duas mulheres continuaram falando um bom tempo, Ana fantasiando sobre os templários, Sofia desfiando informações. Marco e Giuseppe as encontraram a caminho do elevador. - Mas o que você está fazendo aqui? - perguntou Giuseppe. - Jantei com a Ana, e nos divertimos muito. Marco não fez nenhum comentário, cumprimentou Ana com amabilidade e pediu a Sofia e a Giuseppe que o acompanhassem a tomar um último drinque no bar do hotel. - O que houve? - Bonomi cometeu uma gafe. Para me dizer que estava bonita, quase me insultou. Eu me senti péssima e, quando a ópera acabou, vim embora. Olha, Marco, não quero mais freqüentar esses lugares. Eu estava totalmente sobrando lá, e me senti muito humilhada. - E D'Alaqua? - Comportou-se como um cavalheiro, e surpreendentemente o cardeal Visier também. Vamos deixá-los em paz. - Vamos ver. Não penso abandonar nenhuma linha de investigação por mais absurda que pareça. Desta vez não vou fazer isso. Sofia sabia que não o faria. Sentada na beira da cama, o resto estava tomado por papéis, anotações e livros, Ana Jiménez pensava sobre a conversa com Sofia. Como seria Romano Lecapeno, o imperador que roubou o Santo Sudário dos edessianos? Ela o imaginava cruel, supersticioso, louco pelo poder. Realmente a história do Sudário não era um mar de rosas: guerras, incêndios, roubos... e tudo por sua posse, por esse sentimento, tão arraigado no coração dos homens, de acreditar que certos objetos são mágicos. Ela não era católica, pelo menos não de verdade. Fora batizada como quase todo o mundo na Espanha, mas não se lembrava de ter assistido a uma missa depois da primeira comunhão. Empurrou os papéis, estava com sono, e como sempre fazia antes de dormir pegou um livro de Kavafis e procurou distraidamente um de seus poemas favoritos: Amadas vozes ideais Dos que morreram, ou dos que se perderam como se tivessem morrido. Por vezes em sonhos nos falam; Por vezes a imaginação as escuta. E com seu eco outros retornam Da primeira poesia de nossa vida Como uma música noturna perdida na distância. Dormiu pensando na batalha que o exército bizantino travou contra o emir de Edessa. Ouvia as vozes dos soldados, o crepitar da madeira queimada, o choro das crianças que, de mãos dadas com as mães, procuravam apavoradas um esconderijo para salvar a vida. Viu um velho venerável, rodeado de outros velhos e de homens circunspetos, de joelhos, implorando por um milagre que não aconteceu. Depois o ancião se aproximava de uma urna, tirava um tecido cuidadosamente dobrado e o entregava a um soldado muçulmano muito forte, que a muito custo continha a emoção ao despojar aqueles homens de sua preciosa relíquia. Lutaram ferozmente pelo Mandylion dos cristãos, porque Jesus era um grande profeta, que Alá o tivesse em sua glória. O general das hostes bizantinas recebeu o Mandylion das mãos de um nobre de Edessa e, vitorioso, partiu veloz para Constantinopla. A fumaça escurecia os muros das casas, e os soldados bizantinos, entregues à rapina, carregavam o butim em carros puxados por mulas. O velho bispo de Edessa sentia-se abandonado por Deus. Mais tarde, na igreja de pedra que se manteve em pé, ao lado da cruz, rodeado pelos sacerdotes e pelos cristãos mais fiéis, juraram que recuperariam o Mandylion, mesmo que para isso tivessem que dar a própria vida. Eles, descendentes de Tício o escriba, do colosso Obodas, de Izaz, o sobrinho de Josar, de João, o alexandrino, e de tantos cristãos que sacrificaram a vida pelo Mandylion, eles o recuperariam e, se não fosse assim, seus descendentes não descansariam até cumprir a missão. Juraram perante Deus, perante a imponente cruz de madeira que presidia o altar, perante o retrato da mãe de Jesus, perante as Sagradas Escrituras. Ana acordou gritando. Sentia-se tomada pela angústia, tão vívido fora o pesadelo. Foi buscar água na geladeira e abriu a janela do quarto para deixar entrar o ar fresco da madrugada. O poema de Kavafis parecia ter-se tornado realidade, e as vozes dos mortos tinham assaltado seu sonho. Sentiu que o que vira e ouvira em sonhos acontecera na realidade. Tinha certeza de que fora assim. Depois de um banho sentiu-se melhor. Não tinha fome, por isso ficou um tempo no quarto procurando, nos livros que comprara, informações sobre Balduíno de Courtenay, o rei mendigo. Não tinha muita coisa, então entrou na Internet, embora não confiasse muito na informação da rede. Depois procurou informações sobre os templários e, para sua surpresa, encontrou uma página supostamente da própria ordem. Mas, como os templários não existiam, resolveu telefonar para o chefe de informática de seu jornal. Disse-lhe o que queria. Meia hora depois, o técnico ligou de volta. O endereço dessa página dos templários estava em Londres, perfeitamente registrado, perfeitamente legal. 29 Addaio entrou em casa tentando não fazer barulho. Estava cansado da viagem. Preferiu ir diretamente a Urfa, sem pernoitar em Istambul. Guner teria uma surpresa quando o encontrasse de manhã. Não avisou que ia chegar, nem a ele nem ao resto da Comunidade. Bakkalbasi ficara em Berlim, de onde viajaria a Zurique a fim de reunir o dinheiro necessário para pagar os dois homens da prisão dispostos a matar Mendibj. Lamentava que Mendibj tivesse de morrer. Era um bom rapaz, amável, preparado, mas o seguiriam e encontrariam a Comunidade. TInham conseguido sobreviver aos persas, aos cruzados, aos bizantinos, aos turcos. Fazia séculos que viviam na clandestinidade, cumprindo a sagrada missão. Deus deveria favorecê-los por serem os verdadeiros cristãos, mas não o fazia, submetendo-os a provas terríveis. E agora Mendibj tinha de morrer. Subiu as escadas devagar e entrou em seu quarto. A cama estava feita. Guner sempre a fazia, até quando, como agora, estava viajando. Seu amigo sempre o servira fielmente, procurando facilitar sua vida, intuindo seus desejos antes que ele os manifestasse. Era a única pessoa que falava com ele com franqueza, que ousava criticá-lo, e às vezes Addaio até notava certo tom de desafio em suas palavras. Mas não, Guner não o trairia, tinha sido uma grande besteira acreditar nisso. Se não confiasse nele, não poderia suportar o peso que carregava desde que era um homem recém-feito. Escutou baterem de leve na porta e se apressou a abrir. - Eu te acordei, Guner? - Faz dias que não consigo dormir. Mendibj vai morrer? - Você levantou para me perguntar por Mendibj? - Existe alguma coisa mais importante que a vida de um homem, pastor? - Você resolveu me atormentar? - Não, por Deus. Só apelo a sua consciência para que pare de uma vez com esta loucura. - Saia, Guner, preciso descansar. Guner deu meia-volta e saiu do quarto, enquanto Addaio cerrava os punhos e reprimia a ira que o tomava. 30 - Não dormiu bem? - perguntou Giuseppe a Ana, que mordiscava um croissant distraidamente. - Ah, é você! Bom-dia. É, realmente não dormi bem. E a doutora Galloni? - Já está descendo. Você viu meu chefe? - Não, não vi. Acabei de chegar. As mesas do café do hotel estavam todas ocupadas, por isso Giuseppe não pensou duas vezes e se sentou à mesa que Ana ocupava. - Se incomoda se eu pedir um café aqui? - Claro que não. Como vão as investigações? - É um trabalho lento. E você como vai? - Mergulhando na história. Li alguns livros, procurei documentação na Internet, mas vou ser sincera, aprendi mais ontem à noite ouvindo a Sofia que em tudo o que li nestes dias. - É, a Sofia explica tudo de um jeito que faz a gente enxergar as coisas. Comigo também aconteceu isso. Mas me diga, você tem alguma teoria? - Nada de consistente. E hoje minha cabeça está pesada; tive pesadelos. - É porque você não tem a consciência tranqüila. - Como é? - Era o que minha mãe me dizia quando eu era pequeno e acordava gritando. Perguntava: "Giuseppe, que é que você andou aprontando?" Minha mãe dizia que os pesadelos eram um aviso da consciência. - Pois não me lembro de nada em particular que tenha feito ontem para que minha consciência me castigue. Você é só policial ou também é historiador? - Só policial, e já basta. Mas tenho sorte de trabalhar no Departamento de Arte, aprendi muito nestes anos todos ao lado de Marco. - Vejo que todos vocês adoram seu chefe. - É verdade, seu irmão já deve ter falado dele. - Santiago gosta muito dele. Levou-me uma noite para jantar na casa de Marco e eu o vi mais umas duas ou três vezes. Sofia entrou no café e logo os viu. - O que você tem, Ana? - Estou começando a ficar preocupada. É tão evidente assim que dormi mal esta noite? - Parece saída de uma batalha. - Na verdade, estive no meio de uma batalha. Vi crianças dilaceradas, as mães violentadas, até senti o cheiro da fumaça negra dos incêndios. Foi horrível. - Dá para ver. - Sofia, sei que posso parecer chata, mas se hoje tiver um tempinho e não se incomodar, eu gostaria de voltar a falar com você. - Bom, não sei que hora, mas em princípio podemos nos encontrar, sim. Marco se aproximou da mesa lendo um bilhete. - Bom-dia a todos. Sofia, isso é um recado do padre Charny. Bolard nos espera daqui a dez minutos na catedral. - Quem é o padre Charny? - perguntou Ana. - O padre Yves de Charny - respondeu Sofia. - Não seja curiosa, Ana - replicou Marco. - Tenho de ser. - Bom, se já tomaram o café da manhã, cada qual ao seu trabalho. Giuseppe, você... - Pode deixar, já estou indo para lá; depois te ligo. - Vamos Sofia, se formos rápido, chegaremos a tempo para o encontro com Bolard. Tenha um bom dia, Ana. - Vou tentar. No caminho para a catedral, Marco perguntou a Sofia sobre Ana Jiménez. - O que ela sabe? - Não sei, pergunta muito, mas não diz nada. Parece meio perdida, mas desconfio que tem mais recursos do que parece, e é inteligente. Ela pergunta, pergunta, mas não solta a língua. Dá a impressão de que não sabe nada, mas eu não teria tanta certeza. - É muito jovem. - Mas esperta. - Melhor para ela. Falei com a Europol, vão nos dar uma mão. Já vão começar a fechar as fronteiras, o aeroporto, a alfândega, as estações de trens... Quando terminarmos com Bolard, vamos à central dos carabinieri; quero que veja o dispositivo que Giuseppe montou, não contaremos com muitos homens, mas espero que bastem. Não deve ser muito difícil seguir um mudo. - Como acha que de vai se comunicar quando sair? - Não sei. Mas, se faz parte de alguma organização, deve ter um endereço de contato, tem de ir a algum lugar. Cavalo de Tróia nos guiará, não se preocupe. Você vai ficar coordenando a operação na central dos carabinieri. - Eu? Não, não quero, prefiro ir com vocês. - Não sei o que vamos encontrar, e você não é policial, não te imagino correndo por Turim atrás do mudo. - Você não me conhece, posso muito bem participar da perseguição. - Alguém tem de ficar na central, e você é a pessoa mais indicada. Nós a manteremos informada pelos rádio-transmissores. John Barry convenceu seus colegas da CIA a nos dar uma mão extraoficialmente, emprestando umas câmeras minúsculas para captar a imagem do mudo onde quer que vá. Você vai receber o sinal na central, será como se estivesse na rua. Giuseppe pediu ao diretor da prisão para darmos uma olhada nos sapatos do mudo. - Vai pôr um microfone neles? - Exato. É o que queremos. O problema é que ele não tem sapatos, e sim tênis, o que dificulta um pouco as coisas, mas os rapazes da CIA vão nos dar uma mão. Nos Estados Unidos estão mais acostumados aos tênis que na Europa. Aqui usamos mais sapatos. - Claro, não tinha pensado nisso... Já temos permissão judicial para a operação? - Espero resolver isso até amanhã, no mais tardar. Chegaram à catedral. O padre Yves os esperava para levá-los ao recinto onde Bolard e o comitê científico examinavam o Sudário. Deixou-os com eles. Desculpou-se dizendo que tinha muito trabalho. 31 - Senhor, acaba de chegar um mensageiro de vosso tio. Balduíno pulou da cama e, esfregando os olhos, ordenou a seu gentil-homem que mandasse entrar o mensageiro. - Deveis vestir-vos, meu senhor, sois o imperador e o mensageiro é um nobre da corte do rei da França. - Pascal, se não me lembrasses disso, eu mesmo me esqueceria de que sou o imperador. Ajuda-me, então. Tenho algum manto de arminho que não tenha empenhado ou vendido? Pascal de Molesmes, um nobre francês vassalo do rei da França e por ele posto ao lado de seu desgraçado sobrinho, não respondeu à pergunta do imperador. A bem da verdade, Balduíno carecia de meios. Não fazia muito mandara tirar os metais dos telhados de seu palácio para empenhálos junto aos venezianos, que estavam fazendo grandes negócios à custa de suas dificuldades econômicas. Quando o imperador se sentou na sala do trono, seus nobres cochichavam nervosos à espera das notícias do rei da França. Robert de Dijon ajoelhou-se e baixou a cabeça diante do imperador. Este fez um gesto para que ele se levantasse. - E então, que notícias trazes de meu tio? - Sua majestade o rei combate com ferocidade na Terra Santa, para libertar o Sepulcro de Nosso Senhor. Trago-vos a boa nova da conquista de Damietta. O rei avança e conquistará as terras do Nilo a caminho de Jerusalém. Agora não pode ajudar-vos como desejaria, pois o custo da expedição supera em muito a arrecadação anual da Coroa. Recomenda-vos paciência e fé no Senhor. Logo vos chamará para junto dele como sobrinho leal e amantíssimo que sois, e então vos ajudará a resolver as tribulações que agora vos afligem. Balduíno crispou o semblante e esteve a ponto de deixar cair as lágrimas, mas o olhar duro de Pascal de Molesmes lembrou-o quem era. - Também vos trouxe uma carta de sua majestade. O cavaleiro tirou um documento lacrado e o entregou ao imperador. Este o apanhou e, sem sequer o olhar, passou-o a Pascal de Molesmes. Estendeu a mão a Robert de Dijon, e o nobre depositou um simbólico beijo no anel do imperador. - Dar-me-eis resposta à carta do rei? - Retornais à Terra Santa? - Antes devo viajar à corte de dona Branca de Castela para levar uma missiva de seu filho, meu bom rei dom Luis. Um dos cavaleiros que me acompanha anseia voltar a combater com o rei, ele levará a mensagem que vossa majestade queira transmitir a vosso tio. Balduíno assentiu com a cabeça e se levantou. Saiu da sala do trono sem olhar para atrás, aflito pela notícia de que seu tio, o rei da França, não podia ajudá-lo. - Que farei agora, Pascal? - O que tendes feito outras vezes, meu senhor. - Viajar de novo às cortes de meus parentes, que são incapazes de compreender a importância de a cristandade conservar Constantinopla? Não é a mim que estão ajudando, Constantinopla é o último baluarte contra os muçulmanos, é terra cristã, mas os venezianos são gananciosos e pactuam com os turcos às minhas costas, os genoveses só se importam com os lucros do comércio, e meus primos de Flandres se queixam de não dispor de meios suficientes para me ajudar. Mentira! Devo voltar a prostrar-me ante os príncipes suplicando-lhes que me ajudem a manter o império? Achas que Deus me perdoará ter empenhado a coroa de espinhos de seu Filho Crucificado? "Não tenho com que pagar os soldados, nem os servidores do palácio, nem meus nobres. Não tenho nada. Fui rei aos 21 anos. Sonhava, então, devolver ao reino todo seu esplendor, recuperar as terras perdidas, e o que fiz? Nada. Desde que os cruzados dividiram o império e saquearam Constantinopla, mantive o reino a duras penas, e nem mesmo o bom papa Inocêncio é sensível a meus apelos." - Acalmai-vos, senhor. Vosso tio não vos abandonará. - Mas não ouviste a mensagem? - Sim, diz que vos mandará chamar, quando vencer o sarraceno. Sentado em uma suntuosa poltrona da qual, já fazia tempo, mandara retirar as lâminas de ouro que a recobriam, o imperador arrancava a barba e agitava o pé esquerdo em um movimento involuntário que transparecia inquietação. - Senhor, deveis ler a carta do rei da França. Pascal de Molesmes entregou o documento lacrado de que Balduíno já nem se lembrava, tão angustiado estava com sua precariedade. - Ah! Sim, meu tio me escreveu. Imagino que para recomendar que eu seja um bom cristão e não perca a esperança em Deus Nosso Senhor. O imperador rompeu o lacre, fixou os olhos na missiva e o espanto se refletiu em seu rosto. - Meu Deus! Meu tio não sabe o que está pedindo. - O rei vos pede algo, senhor? - Luis assegura que, apesar das dificuldades que enfrenta dado o custo da cruzada, está disposto a me adiantar uma boa quantia em ouro, se eu lhe entregar o Mandylion. Sonha poder mostrá-lo à sua mãe, a cristianíssima dona Branca. Luis me pede que lhe venda a relíquia ou a alugue por alguns anos. Diz que conheceu um homem que garante que o Mandylion é milagroso, que curou de lepra um rei de Edessa, e que quem o tem nada há de sofrer. Diz que, caso eu atenda seu pedido, trata dos detalhes com o conde de Dijon. - E que fareis? - A mim perguntas isso? Sabes que o Mandylion não me pertence, que, mesmo que eu quisesse, não poderia entregá-lo a meu tio, o bom rei da França. - Podeis tentar convencer o bispo a entregá-lo. - Impossível! Levaria meses na tentativa inútil de convencê-lo. Não posso esperar, dize, que mais posso empenhar? Acaso ainda resta alguma relíquia importante que esteja à altura de meu primo? - Sim. - Sim? Qual? - Se convencerdes o bispo a entregar o Mandylion... - Nunca o fará. - Acaso já o pedistes? - Ele o guarda com todo o zelo. A relíquia sobreviveu por milagre ao saque dos cruzados. Foi entregue a ele por seu antecessor e o bispo jurou que a protegeria com sua própria vida. - Vós sois o imperador. - E ele, o bispo. - Ele é vosso súdito, se não obedecer, ameaçai cortar-lhe as orelhas e o nariz. - Que horror! - Perdereis o império. Esse pano é sagrado, quem o possui nada há de temer. Tentai, ao menos. - Bem, fala com o bispo. Diga que vais em meu nome. - Eu o farei, mas ele não se conformará em falar comigo, terá de ser vós quem o peça. O imperador torceu as mãos com gesto contrito, temia enfrentar o bispo. Que lhe diria para convencê-lo a entregar o Mandylion? Bebeu um gole de vinho tinto e com um gesto indicou a Pascal de Molesmes que o deixasse só. Precisava pensar. O cavaleiro passeava pela praia distraído com o bater das ondas contra os seixos da orla. Seu cavalo o aguardava paciente, desamarrado, como o fiel amigo de tantas batalhas. A luz do crepúsculo iluminava o Bósforo, e Bartolomeu dos Capelos sentiu na beleza do momento o sopro de Deus. Seu cavalo empinou as orelhas, e ele se virou, divisando um vulto a cavalo na poeira do caminho. Colocou a mão na espada, em um gesto mais instintivo que defensivo, e aguardou para ver se o homem que chegava era quem ele estava esperando. O recém-chegado desceu do cavalo e com passo apressado foi até a praia onde o português o aguardava impassível. - Vós vos atrasastes - disse Bartolomeu. - Estive servindo o imperador até ele jantar. Só depois disso é que pude fugir do palácio. - Bem, que tendes a dizer-me, e por que aqui? O homem corpulento, de baixa estatura, pele citrina e olhos de rato examinou o cavaleiro templário. Com ele era preciso ir com cuidado. - Senhor, sei que o imperador vai pedir ao bispo que lhe entregue o Mandylion. Bartolomeu dos Capelos não moveu um músculo, como se a informação que acabava de receber não tivesse a menor importância para ele. - E tu como sabes disso? - Ouvi o imperador falar com o senhor Molesmes. - O que o imperador quer fazer com o Mandylion? - É a última relíquia valiosa que lhe resta, vai empenhá-la. Sabeis que o reino está falido. O imperador vai vendê-la a seu tio, o rei da França. - Toma, vai embora. O templário entregou umas moedas ao homem que, saltando sobre seu cavalo, partiu, congratulando-se por sua boa sorte. O cavaleiro lhe pagara bem a informação. Fazia anos que espionava o palácio a mando dos templários; sabia que os cavaleiros da cruz vermelha tinham mais espiões, mas não sabia quem eram. Os templários eram os únicos que dispunham de dinheiro vivo no empobrecido império, e eram muitos os que lhes ofereciam seus serviços, inclusive nobres. O português não se alterou quando disse que o imperador queria alugar o Mandylion. Podia ser, pensou o homem, que os templários já o soubessem por algum outro espião. Bem, isso não é problema meu, com estas moedas estou bem pago. Bartolomeu dos Capelos cavalgou até a casa que a Ordem do Templo tinha em Constantinopla. Um edifício amuralhado, próximo do mar, onde viviam mais de cinqüenta cavaleiros com seus servidores e cavalariças. Dos Capelos foi à sala capitular onde àquelas horas seus irmãos rezavam. André de Saint-Remy, seu superior, fez um gesto para que se juntasse à reza. Só depois de transcorrida uma hora de sua chegada, Saint-Remy mandou chamá-lo na câmara onde trabalhava. - Sentai-vos, irmão. Contai o que vos disse o copeiro do imperador. - Confirmou a informação do chefe da guarda real: o imperador quer empenhar o Mandylion. - A mortalha de Cristo... - Já empenhou a coroa de espinhos. - Há tantas relíquias falsas... Mas o Mandylion não o é. Naquele linho está o sangue de Cristo, seu verdadeiro rosto. Aguardo a permissão de nosso grão-mestre, Guillaume de Sonnac, para comprá-lo. Há semanas que lhe enviei uma mensagem, dizendo que o Mandylion é a última relíquia autêntica que resta em Constantinopla, e a mais preciosa. Devemos ficar com ela, para custodiá-la. - E se a resposta de Guillaume de Sonnac não vos chegar a tempo? - Então, tomarei a decisão sozinho e espero que o grão-mestre a avalize. - E o bispo? - Não quer entregá-la ao imperador. Sabemos que Pascal de Molesmes foi vê-lo e suplicou que a entregasse, mas ele se negou a fazê-lo. O imperador irá pessoalmente solicitar a entrega. - Quando? - Dentro de sete dias. Pediremos uma entrevista com o bispo e irei ver o imperador. Amanhã vos darei as ordens, agora ide descansar. Ainda não tinha amanhecido quando os cavaleiros terminaram as primeiras orações do dia. André de Saint-Remy, compenetrado, escrevia uma missiva pedindo audiência ao imperador. O Império latino do Oriente agonizava. Balduíno era imperador de Constantinopla e das terras limítrofes, mas pouco mais que isso, e os templários mantinham um difícil equilíbrio com ele, que tão freqüentemente lhes pedia crédito. Saint-Remy guardava os petrechos de escrever, quando o irmão Guy de Beaujeau entrou apressado no aposento. - Senhor, um muçulmano pede para falar convosco. Vem acompanhado de outros três... O superior dos templários de Constantinopla não se alterou. Terminou de guardar os documentos escritos. - Nós o conhecemos? - Não sei, tem o rosto coberto, e os cavaleiros que montam guarda à entrada preferiram não obrigá-lo a descobrir-se. Entregou-lhes esta flecha, feita com o galho de uma árvore, e com estes encaixes, diz que vós a reconhecereis. Guy de Beaujeau passou a flecha para Saint-Remy e viu uma nuvem cobrir o olhar de seu superior ao contemplar na palma da mão um galho grosseiramente esculpido em forma de flecha e cinco marcas. - Mandai-o entrar. Alguns minutos depois, um homem alto e forte, vestido com simplicidade mas com roupas que evidenciavam sua nobreza, entrou na sala onde Saint-Remy o aguardava. Este fez um gesto aos dois cavaleiros templários que acompanhavam o muçulmano para que os deixassem a sós e eles saíram sem dizer palavra. Quando ficaram a sós, os dois homens se olharam nos olhos e deram uma sonora gargalhada. - Mas Robert, por que te disfarçaste? - Tu me reconhecerias, se não te mostrassem a flecha? - Claro que sim, achas que não seria capaz de reconhecer meu próprio irmão? - Seria um mau sinal porque significaria que meu disfarce não é bom e que não pareço um sarraceno. - Os irmãos não te reconheceram. - Parece que não. Em todo caso, estou cavalgando há semanas, e pude chegar até aqui cruzando as terras de nossos inimigos sem ninguém suspeitar de nós. Fico feliz de que te lembres de que quando éramos crianças gostávamos de entalhar nossas próprias flechas com os galhos que arrancávamos das árvores. As minhas sempre tinham cinco marcas, as tuas, três. - Tiveste algum percalço? - Nenhum que não tenha podido superar com a ajuda do jovem irmão François de Charney. - Com quantos homens viajas? - Com dois escudeiros muçulmanos. Assim é mais fácil passar desapercebidos. - Dize: que notícias me trazes do grão-mestre? - GuilIaume de Sonnac morreu. - Como? O que houve? - A Ordem do Templo lutou ao lado do rei da França e o apoio que lhe demos foi eficaz, como deves saber pelo sucesso da conquista de Damietta. Mas o rei desejava ardentemente atacar Al-Mansura, apesar de GuilIaume de Sonnac chamá-lo à prudência para evitar que a doçura do triunfo confundisse seus sentidos. Mas o rei é teimoso, prometeu recuperar a Terra Santa e ansiava por entrar em Jerusalém. - Intuo que trazes más notícias. - Assim é. O rei decidiu conquistar Al-Mansura; sua estratégia consistia em cercar os sarracenos e atacá-los por trás. Mas Roberto de Artois, irmão de Luis, cometeu um erro, arrasando um pequeno acampamento, colocando os aiubes de sobreaviso. A batalha foi cruenta. Robert de Saint-Remy esfregou os olhos com as costas da mão, como se assim pudesse apagar a lembrança dos mortos que assaltavam sua memória. Viu de novo a terra vermelha, encharcada de sangue sarraceno e sangue cruzado, e seus companheiros combatendo encarniçadamente, sem trégua, com as espadas como extensão de seus braços cravando-se nas vísceras dos sarracenos. Ainda sentia o cansaço nos ossos e o horror na alma. - Morreram muitos de nossos irmãos. O grão-mestre foi ferido mas conseguimos salvá-lo. André de Saint-Remy ficou em silêncio, ao ver refletido no rosto de seu irmão mais novo um turbilhão de emoções, de vívidas lembranças de morte e sofrimento. - Os cavaleiros Yves de Páyens, Beltrán de Aragón, e eu retiramos Guillaume de Sonnac do campo de batalha, gravemente ferido por uma flecha traiçoeira e nos afastamos o mais que pudemos. Mas foi um esforço inútil; ele morreu de febre na retirada. - E o rei? - Ganhamos a batalha. Tivemos muitas baixas, milhares de homens jaziam mortos ou feridos, mas Luis dizia que Deus estava com ele e que venceria. Desta forma animava os soldados, e estava certo porque ganhamos, mas nunca uma vitória foi tão efêmera. As tropas cristãs rumaram para Damietta, mas o rei teve uma disenteria e os soldados estavam famintos, esgotados. Não sei ao certo como aconteceu, só sei que o exército capitulou e Luis foi feito prisioneiro. Um silêncio pesado tomou o aposento, e os dois irmãos, perdidos em seus pensamentos, permaneceram imóveis. Passaram longos minutos sem que nenhum deles dissesse palavra. Pela janela entrava o eco das vozes dos cavaleiros templários que se exercitavam na esplanada da fortaleza, também se ouvia o rangido dos carros e as malhadas do ferreiro. Por fim, André de Saint-Remy rompeu o silêncio. - Dize, quem foi escolhido grão-mestre? - Nosso grão-mestre é Renaud de Vichiers, preceptor da França, marechal da Ordem. Tu o conheces. - Sim. Renaud de Vichiers é um homem prudente e piedoso. - Ele mandou negociar com os sarracenos para obter a libertação de Luis. Os nobres do rei também enviaram embaixadores pedindo que ponham preço à liberdade de seu soberano. Quando vim para cá, as negociações não avançavam, mas o grão-mestre confia obter a libertação do rei. - A que preço? - Luis sofre muito, embora receba bons tratos e esteja sob cuidados médicos. Os sarracenos pedem que as tropas cruzadas devolvam Damietta. - Os nobres de Luis estão dispostos a retirar as tropas de lá? - Farão o que o rei disser, só ele pode capitular. Renaud de Vichiers enviou uma mensagem ao rei, sugerindo que aceite a retirada. Nossos espiões garantem que esse será o preço a pagar. - Que ordens me trazes do grão-mestre? - Trago-te um documento lacrado, e outras mensagens que hei de dizer-te de viva voz. - Dize, então. - Devemos ficar com o Mandylion. O grão-mestre garante que essa é a única relíquia comprovadamente autêntica. Quando tu a tiveres, hei de levá-la à nossa fortaleza de São João de Acre. Ninguém deve saber que se acha em nosso poder. Deves comprá-la, fazer o que julgares conveniente, sem que se saiba que é para a Ordem do Templo. Os reis cristãos seriam capazes de matar pelo Mandylion. O Papa o reclamaria para si. Nós lhe demos muitas das relíquias que durante todos estes anos foste comprando de Balduíno, muitas outras estão em poder de Luis da França, presenteadas ou vendidas que foram por seu sobrinho. "Sabemos que Luis quer o Mandylion. Depois da vitória de Damietta, mandou uma comitiva com uma mensagem para o imperador, além de levar documentos com suas ordens a França." - Sim, eu sei, há alguns dias o conde de Dijon entregou uma carta ao imperador. Luis pede o Mandylion a seu sobrinho em troca de ajuda. Robert de Saint-Remy entregou vários rolos de documentos lacrados a seu irmão, que os colocou sobre a mesa. - Dize, André, tens alguma notícia de nossos pais? Os lábios de André de Saint-Remy se crisparam, ele baixou os olhos e, contendo um suspiro, respondeu. - Nossa mãe morreu. Nossa irmã Casilda também. A morte a surpreendeu no parto de seu quinto filho. Nosso pai, embora velho, ainda vivia no último inverno. Passa as horas sentado no grande salão; mal pode se mexer pelo inchaço dos pés causado pela gota. Nosso irmão mais velho, Umberto, governa a herdade. O condado é próspero e Deus lhe deu quatro filhos sadios. Faz tanto tempo que deixamos Saint-Remy... - Mas ainda me lembro da alameda por onde se chegava ao castelo, do cheiro de pão assado e da nossa mãe cantando. - Robert, quisemos ser templários e não podemos nem devemos alimentar nostalgias. - Ai, irmão! Sempre fostes muito rígido contigo mesmo. - E tu, como tens um escudeiro sarraceno? - Aprendi a conhecê-los e a respeitá-los. Há homens sábios entre eles, também há cavalheirismo e honra. São uns inimigos formidáveis e merecem respeito. Devo confessar-te que também tenho algum amigo em suas fileiras. É impossível não os ter quando compartilhamos o território e temos de tratar com eles discretamente. O grão-mestre quis que todos aprendêssemos sua língua e que alguns de nós aprendêssemos seus costumes para poder nos introduzir em seu território, em suas cidades, e espionar, observar ou levar a cabo as missões, para maior glória da Ordem do Templo e da Cristandade. Minha pele citrina escureceu ainda mais com o sol do Oriente, e meu cabelo preto também me ajuda a dissimular minha aparência. Quanto à sua língua, devo confessar-te que não me custou muito entendê-la e nela escrever. Tive um excelente professor, o escudeiro que me acompanha. Lembra, irmão, que ingressei muito jovem na Ordem do Templo e foi Guillaume de Sonnac que ordenou que os mais jovens aprendessem com os sarracenos até poderem se confundir com eles. "Mas me perguntavas por Ali, meu escudeiro. Não é o único muçulmano que trata com a Ordem do Templo. Seu povo foi arrasado pelos cruzados. Ele e outros dois meninos conseguiram sobreviver. Guillaume de' Sonnac os encontrou vagando a várias jornadas a cavalo de Acre. O menor deles estava exausto e delirava de febre. O grão-mestre os levou à nossa fortaleza, onde se recuperaram e ficaram." - E eles vos foram leais? - Guillaume de Sonnac permitia que rezassem a Alá e os usava como intermediários. Nunca nos traíram. - E Renaud de Vichiers? - Não sei, mas não objetou que viajássemos sozinhos na companhia de Ali e Said. - Bem, descansa, e faz vir até mim François de Charney, o irmão com que viajaste. - Assim o farei. Quando André de Saint-Remy ficou sozinho, desenrolou os documentos que seu irmão lhe entregara e começou a ler as ordens escritas de Renaud de Vichiers, grão-mestre da Ordem do Templo. O aposento recamado de cor púrpura se assemelhava a uma pequena sala do trono. Os bancos acolchoados, a mesa entalhada em madeira nobre, o crucifixo de ouro maciço e outros objetos de prata lavrada revelavam a opulência em que vivia seu dono. Em uma mesinha à parte, várias garrafas de cristal trabalhado continham vinhos balsâmicos e sobre uma enorme bandeja se achava servida uma colorida mostra de doces preparados em um mosteiro próximo. O bispo ouvia Pascal de Molesmes com expressão impassível. Fazia uma hora que o nobre franco desfiava argumentos, tentando convencê-lo a entregar o Mandylion ao imperador. Ele também apreciava Balduíno; sabia que havia bondade em seu coração, por mais que como monarca seu reinado tivesse sido uma longa série de fracassos. Pascal de Molesmes interrompeu seu arrazoado, ao notar que o bispo deixara de ouvi-lo e estava perdido em seus próprios pensamentos. O silêncio sobressaltou o religioso. - Eu vos escutei e entendo vosso raciocínio, mas não compete ao rei da França decidir se Constantinopla deve ou não possuir o Mandylion. - O rei cristianíssimo prometeu ajuda ao imperador; se não for possível adquiri-lo, pretende, ao menos, ficar com o Mandylion por algum tempo. Luis deseja que sua pia mãe, dona Branca de Castela, possa contemplar o verdadeiro rosto de Jesus Nosso Senhor. A Igreja não perderia a propriedade do Mandylion e poderia até mesmo ganhar com isso, além de contribuir para salvar Constantinopla da penúria em que se encontra. Crede, vossos interesses e os do imperador são um só. - Não, não são. É o imperador que precisa do ouro para salvar o que resta do império. - Constantinopla definha, o império é mais ficção que realidade, algum dia os cristãos chorarão sua perda. - Senhor De Molesmes, sei que sois inteligente demais para tentar convencer-me de que o Mandylion é suficiente para salvar Constantinopla. Quanto o rei Luis ofereceu por seu aluguel, quanto para possuí-lo? Seriam necessárias enormes quantias de ouro para salvar este reino, e o rei da França é rico, mas não se arruinará, por mais que aprecie seu sobrinho ou deseje o Mandylion. - Por uma quantia vultosa, consentiria vossa mercê em vendê-lo ou alugá-lo? - Não. Dizei ao imperador que não o entregarei. O papa Inocêncio me excomungaria. Faz tempo que quer o Mandylion, e sempre posterguei a entrega atribuindo a permanência do Sudário aqui aos perigos da viagem. Necessitaria da sua permissão, e bem sabeis que ele exigiria uma paga, uma paga que, mesmo que o bom rei Luis pudesse arcar com ela, seria para a Igreja, não para seu sobrinho o imperador. Pascal de Molesmes decidiu jogar sua última carta. - Recordo, Vossa Reverendíssima, que o Mandylion não vos pertence. Foram as tropas do imperador Romano Lecapeno que o trouxeram a Constantinopla, e o império nunca renunciou à sua propriedade. A Igreja é mera depositária do Mandylion. Balduíno vos pede que o entregueis voluntariamente e ele saberá ser generoso convosco e com a Igreja. As palavras de Molesmes alteraram a disposição do bispo. - Vós me ameaçais, senhor De Molesmes? O imperador ameaça a Igreja? - Balduíno é, bem o sabeis, um filho amantíssimo da Igreja que a defenderia com sua própria vida, se preciso fosse. O Mandylion é patrimônio do império e o imperador o reclama para si. Cumpri, pois, com vosso dever. - Meu dever é defender a imagem de Cristo e conservá-la para a Cristandade. - Não vos opusestes a que a coroa de espinhos guardada no convento do Pantocrátor fosse vendida ao rei da França. - Sois um homem inteligente, senhor De Molesmes. Acreditáveis de fato que aquela fosse a coroa de espinhos de Jesus? - Vós não? A fúria transparecia nos olhos azuis do bispo. O embate entre os dois homens estava chegando ao auge e ambos sabiam disso. - Senhor De Molesmes, vossas razões não me convenceram, dizeio ao imperador. Pascal de Molesmes inclinou a cabeça. O duelo estava momentaneamente terminado, mas ambos sabiam que ainda não havia vencedor nem vencido. O nobre saiu da sala com a garganta seca, sem provar a taça de vinho de Rodes que o bispo lhe oferecera. E sentia muito, porque era dos seus preferidos. Na porta do palácio onde residia o bispo, seus criados o esperavam junto a seu cavalo, um alazão negro como a noite, que era seu mais fiel companheiro na turbulenta Constantinopla. Aconselharia Balduíno a apresentar-se com seus soldados no palácio do bispo para obrigá-lo a entregar o Mandylion? Não havia outra saída. Inocêncio não se atreveria a excomungar Balduíno, ainda mais quando soubesse que o Mandylion era para o rei cristianíssimo. Seria alugado a Luis, e pediriam um alto preço, de modo que o império pudesse recuperar parte da seiva exaurida. O vento da tarde era suave e Pascal de Molesmes decidiu cavalgar pela beira do Bósforo antes de retornar ao palácio imperial. De vez em quando, gostava de escapar dos muros opressivos do palácio onde as intrigas, a traição e a morte espreitavam em cada canto, e onde era difícil distinguir o amigo do inimigo, dada a refinada arte da dissimulação dos cavaleiros e damas da corte. A única pessoa em quem confiava era Balduíno por quem, com o passar dos anos, chegou a sentir um afeto tão sincero como antes sentira pelo bom rei Luis. Muitos invernos se passaram desde que o rei da França o enviara à corte de Balduíno para proteger o ouro que devia a seu sobrinho como pagamento por algumas valiosas relíquias que este lhe vendera, juntamente com o condado de Namur. Luis o encarregara de permanecer na corte e mantê-lo informado de tudo o que acontecia em Constantinopla. Em uma carta que o próprio De Molesmes entregou ao rei, Luis da França recomendava a seu sobrinho que confiasse no bom Pascal de Molesmes, um homem leal e cristão que - conforme dizia a carta - só velaria por seu bem. Balduíno e o nobre francês simpatizaram desde o primeiro encontro, e, quinze anos depois, lá estava ele, transformado em conselheiro e amigo do imperador. Porque De Molesmes reconhecia os esforços de Balduíno para manter a dignidade do império, para resistir, de um lado, à pressão dos búlgaros e, de outro, à iminente investida dos sarracenos. Se não fosse pela lealdade que devia ao rei Luis e a Balduíno, já teria ingressado, há anos, na Ordem dos Templários para combater na Terra Santa. Mas o destino o levara ao coração da corte de Constantinopla, onde devia esquivar tantos perigos quanto no campo de batalha. O sol começava a se pôr, quando se deu conta de que se aproximava da casa da Ordem do Templo. Tinha grande respeito por André de Saint-Remy, o superior da comendadoria. Um homem austero e íntegro que escolhera a cruz e a espada como norma de vida. Os dois eram franceses e nobres, e ambos encontraram seu destino em Constantinopla. De Molesmes desejou falar com seu compatriota, mas as sombras da noite começavam a se fazer presentes e os cavaleiros deviam estar rezando, de modo que sua visita lhes causaria inconvenientes. Era melhor esperar a manhã seguinte para mandar um recado a Saint-Remy e marcar um encontro com ele, disse para si mesmo. Balduíno II de Courtenay deu um murro na parede. Por sorte, uma tapeçaria amorteceu o golpe. Pascal de Molesmes acabava de relatar nos mínimos detalhes a conversa que tivera com o bispo e sua negativa em entregar o Mandylion. O imperador sabia que as chances de ser atendido de bom grado pelo bispo eram muito remotas, mas pedia isso encarecidamente em suas orações, esperando que Deus Nosso Senhor realizasse aquele milagre para salvar o império. O francês, incomodado pela explosão de ira do imperador, olhou para ele, sem esconder um gesto de reprovação. - Não me olhes assim! Sou o mais desgraçado dos homens! - Senhor, acalmai-vos, o bispo não terá outra alternativa a não ser entregar-vos o Mandylion. - Como? Queres que eu vá arrancá-lo à força? Seria um escândalo. Meus súditos não perdoariam que lhe arrebate o Sudário a que atribuem caráter milagroso, o Papa Inocêncio me excomungaria, e tu me pedes que me acalme, como se houvesse uma solução, quando sabes que não há. - Os reis devem tomar decisões difíceis para salvar seus reinos. Vós vos encontrais nessa situação. Deixai de queixar-vos e agi. O imperador sentou-se no trono, sem ocultar no gesto o cansaço que o invadia. Era mais fel que mel o que saboreara como rei, e agora a última prova a que o reino o submetia era ter que enfrentarse com a Igreja. - Pensa em outra solução. - Acaso vedes outra saída? - És meu conselheiro, pensa! - Senhor, o Mandylion vos pertence, reclamai o que é vosso, pelo bem do reino. Esse é o conselho que vos dou. - Retira-te. De Molesmes saiu do recinto e dirigiu-se à sala da chancelaria. Lá, para sua surpresa, encontrou Bartolomeu dos Capelos. Recebeu com gentileza o templário e lhe pediu notícias de seu superior e dos outros irmãos que conhecia. Depois de alguns minutos de conversa cortês, perguntou-lhe o que o levara ao palácio. - Meu superior, André de Saint-Remy, pede um encontro com o imperador. O tom grave do templário português deixou De Molesmes de sobreaviso. - O que está acontecendo, meu bom amigo? Alguma má nova? O português tinha ordens de não dizer uma só palavra sobre a delicada situação de Luis de França que evidentemente não era conhecida no palácio, pois quando o conde de Dijon saiu de Damietta a cidade ainda estava nas mãos dos francos e o exército avançava triunfalmente. Bartolomeu dos Capelos respondeu esquivando-se da pergunta. - Faz tempo que André de Saint-Remy não se reúne com o imperador, e são muitos os acontecimentos havidos nestes meses. O encontro será do interesse de ambos. De Molesmes entendeu que o português não lhe diria mais nada, mas intuiu a importância da entrevista solicitada. - Vou anotar vosso pedido. Assim que o imperador estabelecer o dia e a hora do encontro, irei pessoalmente à comendadoria comunicálo, e poder desfrutar assim de um momento de conversa com vosso superior. - Vos pediria que tramitásseis a audiência com a maior presteza possível. - Assim o farei, sabeis que sou amigo da Ordem do Templo. Que Deus vos acompanhe. - Que Ele vos proteja. Pascal de Molesmes ficou pensativo. O rosto circunspeto do português indicava que a Ordem do Templo sabia algo de vital importância que só queria transmitir ao imperador, quem saberia a troco de quê. Os templários eram os únicos que dispunham de dinheiro e informação naquele mundo tumultuado em que lhes tocara viver. E ambos os bens - o dinheiro e a informação - lhes conferiam um poder especial, superior ao de qualquer rei, inclusive ao do próprio Papa. Balduíno vendera algumas relíquias à Ordem do Templo e recebera por elas vultosas quantias. A relação entre Balduíno e Saint-Remy era de respeito mútuo. O superior da comendadoria templária compartilhava com Balduíno o pesar pela situação do cada vez mais diminuto império. Em mais de uma ocasião, a Ordem do Templo lhes emprestara dinheiro, dinheiro esse que não puderam devolver, mas a que tiveram que responder hipotecando relíquias que acabaram como propriedade dos templários, assim como outros objetos de valor que nunca voltariam ao palácio imperial enquanto o imperador não saldasse a dívida, possibilidade bastante remota. Afastou esses pensamentos e se pôs a preparar a visita de Balduíno ao bispo. Devia ir acompanhado de soldados com armadura e bem petrechados. Em número suficiente para cercar o palácio do bispo e a igreja de Santa Maria de Blanquernas, onde se encontrava o Mandylion. Ninguém devia saber o que pretendiam para não alertar o povo, nem o bispo, que tinha Balduíno por bom cristão incapaz de se opor à vontade eclesiástica. Sabia que o imperador estaria pensando nesta possibilidade e que em seu desespero entenderia que a única saída era entregar o Mandylion ao rei Luis. Mandou chamar o conde de Dijon para estudar com ele os detalhes da entrega do Santo Sudário. O rei da França teria dado ao conde instruções precisas sobre o que fazer quando seu sobrinho lhe entregasse o Santo Sudário e sobre como efetuar o pagamento do mesmo. Robert de Dijon tinha cerca de 30 anos. De estatura mediana, robusto, nariz aquilino, olhos azuis, o nobre francês despertara o interesse das damas da corte de Balduíno. O criado que Pascal de Molesmes enviou à sua procura custou a encontrá-lo. Teve de subornar outros servos do palácio até dar com ele nos aposentos de dona Maria, prima do imperador e viúva recente. Quando o conde de Dijon se apresentou na chancelaria, ainda conservava o perfume almiscarado que a ilustre dama deixava ao passar. - Dizei, De Molesmes, a razão de tanta pressa? - Conde, preciso saber as instruções que vos deu o bom rei Luis, para tentar agradá-lo. - Já sabeis que o rei quer que o imperador lhe ceda o Mandylion. - Perdoai que não use de circunlóquios: quanto o rei Luis está disposto a pagar pelo Santo Sudário? - O imperador atenderá ao pedido de seu tio? - Conde, permiti que seja eu quem faça as perguntas. - Antes de respondê-las, preciso saber se Balduíno já tomou uma decisão. De Molesmes se plantou em dois tempos diante do nobre francês, cravou-lhe os olhos avaliando que tipo de homem tinha na sua frente. O francês não se intimidou e sustentou o olhar. - O imperador está estudando a oferta de seu tio. Mas precisa saber quanto o rei da França está disposto a lhe dar pelo Mandylion, para onde seria levado e quem garantiria a segurança da relíquia. Sem conhecer estes e outros detalhes dificilmente poderá tomar uma decisão. - Tenho ordens para aguardar a resposta do imperador e, se Balduíno aceitar entregar o Sudário a Luis, eu mesmo o levarei à França e o depositarei nas mãos de sua mãe, dona Branca, que o guardará até o rei retornar da Cruzada. Se o imperador quiser vender o Mandylion, Luis entregaria a seu sobrinho dois sacos de ouro com o peso de dois homens e lhe devolveria o condado do Namur, assim como lhe presentearia com algumas terras na França que lhe garantissem uma boa renda anual. Se, ao contrário, o imperador só quiser empenhar o Sudário por um tempo, o rei lhe entregaria igualmente os dois sacos de ouro, que no devido momento Balduíno devolveria para resgatar o Mandylion; se passada a data fixada por ambas as partes o ouro não for devolvido, a relíquia passará a ser patrimônio do rei da França. - Luis sempre ganha - afirmou contrariado De Molesmes. - É um acordo justo. - Não, não é. Sabeis tão bem quanto eu que o Mandylion é a única relíquia autêntica de que a Cristandade dispõe. - A oferta do rei é generosa. Dois sacos de ouro ajudariam Balduíno a fazer frente a suas muitas dívidas. - Não é o bastante. - Sabeis tão bem quanto eu que dois sacos de ouro, cada um com o peso de um homem, resolveriam muitos dos problemas do império. A oferta é mais do que generosa se o imperador entregar para sempre o Mandylion, pois disporá de uma renda até o final de seus dias, enquanto que se alugar a relíquia... Enfim, não sei se lhe será possível devolver os dois sacos de ouro a seu tio. - Sabeis, sim. Sabeis tanto quanto eu que dificilmente Balduíno poderia recuperar o Mandylion. Bem, dizei-me, trouxestes os dois sacos de ouro? - Eu trouxe um documento assinado por Luis em que se compromete a pagar. Também disponho de uma quantia de ouro como adiantamento. - Que garantia podem nos dar de que a relíquia chegará à França? - Como bem sabeis, viajo com numerosa escolta e estou disposto a aceitar quantos homens julgardes necessários para nos acompanhar a porto seguro. Minha vida e minha honra estão empenhadas em fazer chegar o Mandylion à França. Se o imperador aceitar, enviaremos um recado ao rei. - De quanto ouro dispondes? - O equivalente a vinte libras. - Mandar-vos-ei chamar, quando o imperador tenha tomado a decisão. - Estarei esperando; confesso-vos que não me importa descansar em Constantinopla alguns dias mais. Os dois homens se despediram com uma inclinação de cabeça. François de Charney se exercitava com o arco junto aos outros cavaleiros templários. André de Saint-Remy o observava da janela da sala capitular. Pela aparência, o jovem De Charney, como seu irmão Robert, parecia um muçulmano. Ambos insistiram na necessidade de assim parecer para poder atravessar os territórios inimigos sem muitos contratempos. Confiavam em seus escudeiros sarracenos, a quem tratavam com camaradagem. Depois de tantos anos no Oriente, a Ordem do Templo passara por mudanças. Chegaram a apreciar os valores de seus inimigos, não se limitaram apenas a combatê-los, mas se esforçaram por conhecê-los, daí o reconhecimento mútuo entre os cavaleiros templários e os sarracenos. Guillaume de Sonnac era um cavaleiro prudente, e soubera perceber em Robert e em François algo de especial, qualidades para se transformarem em espiões, pois isso é o que eram. Os dois falavam árabe fluentemente e quando conversavam com seus escudeiros se comportavam como tais, Com a pele curtida pelo sol e as roupas dos nobres sarracenos era difícil reconhecê-los como os cavaleiros cristãos que eram. Falaram-lhe de suas inúmeras peripécias na Terra Santa, do encantamento do deserto onde aprenderam a viver, das leituras dos filósofos gregos da Antigüidade recuperadas graças aos sábios sarracenos, da arte da medicina aprendida entre eles. Os jovens não conseguiam esconder sua admiração pelos inimigos que combatiam, o que teria preocupado André de Saint-Remy, se não visse com os próprios olhos a devoção e o compromisso de honra de ambos com a Ordem do Templo. Ficariam em Constantinopla até o superior da comendadoria Ihes entregar o Mandylion para que o levassem até Acre. André de SaintRemy expressara suas dúvidas sobre a conveniência de deixá-los viajar sozinhos com tão preciosa relíquia, mas eles lhe garantiram que só assim ela chegaria sã e salva a seu destino, a fortaleza templária de São João de Acre onde estava guardada a maior parte dos tesouros da Ordem do Templo. Claro que antes Saint-Remy precisava conseguir a mortalha de Cristo, e para isso era preciso, além de astúcia, paciência e diplomacia, qualidades que o superior da comendadoria de Constantinopla tinha de sobra. Balduíno vestira seus melhores trajes. De Molesmes o aconselhara a não alertar ninguém sobre a visita que iam fazer ao bispo. Pascal de Molesmes escolhera pessoalmente o grupo de soldados que devia acompanhá-los, e os que cercariam a igreja de Santa Maria de Blanquernas. O plano era simples. Ao cair da noite, o imperador se apresentaria no palácio do bispo. Pediria cortesmente que ele lhe entregasse o Mandylion; se o bispo não concordasse de bom grado, então os soldados entrariam na igreja de Santa Maria de Blanquernas e tomariam o Sudário à força. De Molesmes convencera Balduíno a não se intimidar diante do bispo e a ameaçá-lo, se preciso fosse. Para tanto, iriam acompanhados pelo gigante Vlad, um homem das terras do norte a quem faltava um parafuso e que fazia, sem pestanejar, tudo que Balduíno mandava. A escuridão descera sobre a cidade e só as velas acesas indicavam que as casas e palácios eram habitados. As batidas secas ressoaram no palácio do bispo, que nesse momento saboreava uma taça de vinho de Chipre, enquanto lia uma carta secreta do papa Inocêncio. Um criado foi abrir as portas do palácio e levou um susto enorme ao se ver frente a frente com o imperador. O homem deu um grito e a guarda do bispo acorreu. O senhor De Molesmes ordenou-lhes que se ajoelhassem ante o imperador. Entraram no palácio com passo firme. Balduíno estava em pânico, mas a determinação de seu conselheiro o impedia de sair correndo, de voltar atrás. O bispo abriu a porta de seu aposento assustado com o ruído que vinha da escada e, quando se viu diante de Balduíno, Pascal de Molesmes e um grupo de soldados que os acompanhavam, não conseguiu dizer palavra. - O que é isto? O que fazeis aqui? - exclamou o bispo. - Assim recebeis o imperador? - interrompeu o francês. - Acalmai-vos, Reverendíssima - disse Balduíno. - Vim visitar-vos, sinto não ter podido avisá-lo com antecedência, mas os assuntos de Estado não o permitiram. O sorriso de Balduíno não conseguiu tranqüilizar o bispo que, plantado no meio do aposento, não sabia o que fazer. - Permiti que nos sentemos? - perguntou o imperador. - Entrai, por gentileza, vossa visita inesperada surpreendeu-me. Chamarei os criados para servir-vos como mereceis. Mandarei acender mais velas e... - Não - interrompeu-o De Molesmes. Não é necessário. O imperador vos honra com sua presença, escutai o que tem a dizer. O bispo, ainda em pé, hesitava em seguir as indicações do francês, enquanto os criados apareciam timidamente na porta assustados com o barulho e esperando ordens de Sua Reverendíssima. Pascal de Molesmes aproximou-se da porta ordenou que voltassem a seus quartos, que aquela era uma visita amistosa do imperador ao bispo de Constantinopla e que, dado o adiantado da hora, sua presença não era necessária, pois uma taça de vinho eles mesmos podiam servir. O imperador sentou-se em uma confortável poltrona e deixou escapar um suspiro. Pascal de Molesmes o convencera de que sua única opção para salvar Constantinopla era ficar com o Mandylion. Quando se refez da surpresa e do susto inicial, o bispo se dirigiu ao imperador em tom insolente: - Que assunto pode ser tão importante para quebrar a paz desta casa a estas horas? É vossa alma que precisa de conselho ou vos preocupa algum assunto da corte? - Meu bom pastor, como filho da Igreja, vim participar-vos os problemas do reino. Vós cuidais das almas, mas quem tem alma tem corpo, e é dos problemas terrenos que quero vos falar, porque se o reino sofre, os homens também sofrem. Balduíno suspirou, procurando com o olhar a aprovação de Pascal de Molesmes; este com um gesto quase imperceptível lhe indicou que continuasse. - Conheceis as necessidades de Constantinopla tão bem quanto eu. Não é preciso ter acesso aos segredos da corte para saber que as arcas estão quase vazias e que o assédio de nossos vizinhos nos foi debilitando. Há meses que os soldados não recebem sua paga completa, nem os funcionários de palácio, nem meus embaixadores recebem seu estipêndio. Sinto pesar por não poder contribuir com ofertas à Igreja da qual me sabeis filho amantíssimo. Chegado a este ponto Balduíno se calou, temeroso de que a qualquer momento o bispo reagisse com destemperança. Mas este o ouvia tenso, ruminando a resposta que ia dar ao imperador. - Embora não esteja no confessionário - prosseguiu Balduíno -participo-vos minhas tribulações, devo salvar o reino e a única solução é vender o Mandylion a meu primo, o rei da França, que Deus proteja. Luis está disposto a nos dar o ouro suficiente para pagar as dívidas que nos afligem. Se eu lhe entregar o Mandylion, salvarei Constantinopla. Por isso, Reverendíssima, como vosso imperador peço-vos que me entregueis o Santo Sudário. Estará em mãos cristãs, como as nossas. O bispo olhou-o fixamente e pigarreou antes de falar: - Senhor, acudis como imperador para pedir-me uma relíquia sagrada da Igreja. Dizeis que assim salvareis Constantinopla, mas por quanto tempo? Eu não posso vos entregar o que não me pertence; o Mandylion é da Igreja, da Cristandade, portanto. Seria um sacrilégio entregá-lo para ser vendido. Os fiéis de Constantinopla, devotos como são da imagem milagrosa de Cristo, não o permitiriam. Não mistureis os assuntos terrenos com os de Deus, vossos interesses com os da Cristandade. Entendei que não vos posso entregar o Santo Sudário a que com tanta devoção rezam às sextas-feiras todos os cristãos. Os fiéis jamais permitiriam que vendêsseis a relíquia, que a enviásseis à França, por melhor guardada que pudesse estar pelo bom rei Luis. - Não é minha intenção polemizar, Reverendíssima, mas não vos estou pedindo que me entregueis o Mandylion, vos estou ordenando. Balduíno ficou contente por dizer aquela última frase de modo tão contundente, e, de novo, procurou aprovação nos olhos de De Molesmes. - Devo-vos respeito como imperador, e vós me deveis obediência como pastor - respondeu o bispo. - Reverendíssima, não permitirei que se dessangre o que resta do império porque quereis conservar a preciosa relíquia. Como cristão sinto ter que me afastar do Mandylion, mas neste momento é meu dever agir como imperador. Peço-vos que me entregueis a relíquia... voluntariamente. Assustado, o bispo levantou-se e, erguendo a voz, gritou: - Atrevei-vos a ameaçar-me? Sabei que se ousardes vos levantar contra a Igreja, Inocêncio vos excomungará! - Excomungará também o rei da França por comprar o Mandylion? replicou o imperador. - Não vos entregarei o Santo Sudário. Ele pertence à Igreja e só o Papa pode dispor da mais sagrada das relíquias... - Não, não pertence à Igreja, bem o sabeis. Foi o imperador Romano Lecapeno que o resgatou do reino de Edessa e o trouxe para Constantinopla. Pertence ao império, pertence ao imperador. A Igreja foi apenas uma leal depositária, agora será o império que se encarregará de sua custódia. - Submetei-vos à decisão do Papa. Escreveremos a ele, vós exporeis vossas razões e eu acatarei sua decisão. Balduíno hesitou. Sabia que o bispo tentava ganhar tempo, mas como rejeitar uma proposta que parecia justa? Pascal de Molesmes postou-se na frente do bispo e olhou-o com arrogância ameaçadora: - Creio, Reverendíssima, que não ouvistes o imperador. - Senhor De Molesmes, peço-vos que não intervenhais! – bradou o bispo. - Negais-me a palavra? Com que autoridade? Sou súdito do imperador Balduíno tanto quanto vós e é meu dever defender os interesses do império. Devolvei o Mandylion que não vos pertence e terminemos em paz esta disputa. - Como vos atreveis a falar-me desse modo! Senhor, mandai calar vosso chanceler! - Acalmai-vos os dois – interveio Balduíno, já recuperado da dúvida inicial. - Reverendíssima, não há nada de errado no que o senhor De Molesmes disse. Viemos pedir que devolvais o que me pertence, não proteleis a entrega nem um minuto mais ou mandarei requisitar o Mandylion à força. Com passos rápidos o bispo chegou à porta do aposento e, aos gritos, pediu ajuda à sua guarda. Ao escutar o bispo, um pelotão acudiu correndo. Encorajado pela presença dos soldados, o bispo tentou despachar seus inoportunos visitantes. - Se ousardes tocar em um único fio do Santo Sudário, escreverei ao Papa, recomendando vossa excomunhão. Saí, imediatamente! trovejou. Surpreso por aquela reação inesperada, Balduíno não se mexeu do lugar, mas Pascal de Molesmes, tomado de fúria, aproximou-se da porta em frente à qual o bispo continuava e gritou: - Soldados! Em apenas alguns segundos os soldados imperiais subiram a escada e entraram no aposento ante o estupor dos guardas do prelado. - Desafiareis o imperador? Se assim for, ordenarei que vos prendam por traição e sabeis que o castigo é a morte - exclamou De Molesmes. Um tremor percorreu o corpo do bispo, que, desesperado, olhava seus soldados, esperando que interviessem. Mas eles permaneceram imóveis. Pascal de Molesmes dirigiu-se ao atônito Balduíno. - Senhor, rogo-vos que ordeneis a Sua Reverendíssima que me acompanhe até a igreja de Blanquernas e me entregue o Mandylion, que levarei ao palácio. Balduíno se levantou e, valendo-se de toda sua dignidade imperial, caminhou até o bispo. - O senhor De Molesmes me representa. Vós o acompanhareis e lhe entregareis o Mandylion. Se não cumprirdes a ordem, Vlad, meu fiel servidor, vos conduzirá às masmorras do palácio de onde não saireis jamais. Mas eu preferiria ver-vos oficiar a missa no próximo domingo... Não disse mais. Ato contínuo, sem olhar para o bispo e com passo firme, abandonou o aposento, rodeado por seus soldados e certo de ter se comportado como um verdadeiro imperador. Vlad, o gigante, postou-se diante do bispo decidido a cumprir a ordem do imperador. Sua Reverendíssima entendeu que de nada adiantaria resistir e recuperando parte do orgulho ferido encarou o chanceler. - Eu vos entregarei o Mandylion e informarei o Papa. Rodeados por soldados e sob o olhar atento de Vlad, dirigiram-se à igreja de Santa Maria de Blanquernas. Lá, em uma urna de prata, encontrava-se a santa relíquia. O bispo abriu a urna com uma chave que trazia pendurada no pescoço e, sem poder conter as lágrimas, retirou o Sudário e o entregou a De Molesmes. - Estais cometendo um sacrilégio que vos valerá o castigo de Deus! - Dizei, que castigo recebereis por tantas relíquias vendidas sem permissão do Papa e em vosso próprio proveito? - Como ousais acusar-me de tamanho absurdo? - Sois o bispo de Constantinopla, deveríeis saber que nada do que aqui acontece escapa aos olhos do palácio. O chanceler pegou cuidadosamente o Sudário das mãos do bispo, que caiu de joelhos, chorando desconsoladamente. - Recomendo-vos, Reverendíssima, que vos acalmeis e façais uso de vossa muita inteligência. Evitai um conflito entre o império e Roma que a ninguém beneficiaria. Não enfrentais apenas Balduíno, enfrentais o rei da França. Pensai bem antes de agir. O imperador aguardava De Molesmes nervoso, andando de um lado para o outro do aposento. Estava confuso, sem saber se se deixava arrastar pelo pesar de ter enfrentado o bispo ou se ficava contente por ter imposto sua autoridade imperial. Um vinho tinto de Chipre o ajudava a tornar a espera mais doce. Dispensara a esposa e os criados e dera ordens expressas à sua guarda de não permitir a ninguém além do chanceler adentrar em seus aposentos. Estava nisto quando, de repente, ouviu passos apressados diante da porta que ele mesmo abriu, esperando encontrar De Molesmes. Era ele, com efeito. Escoltado por Vlad e com o Mandylion dobrado, o chanceler, com semblante satisfeito, entrou na câmara do imperador. - Tiveste que usar a força? - perguntou, temeroso, Balduíno. - Não, senhor. Não foi preciso. Sua Reverendíssima caiu em si e me entregou a relíquia de bom grado. - De bom grado? Não posso acreditar em ti. Ele escreverá ao Papa, pode ser que Inocêncio me excomungue. - Vosso tio, o rei da França, não o permitirá. Credes que Inocêncio enfrentará Luis? Não ousará disputar o Mandylion com o rei. Não vos esqueçais de que o Santo Sudário é para ele, e não vos esqueçais tampouco que por ora vos pertence, nunca pertenceu à Igreja. Podeis tranqüilizar vossa consciência. De Molesmes entregou o Santo Sudário a Balduíno e este, com certo temor, colocou-o em um baú ricamente adornado que estava ao lado de sua cama. Depois, dirigindo-se a Vlad, exigiu que não saísse de perto do cofre e, se preciso fosse, o defendesse com sua própria vida. A corte inteira estava presente em Santa Sofia. Não havia um único nobre que ignorasse a disputa entre o imperador e o bispo, e os ecos do enfrentamento tinham chegado até o povo humilde. Na sexta-feira, os fiéis foram à Santa Maria de Blanquernas rezar diante do Mandylion e para sua surpresa encontraram a urna vazia. A indignação tomou conta dos devotos, mas desmoralizados que estavam pela precária situação do império ninguém ousou enfrentar o imperador. Além disso, todos valorizavam muito seus olhos e orelhas e, por mais que chorassem a ausência do Santo Sudário, pensavam que mais chorariam a ausência de tão vitais órgãos dos sentidos. Em Constantinopla, as apostas faziam parte da própria história da cidade. Tudo era motivo de jogo para seus habitantes. Inclusive o enfrentamento entre o imperador e o bispo. Quando a disputa do Mandylion veio a público, as apostas atingiram cifras astronômicas. Uns diziam que o bispo rezaria a santa missa, outros que ele não compareceria e com essa ofensa ao imperador estaria declarada a guerra entre o papado e Balduíno. Apreensivo, o embaixador veneziano acariciava a barba, e o de Gênova não tirava os olhos da porta. As duas repúblicas tinham interesse em que o Papa excomungasse o imperador, mas se atreveria Inocêncio a ultrajar o rei da França? Balduíno entrou na basílica rodeado da pompa devida a um imperador. Vestido de púrpura, acompanhado de sua esposa, dos nobres mais fiéis e ladeado por seu chanceler, Pascal de Molesmes, sentou-se no trono adornado com lâminas de ouro e prata que ocupava um lugar de destaque na basílica. Depois, passeou os olhos entre seus súditos, sem que nenhum pudesse ler em seu rosto qualquer sinal de preocupação. Os segundos pareciam horas, mas apenas alguns minutos depois Sua Reverendíssima, o bispo de Constantinopla apareceu. Vestindo o pontifical e com passo solene, dirigiu-se ao altar. Um murmúrio percorreu a basílica e o imperador permaneceu impassível, sentado no trono. De Molesmes determinara que se esperasse o bispo por alguns minutos, mas que se este não viesse, um sacerdote a quem remunerara com generosidade oficiaria. A missa transcorreu sem incidentes e o sermão do bispo foi um apelo à concórdia entre os homens e ao perdão. O imperador comungou das mãos do bispo, assim como a imperatriz e seus filhos, e o próprio chanceler também se aproximou para receber a comunhão. A corte entendeu a mensagem: a Igreja não enfrentaria o rei da França. Terminada a cerimônia, o imperador ofereceu um ágape com abundante comida e vinho do ducado de Atenas. Era um vinho forte, encorpado, com acentuado sabor de pinheiro. Balduíno estava de excelente humor. O conde de Dijon aproximou-se do chanceler e perguntou: - E então, senhor De Molesmes, é possível que o imperador já tenha tomado uma decisão? - Meu querido conde, efetivamente o imperador vos dará em breve uma resposta. - Dizei, que devo esperar? - Ainda deveremos tratar de alguns detalhes que preocupam o imperador. - Que detalhes? - Não vos impacienteis. Aproveitai a festa, vinde ver-me amanhã, por volta das dez. - Poderíeis conseguir que o imperador me receba? - Antes de o imperador vos receber, temos de falar; tenho certeza de que chegaremos a um acordo satisfatório para vosso rei e o meu. - Lembro-vos que sois francês como eu e deveis obrigação a Luis. - Ah, meu bom rei Luis! Quando me enviou a Constantinopla ordenou-me encarecidamente que servisse a seu sobrinho como a ele mesmo. Por essa resposta, o conde de Dijon entendeu que a primeira lealdade de De Molesmes era para com Balduíno. - Às dez, irei me reunir convosco. - Esperar-vos-ei. Com uma inclinação de cabeça, o conde de Dijon afastou-se do chanceler, enquanto seus olhos procuravam por Maria, a prima de Balduíno que tanto se empenhava em tornar agradável sua estadia em Constantinopla. André de Saint-Remy saiu da capela seguido por um pelotão de cavaleiros. Passaram ao refeitório onde tiveram por única colação pão e vinho. O superior da comendadoria era um homem austero que se manteve impoluto ante a ostentação da decadente Constantinopla, evitando que a concupiscência ou a comodidade se introduzissem pelas frestas da fortaleza. Ainda não se vislumbrava a primeira luz da manhã. Antes de dirigir-se a seus afazeres, os cavaleiros comiam uma fogaça de pão molhada em vinho. Concluída tão frugal colação, os irmãos templários Bartolomeu dos Capelos, Guy de Beaujeau e Roger Parker dirigiram-se à sala de trabalho de Saint-Remy. Embora tivesse chegado dois minutos antes deles, o superior os esperava impaciente. - O chanceler ainda não me enviou o recado confirmando que serei recebido pelo imperador. Imagino que tenha estado ocupado com os últimos acontecimentos. Balduíno guarda o Mandylion em um arca ao lado de sua cama, e, hoje mesmo, De Molesmes começará a negociar seu preço com o conde de Dijon. A corte nada sabe do que houve com o rei da França, embora seja de se supor que não tardará a chegar algum emissário de Damietta, anunciando as más novas. Não podemos continuar esperando que o chanceler nos mande chamar; iremos ao palácio agora mesmo e eu solicitarei uma audiência com o imperador para comunicar-lhe que seu mui augusto tio é prisioneiro dos sarracenos. Vós me acompanhareis, e guardareis segredo do que irei comunicar ao imperador. Os três cavaleiros assentiram e, seguindo seu superior com passo rápido, chegaram à esplanada da fortaleza onde os cavalariços lhes tinham preparado os arreios. Três criados com cavalgadura e três mulas carregadas com pesados sacos somaram-se à comitiva dos templários. O sol já se havia posto, quando chegaram ao palácio de Blanquernas. Os criados surpreenderam-se ao ver o superior da comendadoria de Constantinopla em pessoa, deduzindo que algo de muito importante devia estar acontecendo para que tão régio cavaleiro fosse a palácio àquelas horas. O chanceler estava lendo, quando um criado entrou precipitadamente na sala para informar-lhe da presença de SaintRemy e de seus cavaleiros e de sua intenção de serem recebidos imediatamente pelo imperador. A inquietação se refletiu no rosto de Pascal de Molesmes. Seu admirado André de Saint-Remy não se apresentaria na corte sem ter uma audiência marcada com o imperador, a não ser que algo de muito grave estivesse acontecendo. Com passo apressado, o chanceler foi a seu encontro. - Meu bom amigo, não vos esperava... - É urgente que eu veja o imperador - respondeu com rudeza SaintRemy. - Dizei, o que houve? O templário mediu cada palavra da sua resposta. - Trago notícias do interesse do imperador. Devemos vê-lo a sós. De Molesmes compreendeu que não arrancaria mais nada do solene templário. Pensou em enganá-lo, dizendo que Balduíno não poderia recebê-lo imediatamente a menos que ele, seu chanceler, estimasse a urgência da notícia. Mas se deu conta de que essa tática não funcionaria com Saint-Remy, e que, se a espera se prolongasse, ele partiria sem dizer palavra. - Aguardai aqui. Informarei o imperador de vossa urgência em vê-lo. Os quatro templários permaneceram na sala, em pé e em silêncio. Sabiam-se observados por olhos invisíveis, capazes de ler seus lábios mesmo que mal pronunciassem as palavras. Estavam esperando, quando o conde de Dijon chegou para seu encontro com o chanceler. - Cavaleiros... Cumprimentaram-se com uma inclinação de cabeça, os templários mal reparando no conde, e este surpreso por ver tão importantes representantes da Ordem do Templo. Ainda não passara nem meia hora, quando o chanceler entrou apressado na sala contígua à chancelaria, onde todos aguardavam. Mostrou desagrado ao ver o Conde de Dijon, apesar da importância que dava ao encontro com o representante do rei da França. - O imperador vos receberá agora em sua sala particular. E vós, Conde de Dijon, tereis que esperar-me, porque eu tenho que aguardar para o caso de o imperador precisar de meus préstimos. Balduíno os esperava em uma sala contígua à do trono. Seus olhos refletiam a preocupação por tão inesperada visita. Intuía que os templários lhe traziam más notícias. - Dizei, cavaleiros, o que há de tão urgente que não pode esperar que eu os receba em audiência como é devido? André de Saint-Remy foi direto ao assunto. - Senhor, haveis de saber que vosso tio, Luis da França, foi feito prisioneiro em Al-Mansura. Neste momento, negociam-se as condições de sua libertação. A situação é grave. Achei prudente avisar-vos. O imperador ficou pálido, como se o sangue tivesse abandonado seu corpo. Durante alguns segundos não conseguiu dizer palavra. Sentiu o coração bater com força e o lábio inferior tremer, como quando era criança e se esforçava para não chorar, temendo que seu pai o castigasse por mostrar um sinal de fraqueza. O templário se deu conta do turbilhão de emoções que afligiam o imperador e continuou falando para lhe dar tempo de se refazer. - Sei quão profundo é o afeto que tendes por vosso tio. Garanto-vos que todos os esforços estão sendo envidados para conseguir a libertação do rei. Balduíno mal conseguiu balbuciar algumas palavras, tamanha era a confusão que reinava em sua mente e em seu coração. - Quando o soubestes? Quem vos disse? Saint-Remy não respondeu às perguntas de Balduíno e por sua vez perguntou. - Senhor, sei bem os problemas que afligem o império e vim oferecer-vos nossa ajuda. - Ajuda? Dizei... - Pensáveis vender o Mandylion a Luis. O rei enviou-vos o conde de Dijon para negociar o contrato de aluguel ou venda. Sei que o Santo Sudário já está em vosso poder e que, uma vez concluído o acordo, o conde o levaria a França para depositá-lo nas mãos de dona Branca. Os banqueiros genoveses vos pressionam, e o embaixador de Veneza escreveu à Senhoria que dentro em pouco poderão comprar a baixo preço o que resta do império. Se não liquidardes parte das dívidas com os venezianos e os genoveses vos transformareis em imperador do nada. Vosso império está se tornando uma ficção. As duras palavras de Saint-Remy minavam o ânimo de Balduíno que, desesperado, torcia as mãos sob as longas mangas da túnica púrpura. Nunca se sentira tão só como naquele momento. Procurou, em vão, com o olhar seu chanceler, os templários tinham pedido para ver o imperador a sós. - O que me sugeris, cavaleiros? - perguntou Balduíno. - A Ordem do Templo está disposta a comprar-vos o Mandylion. Hoje mesmo disporíeis do ouro suficiente para fazer frente às dívidas mais urgentes. Gênova e Veneza vos deixariam em paz... a menos que torneis a endividar-vos. Nossa exigência é o silêncio. Deveis jurar por vossa honra que não direis a ninguém, nem mesmo a vosso bom chanceler, que vendestes o Mandylion à Ordem do Templo. Ninguém deve saber disso, jamais. - Por que me exigis silêncio? - Sabeis que preferimos agir com discrição. Se ninguém souber onde está o Mandylion não haverá rixas nem enfrentamentos entre cristãos. O silêncio é parte do preço. Confiamos em vós, em vossa palavra de cavaleiro e imperador, mas no documento de venda constará que estareis em dívida com a Ordem do Templo, se os termos do acordo forem divulgados. Também vos exigiríamos o pagamento imediato das dívidas que tendes com a Ordem do Templo. Uma forte dor de estômago impedia o imperador de respirar normalmente. Como posso ter certeza de que Luis se encontra, de fato, preso? - Bem sabeis que somos homens honrados para quem a mentira é inaceitável. - Quando eu disporia do ouro? - Agora mesmo. Saint-Remy sabia que para Balduíno a tentação era enorme. Se aceitasse a oferta, boa parte de seus problemas mais urgentes estariam resolvidos. Naquela mesma manhã poderia chamar o veneziano e o genovês, e saldar as dívidas com eles. - Ninguém na corte acreditará que o dinheiro caiu do céu. - Dizei a verdade, dizei que vos foi dado pela Ordem do Templo, mas não lhes digais por quê. Que achem que é um empréstimo. - E se eu não aceitar? - Estais em vosso direito, senhor. Ficaram em silêncio. Balduíno tentando pensar qual a melhor decisão a tomar. Saint-Remy, tranqüilo, sabendo que o imperador aceitaria sua proposta, tão bem conhecia a alma humana. O imperador fixou o olhar no templário e com uma voz quase inaudível, esboçou uma palavra: - Aceito. Bartolomeu dos Capelos entregou a seu superior um documento que este entregou ao imperador. - Este é o documento do acordo. Lede, aí estão os termos de que vos falei. Assinai e nossos criados depositarão onde ordenardes o ouro que trouxemos conosco. - Tão certos estavam de que eu aceitaria? - lamentou-se Balduíno. Saint-Remy guardou silêncio, sustentando o olhar no imperador. Este tomou uma pena de ganso, estampou sua assinatura e a autenticou com o sinete imperial. - Esperai aqui, eu vos trarei o Mandylion. O imperador saiu por uma porta oculta atrás de uma tapeçaria. Minutos depois, voltou e entregou-lhes um linho cuidadosamente dobrado. Os templários o estenderam o suficiente para comprovar se era o autêntico Mandylion. Depois tornaram a dobrá-lo. A um gesto de Saint-Remy, Roger Parker, o cavaleiro de origem escocesa, e, o português, Dos Capelos, saíram da sala imperial e, com passo rápido, se dirigiram à entrada do palácio onde seus criados os aguardavam. Pascal de Molesmes, que esperava na antecâmara, observava o vaivém dos templários e de seus criados, carregando pesados sacos. Sabia que era inútil perguntar o que levavam nas mãos, e estranhava não ter sido chamado pelo imperador. Pensou em introduzir-se na sala, mas podia provocar a ira de Balduíno, por isso o mais prudente era esperar. Duas horas depois, e já com os sacos de ouro guardados em um compartimento secreto escondido na parede sob a tapeçaria, Balduíno se despediu dos templários. Cumpriria a promessa de guardar silêncio, não só porque dera sua palavra de imperador, mas também porque temia André de SaintRemy. O superior da comendadoria templária era um homem piedoso, consagrado à causa do Senhor, mas seu olhar refletia o homem que levava dentro dele, um homem a quem não tremia a mão para defender aquilo em que acreditava, ou com que se comprometia. Quando Pascal de Molesmes entrou na câmara real, encontrou Balduíno pensativo, mas tranqüilo, como se tivesse se livrado de um peso. O imperador informou-o do infortúnio de seu tio, o rei da França, e de como, dadas as circunstâncias, aceitara um novo empréstimo dos templários, para fazer frente à dívida com Veneza e Gênova até que o bom rei Luis recuperasse a liberdade. O chanceler ouviu-o preocupado, intuindo que Balduíno lhe escondia alguma coisa, mas não disse nada. - E que fareis com o Mandylion? - Nada. Vou guardá-lo em um lugar secreto, e esperar que Luis seja libertado. Então decidirei o que fazer. Pode ter sido um aviso de Nosso Senhor para evitar que pequemos, vendendo sua sagrada imagem. Chamai os embaixadores e comunicai que lhes entregaremos o ouro que devemos às suas cidades. E fazei entrar o conde de Dijon, para que eu possa comunicar-lhe o que ocorreu ao rei da França. André de Saint-Remy estendeu cuidadosamente o Sudário, e viu aparecer em toda sua extensão o corpo do Crucificado. Os cavaleiros caíram de joelhos e, guiados por seu superior, rezaram. Nunca tinham visto o Sudário inteiro. Na urna em que estava depositado o Mandylion em Santa Maria de Blaquernas apenas o rosto de Jesus podia ser visto, como se fosse um retrato pintado. Mas lá estava agora, diante deles, a silhueta inteira de Cristo com as marcas da tortura que sofreu. Perderam a conta das horas que passaram rezando, mas caía a tarde quando Saint-Remy se levantou e, dobrando cuidadosamente a mortalha, se dirigiu com ela à sua câmara. Minutos depois, mandou chamar seu irmão Robert e o jovem cavaleiro François de Charney. - Preparai vossa partida o quanto antes. - Se nos autorizardes, poderemos sair dentro de algumas horas, quando as sombras da noite nos envolverem - sugeriu Robert. - Não será perigoso? - perguntou o superior. - Não, é melhor sairmos da comendadoria quando ninguém nos veja e os olhos dos espiões estejam vencidos pelo sono. Não diremos a ninguém que partimos - disse De Charney. - Prepararei o Mandylion para que não sofra os rigores da viagem. Vinde recolhê-lo antes de partir, não importa a hora, também levareis uma carta minha e outros documentos ao grão-mestre Renaud de Vichiers. Não vos desvieis do caminho de Acre por motivo algum. Sugiro-vos que vos façam acompanhar por alguns irmãos, talvez Guy de Beaujeau, Bartolomeu dos Capelos... - Irmão - interrompeu-o Robert -, rogo-vos que nos deixeis ir sozinhos. É mais seguro. Podemos nos confundir com a paisagem, e contamos com a ajuda de nossos escudeiros. Se formos sozinhos, não despertaremos suspeitas, mas se sairmos acompanhados de um grupo de irmãos, então os espiões saberão que levamos algo conosco. - Levais o mais precioso dos tesouros da Cristandade... - ... que defenderemos com a vida - acrescentou De Charney. - Assim seja. Agora deixai-me, devo escrever a carta. E rezai, rezai pedindo a Deus que vos guie vosso destino. Só Ele pode garantir o sucesso da missão. Era noite alta. Não havia uma estrela no céu. Robert de Saint-Remy e François de Charney saíram cautelosamente de suas câmaras e se dirigiram à de André de Saint-Remy. O silêncio reinava e no interior da fortaleza os cavaleiros dormiam. Nas ameias, alguns cavaleiros templários ao lado de soldados a seu serviço permaneciam de guarda. Robert de Saint-Remy empurrou levemente a porta da cela de seu irmão e superior. Encontraram-no, ajoelhado, rezando diante de uma cruz em um canto do cômodo. Ao notar a presença dos dois cavaleiros ele se levantou e, sem dizer palavra, entregou a Robert uma bolsa de tamanho médio. - O Mandylion está aqui dentro, em uma pequena arca de madeira. Eis os documentos que entregareis ao grão-mestre, e ouro para a viagem. Que Deus vos acompanhe. Os dois irmãos se abraçaram. Não sabiam se tornariam a se ver. O jovem De Charney e Robert de Saint-Remy vestiam seus trajes sarracenos e, ocultando-se no negrume da noite, foram aos estábulos onde seus escudeiros os aguardavam acalmando a impaciência dos cavalos. Deram a contra-senha aos soldados que guardavam os portões, e deixaram a segurança da comendadoria para tomar o caminho de São João de Acre. 32 Mendibj passeava pelo estreito pátio da prisão, aproveitando os raios de sol que iluminavam a manhã sem aquecê-la. Ouvira o suficiente para saber que devia estar alerta. O nervosismo da psicóloga e da assistente social o fazia pensar que estavam tramando algo e que ele era a peça de caça. Passara pelo exame médico, fora examinado de novo pela psicóloga e até o diretor assistira a uma daquelas cansativas sessões em que a doutora se empenhava em fazê-lo reagir aos estúpidos estímulos que ela lhe punha como chamariz. Por fim, a Junta de Segurança da prisão assinara seu alvará de soltura, e só faltava a ratificação do juiz para, em sete dias o mais tardar, ele estar na rua. Sabia o que tinha de fazer. Vagaria pela cidade até estar convencido de que ninguém o seguia. Depois se aproximaria do parque Carrara, iria lá por vários dias, observaria Arslan de longe, e não deixaria cair o papel indicando sua presença até ter certeza de que ninguém lhe preparava uma cilada. Temia por sua vida. Aquele policial que o visitara não parecia um fanfarrão; ele ameaçara fazer o impossível para que Mendibj passasse o resto de sua vida na prisão, e, de repente, tudo eram facilidades para que ele recuperasse a liberdade. A polícia, pensou, está preparando alguma coisa. Talvez achem que, saindo à rua, eu os leve até meus contatos. Isso mesmo, é isso que procuram, eu sou só o chamariz. Preciso tomar cuidado. O mudo passeava de um lado para outro, sem perceber que, disfarçadamente, era observado por dois jovens. Altos, de compleição forte e o rosto embrutecido pela experiência da prisão, os dois irmãos Bakherai comentavam em voz baixa os detalhes do assassinato que se dispunham a cometer. Enquanto isso, na sala do diretor da prisão, Marco Valoni falava com este e com o chefe dos carcereiros. - É pouco provável que aconteça alguma coisa, mas não podemos deixar nenhuma brecha. Por isso é preciso garantir a segurança do mudo enquanto ele ainda estiver por aqui - insistia Marco com seus interlocutores. - Mas, senhor Valoni, quem vai se interessar pelo mudo? É como se ele não existisse, não fala, não tem amigos, não se comunica com nenhum detento. Garanto que ninguém lhe faria mal nenhum respondeu o chefe dos carcereiros. - Entenda, não podemos correr riscos. Não sabemos quem estamos enfrentando. Pode ser que seja um pobre homem, pode ser que não. Fizemos pouco barulho, mas o suficiente para que tenha chegado a alguns ouvidos que o mudo vai sair da prisão. Alguém tem que me garantir que ele estará seguro aqui dentro. - Mas, Marco - argumentou o diretor - nesta prisão nunca houve acerto de contas, nem assassinatos entre presos, nem nada parecido, por isso não estou preocupado. - Pois eu estou, e muito. E o senhor Genari, como chefe dos carcereiros deve saber bem quem são os chefes da prisão. Quero falar com eles. Genari fez um gesto de impotência. Não tinha como convencer esse policial a não meter o nariz nos assuntos da prisão. Valoni queria que lhe dissesse quem mandava lá dentro, como se pudesse fazê-lo sem arriscar o próprio pescoço. Marco intuiu as reservas de Genari, por isso tentou fazer seu pedido de outro modo. - Vamos ver, Genari, aqui dentro deve haver um preso de quem os outros têm medo. Traga-o para mim. O diretor da prisão se mexeu incômodo na poltrona, enquanto Genari se trancava em um obstinado silêncio. Por fim, o diretor interveio em favor de Marco. - Genari, você conhece esta prisão como ninguém. Deve haver alguém aqui com as características que o senhor Valoni falou. Traga essa pessoa. Genari se levantou. Sabia que não podia esticar muito a corda, sem despertar as suspeitas de seu superior e daquele intrometido policial de Roma. Sua prisão funcionava às mil maravilhas, havia regras não-escritas que todos respeitavam e agora Valoni queria saber quem movia os fios. Mandou um ajudante procurar o chefe, Frasquello. Naquela hora estaria falando pelo celular, dando instruções a seus filhos sobre como comandar o tráfico de droga que o levara à prisão por causa de uma delação. Frasquello entrou carrancudo na salinha do chefe dos carcereiros. - O que quer de mim? Por que está me incomodando? - Porque tem um policial teimando em falar com você. - Eu não falo com policiais. - Mas com este vai ter de falar, senão ele vai pôr a prisão de pernas para o ar. - Não tenho nada a ganhar falando com esse polícia, Se está com algum problema, resolva; e me deixe em paz. - Não, não vou te deixar em paz! - gritou Genari. - Você vai comigo ver esse policial e falar com ele. Quanto antes ele resolver seu assunto, mais cedo irá embora e nos deixará em paz. - O que esse polícia quer? Por que ele quer falar comigo? Eu não conheço nenhum polícia, nem quero conhecer. Me deixe em paz. O chefe ameaçou sair da sala, mas, antes que pudesse abrir a porta, Ganeri se atirou em cima dele, agarrando-o pelo braço e imobilizando-o com uma chave. - Me solte! Você está louco? Pode se considerar um homem morto! Nesse momento a porta se abriu. Marco Valoni olhou para os dois homens e pôde ver como estavam tomados pela ira. - Solte-o! - ordenou a Genari. O chefe dos carcereiros soltou o braço de Frasquello, que permaneceu imóvel, examinando o recém-chegado. - Eu achei melhor vir aqui para você não ter de ir à sala do diretor. Ele recebeu um telefonema, então eu disse que, para não incomodar, eu vinha à sua sala. Parece que cheguei a tempo, porque você encontrou nosso homem. Sente-se - ordenou a Frasquello. O chefe não se mexeu. Genari, nervoso, olhou-o com ódio. - Sente-se! - repetiu Valoni aborrecido. - Não sei quem é você, mas conheço meus direitos, e sei que não sou obrigado a falar com um policial. Vou ligar para o meu advogado. - Não vai ligar para advogado nenhum. Vai me ouvir e fazer o que eu mandar, senão será transferido para um lugar onde não tem seu bom amigo Genari para fazer vista grossa. - O senhor não pode me ameaçar. - Não estou ameaçando ninguém. - Chega! O que quer de mim? - Já que está começando a ser razoável, vou falar claramente: não pode acontecer nada a um homem que está nesta prisão. - Fale com o Genari, ele é o chefe. Eu estou preso. - Estou dizendo a você, porque é você que vai se encarregar de que não aconteça nada a esse homem. - Ah, é? E como vou fazer isso? - Não sei, nem me interessa saber. - Vamos supor que eu aceite, o que ganho com isso? - Algumas regalias aqui dentro. - Ha, ha, ha... Disso meu amigo Genari já cuida. Com quem pensa que está falando? - Bem, vou examinar seu prontuário e ver se é possível alguma redução de pena por colaborar com a justiça. - Não adianta só olhar meu prontuário, tem que me dar garantias. - Não vou dar garantia nenhuma. Vou falar com o diretor da prisão e recomendar que a Junta de Segurança avalie seu comportamento, seu estado psicológico, suas possibilidades de reintegrar-se à sociedade. Mas não farei nada além disso. - Então nada feito. - Se não aceitar, vai começar a perder alguns desses privilégios a que Genari o acostumou. Revistarão sua cela de cima a baixo e o regulamento será aplicado estritamente. Genari será transferido para outra prisão. - Me diga quem é o homem. - Vai fazer o que eu pedi? - Me diga quem é. - É um mudo, um jovem que... A risada de Frasquello interrompeu Marco. - Quer que eu dê proteção a esse pobre infeliz? Ninguém liga para ele, não incomoda ninguém. Sabe por quê? Porque ele não é nada, é um pobre infeliz. - Quero que não aconteça nada com ele nos próximos sete dias. - Quem poderia fazer alguma coisa para ele? - Não sei. Mas você deve impedir. - Por que tanto interesse no mudo? - Não é da sua conta. Faça o que lhe pedi e continuará gozando destas férias às custas do Estado. - Combinado. Vou dar uma de babá do mudo. Marco saiu da sala com uma certa sensação de alívio. O chefe era um homem inteligente. Faria o que lhe pedira. Agora vinha a segunda parte: conseguir os tênis do mudo, os únicos que ele tinha, e colocar o transmissor. O diretor prometera que de noite, quando o mudo voltasse à sua cela, mandaria um carcereiro apanhar os tênis. Ainda não sabia ao certo que desculpa ia dar, mas garantiu que o faria. John enviara a Turim Larry Smith, um perito em transmissões capaz, ele dissera, de colocar um microfone em uma unha. Bem, veria se ele era mesmo tão bom como diziam. 33 O duque de Valant pedira uma audiência com o chanceler. Na hora prevista chegou acompanhado de um jovem comerciante ricamente vestido. - Dizei-me, duque - perguntou o chanceler -, que assunto é esse tão urgente que quereis tratar com o imperador? - Senhor chanceler, peço-vos que escuteis este cavaleiro que me honra com sua amizade. É um respeitado comerciante de Edessa. Pascal de Molesmes, de má vontade, mas por cortesia para com o duque, ouviu o que o jovem comerciante tinha a dizer. Este lhe expôs, sem circunlóquios, o motivo de sua viagem. - Sei das dificuldades financeiras do império, e venho fazer uma oferta ao imperador. - Quereis fazer uma oferta ao imperador? - exclamou entre irritado e divertido o chanceler. - E que oferta é essa? - Represento um grupo de nobres comerciantes de Edessa. Como sabeis, faz muito tempo que um imperador de Bizâncio tomou à minha cidade, pela força das armas, sua mais preciosa relíquia: o Mandylion. Nós somos homens de paz, vivemos honestamente, mas gostaríamos de devolver à nossa Comunidade o que lhe pertencia e lhe foi roubado à força. Não venho suplicar que no-lo devolvais agora que pertence ao imperador, pois todos sabem que ele obrigou o bispo a entregá-lo e que o rei da França jura que seu sobrinho não o vendeu. Se o Mandylion estiver nas mãos de Balduíno, queremos comprá-lo. Pagaremos o preço que for. - De que Comunidade falais? Edessa não está nas mãos dos muçulmanos? - Somos cristãos, e nunca fomos incomodados pelos atuais senhores de Edessa. Pagamos altos tributos e realizamos nossa atividade em paz. De nada podemos nos queixar. Mas o Mandylion nos pertence e deve voltar à nossa cidade. Pascal de Molesmes ouvia, agora com interesse, o jovem impertinente que ousava propor sem cerimônia a compra do Mandylion. - E quanto estais disposto a pagar? - Dez sacos de ouro com o peso de um homem. O chanceler, apesar de impressionado com a quantia, não moveu um músculo. O império voltava a estar endividado, e Balduíno se desesperava, procurando empréstimos, por mais que seu tio, o bom rei Luis, não o abandonasse. - Transmitirei vossa oferta ao imperador e vos mandarei chamar quando tiver uma resposta. Balduíno escutou arrependido seu chanceler. Jurara não revelar jamais a venda do Mandylion aos templários. Sabia que devia responder por isso com a própria vida. - Deveis dizer a esse comerciante que recuso sua oferta. - Mas Senhor, considerai! - Não, não posso. Não torne a me pedir que venda o Mandylion. Nunca mais! Pascal de Molesmes saiu cabisbaixo da sala do trono. Suspeitava do constrangimento de Balduíno sempre que lhe falava do Mandylion. Fazia já dois longos meses que o Santo Sudário estava nas mãos do imperador, embora não o tivesse mostrado a ninguém, nem sequer a ele, seu chanceler. Corria a lenda de que aquele ouro generoso entregue pelo superior dos templários de Constantinopla, André de Saint-Remy, fora em pagamento da posse do Mandylion. Mas Balduíno sempre negara esses rumores; jurava que a sagrada mortalha se encontrava em lugar seguro. Quando o rei Luis foi libertado e regressou à França enviou de novo o conde de Dijon com uma oferta ainda mais generosa pelo Mandylion, mas para surpresa da corte de Constantinopla, o imperador se mostrou inflexível e garantiu diante de todos que não venderia a relíquia a seu tio. Agora recusava outra oferta considerável, de modo que Pascal de Molesmes deu livre curso em sua imaginação às suspeitas de que Balduíno não possuía mais o Mandylion, porque o vendera aos templários. Naquela tarde, mandou chamar o duque de Valant e seu jovem protegido para comunicar-lhes a negativa do imperador. De Molesmes se surpreendeu quando o comerciante de Edessa lhe garantiu que estava disposto a dobrar a oferta. Mas o chanceler não quis lhe dar falsas esperanças. - Então é verdade o que se diz na corte? - perguntou o duque de Valant. - E o que se diz na corte, meu bom amigo? - Que o imperador não possui mais o Mandylion, que o entregou em penhora aos templários em troca do ouro que deles recebeu para pagar Veneza e Gênova. Só assim se pode entender que recuse tão generosa oferta dos comerciantes de Edessa. - Eu não levo em conta os rumores nem as intrigas da corte, aconselho-vos também a não acreditar em tudo o que se diz. Transmiti-vos a palavra do imperador, e não há mais o que dizer. Pascal de Molesmes se despediu de seus convidados, alimentando as mesmas suspeitas que eles: o Mandylion estava nas mãos dos templários. A fortaleza da Ordem do Templo se erguia sobre uma rocha junto ao mar. A cor dourada da pedra se confundia com a areia do deserto próximo. A fortaleza se elevava altiva dominando um amplo terreno, um dos últimos baluartes cristãos na Terra Santa. Robert de Saint-Remy esfregou os olhos como se a visão da fortaleza templária fosse uma miragem. Calculou que em poucos minutos se veriam rodeados de cavaleiros que os observavam fazia algumas horas. Tanto ele como François de Charney pareciam autênticos sarracenos. Até seus cavalos puro-sangue árabe os ajudavam a ocultar sua identidade. Ali, seu escudeiro, revelou-se mais uma vez guia experiente e um amigo fiel. Devia-lhe a vida, ele o salvara quando foram atacados por uma patrulha de aiubes. Combateu a seu lado com bravura e impediu que uma lança que tinha por alvo seu coração chegasse a seu destino, interpondo-se para receber na própria carne o ferro assassino. Nenhum dos aiubes sobreviveu ao ataque, mas Ali agonizou por vários dias, tendo Robert de Saint-Remy sempre a seu lado. Voltou à vida graças às beberagens de Said, o escudeiro de De Charney, que aprendera os remédios com médicos da Ordem do Templo e os muçulmanos com quem tratara em suas correrias. Foi Said que arrancou o ferro da lança do fIanco de Ali e que limpou cuidadosamente a ferida, cobrindo-a com um emplastro feito com umas ervas que sempre levava consigo. Também fez com que tomasse uma beberagem malcheirosa com que o induziu a um sono reparador. Quando o cavaleiro De Charney perguntava a Said se Ali viveria, ele invariavelmente respondia, para desespero dos dois templários, com um "Só Alá sabe". Ao cabo de sete dias, Ali voltou à vida despertando do sono em que mergulhara e que tanto se assemelhava à morte. A dor no pulmão o dilacerava e respirar era um sacrifício, mas Said então disse que, sim, que Ali viveria e todos recobraram o ânimo. Ali demorou mais sete dias para se levantar, e outros sete para cavalgar seu dócil corcel ao que sujeitaram com cilhas para que, em caso de que perdesse os sentidos, não desse com os ossos no chão. Ali se curou, e lá estava ele, a seu lado, a ponto de entrar na fortaleza, quando uma nuvem de poeira levantada pelos cascos de uma dúzia de cavalos os envolveu. Eram os cavaleiros templários que se faziam presentes e o comandante da patrulha ordenou que fizessem alto. Depois que se identificaram, foram escoltados até a fortaleza e levados imediatamente à presença do grão-mestre. Renaud de Vichiers, o grão-mestre da Ordem do Templo, os recebeu com afeto. Apesar do cansaço, informaram a De Vichiers, durante uma hora, sobre alguns detalhes da viagem e lhe entregaram a missiva e os documentos que André de Saint-Remy lhes enviara e a bolsa onde estava o Mandylion. O grão-mestre mandou que fossem descansar e deu ordens de pouparem Ali de qualquer trabalho até que se recuperasse totalmente. Depois, já sozinho, Renaud de Vichiers tirou da bolsa, com a mão trêmula, a arca que continha o Mandylion. Sentia que a emoção dominava os seus sentidos, pois ia conhecer o rosto de Cristo Nosso Senhor. Estendeu o linho, e de joelhos, rezou, dando graças a Deus por terlhe permitido contemplar sua verdadeira face. Caía a tarde do segundo dia da chegada de Robert de Saint-Remy e François de Charney, quando o grão-mestre chamou os cavaleiros da Ordem à Sala Capitular. Lá, sobre uma mesa alongada, estava exposto o Mandylion. Eles passaram, um por um, diante da mortalha de Cristo, e alguns daqueles robustos cavaleiros só com muito esforço conseguiram conter as lágrimas. Depois das orações, Renaud de Vichiers explicou-lhes que o Santo Sudário de Cristo permaneceria em uma urna, oculto a olhos indiscretos. Era a jóia mais preciosa da Ordem do Templo e eles a defenderiam com a própria vida. Depois fez com que jurassem que a ninguém diriam onde estava o Mandylion. A posse da relíquia passava a ser um dos grandes segredos da Ordem dos Cavaleiros Templários. 34 Marco os convidara para almoçar. Minerva, Pietro e Antonino chegaram no primeiro vôo da manhã. Pietro estava frio, distante, quase antipático com Sofia, a ponto de ela se sentir constrangida. Mas sabia que não tinha escolha: enquanto estivesse no Departamento de Arte teria de trabalhar com Pietro, o que reforçava sua decisão de se demitir, assim que o caso do Sudário estivesse encerrado. O almoço estava quase chegando ao fim, quando o celular de Sofia tocou. - Alô...? Ao identificar a voz que falava do outro lado da linha, ela corou; também o fato de se levantar da mesa e sair do salão chamou a atenção de seus colegas. Quando ela voltou, ninguém perguntou nada, mas era evidente que Pietro estava tenso. - Marco, era D'Alaqua. Ele me convidou para almoçar amanhã com o doutor Bolard e o resto do comitê científico do Sudário; é uma espécie de almoço de despedida. - Você aceitou, não é? - perguntou Marco. - Não - respondeu Sofia um pouco confusa. - Pois fez muito mal. Eu disse que queria você na cola deles. - Se estou bem lembrada, amanhã vamos fazer um ensaio geral com todo o dispositivo que você montou, e pelo que me consta eu coordeno toda a operação. - Tem razão, mas era uma boa oportunidade de tornar a ver esse comitê, principalmente o Bolard. - De qualquer modo, vou almoçar com D'Alaqua depois de amanhã. Todos a olharam espantados. O próprio Marco não pôde conter um sorriso. - Ah! Como é que é? - Simplesmente ele reiterou o convite para o dia seguinte, só que sem os membros do comitê científico. Minerva viu como Pietro apertava o punho contra a mesa. Antonino também se sentia constrangido com a conversa entre Sofia e Marco, pela tensão demonstrada por Pietro. De modo que, sem mais delongas, insistiram com Marco para ele pedir a conta e começaram a falar sobre os detalhes da operação do dia seguinte. De jeans e jaqueta, sem maquiagem, e de rabo-de-cavalo, Sofia já estava arrependida de ter se arrumado daquele jeito para almoçar com D'Alaqua. Não estava feia e a jaqueta e os jeans eram da Versace, mas queria mostrar a D' Alaqua que aquele era um encontro de trabalho e nada mais. O carro saiu de Turim e, poucos quilômetros depois, entrou em uma estradinha que dava em um imponente palazzo renascentista oculto por um bosque. O portão se abriu sem que o chofer de D'Alaqua pressionasse nenhum controle e sem que ninguém se aproximasse para identificá-los. Ela imaginou que houvesse câmaras ocultas por todo canto. Umberto D'Alaqua a aguardava, na porta, trajando um elegante terno de sarja cinza escuro. Sofia não pôde esconder sua surpresa, quando entrou no palazzo. Era um museu transformado em moradia. - Convidei-a para vir à minha casa porque sabia que gostaria de ver alguns dos quadros que tenho. Por mais de uma hora, passearam por vários cômodos decorados com magníficas obras de arte distribuídas de modo muito inteligente. Conversaram animadamente sobre arte, política, literatura. O tempo passou tão depressa para Sofia que ela se surpreendeu quando D'Alaqua se desculpou, dizendo que devia ir para o aeroporto porque às sete viajava para Paris. - Desculpe, eu atrasei você. - De modo algum. Ainda são seis horas, e se não tivesse que estar em Paris hoje à noite, teria o maior prazer que ficasse para jantar. Volto daqui a dez dias. Se ainda estiver em Turim, espero tornar a vê-Ia. - Não sei. É possível que até lá já tenhamos terminado ou estejamos terminando. - Terminado? - A investigação sobre o incêndio da catedral. - Ah! E como vai isso? - Bem. Na fase final. - Não pode ser mais explícita? - Bom... - Não se preocupe, eu entendo. Quando terminar a investigação e tudo estiver esclarecido, falaremos disso. Sofia se sentiu aliviada com a reação de D'Alaqua. Marco lhe proibira de contar o que quer que fosse e, embora ela não compartilhasse de suas suspeitas sobre D'Alaqua, seria incapaz de desobedece-lo. Dois carros os aguardavam na porta. Um deles levaria Sofia ao Alexandra, e o outro, D'Alaqua ao aeroporto, onde seu avião particular o esperava. Despediram-se com um aperto de mãos. Por que querem matá-lo? - Não sei. Faz dias que planejam o crime. Estão tentando subornar o carcereiro para ele deixar a porta da cela do mudo aberta. O plano é entrar amanhã à noite, cortar o pescoço dele e voltar para a cela. Ninguém ia perceber nada, os mudos não gritam. - O carcereiro vai aceitar? - Pode ser. Dizem que eles têm muito dinheiro. Acho que vão oferecer cinqüenta mil euros. - Quem mais está sabendo? - Outros dois companheiros. Eles confiam em nós porque também somos turcos. - Pode ir. - Vai me pagar pela informação? - Vou. Frasquello ficou pensativo. Por que os irmãos Bakherai queriam matar o mudo? Era, sem dúvida, um assassinato por encomenda, mas quem encomendou? Chamou seus lugares-tenentes, dois homens que cumpriam pena de prisão perpétua por assassinato. Conversou com eles durante meia hora. Depois, pediu a um carcereiro que chamasse Genari. Já passava de meia-noite, quando o chefe dos carcereiros entrou na cela de Frasquello. Ele assistia um programa de televisão e nem se mexeu ao vê-lo. - Não faz barulho e senta. Diga a seu amigo polícia que ele tinha razão. Querem mesmo matar o mudo. - Quem? - Os Bakherai. - E por quê? - perguntou Genari surpreso. - Não sei e nem quero saber. Estou cumprindo minha parte, ele que cumpra a dele. - Você pode impedir? - Vai embora. Gcnari saiu da cela com passo rápido, foi até sua sala e ligou para o celular de Marco Valoni. Marco lia. Estava cansado. Testaram de novo o dispositivo que acionariam assim que o mudo saísse da prisão. Além disso, voltara aos subterrâneos e, por duas horas, andara de um lado para o outro, batendo nas paredes, esperando ouvir o som característico do muro oco. O comandante Colombaria, com uma paciência à toda prova, acompanhou Marco no novo périplo, tentando convencê-lo de que lá embaixo não havia nada além do que se podia ver. - Senhor Valoni, é Genari. Marco olhou o relógio, passava de meia-noite. - O senhor tinha razão. Querem mesmo assassinar o mudo. - Ah, é? E o que mais? - Frasquello descobriu que dois irmãos, dois turcos, os Bakherai, querem apagar o mudo. Parece que andam dizendo que receberam dinheiro para fazer isso. Vai ser amanhã. Deveriam tirar o mudo daqui logo. - Não, não podemos fazer isso. Ele ia desconfiar que está acontecendo alguma coisa e poria tudo a perder. Frasquello cumprirá sua parte do trato? - Já está cumprindo. Ele mandou dizer que é o senhor que deve cumprir a sua. - Vou cumprir. Você está na prisão? - Estou. - Bem, vou acordar o diretor; daqui a uma hora estou aí. Quero toda a informação que tenham sobres esses dois irmãos. - São turcos, bons meninos, mataram um homem em uma briga, mas não são assassinos. Quer dizer, não são profissionais. - Quando eu chegar aí, você me conta. Marco acordou o diretor e insistiu para que o encontrasse em sua sala na prisão, Depois, telefonou para Minerva, - Te acordei? - Não, eu estava lendo. Aconteceu alguma coisa? - Apronte-se. Daqui a quinze minutos te espero no saguão. Quero que você vá até a central dos carabinieri, sente na frente do computador e procure tudo o que puder sobre uns pássaros. Eu vou para a prisão e te ligo de lá com a informação que me passarem. - Mas o que está acontecendo? - O que está acontecendo é que minha intuição ainda funciona muito bem e tem dois caras querendo matar o mudo. - Meu Deus! - Daqui a quinze minutos, lá embaixo. Não se atrase. Quando Marco chegou à prisão, o diretor já o esperava em sua sala. O homem bocejava, sem conseguir disfarçar seu cansaço. - Quero a ficha completa dos Bakherai. - Dos irmãos Bakherai? Mas o que eles fizeram? Você confia no que diz o Frasquello? Olha, Genari, quando isto acabar você vai ter que me explicar sua relação com Frasquello. O diretor procurou a ficha dos irmãos e a entregou a Marco, que se sentou no sofá e mergulhou em sua leitura. Quando terminou, telefonou para Minerva. - Estou dormindo em pé. - Então pode ir acordando e começar a procurar tudo que diz respeito a esta família de turcos que, apesar de terem nascido aqui, são filhos de imigrantes. Quero saber tudo sobre eles e seus familiares. Fala com a Interpol, com a polícia turca, enfim, daqui a três horas quero um relatório completo. - Três horas? Nem pensar. Preciso de prazo até amanhã. - Às sete. - Está bem, cinco horas, já é alguma coisa. O salão do hotel onde serviam o café da manhã abria às sete em ponto. Minerva, com os olhos vermelhos pela noite em claro e por tantas horas diante do computador, entrou no recinto, certa de que encontraria Marco. Seu chefe estava lendo o jornal e tomando um café. Ele também estava abatido, notavam-se em seu rosto os efeitos da vigília. Minerva colocou duas pastas sobre a mesa e se deixou cair na cadeira. - Ufa, estou exausta! - Imagino. Achou algo interessante? - Depende do que você ache interessante. - Por que não tenta me contar? - Os irmãos Bakherai são filhos de imigrantes turcos. Seus pais foram primeiro para a Alemanha e de lá vieram para Turim. Conseguiram trabalho em Frankfurt, mas, como a mãe não se adaptou ao espírito germânico, e eles tinham uns parentes aqui, decidiram tentar a sorte. Os filhos são italianos, turineses, O pai trabalhou na Fiat e a mãe como doméstica. Os rapazes freqüentaram a escola, e não foram nem bons nem maus alunos. O mais velho era mais encrenqueiro e o mais esperto. Tem um bom histórico escolar. Quando terminaram o colegial, o mais velho foi trabalhar na Fiat, como o pai. O caçula foi trabalhar de chofer para um chefão do governo regional, um tal de Régio, que o contratou porque sua mãe trabalhara de doméstica em sua casa. O mais velho durou pouco na Fiat, não tinha jeito para operário, de modo que alugou um boxe no mercado e foi vender verduras e hortaliças. Iam indo bem, nunca tiveram nenhum problema com a polícia, nem com a Fazenda. Nada. O pai se aposentou, a mãe também. Vivem da pensão do Estado e das economias de toda a vida. Não possuem bens, só a casa que compraram há quinze anos, com muito sacrifício. Há dois anos, num sábado à noite, os Bakherai estavam numa discoteca com as namoradas. Uns sujeitos bêbados mexeram com elas, parece que um deles passou a mão no traseiro da namorada do mais velho. O boletim de ocorrência diz que os irmãos sacaram as navalhas e se atracaram a facadas com os bêbados. Mataram um cara e feriram o outro que ficou com um braço inutilizado. Foram condenados a vinte anos, ou seja, para o resto da vida. As namoradas não esperaram. Já estão casadas. - O que você descobriu sobre a família na Turquia? - É gente humilde. São de Urfa, perto da fronteira com o Iraque. A polícia turca nos mandou um e-mail, através da Interpol, com o que eles têm sobre a família Bakherai, que é muito pouco e nada de muito interessante. O pai tem um irmão mais novo em Urfa, que trabalha nos campos de petróleo, mas está para se aposentar. Ah!, também têm uma irmã, casada com um professor com quem teve oito filhos. São gente de bem, nunca tiveram problemas. Os turcos estranharam que perguntássemos por eles. Acho que arrumamos um problema para essa pobre família, porque você sabe como é a polícia turca. - Mais alguma coisa? - Sim. Aqui em Turim mora um primo da mãe, um tal Amin, ao que tudo indica, um cidadão exemplar. É contador, há muitos anos, numa agência de publicidade. É casado com uma italiana que trabalha numa loja de modas. Eles têm duas filhas, a mais velha está na universidade, a caçula está quase terminando o colegial. Vão à missa todo domingo. - A missa? - É, à missa, normal, não é? Afinal, estamos na Itália. - É, mas esse primo não é muçulmano? - Isso eu não sei, acho que sim, mas é casado na igreja com uma italiana, ou seja, deve ter se convertido, apesar de que em sua ficha não consta nenhum certificado de conversão. - Investigue. Investigue também se os Bakherai iam à mesquita. - Que mesquita? - Tem razão, estamos na Itália. De qualquer modo alguém deve saber se eram bons muçulmanos. Você conseguiu entrar em suas contas correntes? - Consegui, e está tudo OK. O primo tem um salário razoável, a esposa também. Dá para viver bem, apesar de ainda estarem pagando as prestações do apartamento. Não tiveram nenhum grande depósito de dinheiro. É uma família muito unida e sempre visitam os irmãos presos, levando comida, doces, cigarro, livros, roupa. Enfim, procuram fazer com que a vida na prisão não seja tão dura. - Sim, eu sei. Tenho aqui uma cópia do registro das visitas. O tal Amin visitou os Bakherai duas vezes este mês, quando o normal é só uma. - Bom, também ir um dia a mais não tem nada de suspeito. - Temos de analisar tudo, até o irrelevante. - Certo, certo; mas, Marco, não devemos perder o foco. - Sabe o que me chama a atenção? O fato de ele ir à missa e ter casado na Igreja. Os muçulmanos não mudam de religião assim tão fácil. - Daqui a pouco você vai querer investigar todos italianos que são católicos mas não põem o pé na igreja. Sabe, tenho uma amiga que se converteu ao judaísmo porque se apaixonou por um israelita num verão que esteve em um kibutz. A mãe do rapaz era uma daquelas judias ortodoxas que não teria deixado o filhinho casar-se com uma gói, então minha amiga se converteu e todo sábado vai à sinagoga. Não acredita em nada, mas vai. - Certo, essa é a história da sua amiga, mas na nossa tem dois turcos querendo matar um mudo. - É, mas quem quer matar o mudo são os irmãos Bakherai e não o primo deles, e você não pode transformá-lo em suspeito só porque ele vai à missa. Pietro entrou no salão e logo os viu. Um minuto depois, Antonino e Giuseppe juntaram-se ao café da manhã. Sofia foi a última a chegar. Minerva colocou-os a par do que tinham feito nas últimas horas e, por indicação de Marco, cada um leu uma cópia do relatório elaborado pela colega. - E então? - perguntou Marco, quando todos acabaram de ler. - Não são assassinos, portanto, se lhes encomendaram o trabalho é porque têm alguma relação com o mudo, ou alguém que conhece o mudo tem muita confiança neles - argumentou Pietro. - Na prisão tem gente que teria acabado com o mudo brincando, mas quem fez a encomenda ou não sabe como chegar a esses homens, e portanto não pertence ao mundo do crime, ou, como,diz o Pietro, confia, por razões que desconhecemos, nesses dois irmãos que, pelo que diz o relatório, não fizeram nada de mais. Nunca se envolveram com marginais, não roubaram a moto do vizinho, assassinaram um cara, sim, mas numa briga de bêbados. - Tudo bem, Giuseppe, mas daria para você dizer alguma coisa que a gente não saiba? - insistiu Marco. - Pois eu acho que tanto o Giuseppe como o Pietro estão dizendo muita coisa - interveio Antonino. - Em algum lugar está faltando um elo que vamos ter de encontrar, se alguém quer o mudo morto é porque sabe que ele pode nos levar até essa pessoa. Quer dizer que tem alguém infiltrado, que alguém sabe da operação cavalo da Tróia; senão já teriam acabado com o mudo faz tempo, mas querem matá-lo justo agora. Ficaram alguns segundos em silêncio. Parecia que Antonino tinha acertado na mosca. - Mas quem sabe da operação? - perguntou Sofia. - Muita gente - respondeu Marco. - E Antonino tem razão, querem matar o mudo agora para evitar que nos leve até eles. Portanto, sabem, com antecedência, os passos que vamos dar. Minerva, Antonino, quero mais informações sobre a família Bakherai, eles são um elo. Devem ter ligação com a pessoa que quer nosso homem morto. Vasculhem tudo de novo, procurem e investiguem o detalhe mais insignificante. Vou voltar para a prisão. - Por que não falamos com os pais e o primo dos Bakherai? perguntou Pietro. - Porque se a gente fizer isso vai levantar a lebre. Não, não podemos tornar nossa presença ainda mais visível. Também não podemos tirar o mudo da prisão agora, porque aí ele iria desconfiar e não nos levaria até sua organização. Temos que mantê-lo vivo, longe dos Bakherai - respondeu Marco. - E quem se encarrega disso? - inquiriu Sofia. - Um chefe do tráfico, um tal Frasquello. Me comprometi com ele que a junta de Segurança revise seu processo. Bem, mãos à obra. No saguão, encontraram Ana Jiménez, puxando a mala na direção da porta. - Devem ter descoberto algo importante, estão todos juntos... brincou a jornalista. - Já vai? - interessou-se Sofia. - Sim, vou a Londres, depois à França. - A trabalho? - insistiu Sofia. - A trabalho. Talvez eu ligue para a senhora me dar alguns conselhos, doutora. O porteiro a avisou de que o táxi esperava na porta e Ana se despediu deles com um sorriso. - Essa garota me deixa nervoso - confessou Marco. - É, você nunca foi com a cara dela - disse Sofia. - Engano seu. Gosto dela, o que eu não gosto é que se intrometa em nosso trabalho. Por que está indo a Londres? E disse que depois vai à França. Não sei se ela sabe algo que nos escapa ou se está tentando demonstrar alguma de suas loucas teorias. - Ela é muito inteligente - respondeu Sofia - e talvez suas teorias não sejam tão loucas assim. Schliemann era tido como louco e encontrou Tróia. - A única coisa que faltava para essa garota era ter você de advogada de defesa. Enfim, fiquei chateado de saber que ela vai a Londres, porque não sei que diabo vai fazer lá, mas é evidente que tem a ver com o Santo Sudário. Vou ligar para o Santiago. O carcereiro aceitou o dinheiro. Uma quantia considerável só para deixar aberta a porta das duas celas, a do mudo e a dos Bakherai. Não tinha nada de mal nisso, ou pelo menos ele mesmo não faria nada, apenas esqueceria de passar o ferrolho. A prisão estava em silêncio. Fazia duas horas que os detentos tinham sido fechados em suas celas. Mal havia luz nos corredores, e os carcereiros de serviço dormitavam. Os Bakherai empurraram a porta de sua cela, constatando que estava aberta. O indivíduo cumprira o trato. Colados à parede, mas arrastando-se quase ao rés do chão, dirigiram-se ao outro extremo do corredor, onde estava a cela do mudo. Se tudo desse certo, em menos de dez minutos voltariam para sua cela e ninguém ficaria sabendo de nada. Quando chegaram na metade do corredor o mais novo, que ia atrás, sentiu uma mão apertando seu pescoço. Não pôde esboçar o grito, sentiu uma pesada pancada na cabeça e perdeu os sentidos. O mais velho virou tarde demais, recebeu um murro no nariz e começou a sangrar; também não pôde gritar, uma mão de ferro apertava o seu pescoço, impedindo-o de respirar, sentiu que a vida lhe fugia. Os dois irmãos acordaram em sua cela, deitados no chão, com o carcereiro atônito dando o alarme. A caminho da enfermaria para onde foram levados iam contentes por estar vivos, mas alguém os traíra. O médico opinou que deviam permanecer em observação na enfermaria. Tinham recebido pancadas brutais na cabeça e seus rostos eram uma massa de sangue, com os olhos quase fechados por causa do inchaço. Queixaram-se de dor e, por indicação do médico, a enfermeira lhes injetou um calmante que os mergulhou em um novo sono. Quando Marco chegou à sala do diretor, ele lhe contou preocupado os acontecimentos da noite. Tinha de dar parte do ocorrido às autoridades judiciais e aos carabinieri. Marco o tranqüilizou, e pediu para ver o chefe Frasquello. - Cumpri minha parte - disparou o traficante, assim que entrou na sala do diretor. - Sim, e eu cumprirei a minha. O que aconteceu? - Não faça perguntas, as coisas saíram como você queria. O mudo está vivo e os turcos também, que mais você quer? Ninguém se machucou. Quer dizer, foi preciso parar os dois irmãos, mas não aconteceu nada de grave com eles. - Quero que continue vigiando. Podem tentar de novo. - Quem, esses dois? Duvido. - Eles ou outros, não sei. Fique atento. - Quando vai falar com a Junta de Segurança? - Assim que isto acabar. - E quando vai ser? - Espero que em três ou quatro dias, não mais que isso. - Certo. Cumpra o trato, polícia, porque senão você vai pagar. - Não seja idiota, não me ameace. - Cumpra o trato. Frasquello saiu da sala, batendo a porta, ante o olhar estupefato do diretor. - Mas, Marco, você acha que a Junta de Segurança vai considerar sua recomendação sobre Frasquello? - Ele colaborou; têm de levar isso em conta, é tudo o que vou pedir. Me diga uma coisa, quando vai me dar os tênis do mudo? Meu homem não pode ficar eternamente em Turim, temos de colocar esse microfone logo. - Não me ocorreu nenhum pretexto, eu... - Então mande tirá-los para lavar. Diga que é costume os presos que recuperam a liberdade saírem o mais asseados possível. Se ele não entender, dá na mesma; se entender, é a explicação mais plausível que me ocorre. Não há outra. Por isso hoje à noite, quando o fecharem em sua cela, tragam os tênis aqui; lavados, devem devolvê-los limpos, depois trabalharemos com eles. 35 Addaio estava trabalhando em seu escritório quando o toque do celular o alertou. Atendeu imediatamente. Sua expressão se crispou enquanto ouvia seu interlocutor. Desligou vermelho de raiva. - Guner! Guner! - gritou corredor afora, coisa insólita nele. O criado acudiu apressado. - O que houve, pastor? - Procure Bakkalbasi imediatamente. Preciso vê-lo, esteja onde ele estiver. Quero todos os pastores aqui dentro de meia hora. Cuide disso. - Pode deixar. Mas me diga, o que aconteceu? - Uma catástrofe. Agora vá e faça o que eu pedi. Quando ficou a sós, apertou as têmporas com as duas mãos. Sua cabeça estava explodindo. Fazia vários dias que sentia uma dor insuportável. Vinha dormindo mal e não tinha apetite. Sentia já não ter apego à vida. Estava cansado da armadilha mortal que significava ser Addaio. As notícias não podiam ser piores. Os irmãos Bakherai tinham sido descobertos. Alguém na prisão descobrira seus planos e os frustrara. Talvez os Bakherai fossem uns linguarudos, ou simplesmente havia alguém protegendo o mudo. Podiam ser Eles, Eles de novo, ou aquele policial que metia o nariz em tudo. Parece que ultimamente ele não saía da sala do diretor. Estava planejando alguma coisa, mas o quê? Disseram-lhe que Marco Valoni se encontrara algumas vezes com um figurão do narcotráfico, um tal de Frasquello. Sim, sim, as peças se encaixavam, decerto esse tal de Valoni encarregara o mafioso de cuidar de Mendibj, o rapaz era sua única pista para chegar até eles, tinham de protegê-lo. Era isso, sim, era isso. Claro, inclusive é o que seu interlocutor lhe sugerira. Ou dissera outra coisa? Seu cérebro era pura dor. Procurou uma chave e abriu uma gaveta, tirou alguns comprimidos, tomou dois, depois se sentou com os olhos fechados, esperando a dor passar; com um pouco de sorte, quando os pastores chegassem, já teria ido embora. Guner bateu de leve na porta do escritório. Os pastores estavam esperando por Addaio no salão. Quando entrou, encontrou Addaio com a cabeça deitada sobre a mesa, de olhos fechados. Aproximouse temeroso e suspirou aliviado: estava vivo. Sacudiu-o de leve até acordá-lo. - Você pegou no sono. - É... Eu estava com dor de cabeça. - Você tem de voltar ao médico. Essas dores estão matando você, devia faze 'uma tomografia. - Não se preocupe, estou bem. - Não, não está. Os pastores estão esperando, arrume-se um pouco antes de descer. - Está bem. Enquanto isso, sirva-lhes um chá. - Já servi. Alguns minutos depois, Addaio se reunia com o Conselho da Comunidade. Os sete pastores, vestindo casulas pretas e sentados em volta de uma pesada mesa de mogno, formavam um conjunto imponente. Addaio informou-os do ocorrido na prisão de Turim, e a preocupação se estampou no rosto dos sete homens. Quero que você, meu querido Bakkalbasi, vá a Turim. Mendibj sairá em dois ou três dias e tentará entrar em contato conosco. Temos que evitá-lo, não podemos cometer mais erros. Por isso é importante que você esteja lá, coordenando a operação, em contato permanente comigo. Tenho o pressentimento de que estamos à beira de um desastre. - Tenho notícias de Turgut. Todos os olhos se voltaram para o pastor que falara, um homem velho, de vívidos olhos azuis. - Está doente, profundamente deprimido. Com mania de perseguição. Garante que está sendo vigiado, que no bispado ninguém confia nele e que os policiais de Roma permanecem em Turim para pegá-lo. Deveríamos tirá-lo de lá. - Não, agora não podemos, seria uma loucura - respondeu Bakkalbasi. - Ismet está pronto? - perguntou Addaio. - Mandei que ficasse a postos para viajar com o tio, é a melhor coisa a fazer. - Os pais dele aceitaram, mas o rapaz está relutante. Tem uma namorada aqui - explicou Talat. - Uma namorada! E, por causa da namorada, vai pôr em risco a Comunidade inteira?! Chamem os pais dele! Vai partir hoje mesmo para Turim, com nosso irmão Bakkalbasi. Os pais de Ismet devem telefonar para Turgut e dizer que estão mandando o filho para ele o acolher enquanto procura um futuro na Itália. Façam isso já. O tom peremptório de Addaio não deixava lugar a réplicas. Uma hora mais tarde, os homens deixaram a mansão com ordens expressas a cumprir. 36 Ana Jiménez tocou a campainha. A elegante casa vitoriana situada no bairro mais elegante de Londres parecia a residência de algum rico lorde. Um mordomo já idoso abriu a porta. - Bom-dia. Que deseja? - Queria falar com o diretor desta instituição. - Tem entrevista marcada? - Tenho, sim. Sou jornalista, meu nome é Ana Jiménez, e a entrevista foi marcada por um colega do Times, Jerry Donalds. - Entre e aguarde um momento, por favor. O vestíbulo era amplo, o piso de madeira coberto por felpudos tapetes persas e as paredes com quadros de cenas religiosas. Ana se distraiu olhando os quadros, enquanto esperava o mordomo voltar, e não percebeu que um velho cavalheiro a observava da soleira da porta. - Bom-dia, senhora Jiménez. - Ah! Bom-dia. Desculpe, não percebi que... - Vamos até minha sala. Quer dizer que a senhora é amiga de Jerry Donalds? Ana preferiu sorrir e não responder à pergunta, porque na verdade nada sabia daquele tal de Donalds, que, pelo jeito, era capaz de abrir as portas mais herméticas de Londres. O tal Jerry Donalds era amigo de um diplomata amigo de Ana que servira em Londres e agora estava em Bruxelas, em um cargo institucional na União Européia. Fora difícil convencê-lo a ajudar, mas por fim conseguira, e ele a pôs em contato com Jerry Donalds, que a ouviu muito amavelmente e, depois de pedir um prazo de algumas horas, telefonou para ela em Turim para dizer que o ilustríssimo professor Anthony McGilles a receberia. O professor acomodou-se em uma poltrona de couro e a convidou a sentar no sofá. Mal tinham sentado, quando o velho mordomo entrou com uma bandeja e o serviço de chá. Durante alguns minutos, Ana respondeu às perguntas de McGilles, que mostrava interesse por seu trabalho como jornalista e pela situação política espanhola. Finalmente, o professor decidiu ir ao assunto. - Quer dizer que a senhora está interessada nos templários. - Sim, para mim foi uma surpresa saber que a ordem ainda existe, que têm um site na Internet. Onde consta este endereço. - Este é apenas um centro de estudos. Agora me diga, o que a senhora quer saber? - Bom, se os templários existem hoje, queria saber o que fazem, a que se dedicam... E, se possível, gostaria de lhe perguntar sobre alguns fatos históricos de que tomaram parte. - Veja, senhorita, os templários tal como os imagina, como eram em outros tempos, não existem mais. - Então a informação que li na Internet é falsa? - Não, a prova é que está aqui falando comigo. Quero apenas preveni-Ia para que não dê asas à imaginação, pensando em cavaleiros com espada em punho. Estamos no século XXI. - Sim, isso eu sei. - Somos, portanto, uma organização dedicada ao estudo. Atualmente, nossa missão é intelectual e social. - Mas vocês são os verdadeiros herdeiros da Ordem do Templo? - Quando o papa Clemente V proscreveu a Ordem, os templários integraram-se a outras, Em Aragão, passaram a fazer parte da Ordem de Montesa; em Portugal, o rei Dom Dinis criou uma nova ordem, a Ordem de Cristo; na Alemanha, passaram a fazer parte da Ordem Teutônica, e na Escócia a Ordem nunca se dissolveu. A persistência ininterrupta da Ordem na Escócia mostra por que o espírito templário chegou até os nossos dias. Fizeram parte da Garde Escossaise francesa, desde o século XV, destinada à proteção do rei, e apoiaram a dinastia jacobita na Escócia. Desde 1705, a Ordem não se oculta. Naquele ano foram adotados novos estatutos, e Luis Felipe de Orleans foi nomeado mestre. Houve templários que participaram da Revolução Francesa, do Império de Napoleão, da independência da Grécia, Também fizeram parte da Resistência francesa na Segunda Guerra... - Mas como? Através de que organização? Como se chamam? - Ao longo do tempo, os templários levaram uma vida silenciosa, dedicada à reflexão e ao estudo, participando desses acontecimentos individualmente, embora sempre com o conhecimento de seus irmãos. Há diversas organizações, clubes, se quiser chamá-los assim, nos quais se reúnem grupos de cavalheiros. Estes clubes são legais, estão distribuídos por vários países, de acordo com a legislação de cada um. A senhora deve mudar seu enfoque sobre a Ordem Templária. Insisto em que, no século XXI, não encontrará uma organização como a dos séculos XII ou XIII, Ela simplesmente não existe. "Nossa instituição se encarrega de estudar a história e os feitos individuais e coletivos da Ordem do Templo, desde sua fundação até os nossos dias. Examinamos arquivos, revisamos como historiadores alguns acontecimentos obscuros, procuramos documentos antigos. Posso ver a decepção refletida em seu rosto. .." - Não, é que... A senhora esperava que eu fosse um cavaleiro com armadura? Sinto desapontá-la. Sou apenas um professor aposentado da Universidade de Cambridge que, além de ser católico praticante, compartilha alguns princípios com outros cavalheiros: o amor à verdade e à justiça. Ana intuía que por trás das palavras de Anthony McGilles havia muito mais, que não podia ser tudo tão claro, tão simples. De modo que resolveu continuar tentando a sorte. - Já que o senhor é tão amável, embora eu saiba que estou abusando de sua paciência, poderia me ajudar a entender um acontecimento no qual, pelo que sei, os templários estiveram envolvidos? - Com muito prazer. Se eu não souber responder à sua pergunta, iremos ao nosso arquivo informatizado. Diga-me, de que acontecimento se trata? - Queria saber se os templários retiraram o Santo Sudário de Constantinopla na época de Balduíno lI, que é quando ele desapareceu, aparecendo mais tarde na França. - Ah, o Santo Sudário! Quantas polêmicas e lendas... Minha opinião como historiador é que a Ordem do Templo nada teve a ver com seu desaparecimento. - Poderia comprová-lo em seus arquivos? - Naturalmente, o professor McFadden a ajudará. - O professor McFadden? - Deixo-a em boas mãos, tenho de ir a uma reunião. Garanto que o professor colaborará com a senhora no que for preciso, já que foi recomendada por nosso querido amigo Jerry Donalds. O professor McGilles tocou de leve uma sineta de prata. O mordomo entrou imediatamente. - Richard, acompanhe a senhora Jiménez até a biblioteca. O professor McFadden a encontrará lá. - Agradeço sua ajuda, professor McGilles. - Espero que possamos ser úteis. Bom-dia. 37 Guillaume de Beaujeu, grão-mestre da Ordem do Templo, guardou cuidadosamente o documento em, uma gaveta secreta da mesa em que trabalhava. A preocupação se desenhou em seu rosto enxuto. A missiva enviada pelos irmãos da França o alertava de que na corte de Felipe já não contavam com tantos amigos como nos tempos do bom rei Luís, que Deus o tivesse em sua glória, porque não houve rei mais cavalheiro e valente em toda a cristandade. Felipe IV lhes devia ouro, muito ouro e, quanto mais devia, mais parecia crescer sua aversão à Ordem. Em Roma, algumas ordens religiosas também não ocultavam sua inveja pelo poder dos templários. Mas, nessa primavera de 1291; Guillaume de Beaujeu tem outro problema mais urgente que as intrigas das cortes da França e de Roma. François de Charney e Said trouxeram más novas de sua incursão ao acampamento dos mamelucos. Durante um mês viveram em seu acampamento, ouviram os soldados e compartilharam com eles o pão, a água e as orações a Alá, o Misericordioso. Fizeram-se passar por comerciantes egípcios, desejosos de vender provisões ao exército. Os mamelucos dominam o Egito e a Síria e se apossaram de Nazaré, a cidade que viu nascer Nosso Senhor Jesus. A bandeira deles ondeia no porto de Jaffa, a poucas léguas de São João do Acre. O cavaleiro De Charney parece mais um muçulmano que um cristão, confundindo-se com os mamelucos como se tivesse nascido naquela terra, e não na longínqua França. De Charney foi taxativo: em poucos dias, quinze no máximo, atacarão São João de Acre. É o que dizem os soldados e garantem os oficiais com os quais confraternizou no acampamento. Os comandantes mamelucos lhe garantiam que logo ficariam ricos, assim que se apoderassem dos tesouros guardados na fortaleza de Acre, que juravam que logo haveria de cair, como tantos outros enclaves tinham caído em suas mãos. O vento suave de março prenunciava o intenso calor dos próximos meses naquela Terra Santa regada de sangue cristão. Fazia dois dias que um seleto grupo de templários vinha enchendo os cofres com o ouro e os tesouros que a Ordem do Templo guardava na fortaleza. O grão-mestre lhes ordenara embarcar assim que estivessem prontos, seguir para o Chipre e de lá para a França. Ninguém queria ir, e pediram a Guillaume de Beaujeu que lhes permitisse ficar e lutar. Mas o grão-mestre mostrara-se inflexível: a sobrevivência da Ordem dependia em boa medida deles, pois seriam os encarregados de salvar o tesouro templário. O mais compungido dos cavaleiros era François de Charney. Tivera de reprimir as lágrimas quando De Beaujeu lhe disse que deveria realizar uma missão longe de Acre. O francês pediu a seu superior que lhe permitisse combater pela Cruz, mas este nem sequer o escutou. A decisão já estava tomada. O grão-mestre desceu as escadas até chegar aos frios porões da fortaleza, e lá, em uma sala guardada por cavaleiros, conferiu as arcas que deviam partir para a França. - Repartiremos as arcas em três galeras. Estejam preparados para embarcar a qualquer momento. O tesouro repartido em três navios tem mais chance de chegar a seu destino que se o colocarmos em um só. Já sabem em que navio cada um irá... - Eu ainda não sei - disse François de Charney. - Vós, cavaleiro, me acompanhareis até a sala capitular. Lá vos falarei e darei as ordens de vosso destino. Guillaume de Beaujeu cravou o olhar em De Charney. Este, um homem com mais de 60 anos, mas ainda forte, com o rosto escuro curtido pelo sol, era um dos templários mais veteranos. Sobrevivera a mil perigos, e como espião era insuperável, assim como seu amigo, o falecido Robert de Saint-Remy, morto durante a defesa do Trípoli quando uma flecha sarracena atravessou seu coração. O grão-mestre leu nos olhos de De Charney a angústia que sentia por ter de deixar aquela terra que fizera sua, aquela vida em que, no mais das vezes, dormia ao relento, cavalgava com caravanas em busca de informação e se perdia nos acampamentos sarracenos de onde sempre voltava. Para François de Charney, voltar à França era uma tragédia. - Sabei, De Charney, que somente a vós posso confiar esta missão. Há muitos anos, quando éreis um rapazote recém-ingressado na Ordem, trouxestes de Constantinopla, junto com o cavaleiro De Saint-Remy, a única verdadeira relíquia de Jesus, o linho que lhe serviu de mortalha e onde seu rosto e seu vulto ficaram estampados. Graças a esse Santo Sudário conhecemos o rosto do Jesus e para ele rezamos. Faz tempo que já raiais a velhice, mas não vos inquieteis, sei de vossa força e vosso valor, por isso acredito que salvareis a mortalha de Nosso Senhor Jesus Cristo. Dentre todos os tesouros que temos, esse é o mais precioso porque contém o rosto e o sangue do Senhor. Vós o salvareis. Mas antes quero que volteis ao acampamento dos mamelucos. Temos de saber se eles podem impedir que os navios cheguem ao seu destino, se nos espera alguma emboscada no mar. Uma vez cumprida vossa missão, partireis para o Chipre com os homens que julgueis oportuno. Podeis escolher a rota, seja por mar ou por terra. Confio em vosso bom juízo para que leveis o Santo Sudário até a França. Ninguém deve saber o que Ievais, vós mesmos decidireis a maneira de transportar a relíquia. E agora, preparai-vos para vossa missão. O cavaleiro De Charney, acompanhado por seu fiel escudeiro, o velho Said, tornou a se infiltrar nas fileiras mamelucas. Os soldados demonstravam a tensão que precede as batalhas, e em volta das fogueiras recordavam suas famílias, saudosos dos filhos cuja imagem ia-se borrando em sua lembrança e que já deviam estar virando homens. Durante três dias, o templário ouviu comentários esparsos de soldados, oficiais e dos muitos criados que serviam os chefes sarracenos. Alarmado pelo relato de Said, que lhe garantiu ter ouvido de um velho conhecido que o ataque ocorreria dali a dois dias, resolveu voltar à fortaleza. Naquela noite, escaparam do acampamento. Entraram na fortaleza de Acre quando as primeiras luzes da manhã douravam as pedras da imponente construção templária. Guillaume de Beaujeu ordenou aos cavaleiros que se preparassem para resistir ao ataque. A histeria tomou conta de muitos cristãos que não tinham meios para deixar a fortaleza, cuja sorte era mais que incerta. De Charney ajudou seus companheiros a prepararem a defesa, mil vezes ensaiada, e a apartar as brigas entre alguns cristãos capazes de matar o próximo a fim de escapar. Já não restavam navios onde partir, e o desespero tomara conta dos homens. A nova noite já ia caindo quando o grão-mestre mandou chamá-lo. - Cavaleiro, deveis partir. Cometi um erro ao enviar-vos ao acampamento sarraceno. Agora não dispondes de um navio em que viajar. François de Charney reprimiu suas emoções e respirou fundo antes de falar. - Sei disso, e devo pedir-vos um favor. Queria viajar só em companhia de Said. - Será mais perigoso. - Mas ninguém suspeitará de nós, dois mamelucos. - Fazei como preferirdes. Os dois homens se abraçaram. Era a última vez que se veriam na terra; sua sorte estava lançada. Ambos sabiam que o grão-mestre morreria ali, defendendo a fortaleza de São João de Acre. De Charney procurou um linho com as mesmas dimensões que o Santo Sudário. Não queria que sofresse as vicissitudes do caminho, e desta vez não achava conveniente guardá-lo em uma arca. Custaria a chegar a Constantinopla, de onde pensava embarcar para a França, e quanto menos bagagem levasse, melhor. Assim como Said, ele estava acostumado a dormir ao relento, alimentando-se do que caçavam no caminho, fosse em um bosque ou no deserto. Precisavam apenas de duas boas montarias. Sentiu uma ponta de remorso por partir, pensando que seus companheiros certamente morreriam. Sabia que deixava aquela terra para sempre, que nunca mais voltaria, e que na doce França recordaria o ar seco do deserto e a alegria dos acampamentos sarracenos onde tantos amigos fizera, porque, afinal, os homens eram homens, não importava para que Deus rezavam. E ele vira honra, justiça, dor, alegria, sabedoria e miséria nas fileiras de seus inimigos, assim como nas suas. Não eram diferentes, apenas lutavam sob diferentes bandeiras. Pediria a Said que o acompanhasse um trecho, mas depois continuaria sozinho. Não podia exigir do amigo que deixasse sua terra. Não, não se acostumaria a viver na França, por mais que lhe tivesse contado maravilhas de sua cidade, Lirey, próxima de Troyes. Lá aprendeu a cavalgar pelos verdes gramados da casa familiar e a usar as pequenas espadas que seu pai mandava fazer no ferreiro para que seus filhos se transformassem em cavaleiros. Said fitara velho como ele, já era muito tarde para voltar a aprender a viver outra vida. Acabou de dobrar cuidadosamente a mortalha com o linho novo e o guardou em um surrão que sempre carregava com ele. Foi procurar Said e lhe transmitiu as ordens recebidas. Perguntou se queria acompanhá-lo parte do caminho antes que seus destinos se separarem para sempre. O outro assentiu. Sabia que quando voltasse não restaria nenhum cristão em Acre. Voltaria para os seus, para acabar de viver a velhice que lhe restava. Chovia fogo. As flechas incendiárias irrompiam por sobre as muralhas, arrasando o que encontravam em seu caminho. A 6 de abril do ano do Senhor de 1291, os mamelucos deram início ao cerco de São João de Acre. Contavam já vários dias castigando a fortaleza que os cavaleiros templários defendiam com bravura. Guillaume de Beaujeu mandara confessar e comungar no mesmo dia em que começou o cerco. Sabia que poucos deles conseguiriam sobreviver, de modo que lhes pediu que pusessem suas almas em ordem com Deus. Sabia que François de Charney estava cavalgando, despedindo-se daqueles lugares que se transformaram em seu lar. Acreditava que salvaria a mortalha de Cristo e a faria chegar à França. Seu coração lhe ditara a decisão de mandar De Charney com o pano sagrado. O jovem que quarenta anos atrás a trouxera de Constantinopla voltava a custodiá-la a caminho do Ocidente. Insh'Allah! Quantos cavaleiros restavam? Apenas cinqüenta defendiam as muralhas que não queriam render, enquanto os civis cristãos corriam desesperados, gritando. O pior da condição humana aflorava naqueles momentos em que a vida era a única coisa que se podia salvar. As cenas de pânico se sucediam. Um navio naufragara a poucos metros da costa pela carga excessiva de petrechos e homens tentando fugir da morte certa. Em Acre, a grande fortaleza templária, naquela cidadela amuralhada, combatia-se corpo a corpo. Os templários não recuavam nem um palmo, defendendo o terreno com a própria vida, e o inimigo só avançava quando esta lhes era arrancada. Guillaume de Beaujeu, espada em punho, batia-se havia horas; não sabia quantos homens matara nem quantos tinham morrido a seu redor. Pedira a seus cavaleiros que tentassem partir antes que Acre caísse. Pedido inútil, porque todos combatiam sabendo que logo responderiam por seus atos perante Deus. O grão-mestre lutava contra dois ferozes sarracenos, tentando esquivar os golpes com o escudo, mas ai! Que fizera? De repente sente uma dor aguda no peito, não vê nada, fez-se noite. Insh'Allah! Jean de Perigod conseguiu arrastar o corpo de Guillaume de Beaujeu e protegê-lo junto à muralha. A notícia correu: o grãomestre morreu. Acre está para cair, mas Deus não quis que seja esta noite. Os mamelucos voltam para seu acampamento, de onde vem um cheiro de cordeiro assado e o som de canções que falam de vitória. Os cavaleiros se reúnem, exaustos, na sala capitular. Devem escolher um grão-mestre, ali, agora, não podem esperar. Estão cansados, esgotados, pouco lhes importa quem se transforme em seu chefe, se vão morrer amanhã, talvez depois de amanhã, que diferença faz? Mas rezam e meditam, e pedem a Deus que os ilumine. Thibaut Gaudin é o sucessor do valente Guillaume de Beaujeu. O dia 28 de maio de 1291 em Acre foi de calor e cheiro de miséria. Antes de o sol raiar, Thibaut Gaudin determinou que todos assistissem à Santa Missa. As espadas se entrechocam sem descanso e as flechas procuram suas vítimas às cegas. Antes de o sol se pôr, a bandeira do inimigo tremulará sobre Acre. Insh'Allah! A fortaleza parece um cemitério. Quase não restavam cavaleiros com vida. 38 Acordou gritando, como se estivesse em plena batalha. Mas estava ali, no coração de Londres, em um quarto do hotel Dorchester. Ana Jiménez sentiu o suor escorrer pelas costas e a cabeça latejar, presa de taquicardia. Angustiada, levantou-se da cama e foi ao banheiro. Estava com o cabelo grudado no rosto e a camisola ensopada. Tirou a roupa e entrou embaixo do chuveiro. Era a segunda vez que sonhava com uma batalha. Se acreditasse na transmigração das almas, juraria que estivera lá, na fortaleza de São João de Acre, presenciando a morte dos últimos templários. Podia descrever o rosto e o porte de Guillaume de Beaujeu e a cor dos olhos de Thibaut Gaudin. Estivera lá, sentia que sim. Podia jurar que conhecia aqueles homens. Saiu do banho revigorada e vestiu uma camiseta antes de voltar para a cama. Não tinha outra camisola. Como a cama estava úmida de suor, resolveu ligar o computador e navegar um pouco pela Internet. Ficara impressionada com as explicações e documentos que o professor McFadden lhe fornecera sobre a história dos templários. O tal McFadden a estremecera com detalhes sobre a queda de São João de Acre, segundo ele um dos dias mais terríveis da história da Ordem. Talvez por isso sonhara com a queda de Acre, o mesmo que lhe acontecera quando Sofia Galloni lhe contara sobre o cerco de Edessa pelas tropas bizantinas. Amanhã voltaria a ver o professor McFadden, tentaria obter alguma coisa além daquelas histórias vívidas dos templários que a comoviam a ponto de lhe causar pesadelos. 39 O cheiro do mar lhe infundia otimismo. Não queria olhar para trás. Não reprimira as lágrimas ao embarcar, sabendo que estava deixando Chipre, o Oriente enfim. Os irmãos tinham-se enfronhado em suas tarefas para não vê-lo chorar. Estava ficando velho, pois chorava sem pudor. Chorou ao se despedir de Said. Depois de tantos anos, foi a primeira vez que se fundiram num abraço, e os dois choraram desconsolados, sentindo que a separação era, para cada um, como perder sua outra metade. Para Said chegara a hora de reencontrar os seus, enquanto ele, François de Charney, ia regressar à pátria, a uma pátria da qual nada sabia, que já não sentia como sua. Sua pátria era a Ordem do Templo e sua casa, o Oriente. O que estava voltando para a França era a carcaça de um homem que deixara sua alma ao pé das muralhas de São João de Acre. A travessia foi tranqüila, embora o Mediterrâneo seja um mar traiçoeiro, como bem sabia Ulisses. Mas sulcaram as águas sem sobressalto. As ordens de Guillaume de Beaujeu eram expressas: devia depositar o Santo Sudário na fortaleza da Ordem do Templo em Marselha e aguardar novas ordens, mas fazendo-o jurar que nunca se separaria da relíquia, que a defenderia com a própria vida. Apesar da dor que se alojara em seu coração, a companhia de alguns cavaleiros templários que como ele regressavam à França tornou a viagem mais suportável. O porto de Marselha pareceu-lhe impressionante, com dezenas de navios e multidões indo e vindo, gritando e falando sem parar. Ao desembarcar, já eram aguardados por alguns cavaleiros que os conduziram à sede da Ordem do Templo. Nenhum deles sabia da relíquia que De Charney levava consigo. Beaujeu lhe dera uma carta para o visitador de Marselha e para o superior da comendadoria; "Eles - disse - decidirão o melhor." O superior da comendadoria, um nobre de jeito seco, mas que De Charney logo descobriria ser um homem bondoso, escutou seu relato sem dizer palavra. Depois pediu que lhe entregasse a relíquia. Fazia anos que os templários conheciam o verdadeiro rosto de Cristo porque Renaud de Vichiers mandara copiar a imagem do Santo Sudário, e não havia casa ou comendadoria templária que não dispusesse de uma pintura reproduzindo Nosso Senhor. No entanto, Vichiers aconselhara discrição, e a imagem nunca ficou à vista dos curiosos, mas guardada em capelas secretas. Assim se mantinha em segredo o fato de a Ordem do Templo possuir a única relíquia verdadeira de Jesus. François de Charney abriu seu surrão e tirou o linho com que embrulhara a mortalha. Desenrolou-o e... Os dois homens caíram de joelhos rezando, tal era o milagre que acontecera. Jacques Vezelay, superior da comendadoria, e François de Charney deram graças a Deus pelo milagre que seus olhos contemplavam. 40 O carcereiro entrou na cela e começou a revistar o armário, recolhendo a pouca roupa que encontrou. Mendibj o observava em silêncio. - Parece que você está para se mandar, e, como sempre, querem que todos saiam daqui com aparência de pessoas decentes. Serviço de lavanderia rápida. Não sei se você me ouve ou não, mas dá na mesma. Vou levar tudo isto aqui. Ah!, e também esses tênis nojentos. Devem estar fedendo a merda pura, depois de dois anos sem sair dos seus pés. Aproximou-se da cama e apanhou os tênis. Mendibj fez menção de se levantar, como se estivesse assustado, mas o carcereiro pôs um dedo no seu peito em sinal de advertência. - Quietinho. São as ordens, e isto aqui vai para a lavanderia. Amanhã eu trago de volta. Quando ficou sozinho, fechou os olhos. Não queria que as câmeras de vigilância captassem sua agitação. Parecia-lhe muito estranho que levassem sua roupa para lavar, principalmente os tênis, por que será que iam fazer isso? Marco se despediu do diretor da prisão. Ficara lá praticamente o dia inteiro. Interrogara os irmãos, apesar dos protestos do médico. Fora inútil. Não quiseram lhe dizer aonde estavam indo quando foram golpeados, nem quem pensavam que os espancara. Embora Marco soubesse que os responsáveis eram homens de Frasquello, queria saber se os irmãos chegaram a reconhecê-los. Guardaram um silêncio sepulcral e se queixaram aos brados de dor de cabeça e de que aquele policial os estava torturando com suas perguntas. Não estavam indo a lugar nenhum. Viram que a porta da cela estava aberta, saíram e alguém os atacou. Nenhuma palavra a mais, nenhuma a menos. Essa era sua versão, e nada nem ninguém os faria mudar. O diretor sugeriu a Marco que lhes dissesse que sabia que queriam matar o mudo, mas Marco descartou a idéia. Não queria alertar aqueles que haviam contratado os irmãos Bakherai. Numa prisão sempre há centenas de olhos vigiando. Quem sabe onde estava o elo com a rua. - Boa-noite, diretor. - Boa-noite, até manhã. A mulher saiu da sala sem olhar para trás. Entrara no banheiro privativo do diretor para trocar as toalhas. Fazia parte da paisagem da prisão, estava em todo lugar, sem que ninguém prestasse atenção nela. Quando Marco chegou ao hotel, Antonino, Pietro e Giuseppe estavam esperando por ele no bar. Sofia tinha ido dormir e Minerva prometeu descer depois que conseguisse telefonar para casa. - Bom, mais três dias, e o mudo estará na rua. Novidades? - Nada em especial - respondeu Antonino -, exceto que, ao que parece, em Turim há muitos imigrantes de Urfa. Marco franziu a testa. - Como é? - Minerva e eu trabalhamos como mouros. Você queria saber da família Bakherai, não é? Então começamos a procurar, a alimentar o computador com os dados recolhidos, e descobrimos, por exemplo, que o velho Turgut, o zelador da catedral, é de Urfa. Quer dizer, ele não, o pai dele. Sua história é muito parecida com a dos Bakherai. Seu pai veio atrás de um emprego, foi contratado pela Fiat, casouse com uma italiana, e Turgut nasceu aqui. Não tem nenhuma relação de parentesco com os Bakherai, a não ser a origem. Lembram do Tarik? - Que Tarik? - perguntou Marco. - Um dos operários que trabalhavam na catedral quando aconteceu o incêndio. Ele também é de Urfa - respondeu Giuseppe. - Pelo jeito, as pessoas dessa cidade têm uma queda por Turim acrescentou Marco. Minerva entrou no bar. Seu rosto demonstrava cansaço. Marco sentiu remorsos; ele a sobrecarregara de trabalho nos dois últimos dias, mas sem dúvida ela era insuperável no uso do computador, e Antonino tinha uma mente fria e analítica. Tinha certeza de que, juntos, os dois fariam um ótimo trabalho. - Bom, Marco - exclamou Minerva -, você não pode dizer que não merecemos o salário. - É verdade. Estavam me contando quanta gente de Urfa mora aqui em Turim. E o que mais vocês descobriram? - Que eles não são muçulmanos praticantes. Talvez não sejam nem mesmo muçulmanos. Todos assistem à missa - disse Minerva. - Na verdade, não podemos esquecer que Kemal Ataturk transformou a Turquia em um país laico, portanto não seria tão estranho que eles não fossem muçulmanos praticantes. O estranho é irem à missa e serem tão devotos; isso significa que são cristãos apontou Antonino. - Há cristãos em Urfa? - perguntou Marco. - Até onde sabemos, não. E até onde as autoridades turcas sabem, também não - respondeu Minerva. Antonino pigarreou, como sempre fazia quando ia falar sobre algum tema histórico. - Mas na Antigüidade foi uma cidade cristã, nada menos que Edessa. Os bizantinos sitiaram Edessa em 944 para se apossarem do Santo Sudário, em mãos de uma pequena comunidade cristã, embora. naquela época, os muçulmanos fossem os senhores de Edessa. - Vão acordar a Sofia - disse Marco. - Por quê? - perguntou Pietro. - Porque vamos ter um brainstorm. Não faz muito tempo, Sofia me disse que talvez a chave estivesse no passado. Ana Jiménez acha a mesma coisa. - Mas, por favor, não tire os pés do chão. As palavras de Pietro incomodaram Marco. - O que faz você pensar que estou tirando os pés do chão? - Posso pressentir. Acontece que a Sofia e a tal da Ana deixaram a imaginação voar e acham que os incêndios da catedral têm a ver com o passado. Me desculpe, mas na minha opinião as mulheres são dadas ao mistério, às explicações irracionais, ao esoterismo, ao... - Mas que é que você está pensando! - gritou Minerva, zangada. Você é um idiota machista! - Calma, calma... - pediu Marco. - Seria ridículo brigarmos entre nós. Diga o que tem para me dizer, Pietro. - Antonino diz que Urfa é a antiga Edessa. Certo, e daí? Quantas cidades foram erguidas sobre outras? Aqui, na Itália, embaixo de cada pedra há uma história, e não ficamos loucos procurando no passado cada vez que há um assassinato ou um incêndio. Sei que este caso é especial para você Marco, mas, se me permite a franqueza, acho que você está obcecado e dando a ele uma importância exagerada. Descobriram que aqui moram alguns turcos vindos de uma cidade chamada Urfa. E daí? Nos tempos difíceis, quantos italianos de uma mesma cidade foram a Frankfurt para trabalhar nas fábricas? Imagino que cada vez que um italiano cometia um crime, a polícia alemã não suspeitava de Julio César e suas legiões. O que estou tentando dizer é que não nos deixemos levar pelo irracionalismo. Existe muita subliteratura com histórias esotéricas sobre o Santo Sudário, não nos deixemos contaminar por ela. Marco avaliou friamente as palavras acaloradas de Pietro. Havia lógica no que ele dizia, muita lógica, tanta que pensou que ele talvez tivesse razão. Mas Marco era um raposa velha, passara a vida inteira farejando, e seu instinto lhe dizia que não devia abandonar essa pista, por mais tola que parecesse. - Deixei você falar. Pode ser que tenha razão, mas, como não temos nada a perder, não deixaremos nenhuma peça solta. Por favor, Minerva, vá chamar a Sofia; ela ainda deve estar acordada. Que mais sabemos sobre Urfa? Antonino lhe fez um relatório completo sobre Urfa, ou Edessa. Sabia que o chefe o pediria. - Todo mundo sabe que o Sudário esteve em Edessa – sublinhou Pietro. - Até eu sabia disso, cansei de ouvir vocês contarem a história do Sudário. - É verdade, mas a novidade é que temos um punhado de cidadãos provenientes de Urfa e que têm alguma relação com o Sudário insistiu Marco. - Ah, é? Então me explique que relação é essa - desafiou-o Pietro. - Você é um policial bom demais para eu tenha de explicar uma obviedade dessas, mas já que você insiste... Turgut é de Urfa, é o zelador da catedral, estava lá no dia do último incêndio e em todos os acidentes que aconteceram na catedral. Curiosamente, nunca viu nada. Temos um mudo que sabemos que tentou roubar a catedral. O curioso é que não é o único mudo que cruzou o nosso caminho. Alguns meses atrás, outro mudo morreu carbonizado, e na história do Sudário sabemos que houve outros incêndios e outros mudos. Depois, ainda aconteceu que dois irmãos de origem turca, curiosamente de Urfa, tentaram matar o nosso mudo. Por quê? Quero que você e Giuseppe vão lá amanhã falar com o zelador. Digam que a investigação continua aberta e que querem saber se ele por acaso se lembra de algum detalhe. - Ele vai ficar nervoso. Da primeira vez que o interrogamos, quase chorou - lembrou Giuseppe. - Justamente por isso me parece o elo mais fraco. Ah! Vamos pedir autorização judicial para grampear todos os telefones destes simpáticos amigos de Urfa. Minerva voltou acompanhada de Sofia. As duas mulheres olharam para Pietro com displicência e se sentaram. Quando fecharam o bar, por volta das três da manhã, Marco e sua equipe ainda estavam falando. Sofia concordava com ele em que deviam seguir essa pista inesperada que os levava a Urfa. Antonino e Minerva também. Giuseppe parecia cético, mas não discutia o raciocínio de seus companheiros, enquanto Pietro a duras penas disfarçava seu mau humor. Foram dormir convencidos de que estavam perto do final. O velho acordou. A vibração do celular o arrancara de um sono profundo. Mal se passaram duas horas desde que se deitara. O duque estava com um humor excelente e só os deixara partir depois da meia-noite. O jantar fora esplêndido e a conversa divertida, como cabia a cavalheiros de sua idade e posição quando desacompanhados de damas. Não atendeu ao telefonema, ao ver na tela o número nova-iorquino de onde partia a ligação. Sabia o que devia fazer, portanto se levantou e, cobrindo-se com um robe de fino cashmere, dirigiu-se a seu escritório. Uma vez ali, trancou a porta e, sentado atrás da mesa, apertou um botão oculto. Minutos depois, falava ao telefone através de um sofisticado sistema à prova de ouvidos indiscretos. A informação que recebeu o perturbou: o Departamento de Arte estava se aproximando da Comunidade, de Addaio, embora ainda não soubessem da existência do pastor. Addaio fracassara em seu plano de eliminar Mendibj, e este se transformara em um autêntico cavalo de Tróia. Mas não era só isso. Agora a equipe de Valoni dera rédea larga à imaginação e a doutora Galloni estava Ievantando hipóteses que beiravam a verdade, embora nem da mesma pudesse suspeitá-lo. Quanto à jornalista espanhola, tinha uma mente especulativa e uma imaginação romanesca que, neste caso, eram armas perigosas. Perigosas para eles. Quando deixou o escritório, estava amanhecendo. Voltou a seu quarto e começou a se preparar. Esperava-o uma longa jornada. Dentro de quatro horas, estaria em uma reunião crucial em Paris. Todos estariam lá, embora o preocupasse a convocação improvisada e o risco de chamarem a atenção de olhos afeitos a acompanhar suas movimentações. 41 Era quase noite quando Jacques de Molay, grão-mestre da Ordem do Templo, lia à luz das velas a mensagem enviada de Viena pelo cavaleiro Pierre Berard, informando-o dos pormenores do concílio. As rugas sulcavam o nobre rosto do grão-mestre. As longas vigílias tinham deixado marcas em seus olhos vermelhos e cansados. Corriam maus tempos para a Ordem do Templo. Defronte a Villeneuve du Temple, o imenso recinto fortificado, elevava-se majestoso o palácio real onde Felipe da França preparava seu grande golpe contra a Ordem dos cavaleiros templários. As arcas do reino estavam vazias, e Felipe era um dos principais devedores da Ordem do Templo, que lhe emprestara tanto ouro que se dizia que o rei precisaria viver dez vidas para devolvê-lo. Mas Felipe IV não tinha intenção de pagar suas dívidas. Tinha outros planos: queria ser o herdeiro dos bens da Ordem, mesmo que tivesse de repartir uma parte do tesouro com a Igreja. Tentara os cavaleiros hospitalários prometendo-lhes comendas e vilas se o apoiassem em sua sórdida campanha contra os templários. E em torno do papa Clemente havia clérigos influentes aos quais pagava para que intrigassem contra a Ordem do Templo aos ouvidos do papa. Desde que comprara o falso testemunho de Esquieu de FIoryan, Felipe foi acuando os templários e a cada dia se via mais perto de desfechar-lhes o golpe mortal. O rei se impressionava com Jacques de Molay, a quem secretamente admirava por sua coragem e integridade, por ter a nobreza e as virtudes de que ele carecia, e não suportava entrever sua imagem no límpido espelho dos olhos nobres do grão-mestre. Não sossegaria até vê-lo arder na fogueira. Naquela tarde, como em tantas outras, Jacques de Molay rezou na capela pelos cavaleiros assassinados por ordem de Felipe. Já fazia tempo, desde que Felipe se entrevistara com Clemente em Poitiers, que o rei da França tinha a custódia dos bens templários. Agora o grão-mestre esperava impaciente a decisão do concílio de Viena. Felipe viajara para pressionar o papa e o tribunal eclesiástico pessoalmente. Não se contentava apenas em administrar o que não lhe pertencia: queria tudo para si, e o concílio de Viena surgia como a ocasião propícia para dar o golpe mortal na Ordem do Templo. Uma vez concluída a leitura da mensagem, Jacques de Molay esfregou os olhos vermelhos e procurou um pergaminho. Por um bom tempo, deixou sua letra aguda correr pelo papel. Assim que acabou, foi chamar dois dos mais leais cavaleiros templários: Beltrán de Santillana e Geoffroy de Charney. Beltrán de Santillana, nascido em uma casa senhorial nas montanhas cantábricas, é alto e forte, apreciador do silêncio e da meditação. Ingressou na Ordem com apenas 18 anos e antes de tornar-se irmão professo já combateu na Terra Santa. Lá conheceu De Molay e lá salvou sua vida, cobrindo-o com o corpo quando a espada de um sarraceno ia rasgar-lhe a garganta. Dessa façanha Santillana guarda uma cicatriz no peito, perto do coração. Geoffroy de Charney é visitador da Ordem na Normandia, um templário austero, cuja família deu outros cavaleiros à Ordem, como seu tio François de Charney, que Deus tenha em sua Glória, pois morreu de melancolia anos atrás, ao visitar o velho solar familiar. Jacques de Molay confia em Geoffroy de Charney como em si mesmo. Combateram juntos no Egito e diante da fortaleza de Tortosa. Preza sua valentia e sua piedade tanto quando as de Beltrán de Santillana, por isso decidiu que os dois hão de levar a cabo essa que é a mais delicada das missões. O cavaleiro templário Pierre Berard informou-o em sua missiva que Clemente está a ponto de ceder às pretensões de Felipe. Os dias da Ordem estão contados, de Viena logo chegará a sentença extinguindo a Ordem. É questão de dias, por isso deve apressar-se para salvar o que ainda resta da Ordem do Templo. Geoffroy de Charney e Beltrán de Santillana entraram na sala do grão-mestre. O silêncio da noite era quebrado por um outro barulho distante vindo da movimentada vila de Paris. Jacques de Molay, em pé, firme e sereno, convida-os a sentar. A conversa será longa porque são muitos os detalhes a tratar. - Beltrán, é urgente que partais para Portugal. Nosso irmão Pierre Berard acaba de informar-me que não deverão se passar muitos dias até que o papa nos condene. Ainda é cedo para saber o destino da Ordem em outros países, mas na França a sorte está lançada. Pensei em enviá-los à Escócia, pois o rei Robert Bruce foi excomungado e agora está imune às decisões do papa. Mas confio no bom rei Dinis de Portugal, de quem recebi garantias de que protegerá a Ordem. É muito o que o rei Felipe nos tomou. Mas não é o ouro nem as terras o que me preocupa, e sim nosso maior tesouro, o verdadeiro tesouro da Ordem do Templo: a mortalha de Cristo. Não é de hoje que os reis cristãos suspeitam que a relíquia está em nosso poder e anseiam recuperá-la, por acreditarem que ela possui poderes mágicos que torna indestrutível quem a possui. Ainda assim, acredito que foram sinceras as súplicas do santo rei Luís para que lhe permitíssemos orar diante da verdadeira imagem de Cristo. Sempre: mantivemos o segredo, e assim há de ser. Felipe planeja invadir VilIeneuve e vasculhar até o último recanto. Confiou a seus conselheiros que, se encontrar o Santo Sudário, pensa redobrar seu poder e estender sua supremacia de rei cristão a todos os confins. Está cego de ambição, e já sabemos quanta maldade se abriga em sua alma. Devemos salvar nosso tesouro, a exemplo do que um dia fez vosso bom tio De Charney. Vós, Beltrán, viajareis à nossa comendadoria de Castro Marim, atravessando o Guadiana, e entregareis a mortalha ao superior, nosso irmão José Sá Beiro. Levareis uma missiva em que ordeno como ele há de proceder para protegê-la. "Somente vós, Sá Beiro, De Charney e eu saberemos onde se encontra o Santo Sudário, e somente a Sá Beiro, na hora de sua morte, caberá passar o segredo a seu sucessor. Ficareis em Portugal guardando a relíquia. Se for mister, mandar-vos-ei novas instruções. Durante vossa viagem à Espanha, passareis por vários mestrados e comendadorias templárias. A todos os superiores e priores levareis um documento em que lhes dou instruções sobre como proceder se a desgraça se abater sobre a Ordem do Templo." - Quando devo partir? - Tão logo quanto possais. Geoffroy de Charney não conseguiu disfarçar sua decepção ao perguntar ao grão-mestre: - Dizei-me, qual é minha missão? - Ireis a Lirey e lá guardareis o linho em que vosso tio embrulhou a santa relíquia. Parece-me conveniente que permaneça na França, mas em lugar seguro. Durante todos estes anos, eu me perguntei sobre o milagre operado nesse linho, pois se trata de um milagre. Vosso tio chorava de emoção quando evocava o momento em que desdobrou o linho para entregar a mortalha ao mestre de Marselha. Os dois linhos são sagrados, por mais que só o primeiro tenha envolvido o corpo do Senhor. Conto com a nobreza da família De Charney, vossa família, e sei que vosso irmão e vosso velho pai hão de proteger e guardar este pano até que a Ordem do Templo o reclame. "François de Charney cruzou duas vezes o deserto por terras infiéis para fazer o Santo Sudário chegar à Ordem do Templo. Esta volta a requerer os serviços de uma família tão cristã e valente." Os três homens guardaram alguns segundos de silêncio, superando a emoção do momento. Naquela mesma noite, por caminhos diferentes, os dois templários viajariam com as preciosas relíquias. Porque Jacques de Molay tinha razão: Deus operara um milagre no linho escolhido por François de Charney. Um linho macio, com a mesma textura e a mesma cor do escolhido por José de Arimatéia para envolver o corpo de Jesus. Contavam muitas jornadas cavalgando, afinal, avistaram o rio Bidasoa. Beltrán de Santillana, acompanhado por quatro cavaleiros e seus escudeiros, esporearam as montarias. Ansiavam entrar o quanto antes na Espanha, fora do alcance do rei Felipe. Sabendo que podiam estar sendo seguidos pelos assassinos do rei, mal tinham descansado. Os olhos de Felipe estavam em todos os lugares, e não seria de estranhar que alguém tivesse sussurrado a seus espiões que um grupo de homens deixara a fortaleza de Villeneuve du Temple. Jacques de Molay lhes pedira que não vestissem a capa nem a cota dos templários, para passarem despercebidos. Pelos menos até que se encontrassem bastante longe de Paris. Não tinham trocado de roupa, só o fariam depois de percorrer algumas léguas além da fronteira. Então voltariam a se vestir como o que eram: templários, pois não havia maior orgulho que pertencer à Ordem do Templo e cumprir a sagrada missão de salvar seu mais prezado tesouro. Beltrán de Santillana se deleitava no reencontro das paisagens da pátria perdida e em falar castelhano com os lavradores e com os irmãos que os recebiam nos mestrados e comendadorias espalhadas nos territórios que atravessavam. Depois de cavalgar trinta jornadas, chegaram às cercanias da vila estremenha de Xerez, dita "dos Cavaleiros", por ser sede de uma comendadoria templária. Beltrán de Santillana anunciou a seus acompanhantes que descansariam por alguns dias antes de empreender a última etapa da viagem. Agora que estava em Castela, sentia saudade de seu passado, quando ainda não sabia o que o futuro lhe reservava e sonhava apenas em ser um guerreiro que resgataria o Santo Sepulcro para devolvê-lo à Cristandade. Foi seu pai quem insistiu para que ele ingressasse na Ordem dos Templários a fim de tornar-se um guerreiro de Deus. Os primeiros anos foram difíceis, pois, embora gostasse de manejar a espada e o arco, sua natureza exuberante era avessa à castidade. Foram anos difíceis de penitência e sacrifício até conseguir domar seu corpo, compassá-lo com a alma e tornar-se digno de professar como irmão templário. Já completara 50 anos e a velhice já o encalçava, mas sentia-se rejuvenescer nessa viagem que o levara a atravessar as terras de Castela de norte a sul. Ao longe, recortado no horizonte, erguia-se imponente o castelo dos cavaleiros. Um vale fértil garantia a alimentação da comendadoria, e a água generosa dos regatos os salvava da sede. Alguns lavradores os viram chegar e os saudaram com um aceno. Os templários eram tidos como homens de bem. Um escudeiro cuidou de suas remontas e indicou-lhes o caminho da entrada do castelo. Beltrán de Santillana explicou a situação na França ao superior da comendadoria e lhe entregou um documento lacrado de Jacques de Molay. Durante esses dias, De Santillana pôde fruir da conversa com outro templário nascido nas montanhas da Cantábria. Juntos recordaram: os nomes de amigos comuns, que serviam no palácio em que nasceram, bem como o nome das vacas que pastavam orgulhosas e indiferentes à gritaria das crianças, pois tinham nascido em povoados muito próximos. Ao se despedirem, estavam com a alma reconfortada. Nada contou Beltrán de Santillana da missão que o levara até lá. Nada lhe foi perguntado pelo superior nem pelos irmãos templários, porque nada sabiam. As casas caiadas e afagadas pelo sol eram a última povoação antes de cruzar o rio rumo a Portugal. Pagaram bem ao barqueiro que diariamente atravessava de uma margem à outra levando homens e mercadorias. Os templários não discutiram o preço. O barqueiro os levou à outra margem do Guadiana e indicou por onde deviam cavalgar para chegar a Castro Marim, cuja compacta fortaleza era vista da margem castelhana. José Sá Beiro, mestre de Castro Marim, era um erudito, um homem sábio que estudara medicina, astronomia, matemática e lia os clássicos graças a seu domínio do árabe, pois estes haviam lido, traduzido e conservado o saber de Aristóteles, de Tales de Mileto, de Arquimedes e de tantos outros. Combatera na Terra Santa, conhecera a aridez de sua paisagem e ainda tinha saudades das noites iluminadas por miríades de estrelas, que no Oriente pareciam poder ser tocadas com as mãos. Das muralhas da comendadoria templária se divisava, ao longe, o mar. Mas a fortaleza estava a salvo das incursões de qualquer inimigo, resguardada num cotovelo do Guadiana, e das suas amei as o olhar se perdia no horizonte. O superior os recebeu com afeto e os convidou a descansar e tirar a poeira da viagem. Negou-se a falar com eles antes que comessem e bebessem e de sabê-los acomodados nos austeros cômodos preparados para eles. Beltrán de Santillana reuniu-se com Sá Beiro no escritório deste, onde uma grande janela deixava entrar a brisa do rio. Quando o cavaleiro De Santillana terminou seu relato, o superior pediu que lhe mostrasse a relíquia. O castelhano abriu-a, e os dois se comoveram ao constatar a nitidez da figura de Cristo. Lá estavam as marcas da paixão, do sofrimento infligido. José Sá Beiro acariciou o tecido de leve, sabendo o privilégio que isso significava. Ali estava a verdadeira imagem de Jesus, bem conhecida dos templários desde que o grão-mestre Vichiers enviara reproduções dela, em quadros, a todas as casas do Templo, garantindo a seus irmãos que o homem ali retratado era Jesus. O mestre leu então a carta de Jacques de Molay e, dirigindo-se a Beltrán de Santillana disse: - Cavaleiro, defenderemos a relíquia com a própria vida. O grãomestre me recomenda que por ora não digamos a ninguém que ela está em nossa comendadoria. Devemos esperar para ver o que acontece na França e que efeitos o concílio de Viena terá sobre a Ordem. Jacques de Molay me ordena que envie imediatamente um espião a Paris; o cavaleiro deve ir disfarçado, não deve aproximarse da sede de Villeneuve du Temple nem buscar contato com nenhum templário, apenas ver e escutar. E quando ele souber o que ocorreu com a Ordem, deve retornar imediatamente. Então, conforme suas ordens e conselhos, será o momento de decidir se a mortalha haverá de continuar em Castro Marim ou se terá de ser levada a um outro lugar seguro. Assim faremos. Procurarei o cavaleiro que possa cumprir a missão encomendada pelo grãomestre. Deixara o povoado de Troyes para trás. Faltavam poucas léguas para chegar ao senhorio de Lirey, Geoffroy de Charney viajara acompanhado apenas por seu escudeiro, e se sentira vigiado por todo o caminho, decerto pelos espiões de Luís, Levava o linho guardado no surrão, a exemplo do que o fizera seu tio François de Charney. Os lavradores iam recolhendo seus apeiros ao ver que a luz já minguava. O templário sentia-se emocionado ao ver os campos sonhados de sua infância e ardia em desejos de abraçar seu irmão mais velho. O encontro com os seus foi emocionado. Seu irmão Paul o recebeu com afeto e respeito, garantindo que aquela era sua casa. Seu pai, mais perto da morte que da vida, admirava a Ordem do Templo e colaborara com ela sempre que lhe fora solicitado. A família tinha orgulho de que dois dos seus, François e Geoffroy, tivessem professado na Ordem e juraram lealdade a ela. Por alguns dias, Geoffroy reencontrou o sossego entre os seus. Brincou com seu sobrinho, que tinha o mesmo nome que ele e que um dia herdaria a casa familiar. Era um pequeno valente e esperto que seguia o tio aonde quer que fosse, pedindo que lhe ensinasse a lutar. - Quando eu crescer, vou ser templário - dizia. E Geoffroy sentia um nó na garganta, ciente de que as portas do futuro estavam sendo fechadas para a Ordem do Templo. No dia da partida, Geoffroy se despediu do tio com lágrimas nos olhos. Pedira que o levasse junto para lutar na Terra Santa. Não houve como consolá-lo. O pequeno inocente não sabia que seu tio ia travar a pior das batalhas contra um inimigo que não conhecia a nobreza do combate nem tinha olhos para a honra. Seu inimigo não era nenhum sarraceno, mas Felipe da França, o rei. O grão-mestre estava rezando em sua câmara quando um serviçal anunciou a volta do cavaleiro De Charney. Imediatamente foi a seu encontro. Jacques de Molay informou seu amigo das últimas novidades. O rei acusava os templários de paganismo e de sodomia, dentro de poucos dias seriam presos, deviam se preparar para o pior: sofreriam torturas e calúnias antes de encontrarem a morte. Acusam-nos de adorar o Diabo e prostrar-nos ante um ídolo a que chamam Bafomet. Existe outra figura à qual os templários rezam nos quatro cantos do mundo, em cada casa e comendadoria, e cujo segredo vazou por alguma fresta; pode ser que em algum lugar um serviçal infiel, subornado para contar os pormenores da vida templária, tenha relatado que os cavaleiros costumam fechar-se para rezar em uma capela onde ninguém pode entrar, em cuja parede há um quadro com uma figura - outro ídolo, dizem os inimigos dos cavaleiros. A fortaleza de Villeneuve du Temple deixou de ser um recinto sagrado e inexpugnável. Os soldados do rei confiscaram tudo que encontraram, e Luís está furioso por não ter encontrado nem sombra do imenso tesouro do Templo. Não sabe que há meses Jacques de Molay repartiu o ouro entre diversas comendadorias e que a maior parte do tesouro está na Escócia, para onde também mandou trasladar os documentos secretos da Ordem. Em Villeneuve praticamente não ficou nada, o que inflama ainda mais a ira do rei. Um enviado de Luís se apresenta na fortaleza e pede para ver o grãomestre. Jacques de Molay recebe-o tranqüilo e seguro. - Venho em nome do rei. - É o que se presume. Por isso me vi obrigado a vos receber. O grão-mestre permanece em pé e não convida o conde de Champagne para sentar. Este, contrariado, fita-o furioso. A dignidade do grão-mestre o intimida e embaraça. - Sua Majestade vos propõe um trato: vossa vida em troca do Santo Sudário com que Jesus foi amortalhado. O rei tem certeza de que a relíquia está em poder do Templo, como acreditava o santo rei dom Luís. No arquivo real há documentos a respeito, informes de nosso embaixador em Constantinopla, confidências do rei Balduíno a seu tio o rei da França, há cartapácios com os informes de nossos espiões na corte do imperador. Sabemos que a mortalha de Cristo está em poder do Templo, Vós a escondeis. Jacques de Molay ouviu impávido a peroração do conde de Champagne. Deu graças a Deus por ter providenciado a salvação da relíquia, que, naquela hora, pensou, já deveria estar a salvo em Castro Marim, sob a proteção do bom José Sá Beiro. Quando o conde acabou de falar, o grão-mestre respondeu seco. - Senhor conde, garanto-vos que não tenho a relíquia de que me falais, mas tende por certo que, se assim fosse, jamais a trocaria por minha vida. O rei não deve julgar os outros homens por si mesmo. O conde de Champagne ruborizou-se ao ouvir a impertinência destinada a Felipe, o Belo. - Senhor De Molay, o rei dá mostras de sua magnanimidade perdoando-vos a vida, já que possuis algo que pertence à Coroa, que pertence à França e a toda a Cristandade. - Pertence? Explicai-me por que ela haveria de pertencer ao rei Felipe. De Champagne continha sua ira a duras penas. - Sabeis tão bem quanto eu que o Santo Rei Luis enviou grande quantidade de ouro a seu sobrinho o imperador Balduíno, e que este lhe vendeu outras relíquias. Consta-vos, como a mim, que o conde de Dijon esteve na corte de Balduíno tratando da venda do lá chamado Mandylion, com a qual o imperador concordou. - O comércio entre reis não me diz respeito. Minha vida pertence a Deus. O rei pode tirá-la, mas ela é de Deus. Dizei a Felipe que não possuo a relíquia, mas que, se a tivesse, jamais a trocaria por minha vida. Em mim não cabe a desonra. Horas mais tarde, Jacques de Molay, Geoffroy de Charney e o resto dos templários que ainda permaneciam em Villeneuve du Temple foram presos e levados às masmorras do palácio. Felipe da França, conhecido como Felipe, o Belo, ordenou aos carrascos que torturassem sem piedade os cavaleiros do Templo, em especial o grão-mestre, para obter uma confissão: onde escondia a santa relíquia com a imagem de Cristo. Os gritos dos torturados vibram contra os grossos muros das masmorras. Quantos dias se passaram desde que foram presos? Os templários perderam a conta. Alguns confessam crimes que não cometeram, na esperança de que o carrasco não continue a estirar seus membros, queimar seus pés com ferros em brasa, esfolando seu corpo para depois borrifá-lo com vinagre. Mas de nada adiantam as confissões, porque seus carrascos continuam a castigá-los sem piedade. Às vezes, um homem disfarçado vai aos calabouços e, de um canto, assiste ao sofrimento dos cavaleiros que um dia brandiram a espada e a alma em defesa da Cruz. É o rei Felipe, doente de avareza e crueldade, que se deleita com a tortura dos cavaleiros. Faz gestos ao carrasco para que continue, para que não interrompa o tormento. Uma tarde, o disfarçado pede que levem Jacques de Molay à sua presença. O grão-mestre já quase não enxerga, mas pode intuir quem se esconde por trás da máscara. Não cede, e em seus lábios se desenha um sorriso quando o rei insiste que ele confesse onde guarda a santa relíquia de Jesus. Felipe percebe que é inútil prolongar o tormento. Aquele homem morrerá sem confessar. Só lhe resta fazer público escarmento, e que o mundo saiba que a Ordem do Templo foi proscrita para toda a eternidade. Em 18 de março do ano do Senhor de 1314, é assinada a sentença de morte do grão-mestre da Ordem do Templo e dos cavaleiros que sobreviveram às intermináveis tortura ordenadas pelo rei. Em 19 de março, Paris está em festa porque o rei mandou levantar uma pira onde arderá o orgulhoso Jacques de Molay. Nobres e plebeus assistirão ao espetáculo, também o monarca prometeu comparecer. Com as primeiras luzes do dia, a praça se enche de curiosos que disputam os melhores lugares para apreciar o sofrimento final dos outrora orgulhosos cavaleiros. O povo sempre se diverte com o espetáculo da humilhação dos poderosos, e a Ordem do Templo fora poderosa, sim, embora de suas mãos tivesse saído mais bem que mal. Jacques de Molay e Geoffroy de Charney são levados no mesmo carro. Sabem que em poucos minutos arderão, e sua dor se acabará para sempre. A Corte veste seus melhores trajes, o rei brinca com as damas; ele, Felipe, dominou a Ordem do Templo. Sua façanha passará para a história das infâmias. O fogo começava a abrasar a carne castigada dos templários. Jacques de Molay fitou o rei Felipe, e este, assim como o povo de Paris, ouviu o grão-mestre proclamar sua inocência e entregar o rei da França e o papa Clemente ao Tribunal de Deus. Um calafrio correu na espinha de Felipe, dito o Belo. Tremeu de medo e teve de recordar que ele era o rei e que nada poderia lhe acontecer, pois contara com o aval do papa e das mais altas autoridades eclesiásticas para fazer o que fizera. Não; Deus não podia estar do lado dos templários, aqueles hereges que adoravam um ídolo chamado Bafomet, que cometiam o pecado da sodomia e tinham tratos com os sarracenos. Ele, Felipe, cumpria os mandamentos da Igreja e assistia na igreja às festas de guarda. Sim, ele, Felipe, rei da França, cumpria seus deveres para com a Igreja. Mas será que cumpria com as leis de Deus? - Acabou? - Ai, que susto! Estava lendo sobre a execução de Jacques de Molay. É de arrepiar. Queria lhe perguntar o que é Tribunal de Deus? O professor McFadden olhou-a desanimado. Fazia dois dias que Ana Jiménez estava remexendo nos arquivos, fazendo-lhe perguntas às vezes sem o menor sentido. Era esperta, mas um pouco ignorante, e teve que lhe dar algumas lições elementares de história. A jovem sabia pouco sobre as Cruzadas e o conturbado mundo dos séculos XII, XIII e XIV. Mas ele não se enganava, a ignorância acadêmica da jornalista era inversamente proporcional a sua intuição. Procurava sem cansaço e sabia onde encontrar. Uma frase, uma palavra, um dado, tudo parecia servir-lhe de pista em sua anárquica pesquisa. Tinha sido cuidadoso, procurando desviar sua atenção dos fatos que podiam ser perigosos nas mãos da jornalista. Ajeitou os óculos e se dispôs a explicar o que era o Tribunal de Deus. Ana Jiménez ouvia-o com assombro, e não pôde evitar um estremecimento quando, em tom dramático, o professor recitou as palavras de Jacques de Molay. - O papa Clemente morreu quarenta dias depois, e Felipe, o Belo, passados oito meses. Suas mortes foram terríveis, tal e como lhe contei. Deus fez justiça. - Fico feliz por Jacques de Molay. - Como disse? - Gosto do grão-mestre. Acho que era um homem bom e justo, e Felipe, o Belo, um malvado. Portanto fico contente que, neste caso, Deus tenha feito justiça. Só é pena que nem sempre faça. Mas será que a mão dos templários não estaria por trás dessas mortes meio estranhas? - Não, não esteve. - E como o senhor sabe? - Há suficiente documentação que demonstra as circunstâncias da morte do rei e do papa, e garanto que não encontrará nenhuma fonte que sugira, nem sequer como especulação, a possibilidade de que tenha sido uma vingança dos templários. Além disso, isso não é próprio da forma de ser e proceder dos templários. Com tudo que a senhora já leu, já deveria saber disso. - Bom, eu teria feito. - O quê? - Teria organizado um grupo de cavaleiros para que dessem um golpe mortal no papa e em Felipe, o Belo. - É evidente que não foi assim; os cavaleiros templários nunca fariam isso. - Mas, me diga, que tesouro é esse que o rei estava procurando? Segundo seus arquivos, a essa altura já tinha tomado quase tudo da Ordem. No entanto, Felipe insistia em que Jacques de Molay lhe entregasse um tesouro. A que tesouro se referia? Devia ser algo concreto, algo de muito valor, não? - Felipe, o Belo, achava que na Ordem do Templo estavam guardados mais tesouros do que ele conseguira confiscar. Estava obcecado com eles, achava que Jacques de Molay o enganava e escondia mais ouro. - Não, não, acho que não procurava mais ouro. - Ah, não? Que interessante! E o que a senhora acha que ele procurava? - Já disse que alguma coisa concreta, um objeto de muitíssimo valor para a Ordem do Templo e para o rei da França, decerto para toda a Cristandade. - Bom, então me diga o que, porque garanto que é a primeira vez que ouço tamanha... tamanha... - Se o senhor não fosse tão educado, diria "tamanha besteira". Bom, talvez tenha razão. O senhor é um professor, e eu uma jornalista. O senhor se atém aos fatos, e eu especulo. - A história, senhorita, não se escreve com especulações, mas com fatos incontestes, comprovados por várias fontes. Segundo seus arquivos, meses antes de ser preso pelo rei, o grãomestre enviou mensageiros a várias comendadorias, muitos cavaleiros partiram e não voltaram mais. Existem cópias das cartas escritas por Jacques de Molay? - Temos registro de algumas delas, de cópias que pudemos dar como autênticas. Outras se perderam para sempre. - Posso ver as que possuem? - Procurarei atender a seu pedido. - Gostaria de poder vê-Ias amanhã. À noite vou embora. - Ah, vai embora! - Vou, sim. E pelo jeito o senhor ficou bem contente com minha partida. - Por favor, senhorita! - Sei que estou chateando o senhor e atrapalhando seu trabalho. - Vou tentar conseguir os documentos amanhã. Vai voltar para a Espanha? - Não, vou a Paris. - Certo, venha amanhã cedo. 42 Ana Jiménez saiu da mansão. Gostaria de voltar a falar com Anthony McGilles, mas parecia que tinha sido tragado pela terra. Estava cansada. Passara o dia inteiro lendo sobre os últimos meses da Ordem do Templo. Os dados frios, as datas, os relatos anônimos já iam embotando sua cabeça. Mas ela possuía uma imaginação fértil, que seu irmão sempre censurava, por isso cada vez que lera "O grão-mestre Jacques de Molay enviou uma carta à comendadoria de Magúncia por intermédio do cavaleiro De Larney, que partiu na manhã de 15 de julho, acompanhado por dois escudeiros", procurava imaginar como era o rosto do tal De Larney, se montava um cavalo negro ou branco, se fazia calor, ou se os escudeiros estavam de mau humor. Mas sabia que sua imaginação não era capaz de recriar a realidade daqueles homens e, principalmente, não conseguia imaginar o que Jacques de Molay podia ter escrito em suas cartas aos mestres templários. Havia uma relação detalhada de quantos cavaleiros tinham viajado com missivas, e sobre alguns se dizia que voltaram, como o tal Geoffroy de Charney, visitador da Normandia. A pista dos outros se perdera para sempre, pelo menos no que constava nesses arquivos. No dia seguinte, viajaria a Paris. Marcara uma entrevista com uma professora de história da Sorbonne. Mais uma vez, tivera de ativar seus contatos para conseguir saber quem era a maior autoridade acadêmica em século XIV. Tudo indicava que era a professora Elianne Marchais, uma respeitável sessentona, catedrática, autora de vários livros desses que só os eruditos, como a própria Marchais, liam. Foi direito para o hotel; estava gastando mais do que devia, mas se deu ao luxo de dormir no Dorchester, como uma princesa. Além disso, achava que em um bom hotel estaria mais segura, porque tinha a impressão de estar sendo seguida. Dissera a si mesma que era uma idiota, que ninguém ia segui-Ia. Pensou que devia ser gente do Departamento de Arte querendo acompanhar suas descobertas, e isso a tranqüilizou. De qualquer forma, sentia-se mais segura em um hotel de luxo. Pediu um sanduíche e uma salada. Queria se enfiar na cama quanto antes. Os funcionários do Departamento da Arte podiam pensar o que quisessem, mas tinha certeza de que os templários é que haviam comprado o Santo Sudário do pobre Balduíno. O que não encaixava é que, depois disso, o Sudário aparecesse numa aldeia da França, em Lirey. Como fora parar ali? Ia a Paris porque queria que a professora Marchais lhe explicasse o que o professor McFadden parecia não querer explicar. Por que sempre que ela perguntava se os templários haviam ficado com o Santo Sudário, o professor se irritava e pedia que se ativesse aos fatos. Dizia não haver nenhum documento, nenhuma fonte que confirmasse essa teoria estapafúrdia, e insistia em que se atribuíam aos templários todo tipo de mistérios, o que provocava sua indignação como historiador que era. Assim, o professor McFadden e aquela instituição aparentemente dedicada ao estudo da Ordem do Templo não admitiam a possibilidade de os templários alguma vez terem possuído o Sudário. E mais, o professor garantia que aquela tal relíquia lhe era indiferente, que, como os cientistas demonstraram, era do século XIII ou XIV e não do século I; que entendia a superstição das pessoas, mas que não estava interessado nela, nem lhe dizia respeito. Fatos, só queria falar de fatos. Decidiu telefonar para Sofia. Gostava de conversar com ela, e talvez lhe desse alguma pista para lidar com a doutora Marchais. Mas como Sofia não atendia, distraiu-se folheando a agenda. De repente, uma luz: era isso. Como não percebera antes? Talvez fosse uma loucura, mas, e se ela tivesse razão? E se o que estava acontecendo tivesse a ver com pessoas do passado? Dormiu mal. Já se acostumara a ter pesadelos. Era como se uma força estranha a arrastasse aos cenários cruentos do passado, fazendo-a contemplar o horror da dor. Viu Jacques de Molay e Geoffroy de Charney, junto a outros templários, queimados na fogueira. Ela estava lá, sentada na primeira fileira vendo-os arder, e sentiu o olhar implacável do grão-mestre instando-a a partir. "Parte, não procures mais, ou sobre ti se abaterá a Justiça de Deus." De novo acordou coberta de suor, aterrorizada. O grãomestre não queria que continuasse investigando. Se continuasse, morreria. Tinha certeza. Não conseguiu pregar o olho em todo o resto da noite. Sabia que estivera lá, naquele 19 de março de 1314, no parvis de Nôtre Dame diante da fogueira em que ardia Jacques de Molay, que lhe pedira que não seguisse adiante, que não procurasse o Sudário. Sua sorte, pensou, estava lançada. Não desistiria, por mais que temesse Jacques de Molay e até compreendesse os motivos de ele não querer que ela descobrisse a verdade. Mas ela já não podia voltar atrás. O pastor Bakkalbasi viajara com Ismet, o sobrinho de Francesco Turgut, o zelador da catedral. Tomaram um avião em Istambul direto para Turim. Outros homens da Comunidade chegariam por diferentes vias, da Alemanha, de outras partes da Itália e da própria Urfa. Bakkalbasi sabia que também Addaio iria. Ninguém saberia onde ele estava, onde se escondia, mas certamente os seguiria, controlando cada movimento, comandando a operação por meio de celulares. Cada um levava vários. As ordens de Addaio eram não utilizá-los muito e procurar comunicar-se em telefones públicos. Mendibj devia morrer, e Turgut precisava acalmar-se, do contrário também morreria; não tinha escolha. A polícia estivera rondando suas casas em Urfa, sinal de que o Departamento de Arte sabia mais do que eles gostariam de admitir. Sabia disso porque tinha um primo que trabalhava na delegacia de polícia de Urfa: um bom membro da Comunidade que os informara do repentino interesse da Interpol sobre os turcos que emigraram de Urfa para a Itália. Não disseram o que procuravam, mas Ihes pediram informes completos de várias famílias, todas da Comunidade. Todos os alarmes se acenderam. Addaio nomeou um sucessor, caso alguma coisa lhe acontecesse. Dentro da Comunidade havia outra comunidade secreta que vivia ainda mais imersa na clandestinidade. A eles caberia continuar a luta se eles caíssem. E cairiam, Bakkalbasi podia senti-lo em suas entranhas contraídas. Não hesitou em acompanhar Ismet à casa de Turgut. Quando o zelador abriu a porta, gritou assustado. - Calma, homem! Por que gritar? Quer aIertar o bispado inteiro? Entraram na casa. Já mais tranqüilo, Turgut lhes contou as últimas novidades. Sabia que estava sendo vigiado, já desde o dia do incêndio. E esse padre Yves sempre o olhava daquele jeito... Sim, era amável com ele, mas havia algo em seus olhos que o avisava para ter muito cuidado, ou morreria. É, era assim que ele sentia. Aceitaram um café, e o pastor deu instruções a Ismet para que não se separasse de seu tio. Este devia apresentá-lo no bispado e anunciar que seu sobrinho ia morar com ele. Também mandou Turgut mostrar a Ismet o esconderijo que levava ao metrô. Alguns dos homens vindos de Urfa talvez tivessem que se esconder lá, e seria necessário levar-Ihes alimentos e água. Depois o pastor os deixou. Tinha de se reunir, em diversos locais, com outros membros da Comunidade. 43 - O que vamos fazer? - perguntou Pietro. - Talvez devêssemos, segui-lo. - Não sabemos quem é - respondeu Giuseppe. - É turco, está na cara. - Se quiser, eu o sigo. - Não sei o que dizer; bom, vamos ver o zelador e perguntar com toda naturalidade quem acabou de sair de sua casa. Ismet abriu a porta pensando que o pastor Bakkalbasi tinha esquecido alguma coisa. Franziu a testa quando viu os dois homens com aparência de policiais. Os policiais, pensou, sempre parecem policiais. - Bom-dia, queremos falar com Francesco Turgut. O jovem deu mostras de não entendê-los muito bem e chamou o tio em turco. Este saiu à porta, já com a boca trêmula. - Olhe, continuamos investigando o incêndio da catedral. Gostaríamos que o senhor tentasse se lembrar de algum detalhe, alguma coisa que tenha chamado sua atenção. Turgut mal ouviu a pergunta de Giuseppe, tamanho o esforço que fazia para não romper a chorar. Ismet se aproximou do tio e, pondo o braço em seu ombro como para protegê-lo, respondeu por ele num italiano misturado com inglês. - Meu tio é velho, e sofreu muito desde o incêndio. Teme que, por causa da idade, pensem que já não serve como zelador e o demitam justamente porque teve bastante atenção. Não poderiam deixá-lo em paz? Ele já contou tudo o que lembra. - E quem é você? - perguntou Pietro. - Meu nome é Ismet Turgut, sou sobrinho dele. Cheguei hoje, espero poder ficar em Turim e conseguir trabalho. - De onde veio? - De Urfa. - E lá não tem trabalho? - interveio Giuseppe. - Só nos campos de petróleo. Mas eu o que quero é aprender um bom ofício aqui, economizar um dinheiro e voltar a Urfa para montar uma loja. Estou noivo. O jovem parecia boa pessoa, pensou Pietro, até inocente. Talvez fosse. - Bom, mas gostaríamos que seu tio nos dissesse se tem mantido contato com outros imigrantes de Urfa - perguntou Giuseppe. Francesco Turgut sentiu um calafrio. Agora sim tinha certeza de que a policia sabia de tudo. Ismet voltou a dominar a situação respondendo rápido. - Claro que sim. E eu também espero poder encontrar aqui as pessoas da minha cidade. Embora meu tio seja meio italiano, os turcos nunca perdem suas raízes. Não é, tio? Pietro insistiu. O jovem parecia disposto a não deixá-los falar com Francesco Turgut. - Senhor Turgut, conhece a família Bakherai? - Bakherai! - exclamou Ismet, como numa explosão de alegria. Estudei com um Bakherai, acho que têm uns primos de segundo grau ou algo parecido por aqui... - Eu gostaria que seu tio respondesse - insistiu Pietro. Francesco Turgut engoliu em seco e se dispôs a dizer o que tantas vezes ensaiara. - Sim, claro que os conheço, é uma família de bem que passou por uma enorme desgraça, seus filhos... bem, seus filhos cometeram um erro e estão pagando por isso, mas garanto que os pais são boas pessoas, pode perguntar por eles a qualquer um, darão boas referências. - Visitou ultimamente os Bakherai? - Não, não tenho me sentido bem e não saio muito. - Desculpe - interrompeu Ismet com expressão inocente -, mas o que os Bakherai fizeram? - E por que acha que fizeram alguma coisa? - perguntou Giuseppe. - Porque se vocês, que são policiais, vieram aqui perguntar pelos Bakherai, é porque eles fizeram alguma coisa; senão, não perguntariam. O jovem sorriu satisfeito para os dois homens que o olhavam sem saber se era um cínico ou se era mesmo tão inocente quanto parecia. - Bem, voltemos ao dia do incêndio - insistiu Giuseppe. - Eu já disse tudo o que lembro. Se tivesse lembrado de mais alguma coisa, teria procurado vocês - afirmou o velho com voz chorosa. - Acabei de chegar - disse Ismet -, ainda não tive tempo nem de perguntar a meu tio onde vou dormir, não poderiam voltar outra hora? Pietro fez um gesto a Giuseppe. Despediram-se e saíram. - O que você achou do sobrinho? - perguntou Pietro a seu colega. - Não sei, mas parece um bom rapaz. - Pode ser que o tenham mandado para controlar o tio. - Bah! Menos fantasias, Pietro. Eu concordo com você que Sofia e Marco estão fazendo uma novela deste caso. Se bem que, quando Marco cisma com alguma coisa. .. Mas o Sudário já virou obsessão. - Ah é? Só que ontem, quando eu falei isso para ele, você me deixou na mão. - E que adiantava discutir? Vamos fazer o que eles mandam. Se tiverem razão, ótimo; se não tiverem, tanto faz, pelo menos tentamos encontrar uma explicação para esses malditos incêndios. Não se perde nada investigando. Mas sem estresse, com calma. - Admiro sua fleuma. Você parece mais inglês que italiano. - É que você leva tudo muito a ferro e fogo, e ultimamente deu para discutir tudo. - Tenho a impressão de que a equipe está dividida, que as coisas não são como antes. - Claro que a equipe está dividida, mas as coisas logo vão se arranjar. Você e a Sofia é que são os culpados por esse clima pesado, ficam super tensos quando estão juntos e parece que fazem questão de se contrariar. Se ela diz "a” você diz "b", e se encaram como se a qualquer momento fossem pular no pescoço do outro. Olha, acho que o Marco tem razão quando diz que é um erro misturar o trabalho com a cama. Para ser bem sincero, acho que é por sua culpa que estamos assim. - Não pedi tanta sinceridade. - Eu sei, mas queria falar, e está falado. - Tudo bem, a culpa é minha e da Sofia. Mas o que você quer que a gente faça? - Nada. Imagino que vai passar. Seja como for, ela logo vai embora. Quando o caso terminar, cai fora. O Departamento ficou pequeno para ela. É boa demais para passar a vida atrás de ladrões. - É uma mulher extraordinária. - O que me estranha é que ela tenha se envolvido com você. - Puxa, obrigado! - Deixa disso! Cada um tem de aceitar o que é, e você e eu somos dois policiais. Não temos nem a classe, nem a formação dela. Não somos como ela, nem como o Marco. O chefe estudou, e isso dá na vista. Claro que estou contente de ser o que sou e de ter chegado onde cheguei. Trabalhar no Departamento de Arte é moleza e dá status. - Sua sinceridade está me dando nos nervos. - Tudo bem, não está mais aqui quem falou. Mas eu pensei que a gente podia conversar assim, falar a verdade. - Você já falou, agora me deixa em paz. Agora vamos até a central pedir para a lnterpol acionar a polícia turca para nos mandar informação sobre esse sobrinho de Turgut que acabou de aparecer. Mas antes podíamos ir falar com esse padre Yves. - Para quê? Ele não é de Urfa. - Muito engraçadinho. Mas esse padre... - Agora vai implicar com o padre? - Não seja idiota. Vamos falar com ele. O padre Yves os recebeu imediatamente. Estava preparando um discurso que o cardeal pronunciaria no dia seguinte em uma reunião com superioras de conventos de clausura. Rotina, disse-lhes. Perguntou pelas investigações, mais por cortesia que por interesse, e garantiu que, com os novos sistemas anti-incêndios, dificilmente haveria novos incidentes na catedral. Conversaram por quinze minutos, mas, como não tinham nada de novo a dizer, logo se despediram. 44 O cavaleiro templário esporeou seu cavalo. Divisava o Guadiana e as ameias da fortaleza de Castro Marim. Cavalgara sem descanso desde Paris, onde assistira, impotente, ao sacrifício do grão-mestre. Ainda ecoava em seus ouvidos a voz profunda de Jacques de Molay entregando Felipe, o Belo, e o papa Clemente ao Tribunal de Deus. Não tinha a menor dúvida de que o Senhor faria justiça e não deixaria impune o crime cometido pelo rei da França com a ajuda do papa. Tiraram a vida de Jacques de Molay, mas não sua dignidade, porque nunca houve homem mais digno e valente nos instantes finais da existência. Negociou com o barqueiro o preço da travessia e, uma vez na margem portuguesa, rumou veloz para a comendadoria que fora sua casa nos últimos três anos, depois de ter lutado no Egito e ter defendido o Chipre. O mestre José Sá Beiro recebeu João de Tomar de imediato, oferecendo-lhe uma cadeira e água fresca para que se aliviasse da secura do caminho. O superior da comendadoria se sentou diante dele e se preparou para ouvir as notícias do cavaleiro que enviara a Paris como espião. Por duas horas, João de Tomar fez um vívido relato dos últimos dias do Templo, detalhando a negra jornada de 19 de março em que Jacques de Molay e os últimos templários arderam sob o olhar inclemente do povo e da corte de Paris. Comovido pelo relato, o mestre teve de valer-se de toda a dignidade de seu cargo para não deixar transparecer a emoção. Felipe, o Belo, decretara a morte do Templo, e agora a extinção da Ordem assinada pelo papa estava sendo executada em toda a Europa. Os cavaleiros seriam julgados nos reinos cristãos. Em alguns reinos, seriam absolvidos, em outros, cumpririam as ordens do papa para incorporá-los a outras ordens religiosas. José Sá Beiro acreditava nas boas intenções do rei Dinis, mas será que o rei de Portugal se oporia às ordens do papa? Era preciso certificar-se disso, e para tanto enviaria um cavaleiro que, em seu nome, teria com o rei e lhe pediria que esclarecesse sua posição. - Sei de vosso cansaço, mas tenho de pedir-vos que aceiteis uma nova missão. Ireis a Lisboa e levareis uma carta ao rei. Contareis o que vistes, sem omitir nenhum detalhe. E esperareis a resposta dele. Enquanto preparo a carta para o rei, podeis descansar. Se for possível, partireis amanhã mesmo. João de Tomar mal teve tempo de se refazer da canseira da viagem. Ainda não amanhecera quando foi chamado à presença do mestre. - Aqui tendes a missiva, ide a Lisboa, e que Deus vos guarde. Lisboa mostrava-se em seu esplendor naquelas primeiras luzes da alvorada. Estava viajando fazia vários dias, pois tivera de fazer uma longa parada porque seu cavalo machucara uma pata. Não quis deixá-lo na posta, mas ele mesmo colocou-lhe um emplastro e esperou duas jornadas para que se recuperasse. O cavalo era seu amigo mais fiel, que lhe salvara a vida em mais de uma batalha. Por nada desse mundo o entregaria em troca de um pangaré e, mesmo correndo o risco de ser repreendido pelo mestre por atrasar-se na missão, João de Tomar esperou seu cavalo ficar em condições de retomar a marcha, e mesmo assim não o carregou com seu peso, mas cavalgou numa remonta que lhe deram na casa de postas em troca de uma moeda de ouro. Com o rei Dinis, Portugal se transformara em uma nação próspera. De seu gênio nascera a universidade, e estava realizando uma profunda reforma na agricultura, tanto que pela primeira vez o reino tinha excedentes de trigo e azeite de oliva, além de bom vinho para exportar. O rei não demorou mais de dois dias para receber João de Tomar, e o templário português, depois de entregar ao monarca a carta de José Sá Beiro, tornou a relatar o que vivera em Paris. Logo lhe daria uma resposta, garantiu-lhe o rei, que já tinha notícias da decisão papal de extinguir a Ordem. João de Tomar sabia das boas relações de Dom Dinis com o clero, com o qual assinara uma concordata alguns anos atrás. Ousaria contrariar o papa? O templário aguardou três dias até ser novamente chamado pelo rei. Este tomara uma decisão tão sábia quanto salomônica: não enfrentaria o papa, mas também não perseguiria os templários. Dinis de Portugal decidiu pela fundação de uma nova ordem, a Ordem de Cristo, da qual fariam parte todos os templários, mantendo suas próprias regras. A nova ordem, porém, estaria sob o controle do rei, e não do papa. Assim esse rei prudente garantia que as riquezas templárias ficariam em Portugal, não passariam ao poder da Igreja nem ao de outras ordens. Contaria com a gratidão e a ajuda dos templários. E principalmente com seu ouro, tão importante para seus planos, os planos do reino. A decisão do rei foi firme, e assim o comunicaria aos superiores de todos os mestrados e comendadorias. Daí em diante, a Ordem do Templo de Portugal ficaria sob a jurisdição real. Quando o mestre José Sá Beiro soube da decisão do rei, compreendeu que, embora os templários não fossem perseguidos nem arderiam em nenhuma fogueira como na França, a partir daquele momento seus bens passavam a estar à disposição do rei. Devia, portanto, tomar uma decisão, já que era possível que de Lisboa Ihes pedissem um inventário dos haveres de cada comendadoria. Castro Marim, portanto, já não era um lugar seguro para guardar o verdadeiro tesouro da Ordem do Templo e devia tratar de enviá-lo aonde as mãos nem dos reis nem do papa chegassem. Beltrán de Santillana dobrara cuidadosamente o Santo Sudário e o guardara em um surrão do qual nunca se separaria. Estava esperando a maré subir para zarpar no navio que o levaria à Escócia. De todos os países da Cristandade, era o único em que não valia, nem nunca valeria, a ordem de extinção do Templo. O rei Robert de Bruce fora excomungado, e nem ele interferia nos assuntos da Igreja, nem a Igreja nos da Escócia. Os cavaleiros templários nada tinham a temer, portanto, de Robert de Bruce, e a Escócia se transformava, assim, no único reduto onde o Templo conservava todo seu poder. José Sá Beiro sabia que só na Escócia o tesouro da Ordem estaria para sempre a salvo, e cumprindo as indicações do último grãomestre, do assassinado Jacques de Molay, resolveu enviar o cavaleiro Beltrán de Santillana, acompanhado por João de Tomar, Wilfredo de Payens e outros cavaleiros para que custodiassem a santa relíquia até a casa do Templo em Arbroath. O mestre da Escócia decidiria onde esconder o Santo Sudário. Seria dele a responsabilidade pela manutenção da relíquia em mãos templárias. O mestre de Castro Marim entregou a Beltrán de Santillana uma carta para o mestre da Escócia, além da missiva original que Jacques de Molay lhe enviara, na qual expunha as razões por que deviam guardar o segredo da posse da mortalha de Cristo. O bote dobrava a curva do Guadiana em sua saída para o mar, onde o navio que levaria o tesouro da Ordem do Templo até a Escócia os aguardava. Os cavaleiros não olharam para trás. Não queriam ser tomados pela emoção ao deixar Portugal para sempre. O navio dos cavaleiros por pouco não naufragou; tão forte foi a tempestade que o apanhou em sua viagem rumo às costas escocesas. O vento e a chuva sacudiram o navio como se fosse uma casca de noz. Mas resistira. As escarpas da costa escocesa anunciavam o fim da viagem. Os irmãos do Templo da Escócia sabiam do terror que o papa e o rei da França desataram contra os templários, mas eles se sabiam a salvo graças à sua boa relação com o rei Robert de Bruce, ao lado de quem combatiam e que defendiam dos inimigos. O mestre chamou-os à sala capitular. Ali, diante dos olhos atônitos dos cavaleiros, expôs o pano sagrado. Parecia-se com a pintura daquele Cristo que adoravam na discrição da capela privada, pois todos os mestres sabiam que a Ordem possuía a verdadeira imagem de Cristo de que haviam sido feitas aquelas cópias, a fim de que os templários tivessem presente o Senhor. Amanhecia sobre o mar quando os cavaleiros deixaram a sala em que nas últimas horas tiveram o privilégio de orar diante do verdadeiro rosto de Jesus. Beltrán de Santillana ficou a sós com o mestre dos templários da Escócia. Os dois homens falaram brevemente. Depois, dobrando cuidadosamente o pano sagrado, guardaram o tesouro mais precioso da Ordem do Templo. Um tesouro que, conforme a decisão do último grão-mestre, apenas uns poucos eleitos poderiam contemplar ao longo dos séculos. Jacques de Molay podia descansar em paz. 45 Elianne Marchais era miúda, elegante e não lhe faltavam atrativos. Recebeu Ana Jiménez com um misto de resignação e curiosidade. Não gostava de jornalistas. Resumiam a tal ponto aquilo que ouviam que acabavam por distorcer tudo. Por isso não dava entrevistas e, quando lhe pediam uma opinião sobre um assunto de sua especialidade, sua resposta era sempre a mesma: "Leia meus livros. Tudo o que penso está lá. E não me peça que lhe diga em três palavras o que expliquei em trezentas páginas." Mas aquela mocinha era um caso à parte, pois fora recomendada. O embaixador da Espanha na Unesco lhe telefonara pedindo o favor. Além de dois reitores de prestigiosas universidades espanholas e três colegas da Sorbonne. Ou era muito importante, ou era uma teimosa disposta a tudo para conseguir o que queria. Neste caso ela lhe dedicaria alguns minutos de seu tempo, porque não estava disposta a mais. Ana Jiménez decidiu que com uma mulher como Elianne Marchais não cabiam subterfúgios, portanto decidiu abrir o jogo. E das duas uma: ou a escorraçava, ou decidia ajudá-la. Não levou mais do que vinte minutos para explicar que queria escrever uma história sobre o Sudário e precisava de sua opinião de especialista para separar tudo o que havia de fantasia e de verdade na história da relíquia. - E por que está interessada no Sudário? A senhora é católica? - Não... quer dizer... acho que sim. De certo modo, fui batizada, embora não seja praticante. - Não respondeu à minha pergunta. Por que está interessada no Sudário? - Porque é um objeto polêmico, que, além disso, parece atrair uma certa violência, incêndios, roubos na catedral... A professora Marchais arqueou uma sobrancelha e, com certo desdém, decidiu dar a conversa por encerrada. - Senhorita Jiménez, receio que não possa ajudá-la. Não sou especialista em questões esotéricas, portanto terá de procurar uma pessoa mais indicada para falar dessa tese tão interessante, qual seja, a de que o Sudário atrai calamidades. Elianne Marchais se levantou. Não tinha o menor interesse em falar com uma jornalista idiota. Por quem a tomara para ousar ocupar seu tempo com tamanho disparate? Ana não se moveu da cadeira. Fitou a professora e tentou a sorte de novo, tentando não cometer outra gafe. - Acho que me expressei mal, professora Marchais. Não estou interessada em esoterismo, lamento que tenha dado essa impressão. Estou tentando escrever uma história documentada, justamente distante de qualquer interpretação mágica, esotérica ou como quer que se chame. Procuro fatos, só fatos, não especulações. Por isso a procurei, para tentar separar a verdade das interpretações de determinados autores mais ou menos reconhecidos. A senhora sabe o que aconteceu na França nos séculos XIII e XIV como se fosse hoje, e é desse saber que eu preciso. A professora Marchais, ainda em pé, vacilou entre dispensar a jovem ou atender seu pedido. A explicação que acabava de dar pelo menos era séria. - Não tenho muito tempo, por isso me diga exatamente o que quer saber. Ana suspirou aliviada. Sabia que não podia cometer um novo deslize, ou seria escorraçada sem contemplações. - Gostaria que me explicasse exatamente tudo que se refere ao aparecimento do Santo Sudário na França. Com um gesto de indiferença, a professora contou a Ana, nos mínimos detalhes, o "aparecimento" do Sudário em Lirey. - As crônicas mais documentadas da época garantem que em 1349, Geoffroy de Charny, senhor de Lirey, deu a conhecer que possuía um sudário com a impressão do corpo de Jesus, ao qual sua família dedicava grande devoção. Esse nobre escreveu cartas ao papa e ao rei da França pedindo autorização para construir uma colegiada onde o sudário seria exposto para a veneração dos fiéis. Nem o papa nem o rei responderam à pretensão do senhor de Lirey, e com isso a colegiada não pôde ser construída, mas o sudário começou a ser objeto de culto com a cumplicidade dos cônegos de Lirey, que viram nisso uma oportunidade para aumentar sua influência e importância. - Mas de onde ele tirou o sudário? - Na carta que De Charny escreveu ao rei da França, conservada nos arquivos reais, ele garantia que mantivera a posse do sudário em segredo para não provocar disputas entre os cristãos. Já haviam aparecido outros sudários em lugares tão distantes como Aquisgrã, Jaén, Toulouse, Magúncia e Roma. Justamente em Roma, na basílica vaticana, desde 1350, estava exposto um sudário que naturalmente era tido por autêntico. Geoffroy de Charny jurou ao rei e ao papa, pela honra de sua família, que a mortalha que possuía era a autêntica, mas o que ele não confessou nunca, nem ao rei nem ao papa, foi como o pano chegara às suas mãos. Herança de família? Compra? Isso ele não disse, e portanto não o sabemos. Teve de esperar anos até obter autorização para construir a colegiada, e não chegou a ver o sudário exposto, pois morreu em Poitiers defendendo o rei da França, a quem cobriu com o próprio corpo durante a batalha. Sua viúva doou a mortalha à igreja de Lirey, o que contribuiu para o enriquecimento dos cônegos locais e ao mesmo tempo despertou a inveja dos prelados de outras aldeias e cidades, provocando um verdadeiro conflito. O bispo de Troyes mandou fazer uma pesquisa exaustiva; inclusive conseguiu apresentar um testemunho importante para desacreditar a autenticidade da mortalha. Um pintor garantiu ter feito a imagem por encomenda do senhor de Lirey, de modo que o bispo conseguiu que a exibição do sudário fosse proibida. "Foi outro Geoffroy, Geoffroy II de Charny, que anos mais tarde, em 1389, conseguiu que o papa Clemente VII autorizasse a exposição do sudário. O bispo de Troyes tornou a intervir, preocupado com a afluência de peregrinos que vinham adorar a relíquia. Conseguiu que o sudário voltasse à sua arca por alguns meses, mas, enquanto isso, Geoffroy de Charny fez um acordo com o papa: poderia expor o sudário com a condição de que os cônegos de Lirey dissessem aos fiéis que se tratava de uma pintura feita para representar a mortalha de Cristo." Com voz monótona, a professora Marchais continuou seu percurso pela história, explicando que a filha de Geoffroy lI, Marguerite de Charny, resolveu guardar o sudário no castelo de seu segundo marido, o conde De Ia Roche. - Por quê? - perguntou Ana. - Porque em 1415, durante a Guerra dos Cem Anos, as pilhagens eram constantes. Ela então pensou que estaria mais seguro no castelo do marido, situado em Saint Hippolyte-sur-Ie-Doubs. Foi uma mulher singular, pois, quando enviuvou pela segunda vez, aumentou as parcas rendas que o marido lhe deixara cobrando esmolas de quem queria ver de perto o sudário de Cristo e rezar diante dele. Foram justamente suas dificuldades econômicas que a levaram a vender a relíquia à Casa de Savóia. A data da cessão foi 22 de março de 1453. Os cônegos de Lirey protestaram porque se diziam proprietários do pano, já que a viúva de Geoffroy I de Charny o cedera a eles. Mas Marguerite fez ouvidos moucos a essas demandas e desfrutou do castelo de Varambom e das rendas do senhorio de Miribel cedidas a ela pela Casa de Savóia. Existe um contrato a esse respeito, assinado por Luís I, duque de Savóia. A partir desse ponto, a história do Sudário é conhecida por todos. - Gostaria de lhe perguntar se é possível que o Sudário tenha chegado à França por intermédio dos templários. - Ah, os templários! Quantas lendas e como foram injustamente tratados por ignorância! É lixo, lixo completo, a pseudo literatura que trata dos templários. E sabe por quê? Porque muitas organizações maçônicas se dizem herdeiras da Ordem do Templo. Algumas delas estiveram, para falar simplesmente, do lado "do bem", por exemplo, durante a Revolução Francesa, mas outras... - Mas a Ordem do Templo sobreviveu? - Claro. Há organizações, como eu disse, que garantem ser suas herdeiras. Lembre-se que na Escócia a ordem nunca foi dissolvida. Mas para mim ela morreu em 19 de março de 1314, na fogueira em que Felipe, o Belo, mandou queimar o grão-mestre Jacques de Molay e outros cavaleiros. - Estive em Londres e lá encontrei um centro de estudos templários. - Já disse que existem clubes e organizações que se dizem herdeiras da Ordem do Templo. Não tenho o menor interesse nelas. - Por quê? - Senhorita Jiménez, eu sou uma historiadora. - Eu, sei, mas... - Não há "mas". Deseja mais alguma coisa? - Sim, gostaria de saber se a família De Charny chegou até nossos dias, se ainda tem descendentes... - As grandes famílias se sucedem a si mesmas. Deveria consultar um especialista no assunto, um especialista em genealogia. Desculpe a insistência, mas, de onde a senhora acha que o tal Geoffroy de Charny tirou o sudário? - Não sei. Já disse que ele nunca o disse, nem sua viúva, nem os descendentes que possuíram o sudário até ele passar para a Casa de Savóia. Podia ser uma relíquia comprada, ou presenteada, ninguém sabe. Naquela época, a Europa estava cheia de relíquias trazidas pelos cruzados. A maioria era falsa, daí tantos "santos graals", sudários, ossos de santos... - Há algum modo de saber se a família de Geoffroy de Charny teve alguma relação com as Cruzadas? - Repito que a senhora teria de falar com um genealogista. Claro que... A professora Marchais ficou pensativa, batendo a ponta da caneta na mesa. Ana ficou em silenciosa expectativa. - Pode ser que Geoffroy de Charny tivesse alguma coisa a ver com Geoffroy de Charney, o visitador da Ordem do Templo na Normandia que morreu na fogueira junto com Jacques de Molay, e que também lutou na Terra Santa. É uma questão de grafia e... - Sim, é isso! É claro que são da mesma família! - Senhorita, não se deixe enganar por seus desejos. Eu disse que pode ser que os dois sobrenomes venham do mesmo tronco, e nesse caso o Geoffroy de Charny que possuía o sudário... - O teria porque anos atrás o outro Geoffroy o trouxe da Terra Santa e o guardou na casa da família. Não é uma suposição absurda. - Claro que é, porque o visitador da Normandia era templário. Se tivesse tido a relíquia, esta pertenceria à Ordem, nunca a esconderia na casa da família. Desse Geoffroy temos farta documentação, porque se manteve fiel a De Molay e ao Templo... Não convém dar asas à imaginação. - Mas pode ter havido alguma razão para que ele não entregasse o sudário à Ordem. - Duvido. Com respeito a Geoffroy de Charney, não cabem especulações. Lamento ta-la confundido; na minha opinião, não é um problema de grafia, simplesmente os dois Geoffroy pertencem a famílias diferentes. - Vou a Lirey. - Ótimo. Algo mais? - Muito obrigada. A senhora não sabe, mas acho que decifrou uma parte do enigma. Elianne Marchais despediu-se de Ana Jiménez confirmando mais uma vez sua opinião sobre os jornalistas: superficiais, bem incultos e dados às elucubrações mais idiotas. Não era de estranhar que se falasse tanta bobagem nos Jornais. Ana chegou a Troyes um dia depois de sua entrevista com a professora Marchais. Alugou um carro para ir até Lirey e ficou surpresa ao ver que era um casario onde não viviam mais que cinqüenta pessoas. Passeou entre os restos da antiga casa senhorial acariciando as velhas pedras, buscando que esse contato lhe revelasse alguma pista, algum pressentimento. Ultimamente agia deixando-se levar pela intuição, sem planejar nada de antemão. Aproximou-se de uma velha que passeava com seu cachorro pela beira do caminho que levava àquela que fora a fortaleza do nobre Geoffroy. - Boa-tarde. A velha a mediu dos pés à cabeça, com curiosidade. - Boa-tarde. - Lindo lugar. - É sim, mas os jovens não acham, e preferem a cidade. - Bom, é que nas cidades estão as chances de trabalho. - O trabalho está onde a gente quer achar. Aqui em Lirey as terras são boas. De onde você é? - Sou espanhola. - Ah! Eu já achava, por causa do sotaque. Mas fala bem o francês. - Obrigada. - E o que faz por aqui? Está perdida? - Não, nada disso. Vim ver este lugar. Sou jornalista e estou escrevendo uma história sobre o Santo Sudário e sobre como apareceu aqui em Lirey... - Uf! Isso faz muitos séculos! Agora estão dizendo que o Sudário não é autêntico, que foi pintado aqui. - E a senhora acredita? - Para mim tanto faz, eu sou atéia, bom, na verdade, agnóstica, e as histórias de santos e de relíquias nunca me interessaram. - Sei, comigo é a mesma coisa, mas me pediram a reportagem, e trabalho é trabalho. - Mas aqui não vai encontrar nada, os restos da fortaleza são isso que está vendo. - Não há arquivos ou documentos sobre a família De Charny? - Talvez em Troyes. Se bem que os descendentes dessa família vivem em Paris. - Vivem? - Bom, há muitos ramos da família. Como a senhora sabe, os nobres eram prolíficos. - Como poderia localizá-los? - Não sei, não tenho contato com eles, embora vez por outra um deles apareça por aqui. Faz três ou quatro anos veio o caçula dos irmãos de um dos ramos dos Charny. Moço bonito! Todo mundo foi ver. - Mas como eu poderia encontrá-los? - Pergunte naquela casa no fundo do vale. Lá mora o senhor Didier, o encarregado das terras dos Charny. Ana se despediu da velha e pegou a andar a passo rápido rumo à casa que ela lhe indicara. Não podia acreditar em sua sorte. Estava prestes a encontrar os descendentes de Geoffroy de Charny. O senhor Didier devia ter uns 60 anos. Alto e forte, com o cabelo grisalho e cara de poucos amigos, olhava para Ana com desconfiança. - Senhor Didier, sou jornalista, estou escrevendo uma história sobre o Santo Sudário e vim conhecer Lirey, pois foi aqui que ele apareceu. Sei que estas terras são da família De Charny, e me disseram que o senhor trabalha para eles. Didier olhou-a contrariado. Estava tirando uma soneca em sua poltrona favorita. Sua mulher estava nos fundos da casa, na cozinha, e não ouvira a campainha, por isso ele abriu e deparou com uma intrometida. - O que a senhora quer? - Gostaria que me falasse desse povoado, da família Charny... - Por quê? - Porque, como já disse, sou jornalista e estou escrevendo uma história. - E o que eu tenho que ver com o que faz? Acha que vou falar dos Charny só porque é jornalista? - Bom, não acho que esteja pedindo nada de mau. Imagino que neste povoado devam se sentir orgulhosos porque aqui apareceu o Santo Sudário e... - Não ligamos a mínima para isso, ninguém liga. Se quer saber da família, procure em Paris, mas não venha aqui pedir informação, não somos fofoqueiros. - Senhor Didier, não está me entendendo, não estou atrás de fofocas, só quero escrever uma história da qual este povoado e a família Charney são parte importante. Eles tinham o Santo Sudário, o expuseram aqui, então, acho que isso é motivo de orgulho. - Alguns acham. Ana e o senhor Didier voltaram os olhos para a mulher que acabava de entrar no salão, Alta e robusta, devia ser um pouco mais jovem que o marido, mas ao contrário deste, sua atitude não era de contrariedade, mas de simpatia. - Receio que tenha acordado meu marido, e isso afeta seu humor. Entre. Aceita um chá, um café? Ana entrou sem pensar duas vezes. - Muito obrigada. Se não for incômodo, gostaria de um café, sim. - Espere só um minutinho. Sente-se. Os Didier se entreolharam medindo-se um ao outro. Era evidente que tinham personalidades muito diferentes e que deviam entrar em choque com freqüência. Ana resolveu falar de amenidades até a senhora Didier voltar. Quando ela voltou, contou-lhe o motivo de sua visita. - Os Charny são donos destas terras desde tempos imemoriais. A senhora deveria ir à colegiada, lá encontrará informação sobre eles, e também nos arquivos históricos de Troyes. Durante um bom tempo a senhora Didier falou da vida em Lirey, queixando-se da fuga de jovens. Seus dois filhos moravam em Troyes. Um era médico e o outro trabalhava em um banco. A boa mulher lhe deu informação minuciosa sobre toda sua família, e Ana a escutou com paciência. Preferia suportar aquela conversa banal antes de ir ao ponto. Mas afinal o fez. - E como são os Charny? Imagino que para eles deve ser emocionante vir a Lirey. - A família tem muitos ramos. Os descendentes de um deles, que é o que conhecemos, não aparecem muito por aqui, mas cuidamos de suas terras e de seus interesses. São um pouco metidos, como todos os aristocratas. Faz alguns anos, apareceu um parente distante. Que moço mais bonito! E simpático, muito simpático. Veio acompanhado pelo superior da colegiada. Ele tem mais contato com a família. Nós tratamos com um administrador que fica em Troyes. Vou lhe dar o nome dele. O senhor CapeIl é muito amável. Duas horas depois, Ana deixava a casa dos Didier com alguns dados a mais do que tinha ao chegar. Já era tarde, ao menos segundo o horário dos franceses, que costumam jantar por volta das sete, por isso resolveu voltar a Troyes e esperar o dia seguinte para vasculhar os arquivos e ir à colegiada de Lirey falar com o superior, se é que ele a receberia. O encarregado do arquivo municipal de Troyes era um rapaz de piercing no nariz e três brincos em cada orelha que lhe confessou achar aquele trabalho um tédio, mas que tinha sido uma sorte encontrá-lo, pois era bibliotecário. Ana lhe disse o que estava procurando, e Jean - esse era o nome dele - se ofereceu para ajudá-la na pesquisa. - Quer dizer que a senhora acha que o visitador da Ordem do Templo na Normandia era um antepassado do nosso Geoffroy de Charny. Mas os sobrenomes não são iguais. - É, mas pode ser apenas uma variação na grafia. Não seria a primeira vez que se tira ou se acrescenta uma letra num sobrenome. - Claro, claro. Bom, isso não vai ser fácil, por isso, se me der uma mão, vamos ver o que achamos. Primeiro procuraram nos arquivos digitais, depois começaram a busca entre as velhas pastas de papel. Ana estava maravilhada com a inteligência de Jean. Além de bibliotecário, era formado em letras francesas, portanto o francês antigo não tinha segredos para ele. - Encontrei uma relação de todos os batizados na colegiada de Lirey. É um documento do século XIX em que um estudioso local resolveu resgatar a memória de seu vilarejo e se dedicou a copiar os arquivos eclesiásticos. Vamos ver se tem alguma coisa. Estavam trabalhando havia quatro dias e quase tinham feito uma árvore genealógica dos Charny, mas os dois sabiam que estava incompleta porque, embora constasse a cópia de algumas certidões de nascimento, nada sabiam das vicissitudes desses personagens que tantas vezes se casaram para estreitar alianças com outros nobres e cuja pista, sua e de seus filhos, era praticamente impossível seguir. - Acho que você devia procurar um historiador, alguém que entenda de genealogia. - Eu sei, já me disseram. Mas, quem? Você conhece algum? - Tenho um amigo que é daqui de Troyes. Estudamos juntos no colegial, depois ele foi para Paris e se doutorou em história pela Sorbonne. Foi inclusive professor assistente. Mas se apaixonou por uma jornalista escocesa e, em menos de três anos, fez o curso de jornalismo. Moram em Paris, tem uma revista: Énigmes. Pessoalmente, eu tenho minhas dúvidas sobre esse tipo de publicação; tratam de temas históricos, de enigmas não decifrados. Contam com genealogistas, historiadores, cientistas. Ele pode nos dar o nome de algum genealogista. Faz anos que não nos encontramos, quase desde que se casou com a escocesa. Ela sofreu um acidente, e não voltaram mais aqui. Mas é um bom amigo e vai receber você. Mas antes você deve ir à colegiada, talvez o superior tenha outros arquivos ou saiba alguma coisa interessante sobre essa família. O superior da colegiada era um amável setentão que a recebeu uma hora depois de ela ter telefonado. - Os Charny sempre estiveram ligados a este lugar, mantiveram a posse das terras, mas faz séculos que não moram aqui. - O senhor conhece os atuais Charny? - Bem, alguns. Existem vários ramos, por isso, como pode imaginar, há dezenas de Charny. Uma das famílias, os que mais estão ligados a Lirey, são pessoas importantes, moram em Paris. - Eles vêm aqui com freqüência? - Não, não mesmo. Faz anos que não aparecem. - Uma senhora de Lirey, a senhora Didier, me disse que faz três ou quatro anos veio um jovem da família, muito simpático. - Ah! O padre. - Padre?! - Isso mesmo. Fica surpresa de saber que alguém pode ser padre? disse o superior, rindo. - Não, de jeito algum. Só que em Lirey me disseram que faz uns anos veio um moço muito bonito, mas não me disseram que ele era padre. - Não sabiam, não têm porque saber. Quando ele veio, nem sequer usava o colarinho eclesiástico, estava vestido como qualquer rapaz de sua idade. Não parecia um padre, mas é, e acho que está fazendo uma bela carreira. Quer dizer, não será um padreco de aldeia. Mas ele não é um Charny, se bem que seus antepassados, pelo jeito, tiveram alguma relação com essas terras. Ele também não me disse muita coisa a respeito. Só me ligaram de Paris para que o recebesse e o ajudasse no que ele precisasse. O celular de Ana interrompeu a conversa. Atendeu e ouviu Jean com voz agitada. - Ana, acho que encontrei! - O quê? - Diga ao padre Salvaing que deixe você dar uma olhada nas certidões de batismo dos séculos XII e XIII, pode ser que você tenha razão, e alguns Charny tenham sido Charney. - Como você descobriu? - Examinando as cópias, mas não sei se é um erro ou, ao contrário, acertamos na mosca. Vou fechar o arquivo e vou direto para aí. Me espera, não vou levar mais do que meia hora para chegar. Ana teve trabalho em convencer o padre Salvaing a deixá-la olhar as certidões de batismo arquivadas na colegiada e guardadas na biblioteca como autênticas jóias. O velho padre chamou o irmão arquivista, que armou um escândalo quando soube da pretensão da jornalista. - Ainda se a senhora fosse uma estudiosa, uma historiadora... mas não passa de uma jornalista, e sabe lá Deus o que anda procurando disse o arquivista, de mau humor. - Estou tentando escrever uma história do Sudário a mais completa possível. - E o que as grafias do sobrenome Charny têm a ver com isso? insistiu o arquivista da colegiada. - Quero saber se o visitador do Templo na Normandia, Geoffroy de Charney, que morreu na fogueira ao lado de Jacques de Molay, foi o dono do Sudário e, por alguma razão, o escondeu aqui, na casa da família, de modo que Geoffroy de Charny aparecesse como seu proprietário quarenta anos mais tarde. - Trocando em miúdos, a senhora quer provar que o Sudário pertenceu aos templários - afirmou mais que perguntou o padre Salvaing. - E, se não for assim, vai inventar que é - arrematou o arquivista. - Não, eu não invento nada. Se não for assim, não é assim, e pronto. Só tento explicar por que o Sudário apareceu aqui, e me parece verossímil que alguém o trouxesse da Terra Santa, um cruzado ou um cavaleiro templário. Se não, que teria sido? Se Geoffroy de Charny garantia que o pano era autêntico, devia ter suas razões. - Nunca provou nada - afirmou o velho superior. -Talvez não pudesse. - Ah, bobagens! - interveio o arquivista. - Permitam que lhes pergunte: os senhores acreditam que o Santo Sudário é autêntico? Os dois sacerdotes guardaram alguns segundos de silêncio. Tinham dedicado a vida a Deus por causa de sua fé. Só a fé podia fazer um homem renunciar a ter uma família, amor. E sua fé, a deles e a de tantos outros como eles, às vezes fraquejava, mergulhando-os no desespero, pois, inteligentes como eram, não podiam deixar de ouvir a voz da razão. O primeiro a falar foi o arquivista. - Há séculos que a Igreja permite o culto ao Sudário. - Mas eu perguntei a sua opinião e a do padre Salvaing, a doutrina da Igreja eu já conheço. - Minha querida - disse Salvaing -, o Sudário é uma relíquia apreciada por milhões de fiéis. Sua autenticidade foi questionada pelos cientistas e, no entanto... devo admitir que me emocionei quando a vi na catedral de Turim. Há algo de sobrenatural no pano, seja qual for o veredicto do carbono 14. Quando Jean chegou, Ana ainda estava tentando convencer os dois sacerdotes a lhe abrirem os arquivos da colegiada. O superior e o arquivista olharam Jean com certa aversão, mas ele não levou nem dez minutos para convencê-los a permitir-Ihes dar uma olhada nas pastas da biblioteca. Além disso, pediu ajuda ao arquivista. Demoraram mais de duas horas, mas no final encontraram o que procuravam: de fato, em Lirey havia Charny e Charney, com certo grau de parentesco. De volta a Troyes, Ana convidou Jean para jantar. - Conseguimos. - Bom, você tinha razão, esses dois Geoffroy eram parentes. - Na verdade, não fui eu quem descobriu. Foi um comentário da professora Elianne Marchais que me deu a pista de que isso era possível. E é. Agora tenho quase certeza de que Geoffroy de Charney foi o proprietário do Sudário. Na certa, mandou-o pintar ou o comprou como sendo autêntico na Terra Santa. - Se fosse autêntico, teria estado nas mãos dos templários. Não se esqueça, Ana, que os cavaleiros faziam voto de pobreza e não possuíam nada. Portanto não deixa de ser estranho que o templário tivesse o Sudário. Talvez os dois Geoffroy fossem parentes, mas estamos atribuindo ao primeiro a posse do Sudário sem nenhuma base, sem provas. - Só que ele esteve na Terra Santa - insistiu Ana. - Esteve, claro, como quase todos os templários. - É, mas este se chamava Geoffroy de Charney. - Ana, tua teoria é interessante, mas forçada, e você sabe disso. Por isso nunca acredito muito no que dizem os jornais, porque vocês jornalistas às vezes dão como certo o que só é provável. - Mais um que faz mau juízo dos jornalistas! - Mau juízo não, só uma certa desconfiança. - Nós não mentimos, sabe? - Não estou dizendo que mentem, até admito que há uma base de realidade nas coisas que escrevem, mas isso não quer dizer que seja verdade. O que estou tentando dizer é que você procure ser rigorosa quando escrever sobre o assunto. Senão, as pessoas vão tomar tudo isso como uma fantasia, como mais uma história esotérica sobre o Sudário. E você sabe que existem muitas. Resolveu confiar em Jean. Fazia uma semana que tinham se conhecido e, no entanto, tinha a impressão de que sempre o conhecera. Jean era sensível, inteligente e sensato. Por trás de sua aparência desleixada, havia um homem íntegro. Contou-lhe quase tudo o que sabia, mas sem mencionar o Departamento de Arte nem seu irmão Santiago, e esperou para ouvir sua opinião. - Nada mal para um livro esotérico. Mas, sinceramente, Ana, você só me fala de intuições e palpites. Tudo isso que você diz, se bem contado, pode dar uma historinha interessante para uma revista de variedades, mas nada do que me contou se sustenta em provas, nada. Sinto desapontá-la, mas, se eu lesse no jornal uma história como a que você me contou, não acreditaria, pensaria que é uma elucubração de um desses pseudo autores que escrevem sobre discos voadores e vêem um mistério em cada esquina. Ana não conseguiu disfarçar sua decepção, embora em seu íntimo admitisse que Jean tinha razão, que suas teorias não tinham nenhum fundamento que as sustentasse seriamente. - Não vou me render, sabe Jean? Se de fato eu não encontrar provas sólidas, não vou publicar nem uma linha. Esse é o trato que acabo de fazer comigo mesma. Assim não vou desapontar quem me ajudou. Mas vou continuar pesquisando: Agora ainda me resta investigar se um Charny que eu conheço tem alguma coisa a ver com estes Charny. - E quem é esse Charny que você conhece? - Um homem muito bonito e interessante, um tanto misterioso. Vou a Paris. Lá vai ser mais fácil entrar em contato com a família dele, se é que é mesmo a família dele. - Gostaria de ir junto. - Então vamos. - Não dá. Eu teria de pedir férias e, de um dia para o outro, não iam liberar. Que mais você vai fazer? - Antes de ir embora, vou passar pelo escritório do senhor Capell, o administrador dos Charny. Também gostaria que você me apresentasse a seu amigo que tem aquela revista, Énigmes, você disse? Depois, vou a Turim, mas vai depender do que descobrir em Paris. Eu vou telefonando para você para contar. Sabe, você é a única pessoa com quem pude falar sinceramente sobre esse assunto, e como você tem muito bom senso, acho que vai saber pôr limites às minhas fantasias. O senhor Capell era um homem sisudo e de poucas palavras, que, polidamente, deixou claro que não iria dar nenhuma informação sobre seus clientes. Confirmou que havia dezenas de descendentes dos Charny na França e que seus clientes eram uma família a mais. Ana deixou o escritório de Capell desapontada. Quando chegou a Paris, foi direto para a redação de Énigmes, que ficava no primeiro andar de um edifício do século XIX. Paul Bisol era o oposto de Jean. Impecavelmente vestido, parecia mais um executivo de uma multinacional que um jornalista. Jean lhe telefonara pedindo que a ajudasse. Paul Bisol escutou pacientemente o relato de Ana. Não a interrompeu uma única vez, o que a surpreendeu. - Tem idéia de onde está se metendo? - Do que o senhor está falando? - Senhorita Jiménez... - Por favor, pode me chamar de Ana. - Bem, Ana, de fato, os templários existem. Mas não são apenas aqueles elegantes historiadores que a senhora diz ter conhecido em Londres, ou os amáveis cavalheiros de clubes mais ou menos secretos que se dizem herdeiros do espírito do Templo. Antes de morrer, Jacques de Molay providenciou a sobrevivência da Ordem, muitos cavaleiros desapareceram sem deixar rastro, passaram à clandestinidade. Mas todos eles se mantiveram em contato com a nova Casa-Mãe, com a Ordem do Templo da Escócia, que é onde De Molay decidiu fixar a legitimidade da Ordem: Os templários aprenderam a viver na clandestinidade, infiltraram-se nas cortes européias, na própria cúria papal, e assim continuaram até hoje. Não desapareceram. Ana sentiu uma sensação desagradável. Parecia-lhe que Paul falava como um iluminado e não como um historiador. Até então encontrara pessoas que rebatiam suas loucas teorias, que insistiam em que não se deixasse levar pela fantasia e, de repente, encontrava alguém que concordava com ela, e não gostava nada disso. Bisol apanhou o telefone e falou com sua secretária. Um minuto depois, convidou-a a segui-lo. Conduziu-a até outra sala situada perto da dele. Bateu na porta e esperou que uma voz feminina o convidasse a entrar. Uma mulher jovem, de uns 30 anos, de cabelo castanho e enormes olhos verdes estava sentada atrás de uma mesa, escrevendo no computador. Sorriu quando os viu entrar, mas não se mexeu. - Sentem-se. Então a senhora é amiga do Jean? - Bom, acabamos de nos conhecer, mas de fato nos demos muito bem e ele me ajudou muito. - O Jean é assim - disse Paul - ele não sabe, mas tem alma de mosqueteiro. Bom, Ana, quero que repita a Elisabeth tudo o que me contou. Ana começava a ficar nervosa com a situação. Paul Bisol era amável, mas havia alguma coisa nele que não a agradava nem um pouco. Elisabeth também lhe produzia uma certa repulsa, não sabia por quê. Sentia uma vontade louca de sair correndo, mas se conteve e se dispôs a relatar mais uma vez suas suspeitas sobre as peripécias do Santo Sudário. Elisabeth ouviu-a em silêncio, também não a interrompeu com perguntas. Quando Ana terminou, Paul e Elisabeth se olharam. Ana sabia que estavam se falando com os olhos, decidindo o que fazer. Por fim, Elisabeth rompeu o tenso silêncio que se instalou entre eles. - Bem, Ana, acho que você está no caminho certo. Nunca tínhamos pensado em sua teoria, em que Geoffroy de Charney tivesse algo a ver com Geoffroy de Charny, mas de fato pode ser uma questão de grafia, e, se você garante que nos arquivos de Lirey encontrou membros de ambas as famílias..., enfim, fica claro que esses dois Geoffroy tinham alguma relação. Isso quer dizer que, na realidade, o Sudário pertencia aos templários. Mas por que esteve nas mãos de Geoffroy de Charney? De cara, o que me ocorre é que talvez o grãomestre tenha mandado proteger a relíquia, já que Felipe, o Belo, estava tentando se apoderar dos tesouros templários. Deve ter sido isso mesmo. Jacques de Molay mandou Geoffroy de Charney esconder o Sudário em suas terras, e anos mais tarde a mortalha apareceu em mãos de um parente, do outro Geoffroy. É, sim, deve ter sido isso. Ana decidiu contradizê-la, na realidade, contradizer a si mesma. - Bom, mas não existe nenhuma prova que sustente a minha hipótese, é apenas uma especulação. - Mas é o que aconteceu - disse Elisabeth, sem hesitar. - Sempre se falou de um tesouro misterioso da Ordem do Templo; pode ser que o Sudário fosse o tesouro. Afinal, eles acreditavam que era autêntico. - Mas não é - respondeu Ana -, eles sabiam que não era autêntico. O Santo Sudário é do século XIII ou XIV, portanto... - Você tem razão, mas os templários podem ter tomado o pano como autêntico na Terra Santa. Afinal, naquele tempo era muito difícil saber se uma relíquia era verdadeira ou falsa. O que está claro é que eles acreditaram que era verdadeira quando a mandaram guardar. Suas teorias são corretas, Ana, não tenho dúvida. Mas você deve tomar cuidado, ninguém se aproxima dos templários impunemente. Temos um genealogista muito bom que vai ajudar você. Quanto a esse Charny que você conhece, me dê uma hora, que eu posso levantar algumas informações sobre ele. Saíram da sala de Elisabeth. Ana se despediu de Paul Bisol garantindo que logo no início da tarde passaria pela redação para falar com o genealogista e recolher a informação que Elisabeth apurasse sobre Charny, Yves de Charny, o secretário do cardeal de Turim. Vagou a esmo por Paris. Precisava pensar e gostava de caminhar enquanto o fazia. Ao meio-dia, sentou-se junto à vidraça de um bistrô e almoçou lendo os jornais espanhóis que conseguiu comprar. Fazia vários dias que não sabia nada da Espanha. Não telefonara nem para o jornal, nem para Santiago. Sentia que a investigação ia chegando ao fim. Estava convencida de que os templários tinham algo a ver com o Sudário, que foram eles que o trouxeram de Constantinopla. Lembrou-se da noite no Dorchester em que, folheando a agenda, pensou que podia ser mais que uma coincidência o fato de o belo padre francês, secretário do cardeal de Turim, se chamar Charny. Até então, não conseguira nenhuma pista concreta; só que parecia que o padre Yves visitara Lirey alguns anos atrás, pois, disso não tinha dúvida, era ele. Não havia tantos padres bonitos. Podia ser que o padre Yves tivesse relação com os templários, mas com os medievais ou os atuais? E, se fosse assim, o que isso significava? Nada, pensou. Não significaria nada. Podia ver o belo padre contando-lhe, com seu sorriso inocente, que seus antepassados tinham mesmo estado nas cruzadas, e que de fato sua família vinha da região de Troyes. E daí? O que isso provava? Nada, não provava nada. Mas seu instinto lhe dizia que havia um fio que levava a algum lugar. Um fio que ia de Geoffroy de Charney a Geoffroy de Charny, que percorria milhares de meandros e terminava no padre Yves. Mas o padre Yves não tinha nada a ver com os incêndios da catedral, disso ela tinha certeza. Então, onde estava a chave? Mal conseguiu almoçar. Telefonou para Jean e sentiu-se reconfortada quando o ouviu do outro lado da linha, garantindo-lhe que, embora fosse um pouco esquisito, Paul Bisol era boa pessoa e podia confiar nele. Às três foi de novo à redação da Énigmes. Quando chegou, Paul já a esperava na sala de Elisabeth. - Bem, temos algumas novidades - disse Elisabeth. - Seu padre pertence a uma família muito bem relacionada. O irmão mais velho foi deputado, agora está no Conselho de Estado, e a irmã é juíza da Corte Suprema. Eles vêm da pequena nobreza, embora desde a Revolução Francesa os Charny tenham vivido como perfeitos burgueses. Esse padre tem padrinhos importantes no Vaticano, nada menos que o cardeal Visiers é amigo de seu irmão mais velho. Mas a notícia bomba é que Edouard, nosso genealogista que está há três horas trabalhando em sua árvore genealógica, acha que este Yves de Charny é mesmo descendente daqueles Charney que estiveram nas Cruzadas e, o que é mais importante, de Geoffroy de Charney, aquele visitador da Ordem do Templo na Normandia que morreu na fogueira junto com Jacques de Molay. - Vocês têm certeza? - perguntou Ana incrédula. - Temos, sim - respondeu Elisabeth, sem hesitar. Paul Bisol viu a dúvida refletida no olhar da jornalista, e resolveu intervir. - Ana, Edouard é um professor, um historiador conceituado. Sei que o Jean não gosta muito da nossa revista, mas garanto que nunca publicamos nada que não pudemos comprovar. Nossa revista investiga os enigmas da história, e tentamos achar uma resposta para eles. Essa resposta é sempre dada por historiadores, às vezes assessoradas por uma equipe de pesquisa formada por jornalistas. Nunca tivemos que retificar uma informação. Também não afirmamos o que não sabemos com certeza. Quando alguém tem uma hipótese, dizemos: é apenas uma hipótese. Mas não a damos como certa. Você sustenta que alguns dos incêndios da catedral de Turim têm a ver com o passado. Não sei, nunca pensamos nisso e, portanto, não estudamos a hipótese. Acha que os templários foram os proprietários do Sudário, e nisso pode ter razão, como parece ter em que o tal padre Yves descende de uma antiqüíssima família de aristocratas e templários. Você se pergunta se os templários têm alguma relação com os acidentes da catedral. Não posso responder a essa pergunta, não sei, mas acho que não. Sinceramente, não acho que os templários tenham algum interesse em danificar o Sudário. Mas uma coisa eu garanto: se eles quisessem a relíquia, já a teriam. São uma organização poderosa, mais do que você possa imaginar, e capazes de tudo. Paul olhou para Elisabeth, que assentiu. Ana ficou sem ação ao ver a cadeira em que Elisabeth estava sentada avançar em sua direção. Não tinha percebido nada, achou que aquela era uma cadeira de escritório, e na verdade era, sim, mas adaptada para servir de veículo para alguém que não pudesse andar. Elisabeth freou a cadeira diante de Ana e afastou a manta que cobria suas pernas, algo que Ana ignorava, pois até então só a vira atrás da mesa. - Sou escocesa, não sei se Jean lhe disse. Meu pai é lorde McKenny. Ele conheceu lorde McCall. Você não deve ter ouvido falar dele. É um dos homens mais ricos do mundo, mas nunca aparece nos jornais nem na televisão. Seu mundo não é deste mundo, é um mundo onde só os poderosos têm lugar. Mora em um castelo impressionante, uma antiga fortaleza templária situada perto das Small Isles. Mas não convida ninguém para ir lá. Os escoceses são dados a lendas, e há várias sobre lorde McCall. Alguns dos aldeãos que vivem perto de seu castelo o chamam de "O Templário" e garantem que, de vez em quando, alguns homens chegam de helicóptero para visitá-lo, entre eles alguns membros da família real inglesa. Um dia falei sobre lorde McCall com Paul, e resolvemos fazer uma reportagem sobre as comendadorias e fortalezas templárias espalhadas por toda a Europa. Uma espécie de inventário: saber quais continuavam de pé, se tinham donos, quais foram destruídas pelo tempo. Pensamos que seria uma boa idéia visitar o castelo de lorde McCall. Começamos a trabalhar, e no início não tivemos muitos problemas. Há centenas de fortalezas templárias, a maioria em ruínas. Pedi a meu pai que falasse com McCall e lhe pedisse permissão para visitar o castelo e fotografá-lo. Foi inútil, lorde McCall, sempre muito amável, deu todo tipo de pretextos. Eu não desisti e resolvi tentar por conta própria, indo até seu castelo. Telefonei para ele, mas nem sequer me atendeu. Um solícito secretário me informou que lorde McCall estava nos Estados Unidos e, portanto, não podia me receber. E que, evidentemente, ele não tinha autorização para permitir que eu fotografasse a fortaleza. Insisti em que me deixasse ver o castelo, mas o secretário não arredou pé: de jeito nenhum, sem permissão de lorde McCall, ninguém entrava nessa antiga comendadoria. Não me dei por vencida e resolvi ir até os portões do castelo. Achava que, uma vez lá, não teriam outro remédio senão me deixar dar uma olhada. A caminho da fortaleza, falei com os aldeãos. Todos têm um respeito reverencial por McCall, embora garantam que é um homem bondoso e sempre empenhado em que nada lhes falte. Pode-se dizer que, mais do que respeitá-lo, eles o adoram; ninguém levantaria um dedo contra ele. Um dos camponeses me contou que seu filho estava vivo graças a uma caríssima cirurgia cardíaca que fez nos Estados Unidos, paga por McCall. Chegando aos portões de acesso às terras do castelo, não tinha como seguir. Comecei a contornar o muro, tentando encontrar um lugar onde pular. Além dos muros, no meio do bosque, avistei uma capela de pedra coberta de trepadeiras. Para entender o que aconteceu, você precisa saber que, desde os dez anos de idade, meu hobby era o alpinismo, tanto que em meu currículo consta a escalada de vários picos importantes. Saltar aquele muro, portanto, não me parecia particularmente difícil, apesar de estar sem instrumentos. Não me pergunte como fiz, mas consegui subir no muro e saltar dentro da propriedade. É a última coisa de que me lembro. Ouvi um estrondo e em seguida senti uma dor fortíssima nas pernas, e caí. Chorava e me contorcia de dor. Um homem apontava uma escopeta contra mim. Falou a um walkietalkie, apareceu um jipe, fui colocada nele e me levaram para o hospital. Fiquei paralítica. Não atiraram para matar, mas dispararam com precisão suficiente para me deixar assim. Naturalmente, todo mundo desculpou os guardas de lorde McCall. Eu era uma intrusa que havia saltado o muro que cerca a fortaleza. - Sinto muito. - É, fiquei paralítica para o resto da vida, e tudo por uma bobagem. Mas, se quer saber, tenho certeza de que o bondoso lorde McCall não é o que parece. Pedi a meu pai que me desse uma lista completa de todas as pessoas que têm relação com McCall. Ele não queria, mas acabou cedendo. Meu pai sofreu muito com meu acidente. Nunca gostou que eu fosse jornalista, e muito menos que me dedicasse a esses assuntos. Lorde McCall é um personagem peculiar. Solteiro, amante de arte sacra, riquíssimo. A cada cem dias, o castelo é visitado por alguns cavalheiros que chegam de carro ou de helicóptero e ficam lá por dois ou três dias. Ninguém sabe quem são, mas se presume que sejam tão importantes quanto o próprio McCall. Eu segui a pista de seus vários negócios dele, até onde pude, que não foi muito. Mas suas empresas têm parcerias com uma série de outras companhias, e garanto que não há no mundo nenhum fato econômico relevante que não tenha algo a ver com ele e seus amigos. - O que você quer dizer? - Que existe um grupo de homens que mexem os fios do mundo, que seu poder econômico se sobrepõe ao poder dos governos, e portanto os comandam. - E o que é que isso tem a ver com os templários? - Há cinco anos venho estudando tudo o que se escreveu sobre os templários. Tenho muito tempo, não posso sair desta cadeira. Cheguei a algumas conclusões: além de todas as organizações que se dizem herdeiras da Ordem do Templo, há uma outra, secreta, formada por homens muito discretos, importantes, encravada no coração da alta sociedade. Não sei quem são, nem quantos são, ou pelo menos não tenho certeza de que todos aqueles de que suspeito pertençam ao grupo. Mas acho que os verdadeiros templários, os herdeiros de Jacques de Molay, fazem parte da organização, e que McCall é um deles. Investiguei tudo sobre seu castelo, e descobri uma coisa curiosa: ao longo dos séculos, ele foi passando de mão em mão, sempre de cavalheiros solitários, ricos e bem relacionados, e todos com uma obsessão: impedir a presença de estranhos. Penso que existe um exército templário, um exército silencioso, bem estruturado, cujos integrantes ocupam posições eminentes em todos os países. - Você parece estar se referindo a uma organização maçônica. - Bom, como você sabe, algumas organizações maçônicas se dizem. herdeiras da Ordem do Templo. Mas aquela a que me refiro é a autêntica, da qual nada se sabe. Estou há cinco anos nesta cadeira de rodas. Com a lista que meu pai me deu e a ajuda de um excelente jornalista investigativo, consegui fazer um organograma do que eu acredito que seja a verdadeira organização do Templo. Mas, como eu disse, não foi nada fácil. Michael, o jornalista que me ajudou, está morto. Há três anos sofreu um acidente de carro fatal. Suspeito que eles o mataram. Se alguém se aproxima muito, arrisca a própria vida. Eu sei, acompanhei de perto o que aconteceu a alguns curiosos como nós. - Você tem uma visão conspirativa da realidade. - Ana, eu acredito que existem dois mundos: o que vemos, e no qual vive a imensa maioria de nós, e outro subterrâneo, do qual nada sabemos, que é de onde movem os fios diversas organizações, econômicas, maçônicas, ou lá o que forem. E nesse submundo está o novo Templo. - Mesmo que você esteja certa, isso não esclarece que relação os templários têm com o Sudário atualmente. - Eu também não sei. Sinto muito. Eu só contei tudo isso porque pode ser que seu padre Yves... - Pode dizer. - Talvez seja um deles. - Um templário dessa organização secreta que você acha que existe? - Você acha que eu contei uma história tola, mas sou jornalista como você, Ana, e sei distinguir perfeitamente ficção e realidade. Já disse o que eu acho. Agora é com você. Se o Sudário pertenceu aos templários e o padre Yves vem da família de Geoffroy de Charney... - Mas o Sudário não é a mortalha de Cristo. O carbono 14 não deixou dúvidas. Não sei por que os Charny o esconderam, nem por que apareceu; na realidade, não sei nada. Estava desanimada. Ouvindo Elisabeth, percebeu que a reação que a escocesa causava nela devia ser a mesmo que ela provocava nos outros quando expunha suas teorias sobre o Santo Sudário. Naquele momento, sentiu que não gostava de si mesma, que tinha perdido a cabeça se metendo numa história absurda, tentando demonstrar que era mais esperta que os agentes do Departamento de Arte. Acabou, pensou, ia imediatamente para Barcelona. Ligaria para Santiago. Ele ia adorar saber que tinha decidido deixar o Sudário para lá. Elisabeth e Paul deixaram que ela mergulhasse em seus pensamentos. Notaram sua confusão, podiam ver a incredulidade estampada em seu rosto. Na verdade, eram pouquíssimas as pessoas com quem haviam falado da nova Ordem do Templo e que tinham conhecimento de suas investigações, porque temiam por sua própria vida e pela de todos aqueles que os ajudavam. - Elisabeth, você não vai entregá-lo para Ana? As palavras de Paul tiraram Ana de seu estupor. - Vou. - O que você vai me entregar? - perguntou Ana. - Este dossiê; é um resumo do meu trabalho nos últimos cinco anos. Meu e de Michael. Aí estão os nomes e as biografias daqueles que pensamos serem os novos mestres templários. Na minha opinião, lorde McCall é o grão-mestre. Mas leia. Quero pedir um favor. Estamos confiando em você porque achamos que está prestes a fazer uma descoberta importante. Não sabemos muito bem o quê, nem em que direção, mas sabemos que tem a ver com Eles. Se estes papéis caírem em mãos erradas, todos vamos morrer, pode ter certeza. Por isso peço que não confie em ninguém, em absolutamente ninguém. Eles têm ouvidos em toda parte, na magistratura, na polícia, nos parlamentos, nas bolsas... em toda parte. Já sabem que você esteve conosco, o que não sabem é o que lhe contamos. Investimos muito em segurança e temos aparelhos para detectar microfones. Mesmo assim, não é impossível que haja algum por aí. Eles são poderosos. - Desculpem, mas vocês não estão um pouco paranóicos? - Pense o que quiser, Ana. Você começou a investigar a existência dos templários porque detectou sua presença. Vai fazer o que estamos pedindo? - Não se preocupe, não falarei sobre este dossiê com ninguém. Quer que eu o devolva quando acabar de ler? - Destrua-o. É apenas um resumo, mas garanto que será útil, muito útil, principalmente se você decidir seguir em frente. - O que faz você pensar que vou voltar atrás? Elisabeth suspirou antes de responder. - Você é muito mais transparente do que imagina. 46 A igreja cheirava a incenso. Não fazia muito tempo que a missa terminara. Addaio se dirigiu com passo rápido ao confessionário mais distante do altar, situado em um canto que o mantinha a salvo de olhares curiosos. Usava uma peruca e vestia um cabeção. Nas mãos segurava um devocionário. Tinha marcado com o homem às sete. Ainda faltava meia hora, mas preferiu chegar antes. Na verdade, fazia mais de duas horas que estava zanzando pelas redondezas, tentando descobrir se estava sendo seguido. Sentado no confessionário, pensou em Guner. Percebeu que andava nervoso, aborrecido com ele e consigo mesmo. Na verdade, sabia que o outro estava farto, assim como ele próprio. Ninguém sabia que estava em Milão, nem mesmo Guner. O pastor Bakkalbasi tinha ordens expressas para coordenar a operação que poria fim à vida de Mendibj. Mas ele, por seu turno, montaria outra operação paralela, que nenhum dos seus conhecia. O homem que estava esperando era um assassino. Um profissional que trabalhava sozinho e que nunca falhava; pelo menos até então não falhara. Soubera dele por meio de um homem de Urfa, um membro da Comunidade que alguns anos atrás fora lhe pedir perdão por seus pecados. O homem emigrara para a Alemanha e depois para os Estados Unidos. Não tivera sorte, contou, e seguindo pelo mau caminho chegara a ser um próspero narcotraficante que inundava as ruas da Europa de heroína. Pecara, mas nunca traíra a Comunidade. Voltara a Urfa por causa de uma grave doença. Ia morrer, o diagnóstico era claro, tinha um tumor que carcomia as vísceras e não havia o que fazer. Por isso resolvera voltar para a sua casa, para sua infância, e buscar o perdão do pastor, além de fazer uma generosa doação à Comunidade para ajudar a garantir sua subsistência. Os ricos sempre acham que podem comprar a salvação no além. Ofereceu-se para ajudar na sagrada missão da Comunidade, mas Addaio recusou sua ajuda. Nunca um homem ímpio, ainda que fosse membro da Comunidade, podia participar daquela sagrada missão, embora sua obrigação como pastor fosse dar-lhe consolo nos últimos dias da vida. Durante uma daquelas conversas que lhe serviam de confissão, o homem lhe entregou um papel com o número de uma caixa postal de Roterdã, dizendo que, se algum dia precisasse de alguém para fazer um trabalho difícil, impossível, escrevesse para aquele número. E foi exatamente o que fez. Enviou um papel em branco e o número de um celular que comprara ao chegar a Frankfurt. Dois dias depois, um desconhecido lhe telefonou. Já escolhera o local onde se encontrariam, e o comunicou. E lá estava ele no confessionário, esperando o assassino. - Ave Maria puríssima. A voz do homem o assustou. Não percebeu que alguém se ajoelhara no confessionário. - Sem pecado concebida. - O senhor deveria ter mais cuidado, estava distraído. - Quero que mate um homem. - É o que faço. Trouxe um dossiê sobre ele? - Não, não há dossiês nem fotos. Você terá que encontrá-lo. - Assim é mais caro. Durante quinze minutos, Addaio explicou ao assassino o que esperava dele. Depois se levantou e sumiu nas sombras da igreja. Addaio saiu do confessionário e se dirigiu a um dos bancos defronte ao altar. Lá, cobrindo o rosto com as mãos, desatou a chorar. Bakkalbasi sentou-se na beirada do sofá. A casa em Berlim era segura. A Comunidade nunca a utilizara. Ahmed lhe disse que era de uma amiga de seu filho que estava em férias no Caribe e deixara a chave para ele ir, de vez em quando, colocar comida e água para o gato. O gato angorá o recebera miando. Não gostava de gatos, tinha alergia a seu pêlo, por isso logo começou a espirrar e a se coçar. Mas agüentou. Os homens deviam estar chegando. Conhecia aqueles homens desde a infância. Três deles eram de Urfa, da Comunidade, e trabalhavam na Alemanha. Os outros dois chegaram de Urfa por diferentes caminhos. Todos eram membros leais da Comunidade dispostos a dar a vida se fosse preciso, assim como seus irmãos e outros familiares a entregaram no passado. A missão que tinham pela frente era muito dolorosa: matar um dos seus, mas o pastor Bakkalbasi garantia que, do contrário, a Comunidade seria descoberta. Não havia escapatória. O pastor Bakkalbasi explicou-lhes que o tio do pai de Mendibj se comprometera a dar a punhalada mortal no mudo. Eles lhe dariam essa oportunidade, mas deviam certificar-se de que cumprisse com sua palavra. Era preciso montar um dispositivo para seguir Mendibj no momento em que fosse posto em liberdade e averiguar se estava sendo usado para levá-los até a Comunidade. Contariam com a ajuda de dois membros da Comunidade de Turim, mas não deviam correr nenhum risco, incluído o de serem detidos. Sua missão era não perder o jovem de vista, apenas isso. No entanto, se algum deles tivesse oportunidade de matá-lo, deveria fazê-lo sem vacilar, embora essa honra, insistiu Bakkalbasi, estivesse reservada a seu parente. Cada um deveria ir a Turim por seus próprios meios, de preferência de carro. A ausência de fronteiras graças à União Européia permitia passar de um país para o outro sem deixar rastros. Depois deviam dirigir-se ao Cemitério Monumental de Turim e procurar o túmulo 117. Uma chave escondida em um suporte de vasos, junto à porta do jazigo, lhes permitiria entrar nele. Uma vez lá dentro, deveriam acionar o mecanismo oculto que abria o acesso a umas escadas secretas, situadas abaixo de um dos ataúdes, e seguir pela galeria que os levaria até a catedral, mais exatamente até a casa de Turgut. O túnel seria seu habitat enquanto estivessem em Turim. Não deviam se registrar em nenhum hotel, teriam de permanecer invisíveis. O cemitério era pouco freqüentado, embora alguns turistas curiosos se aproximassem para observar os túmulos barrocos. O guarda do cemitério era membro da Comunidade. Um velho, filho de pai emigrado de Urfa e mãe italiana, um bom cristão como eles, e seu melhor aliado. O velho Turgut preparara a sala da galeria com a ajuda de Ismet. Ninguém os encontraria lá, porque ninguém sabia da existência desse túnel, que começava em um túmulo do cemitério e chegava até a mesmíssima catedral. Nenhum mapa dava conta desse labirinto secreto. Era lá que deviam deixar o cadáver de Mendibj. O mudo descansaria em Turim por toda a eternidade. 47 - Ficou claro? - perguntou. - Sim, Marco - repetiram quase em uníssono Minerva, Sofia e Giuseppe. Antonino e Pietro assentiram com a cabeça. Eram sete da manhã, e o sono estava estampado em todos os rostos. Às nove, o mudo seria solto. Marco montara minuciosamente o dispositivo para seguir Mendibj. Teriam o apoio de um grupo de carabinieri e com a Interpol, mas o chefe do Departamento de Arte contava sobretudo com os seus, com o núcleo de sua equipe. Estavam esperando o café da manhã. O salão do hotel acabava de abrir, e eles eram os primeiros a entrar. Sofia, não sabia por quê, estava nervosa e achava que Minerva também não estava lá muito tranqüila. Até Antonino demonstrava tensão no jeito como apertava os lábios. Marco, Pietro e Giuseppe, ao contrário, estavam sossegados. A atitude dos três mostrava que eram policiais e que para eles uma operação como aquela não passava de rotina. - Marco, estive tentando descobrir por que tantas pessoas de Urfa têm alguma relação com o Sudário. Ontem à noite dei uma olhada nos Evangelhos Apócrifos e em alguns outros livros sobre a história de Edessa que comprei um dia desses. Talvez seja uma tolice, mas... - Estou ouvindo, Sofia; todos estamos todos ouvindo. Diga a que conclusão chegou - disse o chefe do grupo. - Não sei se Antonino vai concordar comigo, mas, se levarmos em conta que Urfa é Edessa, e que para os primeiros cristãos de Edessa o Sudário foi muito importante, a ponto de ter curado o rei Abgar da lepra, e que o conservaram como uma relíquia ao longo dos séculos até que o imperador Romano Lecapeno o roubou... pode ser que tenham resolvido recuperá-lo. Sofia ficou calada. Tentava fazer com que as palavras dessem forma exata à sua intuição. - O que você quer dizer? - perguntou-lhe Marco. - Que as coincidências existem, você tem razão: é muita coincidência que tanta gente de Urfa tenha relação com o Sudário. E mais, acho que nosso mudo pode ser dessa cidade, e que veio buscar o Sudário, assim como os outros mudos. Não sei, talvez os incêndios tenham sido só um chamariz para tentar roubar o Sudário e levá-lo. - Que besteira! - exclamou Pietro. - Sofia, logo de manhã você já vem com suas explicações irracionais, com seus contos de fadas? - Olha Pietro, já estou bem grandinha para contos de fadas! É uma especulação um tanto arriscada, eu sei, nem sequer digo que se aproxime da realidade, mas não exagere na desqualificação de tudo o que não coincide com o que você pensa. - Calma, crianças! - interveio Marco. - O que você está dizendo, Sofia, não que seja absurdo, até poderia ser, mas parece um roteiro de filme de mistério... não sei... isso significaria... - Significaria - interrompeu Minerva - que há cristãos em Urfa; por isso todos os que encontramos em Turim vão à igreja, se casam e se comportam como respeitáveis católicos. - Cristão não é o mesmo que católico - corrigiu Antonino. - Eu sei – respondeu Minerva - mas uma vez aqui, o melhor é se confundir com a paisagem, e tanto faz rezar para Cristo na catedral de Turim ou em outro lugar. - Sinto muito, Sofia - interveio Marco -, mas ainda não entendi direito. - Tudo bem, era só uma idéia maluca. Desculpa, Marco – disse Sofia. - Não, não me peça desculpas. Temos de pensar em todas as possibilidades, não devemos desprezar nossa intuição nem nenhuma teoria, por mais extravagante que possa parecer. Eu ainda não entendi muito bem, mas gostaria que os outros dessem sua opinião. Com exceção de Minerva, o resto da equipe concordou com Marco, portanto Sofia não insistiu. - Eu acho - disse Pietro - que estamos diante de uma organização criminosa, uma quadrilha de ladrões, um quadrilha com conexões em Urfa, pode ser, mas sem nenhum sentido histórico. Longe dali, em Nova York, era noite e chovia. Mary Stuart se aproximou de Umberto D'Alaqua. - Ufa, estou exausta! Mas o presidente está tão à vontade que seria indelicado ir embora agora. O que você acha de Larry? - Um homem inteligente e um excelente anfitrião. - James também acha, mas não chego a gostar dos Winston. Este jantar... não sei, é um pouco ostentoso para o meu gosto. - Acontece que você é inglesa, Mary. Mas você sabe como são os americanos bem-sucedidos. Larry Winston tem uma inteligência privilegiada, é o rei dos mares, o dono do maior estaleiro do mundo. - Eu sei, eu sei. Mas mesmo assim não me convence. Além disso, nesta casa não há um único livro, já reparou? Fico impressionada com as casas onde não há livros, retratam bem seus proprietários. - Bom, pelo menos não é um desses hipócritas que têm uma biblioteca com livros perfeitamente encadernados, mas que nunca lêem. Um casal se aproximou deles e se somaram à conversa. O ambiente animado indicava que a recepção ainda duraria algumas horas. Passada a meia-noite, sete homens conseguiram se encontrar no mesmo ponto com uma taça de champanhe na mão. Fumavam excelentes havanas e pareciam divertir-se falando de negócios. O mais velho informou os demais. - Mendibj logo vai sair da prisão. Está tudo pronto. - Estou preocupado com a situação. O pastor Bakkalbasi conta com sete homens no total, Addaio contratou um assassino profissional, e Marco Valoni não vai poupar homens nem meios. Não vamos nos expor demais? Não seria melhor que resolvessem tudo lá entre eles? - perguntou o cavalheiro francês. - Nós contamos com uma vantagem. Sabemos tudo sobre a operação de Valoni e de Bakkalbasi, o que nos permite seguir seus passos sem sermos vistos. Quanto ao assassino de Addaio, não há problema. Também está sob controle - respondeu o velho. - Eu também acho que há muita gente em cena - acrescentou um cavalheiro de sotaque indefinido. - Mendibj é um problema para Addaio e para nós, porque Marco Valoni está obcecado com o caso - insistiu o velho -, mas estou muito mais preocupado com essa jornalista, irmã do representante da Europol em Roma, e com a doutora Galloni. As conclusões a que ambas estão chegando as aproximam perigosamente de nós. Ana Jiménez esteve com lady Elisabeth McKenny. e esta Ihe entregou um dossiê, o dossiê resumido. Já o conhecem. Sinto ter de tomar uma decisão, mas tanto lady Elisabeth como a jornalista e a doutora Galloni se transformaram em um problema. As três são jovens inteligentes e valiosas, e por isso são um perigoso problema. Um silêncio pesado se instalou entre os sete homens que se escrutavam uns aos outros disfarçadamente. - O que você quer fazer? A pergunta direta, em certo tom de desafio, fora feita por um homem com um leve sotaque italiano. - O que deve ser feito. Sinto muito. - Não deveríamos nos precipitar. - Não o fizemos, por isso elas chegaram tão longe em suas especulações. Chegou a hora de detê-las. Quero o conselho de vocês, além de seu consentimento. - Podemos esperar mais um pouco? - perguntou um dos homens com aparência de militar. - Não, não podemos, a menos que queiramos pôr tudo a perder. Seria uma loucura continuar correndo riscos. Sinto muito, sinceramente. A decisão me repugna tanto quanto a vocês, mas não vejo outra saída. Se vocês tiverem alguma idéia, falem. Os homens se calaram. Todos sabiam que, no fundo, o velho tinha razão. Tinham seguido cada passo das três mulheres, sabiam tudo sobre elas. Fazia anos que sabiam de cada letra que lady Elisabeth digitava. Tinham invadido seu computador, grampeado os telefones da Énigme e instalado microfones na redação da revista, em sua casa e até na cadeira de rodas. De nada adiantaram os enormes gastos de Paul Bisol com segurança. Sabiam tudo sobre eles. Como havia meses sabiam tudo sobre Sofia Galloni e Ana Jiménez. Desde o perfume que usavam até o que liam à noite, com quem conversavam, suas relações sentimentais... tudo, absolutamente tudo. Sabiam o que faziam a cada minuto, até quantas horas dormiam a cada noite. Do mesmo modo, fazia meses que sabiam todos os detalhes da vida dos membros do Departamento de Arte. Grampearam todos seus telefones, fixos e celulares; cada um deles era constantemente seguido. - E então? - perguntou o velho. - Eu reluto a... - Eu entendo - disse o velho, interrompendo o homem de sotaque italiano. - Não diga nada. Não participe da decisão. - Acha que isso aliviaria minha consciência? - Não, sei que não. Mas pode ajudar. Acho que você precisa de ajuda, ajuda espiritual, para se reordenar interiormente. Todos nós passamos por situações parecidas. Não foi fácil, mas não escolhemos o fácil, escolhemos o impossível. É em momentos como este que se avalia se estamos à altura de nossa missão. - Depois de toda minha vida dedicada a..., acha que ainda tenho que provar que estou à altura da nossa missão? - perguntou o homem de sotaque italiano. - Não, não acho que deva provar nada - respondeu o velho. Vejo que está sofrendo. Deve procurar consolo, precisa falar sobre o que está sentindo. Mas não aqui, nem conosco. Entendo que se sinta atormentado, mas, por favor, confie em nosso julgamento e nos deixe agir. - Não, não concordo. - Posso suspendê-lo por um tempo, até se sentir melhor. - Pode fazer isso. E que mais vai fazer? Os outros homens começaram a dar mostras de desconforto. A tensão era cada vez maior, e sem querer podiam estar sendo objeto de olhares curiosos dos demais convidados. O homem com aparência de militar os interrompeu. - Estão olhando para nós. Isso é jeito de nos comportarmos? Ficamos loucos? Deixemos esta discussão para outra hora. - Não há mais tempo - respondeu o velho. - Peço seu consentimento. - Que seja - responderam todos os homens, menos um deles, que, apertando os lábios, deu meia-volta. Sofia e Minerva estavam na central dos carabinieri de Turim. Faltavam dois minutos para as nove, e Marco acabava de avisá-las que os portões da prisão estavam sendo abertos. Viam o mudo sair. Caminhava devagar, olhando para a frente. Os portões se fecharam, mas ele não se virou para olhar. Caminhou duzentos metros até um ponto de ônibus e esperou. Sua calma era surpreendente, dizia-lhes Marco pelo microfone escondido na lapela do casaco. Nada, nem sequer parecia contente por ter recuperado a liberdade. Mendibj disse para si que estava sendo observado. Ele não os via, mas sabia que estavam lá, vigiando. Teria que despistá-los, mas como? Tentaria pôr em prática o plano que concebera na prisão. Iria ao centro, vagaria por lá, dormiria em um banco de uma praça qualquer. Não tinha muito dinheiro; no máximo poderia pagar uma pensão por três ou quatro dias e comprar alguns sanduíches. Também se livraria da roupa e dos tênis; embora as tivesse examinado, sem encontrar nada, seu instinto lhe dizia que não era normal que tivessem tirado o que estava vestindo para devolvê-lo limpo e passado, e os tênis lavados. Conhecia Turim. Addaio os enviara um ano antes de tentarem roubar o Sudário justamente para se familiarizarem com a cidade. Tinham seguido sua orientação: caminhar muito, percorrer a cidade andando de cima a baixo. Era a melhor maneira de conhecê-la, além de se informar sobre as linhas de ônibus. Aproximava-se do centro de Turim. Chegara a hora da verdade, a de escapar de quem certamente o seguia. - Parece que temos companhia. Dois pássaros. A voz de Marco chegou pelo transmissor ao escritório que servia de quartel-general da operação. - Quem são? - perguntou Minerva pelo microfone conectado ao transmissor de Marco. - Não tenho a menor idéia, mas parecem turcos. - Turcos ou italianos - ouviram Giuseppe dizer. - São iguais a nós, cabelo preto e pele morena. - Quantos são? - interessou-se Sofia. - Por enquanto, dois - disse Marco -, mas pode haver mais. São jovens. O mudo parece não ter percebido nada. Caminha a esmo, olha vitrines e está tão ensimesmado como sempre. Ouviram Marco dar instruções aos carabinieri para não perderem de vista os dois "pássaros". Nem Marco Valoni, nem o resto dos policiais reparou em um velho coxo que vendia loteria. Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, vestido de maneira impessoal, o velho fazia parte da paisagem do bairro da Crocetta. Mas o velho, sim, os vira. O assassino contratado por Addaio tinha olhos de águia, e até então localizara dez policiais, além de quatro dos homens do pastor Bakkalbasi. Estava irritado; o homem que o contratara não lhe dissera que a polícia ia estar no meio, nem que outros sicários como ele estariam atrás do mudo. Tinha de tomar cuidado e, claro, pediria aumento de seus honorários. Estava correndo um perigo inesperado. Além disso, tanta companhia o impedia de fazer seu trabalho como previra. Outro homem lhe despertou suspeitas, mas logo as descartou. Não, esse não era da polícia, nem parecia turco, na certa não tinha nada a ver com a história, embora seu jeito de andar... De repente desapareceu, e o assassino ficou tranqüilo. De fato o homem não era ninguém. Mendibj perambulou pela cidade o dia inteiro. Desistiu de dormir em um banco; seria um erro fazer isso. Se alguém queria matá-lo, facilitaria muito dormindo em um banco no meio de uma praça. Por isso seguiu para o albergue das Irmãs da Caridade que vira de manhã em sua volta por Turim. Nele entravam vagabundos e miseráveis à procura de um pouco de comida e um lugar para descansar. Ali estaria mais seguro. Marco estava exausto. Deixara Pietro no comando da operação, quando comprovaram que o mudo jantara a sopa rala das freiras e pegara um colchonete para passar a noite, que colocou perto de uma das freiras que vigiava a sala para evitar brigas. Tinha certeza de que aquela noite o mudo não sairia dali, portanto resolveu ir ao hotel descansar um pouco e mandou seus homens fazerem o mesmo, com exceção de Pietro e uma equipe de reserva de carabinieri formada por mais três homens. Era o suficiente para seguir o mudo se ele decidisse sair para a rua. Sofia e Minerva o estavam submetendo a um autêntico interrogatório no restaurante do hotel. Queriam saber de tudo, mesmo tendo acompanhado cada movimento, minuto a minuto. As duas pediram que lhes permitisse participar da vigilância na rua, mas ele se negou terminantemente. - Preciso das duas coordenando a operação. Além disso, vocês são muito vistosas. Ana Jiménez estava esperando no aeroporto de Paris um vôo noturno para Roma. De lá iria a Turim. Estava nervosa. Começara a folhear o dossiê de Elisabeth e ficou transtornada com o que leu. Mesmo que só uma quarta parte do que dizia fosse verdade, já seria terrível. Mas decidira voltar a Turim porque um dos nomes que aparecia no dossiê já o vira em outro dossiê, naquele que Marco Valoni entregara a seu irmão, e, se o que Elisabeth dizia era verdade, aquele homem era um dos mestres da nova Ordem do Templo e tinha relação direta com o Sudário. Tomara duas decisões: falar com Sofia e apresentar-se na sede episcopal para tentar surpreender o padre Yves. Não tinha conseguido realizar seu primeiro intento. Passou boa parte da manhã e da tarde tentando localizar Sofia, mas no Alexandra lhe garantiram que saíra muito cedo. Deixou vários recados, mas não teve resposta. Não havia jeito de encontrá-la. Quanto ao padre Yves, iria vê-lo no dia seguinte. Elisabeth tinha razão; estava se aproximando de alguma coisa, embora ainda não soubesse de quê. Os homens de Bakkalbasi conseguiram burlar a vigilância dos carabinieri. Um deles ficou vigiando a entrada do albergue das Irmãs da Caridade, os demais se dispersaram. Quando chegaram ao cemitério, a noite já caía e o guarda os esperava nervoso. - Andem logo, tenho que ir embora. Vou lhes dar uma chave do portão de entrada, caso uma noite vocês cheguem mais tarde, quando eu já tenha ido. Acompanhou-os até o jazigo cuja entrada era custodiada por um anjo de espada em punho. Os quatro homens entraram iluminando o caminho com uma lanterna e desapareceram nas profundezas da terra. Ismet já os esperava na sala subterrânea. Levara água para se lavarem e um pouco de comida. Estavam famintos e exaustos e só queriam dormir. - Cadê o Mehmet? - Ficou perto de onde está Mendibj, caso ele resolva sair esta noite. Addaio tem razão, querem que Mendibj os leve até nós. Montaram um dispositivo de vigilância impressionante - disse um dos homens, que era policial em Urfa, assim como outro de seus companheiros. - Eles viram vocês? - perguntou Ismet preocupado. - Acho que não - respondeu outro homem -, mas posso garantir. São muitos. - Devemos tomar cuidado. Se vocês acharem que estão sendo seguidos, não devem vir aqui - insistiu Ismet. - Nós sabemos, nós sabemos. Não se preocupe, porque até aqui ninguém nos seguiu. Às seis da manhã, Marco já estava a postos perto do albergue das Irmãs da Caridade. Mandou reforçar a equipe de carabinieri e seguir os "pássaros", aqueles dois homens que ele notou estarem seguindo o mudo. - Não deixem que vejam vocês, porque eu os quero bem vivinhos. Se estão seguindo o mudo, é porque pertencem a uma organização, quer dizer são da organização que procuramos, por isso é preciso tentar detê-los, mas ainda devemos lhes dar mais um pouco de corda. Seus homens assentiram. Pietro insistiu em continuar trabalhando, apesar de ter passado a noite em claro. - Garanto que ainda agüento. Quando não der mais, eu aviso e saio para dar um cochilo. Sofia ouviu a voz angustiada de Ana nos recados que deixara no seu celular. Na recepção disseram que a moça ligara cinco vezes. Sentiu uma ponta de remorso por não retornar seus telefonemas, mas não era hora de se distrair com as elucubrações da jornalista. Telefonaria mais tarde, quando encerrassem o caso; até então concentraria todas suas energias em cumprir as ordens de Marco. Estava quase saindo para a central dos carabinieri quando um dos porteiros veio correndo em sua direção. - Doutora Galloni, doutora! - Sim, que foi? - Uma ligação para a senhora, é urgente. - Mas agora não posso atender, diga para a telefonista anotar o recado e... - A telefonista disse que o senhor D'Alaqua avisou que é muito urgente. - D'Alaqua? - Sim, é esse senhor que está no telefone. Diante do olhar atônito de Minerva, deu meia-volta e se dirigiu a um dos telefones de recepção. - Sou a doutora Galloni, parece que há uma ligação para mim. - Ah, doutora, ainda bem! O senhor D'Alaqua insistiu muito em que a localizássemos. Um momento, por favor. A voz do Umberto D'Alaqua tinha um timbre diferente, como de tensão contida, que surpreendeu Sofia. - Sofia... - Sim, sou eu. Como vai? - Preciso vê-Ia. - Eu adoraria, mas... - Nada disso. Meu carro vai apanhá-la dentro de dez minutos. - Sinto muito, mas tenho que ir trabalhar. Hoje é impossível. Está acontecendo alguma coisa? - Sim, quero lhe fazer uma proposta. A senhora sabe que minha grande paixão é a arqueologia. Pois bem, estou indo para a Síria. Lá tenho a concessão de um sítio onde encontraram umas peças que eu gostaria que avaliasse. E pelo caminho queria conversar, quero lhe fazer uma proposta de trabalho. - Muito obrigada, mas agora não posso ir, sinto muito. - Sofia, há coisas que só acontecem uma vez na vida. - Eu sei, mas há responsabilidades das quais a gente não pode fugir. E eu neste momento não posso deixar o que estou fazendo. Se o senhor puder esperar uns dois ou três dias, quem sabe... - Não, não posso esperar três dias. - É tão urgente assim, que precisa ir à Síria hoje mesmo? - É. - Sinto muito, talvez daqui a uns dias... - Não, impossível. Por favor, aceite vir comigo agora. Sofia vacilou. A proposta de Umberto D'Alaqua a desconcertava tanto quanto o tom peremptório de sua voz. - O que está acontecendo? Me diga... - Estou dizendo. - Sinto muito, sinto mesmo não poder ir com o senhor agora. Tenho de ir. Estão me esperando, e não posso fazê-los esperar. - Boa sorte. - Bom, obrigada. Por que lhe desejara sorte? Estava confusa, não entendeu o telefonema de Umberto D'Alaqua. O tom desanimado ao lhe desejar sorte. Sorte por quê? Por acaso ele sabia da operação cavalo da Tróia? Quando a história do mudo acabasse, telefonaria para ele. Queria entender o porquê desse telefonema, pois tinha certeza de que por trás da oferta da Síria havia algo mais, e esse algo mais não era exatamente uma aventura amorosa. - O que D'Alaqua queria? - perguntou-lhe Minerva a caminho da central. - Que eu fosse com ele para a Síria. - Para a Síria? Por que a Síria? - Porque lá ele tem a concessão de uma escavação arqueológica. - Quer dizer, então, que não estava propondo uma escapada amorosa. - Acho que estava me propondo uma escapada, sim, mas não amorosa. Notei que estava preocupado. Quando chegaram à central. Marco já telefonara duas vezes. Estava de mau humor. O transmissor que colocara no mudo não estava funcionando. Emitia sinais, mas que não levavam ao mudo. Ou ele descobrira o aparelho, ou este estava quebrado. Logo perceberam que o mudo trocara de tênis. Os que estava usando agora eram mais velhos e surrados. Também vestira uns jeans e uma jaqueta imundos. Alguém tinha feito uma ótima troca. O mudo saíra e se dirigia ao parque Carrara. Viram-no atravessar pelo parque. Quem não parecia visível eram os dois "pássaros" do dia anterior, pelo menos até aquele momento. O mudo levava um pedaço de pão e ia jogando o miolo para os pássaros. Passou junto a um homem que levava duas meninas pela mão. Marco teve a impressão de que o homem cravou durante alguns segundos os olhos no mudo e depois apertou o passo. O assassino chegou à mesma conclusão que Marco. Aquele devia ser um contato do mudo. Continuava sem poder atirar. Não havia como fazê-lo, estava protegido por mais de uma dúzia de carabinieri. Atirar nele seria suicídio. Ia segui-lo por mais dois dias e, se as coisas continuassem iguais, romperia o contrato, não estava disposto a se arriscar a pele. Sua maior qualidade, além da de assassinar, era a prudência. Nunca dava um passo em falso. Nem Marco, nem seus homens, nem os pássaros, nem sequer, desta vez, o assassino, notaram que estavam sendo vigiados por outros homens. Arslan telefonou para seu primo. Sim, vira Mendibj. Cruzou com ele no parque Carrara. Parecia ter boa aparência. Mas não tinha deixado cair nenhum papel nem feito nenhum sinal, nada; parecia que só queria que soubessem que estava solto. Ana Jiménez pediu ao taxista que a levasse à catedral de Turim. Entrou pela porta que dava para os escritórios da sede episcopal e perguntou pelo padre Yves. - Ele não está - disse a secretária. - Foi acompanhar o cardeal numa visita pastoral. Mas, além disso, a senhora não tem entrevista marcada com ele. Ou tem? - Não, não tenho. Mas sei que o padre Yves me receberá com prazer - disparou Ana, sabendo que estava sendo impertinente. Não suportava a arrogância da secretária. Não estava com sorte. Tornou a telefonar para Sofia, e não a encontrou. Decidiu permanecer perto da catedral e fazer hora até Yves de Charny voltar. Bakkalbasi recebeu o informe de um de seus homens. Mendibj continuava vagando pela cidade, parecia impossível matá-lo. Havia carabinieri por toda parte. Se continuassem a segui-lo, acabariam sendo descobertos. O pastor não sabia que ordens dar. A operação podia fracassar, e então Mendibj provocaria a queda da Comunidade. Deviam antecipar a ação do tio do pai de Mendibj. Fazia dias que tinham arrancado todos seus dentes, além da língua, e queimado as pontas dos dedos. Um médico anestesiara o velho para que não sofresse. Seu sacrifício seguia o exemplo daquele feito por Márcio, o arquiteto de Abgar. Mendibj sentia-se vigiado. Pensava ter visto um rosto conhecido, um homem de Urfa, estaria ali para o ajudar ou para matá-lo? Conhecia Addaio e sabia que ele não permitiria que, por sua culpa, a Comunidade fosse descoberta. Assim que a noite caísse, voltaria para o albergue e, se possível, escapuliria até o cemitério. Pularia o muro e procuraria o túmulo. Lembrava muito bem dele e de onde a chave ficava escondida. Iria pelo túnel até a casa de Turgut e lhe pediria socorro. Se conseguisse chegar até lá sem que o descobrissem, Addaio poderia organizar sua fuga. Não se importaria permanecer por dois ou três meses na clandestinidade, até que os carabinieri se cansassem de procurá-lo. O que queria era salvar a vida. Foi até a feira de Porta Palazzo, para comprar alguma coisa de comer e tentar perder-se entre as bancas. Lá seus perseguidores teriam mais dificuldades para se camuflar, e se conseguisse ver seus rostos, seria mais fácil evitá-los na hora de fugir. Foram buscá-lo em sua casa. Bakkalbasi lhe entregou a faca. O velho a apanhou sem vacilar. Ia matar o filho de seu sobrinho. Preferia ele próprio fazer isso, e não permitir que outros o profanassem. O celular do pastor tocou avisando-lhes que tinham uma mensagem: está indo para a piazza della Republica, para Porta Palazzo, para a feira. Bakkalbasi mandou o chofer ir até Porta Palazzo e parar perto de onde lhe dissera que Mendibj estava. Abraçou o velho e se despediu. Rezava para que conseguisse cumprir sua missão. Mendibj viu o tio de seu pai. Ia na sua direção como um autômato. Seu olhar angustiado o alertou. Não era o olhar de um honorável ancião, mas o de um homem desesperado. Por quê? Seus olhares se cruzaram. Mendibj não sabia o que fazer, se fugir ou aproximar-se distraidamente, para ver se o velho lhe entregava algum papel ou lhe sussurrava alguma mensagem. Decidiu confiar em seu parente. Certamente a angústia de seus olhos refletia o medo que sentia, nada mais. Medo de Addaio, medo dos carabinieri. Seus corpos se roçaram e Mendibj sentiu uma dor profunda num flanco. Tinha batido em alguma coisa, pensou, depois viu o velho cair a seus pés, com uma faca cravada nas costas. As pessoas começaram a correr, e a gritar a seu redor e ele fez o mesmo, pôsse a correr presa do pânico. Alguém assassinara o tio de seu pai, mas quem? O assassino corria entre as pessoas, fingindo-se de assustado como os demais. Falhara. Em vez de matar o mudo, dera a punhalada em um velho. Um velho que, por sua vez, levava outra faca na mão. Estava farto, não tentaria de novo. O homem com quem firmara o contrato não lhe contara toda a verdade, e sem a verdade não podia trabalhar, pois não sabia o que teria de enfrentar. No que dependia dele, o contrato já estava rompido. E não devolveria o adiantamento, porque o serviço já lhe causara muitos problemas. Marco foi até onde estava o velho, estirado no chão e agonizante. Seus homens chegaram logo atrás dele. Mendibj, ao longe, pôde vê-los, assim como os "pássaros". Os carabinieri tinham mostrado a cara, agora seria mais fácil evitá-los. - Está morto? – perguntou Pietro. Marco procurava em vão o pulso do velho. O homem abriu os olhos, olhou-o como se quisesse dizer alguma coisa e expirou. Sofia e Minerva acompanharam o episódio pelo rádio-transmissor, ouvindo os passos apressados de Marco, as ordens que dava aos homens, a pergunta de Pietro. - Marco, Marco! O que aconteceu? - perguntava nervosa Minerva. - Pelo amor de Deus, diga alguma coisa! - Alguém tentou matar o mudo, não sabemos quem, não o vimos, mas matou um velho que ia passando. Não tinha documentos, não sabemos quem é. A ambulância vem vindo. Meu Deus, que merda! - Calma. Quer que a gente vá para aí? - disse Sofia. - Não, não precisa, estamos indo para a central. Mas, e o mudo? Onde diabos ele se meteu? - gritou Marco. - Nós o perdemos - ouviu-se uma voz pelos walkie-talkies. - Nós o perdemos - repetiu. - Fugiu na confusão. - Mas que filhos da puta! Como o deixaram escapar? - Calma, Marco, calma... - dizia Giuseppe. Minerva e Sofia acompanhavam angustiadas a cena que sabiam estar acontecendo em Porta Palazzo. Depois de tantos meses preparando cavalo de Tróia, o cavalo fugira a galope. - Procurem por ele! Todos procurando! Mendibj respirava com dificuldade. Fora apunhalado num flanco. De início, sentira a carne arder, mas agora a dor lhe parecia insuportável. O pior é que ia deixando um rastro de sangue. Parou e procurou as sombras da entrada de um prédio para se repor. Achava que tinha conseguido despistar seus perseguidores, mas não tinha certeza. Sua única chance era conseguir chegar ao cemitério, mas estava longe e devia esperar a noite. Mas onde? Onde? Ana viu um grupo de gente correndo em frente ao café onde se sentara. Gritavam dizendo que um assassino estava à solta. Viu um jovem que também corria, parecia ferido, mas se meteu em um prédio e desapareceu. Aproximou-se das pessoas perguntando o que estava acontecendo. Mas ninguém era capaz de dar uma explicação coerente, apenas repetiam que havia um assassino. Bakkalbasi tinha visto Mendibj fugir enquanto o velho caía morto. Quem o matara? Os carabinieri não foram, seriam Eles? Mas por que matariam o velho? Ligou para Addaio para contar o acontecido. O pastor o ouviu e lhe deu uma ordem. Bakkalbasi assentiu. Ana viu dois jovens, parecidos ao que acabava de entrar no prédio, irem para o mesmo lugar. Achou tudo muito estranho e, sem pensar duas vezes, os seguiu. Os dois homens de Urfa pensaram que a mulher que se aproximava deles podia ser dos carabinieri e iniciaram a retirada. Observariam Mendibj de longe e observariam essa mulher. Se fosse preciso, também a matariam. O mudo encontrou uma porta que dava para um cubículo onde guardavam o lixo do prédio. Sentou no chão atrás da lata, tentando não desmaiar. Estava perdendo muito sangue e tinha que tapar o ferimento. Tirou a jaqueta e, como pôde, arrancou o forro e improvisou uma atadura, apertando o ferimento com força e tentando estancar a hemorragia. Estava exausto, não sabia quanto tempo poderia ficar escondido nesse lugar, talvez até a noite quando alguém fosse tirar o lixo. Sentiu a cabeça rodar e desmaiou. Fazia algum tempo que Yves de Charny estava em sua sala. Um ricto de preocupação se desenhara em seu rosto. Sua secretária entrou no recinto. - Padre, aqueles dois sacerdotes amigos do senhor, os de sempre, o padre Joseph e o padre David estão aqui. Eu disse que o senhor tinha acabado de chegar e que não sabia se podia atendê-los. - Sim, sim, diga-lhes que entrem. Sua Eminência não precisa mais de mim por hoje, vai para Roma, e aqui o trabalho está bem adiantado. Se a senhora quiser, tire a tarde de folga. - O senhor soube do assassinato que aconteceu aqui ao lado, em Porta Palazzo? - Sim, o rádio está dando a notícia. Meu Deus, quanta violência! - Nem me diga, padre. Bem, se não se incomoda que eu vá embora, para mim vai ser ótimo, pois assim posso ir ao cabeleireiro. Amanhã vou jantar na casa da minha filha. - Pode ir sossegada. O padre Joseph e o padre David entraram na sala do padre Yves. Os três homens se olharam e esperaram ouvir o barulho da porta indicando que a secretária saíra. - Já soube do que aconteceu? - perguntou o padre David. - Soube, sim. Onde ele está? - Se escondeu em um prédio perto daqui. Não se preocupe, os nossos estão atentos, mas não seria sensato entrar para pegá-lo agora. A jornalista está justo em frente. - Como assim? - Por coincidência, estava na calçada de um café próximo, fazendo hora enquanto esperava você. - Se ela vier, teremos de fazer o que foi decidido - respondeu o padre Joseph. - Aqui não me parece sensato. - Não há ninguém - insistiu o padre Joseph. - Não, mas nunca se sabe. E quanto à doutora? - A qualquer momento, assim que ela deixar a central dos carabinieri. Já está tudo pronto - informou-lhe o padre David. - Às vezes... - Às vezes você tem as mesmas dúvidas que nós. Mas somos soldados, e cumprimos ordens – disse Joseph. - Mas é que, no caso, não acho necessário. - Não temos outro remédio senão cumprir as ordens. - Certo, mas isso não significa que não possamos ter nossos pensamentos e até manifestar nossa discordância, mesmo que depois obedeçamos. Fomos ensinados a pensar por conta própria. A sorte resolveu favorecer Marco. Giuseppe acabava de anunciar pelo transmissor que tinha visto um dos "pássaros" perto da catedral. Correu como louco na direção indicada pelo colega. Quando chegou à praça, acertou o passo com o resto dos pedestres que, em rodinhas, ainda comentavam os incidentes de uma hora atrás. - Onde eles estão? - perguntou aproximando-se de Giuseppe. - Ali. Sentados na calçada do café, são os dois de sempre. - Atenção toda a unidade, não quero que sejam vistos. Pietro, vem para cá. Os demais cerquem a praça, mas a certa distância. Estes "pássaros" são muito espertos e já mostraram que sabem voar. Meia hora depois, os "pássaros" levantaram vôo. Eles se deram conta de que a polícia estava de novo no seu encalço. Tinham sido vistos, mas não seus companheiros. Assim, primeiro um deles se levantou, cruzou distraidamente a praça e entrou em um ônibus que passava. O outro foi na direção contrária e começou a correr. Não havia como segui-lo sem que ele percebesse. - Mas como os perdemos de novo? - gritou Marco a um interlocutor invisível. - Não grite – advertiu-o Giuseppe pelo transmissor, do outro extremo da praça. – Todo mundo está olhando para você e vão pensar que enlouqueceu, falando assim sozinho. - Não estou gritando! - voltou a gritar Marco. - Mas tudo isto é uma merda, parecemos amadores. Deixamos escapar o mudo e esses "pássaros" primos dele. Quando os encontrarmos de novo, vamos prendê-los. Não podemos nos dar ao luxo de perdê-los outra vez. Eles fazem parte da organização que procuramos e, pelo que vi, falam, não são mudos, portanto vão cantar tudo o que sabem, ou não me chamo Marco Valoni. Dois dos homens de Urfa continuavam a postos esperando Mendibj sair. Sabiam que havia carabinieri na praça, mas tinham de correr o risco. Seus companheiros haviam escapado ao perceber que os descobriram, e os outros três homens de apoio os seguiam de perto. Eles já tinham uma idéia precisa de quantos policiais havia nesse momento na praça. O que nem eles nem Marco e seus homens sabiam é que todos continuavam sendo vigiados, por sua vez, por homens mais bem treinados, tanto que eram invisíveis até para os olhos experientes dos carabinieri. A tarde já ia caindo, e Ana Jiménez decidiu voltar a tentar a sorte com o padre Yves. Tocou a campainha dos escritórios, mas ninguém atendeu. Empurrou a porta e entrou. Não havia ninguém, e o porteiro ainda não tinha trancado à chave. Dirigiu-se à sala do padre Yves, e estava quase chegando quando ouviu umas vozes. Não conhecia a voz do homem que falava, mas o que ele dizia a fez guardar silêncio para não ser descoberta. - Quer dizer que eles vêm pelo túnel. Conseguiram despistá-los. E os outros? Tudo bem, estamos indo para aí. Na certa ele vai tentar se esconder aqui. É o lugar mais seguro. O padre Joseph desligou o celular. - Bom, os carabinieri não sabem por onde eles se deslocam. Perderam dois dos homens de Addaio, e Mendibj continua escondido no prédio aqui perto. Ainda há muita gente. Imagino que vai sair a qualquer momento. O esconderijo que encontrou não é muito seguro. - Onde está Marco Valoni? - perguntou o padre David. - Dizem que está furioso porque a operação está fugindo do seu controle - respondeu o padre Joseph. - Está mais perto da verdade do que imagina - comentou o padre Yves. - Não, não está - afirmou peremptório o sacerdote a quem chamavam David. - Não sabe de nada, só teve uma boa idéia: utilizar Mendibj como isca, supondo que pertence a uma organização. Mas não sabe nada sobre a Comunidade, e muito menos sobre nós. - Não se engane - insistiu o padre Yves. - Está se aproximando perigosamente da Comunidade. Já perceberam que há muita gente de Urfa que tem relação com o Sudário. A doutora Galloni acertou no alvo; ontem comentou com a equipe do Departamento de Arte ter chegado à conclusão de que o passado de Urfa tem a ver com os acontecimentos da catedral. Ninguém prestou muita atenção ao que ela disse, com exceção da técnica em informática, mas Valoni é inteligente e a qualquer momento vai ver as coisas tão claras quanto a doutora. É uma pena que uma mulher assim tenha... - Bem - interrompeu o padre Joseph. - Estamos sendo chamados para descer aos túneis. Esperemos que Turgut e seu sobrinho já estejam lá. Os nossos estão no cemitério. - Os nossos estão por toda parte, como sempre - concluiu o padre Yves. Os três homens se dirigiram para a porta. Ana se escondeu atrás de um armário. Estava com medo. Agora sabia que o padre Yves não era um sacerdote qualquer. Mas era um templário ou pertencia a outra organização? E os homens que o acompanhavam? Suas vozes pareciam jovens. Prendeu a respiração quando os viu sair. Parecia que não tinham notado sua presença, pois cruzaram a recepção rapidamente. Esperou mais um pouco, ainda prendendo a respiração, e depois os seguiu, pegada às paredes, como vira em tantos filmes. Por uma pequena porta, se dirigiram aos aposentos do zelador da catedral. O padre Yves bateu na porta, sem receber resposta. Momentos depois, um dos jovens que o acompanhavam tirou uma gazua e abriu. Ana contemplava a cena com horror e assombro. De novo pegada à parede, dirigiu-se à entrada da residência do porteiro. Como não ouviu nenhum barulho, resolveu entrar. Rezou para não ser descoberta, e mentalmente começou a buscar pretextos caso o fosse. 48 Mendibj ouviu um barulho e se assustou. Acabava de voltar a si. Sentia muita dor no ferimento, mas o sangue secara, formando uma crosta na camisa suja. Não sabia se conseguiria ficar em pé, mas tinha que tentar. Pensou na estranha morte do tio de seu pai. Será que Addaio mandara matá-lo, para evitar que o ajudasse? Não confiava em ninguém, muito menos em Addaio. O pastor era um homem santo, mas rigoroso, capaz de qualquer coisa para salvar a Comunidade, e Mendibj, mesmo sem querer, podia expô-los ao perigo. Queria evitar que isso acontecesse, tentou evitá-lo desde que recuperara a liberdade, mas Addaio devia saber coisas que ele ignorava, portanto não descartava a hipótese que tivesse tentado matá-lo. A porta do cubículo se abriu. Uma mulher de meia-idade com um saco de lixo na mão o viu e deu um grito. Mendibj, fazendo um esforço sobre-humano, ficou em pé e tampou a sua boca. Não podia dizer nada porque não tinha língua, portanto, ou a mulher se acalmava, ou ele teria de bater nela até que desmaiasse. Nunca batera em uma mulher, Deus não o permitia!, mas agora se tratava de sua vida. Pela primeira vez desde que Ihe arrancaram a língua sentiu uma angústia infinita por não poder falar. Empurrou a mulher contra a parede. Notou que ela tremia e teve receio de que voltasse a gritar, se tirasse a mão da sua boca. Resolveu dar uma pancada na sua nuca e deixá-la inconsciente. A mulher, deitada no chão, respirava com dificuldade. Abriu sua bolsa e encontrou o que procurava: uma caneta e uma agenda de onde arrancou uma folha. Escreveu depressa. Quando a mulher começou a voltar a si, Mendibj tampou sua boca e lhe entregou o papel. "Faça o que eu mandar e não lhe acontecerá nada. Se gritar ou tentar fugir, será o fim. Tem carro?" A mulher leu o estranho bilhete e assentiu com a cabeça. Lentamente, Mendibj tirou a mão da sua boca, embora a segurasse com força para que ela não saísse correndo. - Marco, está me ouvindo? - Pode falar, Sofia. - Onde você está? - Perto da catedral. - Bom, tenho notícias do legista. O velho que mataram não tem língua, nem impressões digitais. O médico calcula que arrancaram sua língua e queimaram suas impressões digitais há algumas semanas. O cadáver não tem nada que o identifique, nada. Ah!, também não tem um dente, a boca dele é como uma gruta vazia, nada. - Caramba! - O legista ainda não terminou a autópsia, mas telefonou para avisar que temos outro mudo. - Caramba! - Bom, Marco, daria para você dizer outra coisa além de "caramba"? - Desculpa, Sofia. Sei que o mudo, o nosso mudo, está por aqui. Alguém quer matá-lo, ou sumir com ele, ou protegê-lo, não sei. Os dois "pássaros" que tínhamos na mão voaram, mas não devem ser os únicos. O problema é que, na feira, quando mataram o velho, acabamos nos mostrando. Se realmente existem mais "pássaros", eles já sabem quem nós somos, e nós não sabemos quem eles são. E nada do nosso mudo aparecer. - Deixe a Minerva e eu irmos para aí. Eles não nos conhecem. Podemos substituir vocês. - Não, não, seria muito perigoso. Eu nunca me perdoaria se acontecesse alguma coisa com vocês. Fiquem aí mesmo. Uma voz interrompeu a conversa. Era Pietro. - Atenção, Marco! O mudo apareceu na esquina da praça. Está com uma mulher. Abraçado a ela. Vamos prendê-lo? - Para quê? Seria absurdo. Não o percam de vista, estou indo para aí. Assim como nós, os da sua organização também o viram. Não quero nenhum erro. Se o deixarem escapar de novo, corto o saco de vocês todos. A mulher levou Mendibj até seu carro, uma pequena perua, e abriu a porta. Ele a empurrou para dentro e sentou ao volante. Mendibj mal podia respirar, mas conseguiu dar a partida e entrar no trânsito caótico daquela hora da tarde. Os homens de Marco o seguiam de perto. Os homens da Comunidade também. E todos eles, por sua vez, eram seguidos por um exército silencioso que nenhum dos dois grupos detectara. O mudo se pôs a vagar pela cidade. Precisava livrar-se da mulher, mas sabia que, assim que o fizesse, ela avisaria os carabinieri. Mesmo assim, tinha de correr o risco, porque não podia levá-la com ele. Era evidente que, se deixasse o carro perto do cemitério, os carabinieri poderiam seguir sua pista. Mas não estava em condições de andar. Sentia uma fraqueza enorme, perdera muito sangue. Rezava para o guarda do cemitério estar em sua guarita; ele saberia dar sumiço no carro. O bom homem era um irmão, um membro da Comunidade, e o ajudaria. O ajudaria, sim, a não ser que tivesse ordens de Addaio para matá-lo. Por fim, resolveu ir para o cemitério. Perto de lá, mas não o suficiente para que a mulher soubesse onde ele pretendia se esconder, Mendibj parou o carro. Pegou a bolsa da mulher, que, de novo, olhava para ele aterrorizada. Tirou a caneta e um pedaço de papel e escreveu. "Vou soltá-la. Não avise a polícia. Se a avisar, pagará caro. Um dia não terá mais a proteção dela, e então vou aparecer de novo. Vá embora e não conte nada a ninguém. Lembre-se que, se falar, eu volto para pegá-la." A mulher leu o bilhete e se apavorou ainda mais. - Juro que não vou dizer nada, mas, por favor, deixe eu ir embora suplicou. Mendibj pegou o papel, rasgou-o em pedacinhos e os jogou pela janela. Depois, desceu do carro, e não sem dificuldade, endireitou o corpo. Temia voltar a desmaiar antes de entrar no cemitério. Aproximou-se do muro e continuou andando, enquanto ouvia o barulho do carro se afastando. Caminhou por um bom tempo. Quando a dor se tornava insuportável, sentava e pedia a Deus que lhe permitisse se salvar. Queria viver, não desejava dar a vida nem pela Comunidade nem por ninguém. Já lhes entregara a língua e dois anos de sua vida trancado na prisão. Marco avistou o vulto cambaleante do mudo. Era evidente que estava ferido e caminhava com dificuldade. Ordenou a seus homens que não o perdessem de vista, mas que se mantivessem à distância. Tornaram a ver outros dois "pássaros" seguindo o mudo, com discrição, à distância. O resto tinha voado. - Fiquem atentos. Temos de prender todos eles. Se os "pássaros" desistirem de seguir o mudo, já sabem o que fazer: uns vão atrás dos "pássaros", outros atrás do mudo. Os homens de Bakkalbasi seguiam Mendibj a uma distância prudente, falando em voz baixa. - Está indo para o cemitério. Tenho certeza de que ele quer chegar às galerias. Assim que não houver ninguém por perto, eu atiro disse um deles. - Calma. Tenho a impressão de que estamos sendo seguidos. Os carabinieri não são bobos. Talvez seja melhor deixar Mendibj entrar no túmulo para irmos atrás dele. Se começarmos um tiroteio, seremos todos presos - respondeu outro. O crepúsculo começava a se desenhar no horizonte. Mendibj apertou o passo, queria entrar no cemitério antes que o guarda fechasse o portão, o que o obrigaria a pular o muro, e não estava em condições de fazê-lo. Apressou o passo o quanto pôde, mas teve de parar, porque começou a sangrar de novo. Amarrou a ferida com o lenço que tomou da mulher. Pelo menos estava limpo. A silhueta do guarda se destacava junto aos ciprestes da entrada do cemitério. Parecia ansioso, como se estivesse à espera de algo ou alguém. Era visível a preocupação do homem, seu medo. Quando o viu começou, a fechar o portão, mas Mendibj, fazendo um esforço extremo, conseguiu se enfiar entre as duas folhas da grade. Empurrou o guarda e, olhando para ele furioso, se dirigiu para o túmulo 117. A voz de Marco chegou a todos os carabinieri que participavam da operação. - Entrou no cemitério, o guarda tentou impedir, mas o mudo o empurrou. Quero vocês lá dentro. E os "pássaros"? Através das ondas, ouviu-se uma voz. - Quase entrando no teu campo de visão. Também estão indo em direção ao cemitério. Para surpresa de Marco e de seus homens, os "pássaros" tinham a chave do portão, portanto o abriram e entraram, tomando o cuidado de voltar a trancá-lo. - Olha só! Eles têm a chave! - ouviu-se um carabiniere dizer. - O que vamos fazer? - perguntou Pietro. - Vamos tentar arrombar a fechadura e, se não der, pulamos a grade - disse Marco. Quando chegaram ao portão, um dos carabinieri estava tentando forçar a fechadura com uma gazua. Ante o olhar impaciente do chefe do Departamento de Arte, demorou alguns minutos para fazêlo. - Giuseppe, procura o guarda. Ele não saiu. Deve estar escondido por aí ou... Não sei, vai procurar. - Certo, chefe. E depois, o que eu faço? - Primeiro me conta o que ele disser, e depois decidimos. Leva um carabiniere junto, caso precise de proteção. - Está bem. - Pietro, você vem comigo. Onde eles se meteram? - Marco perguntou aos carabinieri pelo transmissor. - Parece que os "pássaros" estão indo para um mausoléu que tem um anjo de mármore na porta - disse uma voz. - Certo, diga onde fica, que nós vamos para lá. Ana Jiménez entrara na casa de Turgur e não encontrara ninguém. O padre Yves e seus amigos pareciam ter desaparecido na residência do zelador da catedral. Ficou quieta para ver se ouvia algum barulho, mas o mais absoluto silêncio reinava na modesta moradia. Começou a procurar alguma coisa que lhe chamasse a atenção, mas não achou nada. Empurrou, temerosa, a porta do quarto; Lá também não havia ninguém, mas o fato de a cama parecer fora de lugar a intrigou. Aproximou-se cautelosamente e a afastou mais um pouco. Como não viu nada de especial, voltou à sala; depois, procurou na cozinha e até no banheiro. Nada. Não havia ninguém, mas Ana sabia que eles deviam estar lá, porque pela porta da entrada não tinham saído. Voltou a vasculhar a casa toda. Na cozinha havia uma porta que dava para um armário embutido. Bateu na parede, que lhe pareceu sólida; em seguida examinou o assoalho de madeira, ajoelhou-se e começou a procurar uma fresta, porque a essa altura já concluíra que devia haver alguma passagem secreta. Como o assoalho soava oco, procurou na cozinha alguma coisa para levantá-lo. Com uma faca e um martelo, conseguiu soltar as tábuas e, depois de arrancá-las uma a uma, encontrou uma escada que se perdia na terra. Estava escuro e não se ouvia ruído algum. Se os homens tinham deixado a casa, devia ter sido por ali. Então resolveu procurar uma lanterna e fósforos. Demorou um pouco para achar uma pequena lanterna. Não iluminava muito bem, mas era tudo o que linha. Também colocou na bolsa uma caixa de fósforos de cozinha. Depois de correr os olhos à procura de mais alguma coisa de que pudesse precisar lá embaixo, pegou dois panos de prato limpos e uma vela e, encomendando-se a santa Gema, a santa das causas perdidas, graças a quem, não tinha dúvida, ela conseguira terminar a faculdade, começou a descer a estreita escada que a levaria sabe Deus aonde. Mendibj caminhava às cegas pela galeria. Lembrava-se de cada palmo daquele terreno úmido e escorregadio, O guarda tentara impedir que chegasse até o jazigo, mas desistiu de detê-lo quando o viu apanhar uma pá para lhe bater. O velho saiu correndo, e ele conseguiu chegar ao mausoléu. A chave estava lá, escondida em baixo de um vaso. Enfiou-a na fechadura, entrou e encontrou a alavanca atrás do ataúde que abria o acesso a uma escada que penetrava na galeria e ia até a catedral. Respirava com dificuldade. A falta de ar e o bafio do subterrâneo lhe provocavam tontura, mas sabia que sua única chance de sobreviver era chegar até a casa de Turgut, por isso, vencendo a dor e a fraqueza, seguiu em frente. A luz do isqueiro não era suficiente para iluminar a passagem, mas era a única coisa que ele tinha. Seu maior temor era ficar às escuras e perder o rumo. Os homens de Bakkalbasi entraram poucos minutos depois. Dirigiram-se rapidamente para o jazigo do anjo. Eles também tinham uma chave. Em poucos segundos, estavam nas profundezas do cemitério, seguindo Mendibj. - Entraram lá - disse um carabiniere. Marco observou o anjo de tamanho natural que, empunhando uma espada, parecia impedir sua passagem. - Que vamos fazer? - perguntou Pietro. - Entrar, claro, e ir atrás deles. Mais uma vez, tiveram de recorrer ao carabiniere especialista em violar fechaduras. Desta vez demorou mais um pouco, porque o sistema de fechamento era sofisticado. Enquanto isso, Marco e seus homens esperavam fumando, sem notar que estavam sendo observados. Os homens invisíveis os vigiavam dos lugares mais insuspeitados. Turgut e Ismet caminhavam nervosos pela sala subterrânea. Três dos homens vindos de Urfa compartilhavam a espera. Conseguiram fugir dos carabinieri e fazia horas que aguardavam naquela sala secreta. O resto dos homens de Bakkalbasi devia estar para chegar. O pastor lhes avisara que, provavelmente, Mendibj também viria. Caberia a eles acalmá-lo e esperar o resto dos irmãos chegarem. Depois, já sabiam o que tinham de fazer. Ouviram uns passos apressados, e Turgur sentiu um calafrio. Seu sobrinho deu uma palmada nas suas costas, tentando animá-lo. - Fique tranqüilo, não vai acontecer nada, temos as ordens, sabemos o que fazer. - Tenho um pressentimento de que vai acontecer uma desgraça. - Não fale assim que dá azar! Tudo vai sair conforme o previsto. - Não, sinto que vai acontecer alguma coisa. - Fica quieto, por favor! Nem Turgut, nem Ismet ouviram os passos silenciosos dos três sacerdotes que, ocultos na escuridão, os observavam fazia algum tempo. O padre Yves, o padre David e o padre Joseph pareciam mais três agentes da polícia que três padres da Igreja. Mendibj entrou correndo na sala, só teve tempo de ver Turgut, depois tudo escureceu e ele desmaiou. Ismet se ajoelhou a seu lado para lhe tomar o pulso. - Meu Deus! Está sangrando, tem um ferimento perto do pulmão, mas acho que não o afetou, senão já estaria morto. Traga um pouco de água e alguma coisa para limpar a ferida. O velho Turgut se aproximou com os olhos arregalados e deu ao sobrinho uma garrafa de água e uma toalha. Ismet arrancou a camisa suja do corpo do Mendibj e limpou o ferimento com cuidado. - Vocês não tinham aqui embaixo um estojo de primeiros socorros? Turgut assentiu, sem forças para falar. Procurou o estojo e o entregou ao sobrinho. Ismet tornou a limpar a ferida com água oxigenada, e depois passou nela um algodão com um anti-séptico. Era tudo o que podia fazer por Mendibj. Os homens de Bakkalbasi não o interromperam, embora achassem que não valia a pena tantos cuidados, já que Mendibj logo morreria. Essa era a vontade de Addaio. - Não vale a pena cuidar dele. Das sombras saiu outro dos homens de Bakkalbasi, um dos policiais de Urfa que ele conhecia bem por ser membro da Comunidade. Pouco depois, apareceram mais dois. Por alguns minutos, todos se entretiveram contando as peripécias da perseguição. A conversa os impediu de ouvir que alguém se aproximava pela galeria subterrânea. Marco, Pietro e uma dúzia de carabinieri irromperam na sala com revólveres apontados contra eles. - Parados! Não se movam! Estão todos presos! - gritou Marco. Não teve tempo de continuar falando; uma bala vinda das sombras quase o atingiu, Outros disparos atingiram dois de seus homens. Os homens de Bakkalbasi aproveitaram a confusão e também começaram a atirar. Marco e os seus se protegeram como puderam, os homens de Bakkalbasi também, conscientes de que os primeiros disparos não tinham partido deles. Marco começou a se arrastar buscando outra posição para tentar cercar os homens de Bakkalbasi. Não conseguiu. Atiraram nele de novo de algum lugar oculto que ele não conseguia ver e, quase ao mesmo tempo, ouviu o grito de uma mulher. - Cuidado, Marco! Eles estão aqui em cima. Cuidado! Ana acabara de revelar sua presença. Fazia algum tempo que, imóvel, se escondia dos três sacerdotes que encontrara depois de percorrer a galeria que levava àquela sala subterrânea. O padre Ives se virou, com um gesto de terror refletido em seus olhos: - Ana! A jovem tentou correr, mas o padre Joseph foi mais rápido e a agarrou com força. A última coisa que ela viu foi uma mão vindo em direção de sua cabeça. O golpe do sacerdote a deixou sem sentidos. - O que você está fazendo? - perguntou Yves de Charny. Não teve resposta. Não podia ter. Os tiros chegavam de todos os lados, e eles, por seu turno, tiveram de responder aos carabinieri e aos homens de Urfa. Não levou muito tempo para que outros homens entrassem em cena. Eram os homens invisíveis que, atirando contra todos, em um segundo, mataram Turgut, seu sobrinho Ismet e dois dos homens de Bakkalbasi. A vibração dos disparos provocou a queda de pedras e areia do teto da galeria. Mas os homens continuavam atirando e tentando matarse uns aos outros. Ana voltou a si. Estava com uma terrível dor de cabeça. Com muito esforço, levantou-se e viu os três sacerdotes atirando. Nada sabia dos homens invisíveis recém-chegados. Resolveu ajudar Marco. Pegou uma pedra, foi até onde estavam os sacerdotes e bateu com ela, com força, no padre David. Não teve tempo de fazer mais nada; o padre Joseph já ia atirando, mas também não teve tempo. Começaram a chover pedras do teto e uma delas atingiu seu ombro. Yves de Charny também estava ferido e olhava para ela com ódio, com raiva incontida. Ana saiu correndo, fugindo do sacerdote e também das pedras que continuavam a cair com força. O estrondo dos disparos e das pedras impediu-lhe de encontrar o caminho por onde viera. Estava perdida, sabia que o padre Yves a seguia gritando, mas não chegava a ouvi-lo. O ruído ensurdecedor do desabamento provocou-lhe um ataque de pânico. Além de Yves de Charny, ouvia Marco gritando seu nome. Tropeçou e caiu. Estava às escuras e gritou ao sentir que uma mão a agarrava. - Ana? - Meu Deus! Não sabia onde estava. A escuridão envolvia tudo. Sua cabeça doía e estava machucada. Sentiu pavor. Sabia que a mão que a segurava era de Yves de Charny. Tentou escapar, e ele não opôs resistência. Já não ouvia a voz de Marco, nem os tiros. O que estava acontecendo? Onde estava? Gritou com força, sem reprimir um soluço. - Estamos perdidos, Ana, não vamos conseguir sair daqui. A voz entrecortada de Yves de Charny indicou-lhe que estava ferido. - Perdi a lanterna seguindo você - disse o sacerdote. – Vamos morrer na escuridão. - Não diga isso! Não diga isso! - Sinto muito, Ana, sinto muito. Você não merecia morrer, não tinha por que morrer. - Vocês estão me matando! Estão matando todo o mundo! O sacerdote se calou. Ana procurou na bolsa a vela e os fósforos. Ficou contente quando os encontrou. Sua mão esbarrou no celular. Acendeu a vela e viu o rosto angelical do padre Yves contraído de dor. Estava gravemente ferido. Ana se levantou e percorreu o buraco em que estavam presos. Não era muito grande e não tinha nenhuma saída. Pensou que não escaparia viva dali. Sentou-se ao lado do sacerdote e, resignada com sua sorte, resolveu jogar sua última cartada como jornalista. O padre Yves não a viu tirar o celular da bolsa. A última ligação que fizera, sem obter resposta, fora para Sofia. Tomara que agora ela atendesse. Tomara que o potente transmissor de seu telefone fosse capaz de levar suas vozes além das paredes mortais daquele subterrâneo. Bastava apertar uma tecla, e o número do telefone de Sofia tornaria a ser automaticamente discado. Com um dos panos de prato que pegara na casa de Turgut, enfaixou o ferimento do padre Yves, que a olhou com olhos úmidos. - Sinto muito, Ana. - Eu sei, o senhor já disse. Agora me explique por quê, por que toda esta loucura. - O que quer que eu lhe explique? De que adianta, se vamos morrer? - Quero saber por que vou morrer. O senhor é templário, como esses seus amigos? - Sim, somos templários. - E quem eram os outros homens, aqueles que pareciam turcos, os que estavam com o zelador da catedral? - Os homens de Addaio. - Quem é Addaio? - O pastor, o pastor da Comunidade do Santo Sudário. Eles o querem... - Querem o Sudário? - Isso mesmo. - Querem roubá-lo? - Acham que lhes pertence. Jesus o enviou para eles. Ana pensou que o homem estava delirando, aproximou a vela de seu rosto e viu um sorriso desenhar-se nos lábios do sacerdote. - Não, não estou louco. Sabe, no século I, o rei de Edessa, Abgar, estava com lepra e se curou graças ao sudário de Jesus. Isso é o que diz a lenda. É nisso que acreditam os descendentes daquela primeira comunidade cristã que se formou em Edessa. Acreditam que alguém levou o Sudário a Edessa e que, quando se envolveu nele, Abgar sarou. - Mas quem o levou? - A tradição diz que foi um dos discípulos de Jesus. - Mas o Sudário passou por muitas vicissitudes, faz muitos séculos que saiu de Edessa... - É, mas desde que as tropas do imperador de Bizâncio... - Romano Lecapeno. . . - Exato, Romano Lecapeno, roubaram o Sudário, os cristãos daquela cidade juraram que não descansariam até recuperá-lo. A comunidade cristã de Edessa é uma das mais antigas do mundo, e não esmoreceram um só dia, tentando recuperar sua relíquia, e nós em evitar que o façam. Já não lhes pertence. - Os mudos fazem parte dessa Comunidade? - Sim, são os soldados de Addaio, jovens que consideram uma honra sacrificar a língua para recuperar o Sudário. Cortam a língua deles para que não falem caso sejam apanhados pela polícia. - Que horror! - Dizem que Márcio, um arquiteto de Abgar, fez a mesma coisa. Nós tentamos impedir que se apoderem do Sudário e que sejam presos, e através deles cheguem até nós. Marco Valoni tem razão, os incêndios na catedral foram intencionais, a Comunidade os provocou, tentando aproveitar a confusão para levar o Sudário. Mas nós sempre estivemos por perto. Ao longo dos séculos, sempre houve templários evitando os roubos. Yves de Charny deixou escapar um gemido de dor. Sua cabeça rodava e mal distinguia o rosto de Ana entre as sombras. Ela segurava o celular perto dele. Não sabia se Sofia atendera a chamada, se os escutava. Não sabia nada, mas queria tentar, não queria que a verdade morresse com ela. - O que os templários têm a ver com o Sudário e com essa Comunidade? - Nós o compramos do imperador Balduíno, portanto, ele é nosso. - Mas é falso! O senhor sabe que, segundo o carbono 14, não há a menor dúvida de que o tecido é do século XIII ou XIV. - Os cientistas têm razão, o tecido é do final do século XIII, mas, como sabe, não conseguem explicar por que determinados pólens aderidos a ele são idênticos aos encontrados em estratos sedimentados há dois mil anos na região do lago Genezaret. O sangue também é autêntico, é sangue venoso e arterial. Ah! E tem o linho, o linho é do Oriente! E encontraram restos de albumina de soro nas bordas das marcas onde Jesus foi açoitado. - E como o senhor explica isso? - A senhora sabe, ou devia saber. Foi à França, esteve em Lirey. - Como sabe? - Nós sabemos tudo. Não há nada que tenha feito ou dito que não saibamos. Sua intuição não falhou. De fato sou descendente de Geoffroy de Charny, o último visitador da Ordem do Templo na Normandia. Minha família deu muitos de seus filhos à Ordem. Ana estava fascinada pelo relato, Sabia que Yves de Charny fazia uma revelação sensacional que morreria com eles naquele túmulo de pedra. Nunca poderia publicar a história, mas naquele momento dramático sentiu uma ponta de orgulho por ter conseguido decifrála. - Continue. - Não, não vou continuar. - De Charny, o senhor vai comparecer diante de Deus, faça-o com a consciência tranqüila, confesse seus pecados, confesse os porquês da loucura em que viveu e que tantas vidas custou. - Me confessar? Com quem? - Comigo. Servirá para aliviar sua consciência e para dar um sentido à minha morte. Se acredita em Deus, ele o estará escutando. - Deus não precisa ouvir para saber o que se esconde no coração dos homens. A senhora acredita nele? - Não sei. Tomara que exista. O padre Yves ficou em silêncio. Depois, contraindo o gesto, enxugou o rosto onde luziam gotas de suor e pegou a mão de Ana, enquanto ela mantinha o celular perto dele, no escuro. - François de Charney foi um cavaleiro templário que viveu no Oriente desde muito jovem. Não vou lhe contar as muitas aventuras deste meu antepassado, direi apenas que o grão-mestre da Ordem do Templo, poucos dias antes da queda de São João de Acre, o encarregou de salvar o Sudário que estava guardado na fortaleza com os outros tesouros templários. "Meu antepassado embrulhou o sudário num pedaço de linho muito parecido ao da mortalha e voltou à França como lhe fora ordenado. Qual não foi sua surpresa, e a do mestre de Marselha, ao desembrulharem o linho e verem que a figura de Cristo ficara impressa no tecido que a envolvia. Pode haver uma explicação “química", digamos, ou podemos achar que aconteceu um milagre. O caso é que desde então houve dois Santos Sudários com a verdadeira imagem de Cristo”. - Meu Deus! Isso explica... - Isso explica que os cientistas estão certos quando, apoiando-se nos testes de carbono 14, afirmam que o tecido do Sudário é do século XIII ou XIV: E isso também dá razão a quem acredita que no Sudário está a imagem de Cristo, mas não consegue explicar o aparecimento desses grãos de pólen ou restos de sangue. O Sudário é sagrado, contém restos do calvário de Jesus e sua imagem. Cristo foi assim, Ana, Cristo foi assim. Esse é o milagre com o que Deus honrou a Casa de Charney, apesar de; depois, outro ramo da família, os Charny, ter se apossado da nossa relíquia, a senhora conhece a história, e a terem vendido à Casa de Sabóia. Agora já sabe o segredo do Santo Sudário. Só poucos eleitos no mundo conhecem a verdade. Esta é a explicação do inexplicável, do milagre, Ana, porque se trata de um milagre. - Mas o senhor disse que havia dois Sudários, o autêntico, que os templários compraram do imperador Balduíno, e o que está na catedral, que seria como um negativo do outro. Então onde está guardado? Me diga. - Onde está guardado o quê? - O autêntico, Se o da catedral é uma cópia... - Não. Não é uma cópia, também é autêntico. - Mas onde está o outro? - gritou Ana. - Nem eu sei. Jacques de Molay mandou escondê-lo. É um segredo que poucos conhecem. Só o grão-mestre e os sete mestres sabem onde está. - Pode estar no castelo de McCall na Escócia? - Não sei. Juro. - Mas sabe que McCall é o grão-mestre, e que Umberto D'Alaqua, Paul Bolard, Armando de Quiroz, Geoffrey Mountbatten, o cardeal Visiers... - Cale-se, por favor! Meus ferimentos doem muito, estou morrendo. ... são os mestres da Ordem do Templo. Por isso continuam solteiros, afastados das frivolidades próprias das pessoas que têm tanto dinheiro e poder quanto eles. Esses homens se mantêm distantes dos holofotes, de qualquer publicidade. Elisabeth tinha razão. - Lady McKenny é uma mulher muito inteligente, como a senhora, como a doutora Galloni. - Vocês são uma seita! - Não, Ana, fique tranqüila. Deixe-me dizer algo em nosso favor. A Ordem do Templo sobreviveu porque as acusações que fizeram contra nós eram todas falsas. Felipe da França e o papa Clemente sabiam disso, só queriam nosso tesouro. O rei, além do ouro, queria o Sudário. Achava que se conseguisse se apossar dele seria o soberano mais poderoso da Europa. Juro, Ana, que ao longo dos séculos, os templários sempre estiveram do lado bom, pelo menos os autênticos templários. Sei que há seitas, organizações maçônicas que se dizem herdeiras do Templo. Não são; nós, sim, somos. A nossa é a organização clandestina fundada por Jacques de Molay para que a Ordem sobrevivesse. Tomamos parte de acontecimentos fundamentais na história da humanidade: a Revolução Francesa, o Império napoleônico, a independência da Grécia. Também participamos da Resistência francesa, durante a Segunda Guerra Mundial. Promovemos a democracia no mundo inteiro, e nunca nos envolvemos com nada de que pudéssemos nos envergonhar. - A Ordem do Templo vive na sombra e não há democracia nas sombras; seus chefes são riquíssimos e ninguém é rico impunemente. - São ricos, sim, mas sua fortuna não lhes pertence, pertence à Ordem. Eles só a administram, embora seja verdade que sua inteligência os fez ricos, mas quando morrem, tudo que possuem volta para a Ordem. - A uma Fundação que... - É, essa Fundação que é o coração das finanças da Ordem do Templo e através dela estamos presentes em todos os lugares. Sim, estamos em toda parte, por isso nos antecipamos, por isso sempre soubemos o que se fazia e o que se dizia no Departamento de Arte. Estamos em toda parte - repetiu com um fio de voz o padre Yves. - Até no Vaticano. - Que Deus me perdoe. Foram as últimas palavras de Yves de Charny. Ana gritou aterrorizada ao perceber que ele tinha morrido, os olhos perdidos no vazio. Fechou-os com a palma da mão e se pôs a chorar, perguntando a si mesma quanto tempo de vida lhe restava. Dias, talvez, e o pior não era a morte, mas se saber emparedada. Aproximou o telefone dos lábios. - Sofia? Sofia, me ajude! O telefone continuou mudo. Não havia ninguém do outro lado da linha. Sofia Galloni gritava desesperada. - Ana, Ana, vamos tirar você daí! Fazia alguns segundos que a ligação tinha caído. Na certa, a bateria do telefone de Ana acabara. Sofia ouviu pelos walkie-talkies o tiroteio no subterrâneo e os gritos de Marco e dos carabinieri temendo ser soterrados. Não vacilou um instante e correu disparado na direção da rua. Quando estava quase na porta, o celular tocou; achou que fosse Marco. Ao ouvir a voz de Ana Jiménez e a do padre Yves ficou gelada. Com o telefone grudado no ouvido para não perder uma palavra, permaneceu imóvel, sem prestar atenção nos homens a seu lado que corriam para salvar os que estavam presos pelo desmoronamento da galeria. Minerva encontrou Sofia chorando desconsoladamente com o celular na mão. Sacudiu-a para tirá-la do ataque histérico. - Sofia, por favor! O que está acontecendo? Se acalme! A duras penas, Sofia contou a Minerva tudo o que ouvira. Esta a olhava assustada. - Vamos para o cemitério. Aqui não podemos fazer nada. As duas mulheres saíram na rua. Não sobrara um único carro, por isso tiveram de tomar um táxi. Sofia não parava de chorar. Sentia-se culpada por não ter podido ajudar Ana Jiménez. O carro parou em um semáforo. Quando voltou a andar, o taxista deu um grito. Um caminhão se jogou contra eles. O estrondo da batida tornou a quebrar o silêncio da noite. 49 Addaio chorava em silêncio. Trancou-se em seu escritório e não permitiu a entrada de ninguém, nem mesmo de Guner. Estava sentado lá há mais de dez horas, com o olhar perdido no vazio, invadido por um turbilhão de sentimentos contraditórios. Ele fracassara e muitos homens morreram por causa de sua teimosia. Os jornais nada diziam sobre o ocorrido, apenas que houvera um desmoronamento nas galerias de Turim e que entre os operários mortos, estavam alguns turcos. Mendibj, Turgut, Itzar e outros irmãos ficaram para sempre sob os escombros, seus corpos nunca seriam resgatados. Suportara a dureza do olhar da mãe de Mendibj e de Itzar. Elas não o perdoavam, nunca o perdoariam, como também não o perdoariam as mães dos jovens aos quais pedira que sacrificassem a língua no altar de um sonho impossível. Deus não estava do lado deles. A Comunidade devia se conformar em não recuperar o sudário de Cristo pois essa era sua vontade. Não podia acreditar que tantos fracassos fossem apenas provas a que Deus os submetia para ter certeza de sua força. Acabou de escrever seu testamento. Deixava instruções precisas sobre quem devia sucedê-lo: um homem bom, de coração puro, sem ambição, que amasse a vida acima de tudo, como ele não amara. Guner seria o pastor. Fechou a carta e a selou. Era dirigida aos sete pastores da Comunidade; cabia a eles cumprir sua última vontade. Não podiam contrariá-la: o pastor escolhia o pastor, assim fora através dos séculos, assim continuaria sendo para sempre. Tirou uns comprimidos da gaveta e tomou o vidro inteiro. Depois, sentou-se na bergère e se deixou levar pelo sono. A eternidade o esperava. 50 Passaram-se quase sete meses desde que sofrera o acidente. Ela mancava. As quatro cirurgias a que fora submetida lhe deixaram uma perna mais curta que a outra. Seu rosto já não ostentava a pele branca e viçosa de antigamente. Estava vincado por rugas e cicatrizes. Fazia quatro dias que saíra do hospital, os ferimentos do corpo não doíam, mas a dor que lhe oprimia o peito era mais forte que a que sentiu meses atrás. Sofia Galloni saía da sala do ministro do Interior. Antes, fora ao cemitério colocar flores no túmulo de Minerva e no de Pietro. Marco e ela tiveram melhor sorte: sobreviveram. Marco, porém, nunca mais poderia voltar a trabalhar. Estava inválido, em uma cadeira de rodas, com crises de ansiedade. Amaldiçoava-se por estar vivo quando tantos de seus homens morreram sob os escombros da galeria, daquela galeria que ia dar na catedral que ele intuíra que existia mas fora incapaz de encontrar. O ministro do Interior a recebera junto com seu colega da Cultura, com quem dividia a responsabilidade pelo Departamento de Arte. Ambos lhe pediram para assumir a direção do Departamento, o que ela gentilmente recusou. Sabia que semeara a inquietação nos dois políticos e que sua vida podia estar correndo perigo de novo, mas nada disso tinha importância. Sofia enviara a eles um minucioso relatório do caso do Santo Sudário, contando tudo o que sabia, inclusive a conversa entre Ana Jiménez e o padre Yves. O caso estava encerrado, mas a opinião pública não podia ser informada. Era segredo de Estado e Ana jazia morta em um túnel de Turim ao lado do último templário da Casa de Charny. Os ministros lhe disseram gentilmente que a história não parecia verossímil, que não havia testemunhas, nem um documento que comprovasse o que afirmara no dossiê. Claro que eles acreditavam, mas será que ela não se equivocara? Não podiam acusar de associação ilícita homens como McCall, Umberto D'Alaqua, o doutor Bolard... Homens que eram o esteio das finanças internacionais, e cujos patrimônios eram imprescindíveis para o desenvolvimento de suas próprias nações. Não podiam ir ao Vaticano e dizer ao Papa que o cardeal Visier era um templário. Não podiam acusá-los de nada, porque eles não tinham feito nada, mesmo que tudo o que Sofia Ihes contasse fosse verdade. Esses homens não conspiravam contra o Estado, contra nenhum Estado, não queriam subverter a ordem democrática, não tinham ligação com máfias, não tinham feito nada de errado, e quanto a serem templários... Bom, se é que, de fato, eram, isso não constituía nenhum crime. Tentaram convencê-la a substituir Marco Valoni. Se não aceitasse, o cargo iria para Antonino ou para Giuseppe. Qual era sua opinião? Mas ela não deu opinião nenhuma. Sabia que um dos dois era o traidor. Ou o policial ou o historiador informara os templários sobre tudo o que acontecia no Departamento de Arte. O próprio padre Yves dissera: eles sabiam tudo, porque tinham informantes em toda parte. Não sabia o que ia fazer de sua vida, mas sabia que tinha que enfrentar um homem por quem, apesar de tudo, estava apaixonada. Não ia continuar se enganando, Umberto D'Alaqua era mais que uma obsessão. Sua perna doía, ao apertar o acelerador. Desde o acidente, meses atrás, nunca mais dirigira. Sabia que não fora fortuito, que tentaram matá-la. Na certa D'Alaqua tentou salvá-la, quando telefonou pedindo que fosse com ele à Síria. Os templários não matavam, dissera o padre Yves, acrescentando que só o faziam quando era preciso. Chegou ao portão da mansão e esperou por alguns segundos que ele se abrisse. Dirigiu até a entrada e desceu do carro. Umberto D'Alaqua a esperava na porta. - Sofia... - Desculpe não ter avisado que vinha, mas... - Entre, por favor. Levou-a até o escritório. Sentou-se atrás da escrivaninha, para marcar distância, ou talvez para se proteger daquela mulher que mancava e cujos olhos verdes se tornaram duros no rosto marcado por cicatrizes. Mesmo assim continuava bonita, só que agora era uma beleza trágica. - Imagino que já saiba que enviei ao governo um dossiê sobre o caso do Sudário. Um dossiê em que denuncio a existência de uma organização secreta formada por homens poderosos que se acham acima dos outros homens, dos governos, da sociedade, pedindo que sejam investigados. Mas o senhor sabe que não vai acontecer nada, que ninguém vai investigá-los, que poderão continuar à sombra, movendo os fios do poder. D'Alaqua não respondeu, embora parecesse assentir com um leve movimento de cabeça. - Sei que o senhor é um mestre da Ordem do Templo, que fez voto de castidade. De pobreza? Não, logo se vê que não. Quanto aos mandamentos, já sei que cumpre os que interessam e os que não... É curioso, sempre me impressionou o fato de alguns homens da igreja, e o senhor, de algum modo, é um deles, acharem que podem mentir, roubar, matar, mas que todos estes pecados são veniais frente ao grande pecado mortal da fornicação. Desculpe, não é minha intenção ferir sua sensibilidade. - Sofia, sinto muito o que aconteceu com você, e a perda de sua amiga Minerva, o que aconteceu com seu chefe, o senhor Valoni, com seu... com Pietro... - E a morte de Ana Jiménez emparedada viva? O senhor também sente? Tomara que todos estes mortos pesem na sua consciência e não lhe dêem um minuto de sossego. Sei que não posso com o senhor, nem com sua organização. Acabam de me dizer isso, e queriam me comprar, me oferecendo a direção do Departamento de Arte. Como conhecem pouco os seres humanos! - O que quer que eu faça? Diga... - O que pode fazer? Nada, não pode fazer nada porque não pode devolver a vida aos mortos. Bem, talvez possa me dizer se eu continuo marcada para morrer, se vai me acontecer outro acidente de trânsito, ou se o elevador da minha casa vai cair. Eu gostaria de saber, para evitar que alguém esteja comigo e perca a vida como Minerva. - Não lhe acontecerá nada, dou minha palavra. - E o senhor o que fará? Seguirá adiante como se o que aconteceu fosse um simples acidente, algo inevitável? - Se quer saber, vou me aposentar. Estou passando as minhas empresas para outras mãos, acertando tudo para que as companhias continuem funcionando sem mim. Sofia sentiu um arrepio, amava e odiava aquele homem com a mesma intensidade. - Quer dizer que o senhor está deixando a Ordem do Templo? Impossível, o senhor é um mestre, um dos sete homens que mandam na Ordem, sabe demais, e homens como o senhor não têm como fugir. - Não estou fugindo. Não tenho por que nem de quem fugir. Simplesmente respondi a sua pergunta. Resolvi me aposentar, dedicar-me ao estudo, a apoiar a sociedade de outras formas. - E seu celibato? D'Alaqua tornou a guardar silêncio. Via que estava ferida no mais profundo do seu ser, e ele nada tinha para lhe oferecer, não sabia se seria capaz de ir além, de acabar de romper com o que fora a essência de sua vida. - Sofia, eu também tenho umas tantas feridas. Não são visíveis, mas estão aí, e doem muito. Juro que sinto o que aconteceu, seu sofrimento, a perda de seus amigos, a desgraça se abateu sobre sua vida. Se dependesse de mim, eu teria evitado tudo isso, mas não controlo as circunstâncias, e os seres humanos têm livrearbítrio. Todos decidimos o que queríamos fazer no drama que vivemos. Todos, inclusive Ana. - Não, não é verdade. Ela não decidiu morrer, não queria morrer. Minerva também não, nem Pietro, nem os carabinieri, nem os homens da Comunidade, nem sequer seus homens, esses amigos do padre Yves, ou esses de quem nada foi dito, mas que também morreram no tiroteio. Quem eram seus soldados? O exército secreto da Ordem do Templo? Não, já sei que não vai responder, não pode, ou melhor, não quer fazê-lo. O senhor será um templário até morrer, embora diga que está se aposentando. - E a senhora, o que vai fazer? - Quer mesmo saber? - Sim, a senhora sabe que sim, que quero saber o que vai fazer, onde vai estar, onde posso encontrá-la. - Sei que me visitou no hospital, e que passou algumas noites à minha cabeceira... - Responda. O que vai fazer? - Lisa, a irmã de Mary Stuart, abriu-me as portas da universidade. A partir de setembro, vou dar aulas. - Fico feliz! - Por quê? - Porque tenho certeza de que se sairá bem. Olharam-se longamente, sem dizer nada. Já não havia o que dizer. Sofia se levantou. Umberto D'Alaqua acompanhou-a até a porta. Despediram-se com um aperto de mãos. Sofia notou que D'Alaqua retinha sua mão entre as dele. Desceu os degraus sem olhar para trás, sentindo o olhar de D' Alaqua, sabendo que ninguém tem poder sobre o passado, que não pode ser mudado, e que o presente é apenas um reflexo do que fomos, e que só pode haver futuro quando não se dá um único passo atrás.
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