A Formação do Homem Grego

March 28, 2018 | Author: Mirele Queiroga | Category: Greek Mythology, Poetry, Achilles, Homer, Aesthetics


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(Retirado de: JAEGER, Werner. A Formação do Homem Grego. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1995. pp. 61-84.) Conta Platão que era opinião geral no seu tempo ter sido Homero o educador de toda a Grécia. Desde então, a sua influência estendeu-se muito além das fronteiras da Hélade. Nem a apaixonada crítica de Platão conseguiu abalar seu domínio, quando buscou limitar o influxo e o valor pedagógico de toda a poesia, A concepção do poeta como educador do seu povo - no sentido mais amplo e profundo da palavra – foi familiar aos Gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua importância, Homero foi apenas o exemplo mais notável desta concepção geral e, por assim dizer, a sua manifestação clássica. Convém levarmos a sério, o mais possível, esta concepção, e não restringirmos a nossa compreensão da poesia grega com a substituição do juízo próprio dos Gregos pelo dogma moderno da autonomia puramente estética da arte. Embora esta caracterize certos tipos e períodos da arte e da poesia, não deriva da poesia grega ou de seus grandes representantes, nemé possível aplicá-la a eles. A não-separação entre a estética e a ética é característica do pensamento grego primitivo. O procedimento de separá-las surge relativamente tarde. Para Platão, ainda, a limitação do conteúdo de verdade da poesia homérica acarreta imediatamente uma diminuição no seu valor. Foi a antiga retórica que fomentou pela primeira vez a consideração formal da arte e foi o Cristianismo que, por fim, converteu a avaliação puramente estética da poesia em atitude espiritual predominante. É que isso lhe possibilitava rejeitar, como errôneo e ímpio, a maior parte do conteúdo ético e religioso dos antigos poetas e, ao mesmo tempo, aceitar a forma clássica como instrumento de educaçãoe fonte de prazer. A partir daí, a poesia continuou a conjurar do seu mundo de sombras os deuses e heróis da “mitologia” pagã; mas esse mundo passou a ser considerado como jogo irreal da pura fantasia artística. E fácil contemplar Homero por esta acanhada perspectiva, mas assim impedimo-nos o acesso à inteligência dos mitos e da poesia no seu genuíno sentido helênico. Repugnanos naturalmente ver a tardia poética filosófica do helenismo interpretar a educação em Homero como uma árida e racionalista fábula docet ou, de acordo com o modelo dos sofistas, fazer da epopéia uma enciclopédia de todas as artes e ciências. Mas esta quimera da escolástica não é senão a degenerescência de um pensamento em si mesmo correto, o qual, como tudo quanto é belo e verdadeiro, se torna grosseiro em mãos grosseiras. Por mais que esse utilitarismo repugne, com razão, nosso sentido estético, não deixa de ser evidente que Homero, e com ele todos os grandes poetas da Grécia, deve ser considerado, não como simples objeto da história formal da literatura, mas como o primeiro e maior criador e modelador da humanidade grega. Impõem-se aqui algumas observações sobre a ação educadora da poesia grega em geral e da poesia de Homero, em particular, A poesia só pode exercer uma tal ação se faz valer todas as forças estéticas e éticas do homem. Porém a relação entre os aspectos ético e estético não consiste só no fato de o ético nos ser dado como “matéria” acidental, alheia ao desígnio essencial propriamente artístico, mas sim no fato de o conteúdo normativo e a forma E mais: existe uma arte que despreza os chamados assuntos elevados ou fica indiferente perante o conteúdo do seu objeto. mais vital que o conhecimento filosófico. por meio da expressão artística. para a dos Gregos. válidas para a poesia de todas as épocas. sem exceção. e especificamente da poesia helênica. Na epopéia manifesta-se a peculiaridade da educação helênica como em ne. Existe e existiu sempre uma arte que prescinde dos problemas centrais do homem e tem de ser compreendida apenas pela sua idéia formal. significado permanente e força emocional capaz de mover os homens. quanto ao fundamental. que são as condições mais importantes da ação educativa. pela concentração de sua realidade espiritual. no sentido da sua qualidade estética específica. mas é. ao mesmo tempo. Daqui resulta que a poesia tem vantagem sobre qualquer ensino intelectual e verdade racional. Mas atuam somente naqueles cujos pensamentos chegam a adquirir a intensidade de uma vivência pessoal. um anseio espiritual. Em tempo algum aqueles ideais alcançaram uma validade tão vasta sob a forma artística. Sofrem demais a interferência dos sucessos acidentais para que a sua impressão possa alcançar sempre o grau máximo de profundidade. Apesar de algumas variações de detalhe. ao ser elaborado filosoficamente nos tempos de Platão e Aristóteles. ela nos dá um trecho da existência. a este propósito. de modo nenhum. Pela união destas duas modalidades de ação espiritual. Mostremos como o estilo. com base na grande poesia do seu próprio povo. pois desmascara sem qualquer consideração os valores falsos e convencionais. Mas aplicam-se a ela mais que a nenhuma outra. A filosofia e a reflexão atingem a universalidade e penetram na essência das coisas. fazer desta concepção uma lei estética geral. assim como sobre as meras experiências acidentais da vida do indivíduo. Mas só pode ser propriamente educativa uma poesia cujas raízes mergulhem nas camadas mais profundas do ser humano e na qual viva umethos . uma imagem do humano capaz de se tornar uma obrigação e um dever. como nos poemas homéricos. nem sequer. Não é possível. Estas considerações não são. E dado que nasceu numa época em que existia um sentido mais vivo da poesia. Por outro lado. Tampouco se limitam a esta. É mais filosófica que a vida real (se nos é lícito ampliar o sentido de uma conhecida frase de Aristóteles). e atua como uma crítica purificadora. condicionados e inspirados pela figura espiritual que encarnam. A poesia grega nas suas formas mais elevadas não nos dá apenas um fragmento qualquer da realidade. a composição. A vida possui a plenitude de sentido. Nenhum . os valores mais elevados ganham. em geral.nhum outro poema. É claro que esta frivolidade artística deliberada tem por sua vez efeitos “éticos”. A arte tem um poder ilimitado de universal e a plenitude imediata e viva. a concepção grega da arte permaneceu. ela supera ao mesmo tempo a vida real e a reflexão filosófica. mas as suas experiências carecem de valor universal. é necessário e correto perguntarmos qual a sua validade nos tempos de Homero. e por ela na formação da posteridade. sem dúvida.artística da obra de arte estarem em interação e terem até na sua parte mais íntima uma raiz comum. escolhido e considerado em relação a um ideal determinado. Reproduzimos com elas os pontos de vista a que chegou o sentimento artístico grego. idêntica em tempos posteriores. a forma se encontram. pois dela derivam. em igual estágio de desenvolvimento. A poesia arraigada no solo — e não há nenhuma verdadeira poesia que não o seja . mas até de toda a humanidade. eleva-se. não na riqueza da sua substância humana. ao passo que a época medieval cortês foi esquecida logo após a decadência do mundo cavalheiresco. do Beowulf edos Nibelungos. a história crítica. O poema de Dante. o tratado científico sistemático. também entre os Indianos. a oratória jurídica e panegírica2. há de imperecível na fase heróica da existência humana: o seu sentido universal do destino e verdade permanente da vida. na amplitudee permanência da ação.a filologia -. raças e culturas. como sucedeu entre os Gregos. as confissões e os ensaios. e o alemão em Goethe. Nem mesmo poemas como os dos povos germânicos. com uma organização das classes sociais – nobres e povo —. o primeiro que entra na . embora condicionado pelo tempo. Finlandeses e alguns povos nômades da Ásia Central nasceu dos cantos heróicos uma epopéia. uma nova ciên. nem na força da sua forma artística. que viveu exclusivamente da força imorredoura daqueles poemas. Dela nos vêm a tragédia. A compreensão. deparamos em outros povos. e chegar assim a um melhor conhecimento da épica grega. Nenhuma épica de povo nenhum exprimiu de modo tão completo e tão sublime como a dos Gregos aquilo que. A força vital da época homérica produziu ainda na época helenística. Encontramo-nos em condições de comparar a poesia épica das mais diversas etnias. É certo que os estágios primitivos da expressão poética de um povo encontram-se condicionados do modo mais intenso pelas particularidades nacionais. por mais de um milhar de anos. Em contrapartida. Em contrapartida. E. torna-se manifesta no fato de a influência de Homero ter-se estendido. os poeirentos manuscritos da épica medieval. sem interrupção. por outros povos e tempos. E isto por uma razão semelhante. pela profundidade e universalidade da sua concepção do Homem e da existência. o tratado filosófico. alemã ou francesa. A poesia heróica dos mais antigos tempos da Hélade3 partilha os traços primitivos da poesia de outros povos. as coleções de cartas. Mas essa semelhança reside apenas em caracteres exteriores condicionados pelo tempo. podem equiparar-se aos de Homero.só se eleva a uma validade universal na medida em que atinge o mais alto grau da universalidade humana. A diferença entre o seu significado histórico na vida do seu povo e o da épica medieval. a descrição de viagens e as memórias.outro povo criou por si mesmo formas de espírito comparáveis àquelas da literatura grega posterior. Romanos. do que lhe é peculiar fica necessariamente restringida. O fato de Homero. em que para tudo se buscava fundamento científico. a comédia. não só na vida da sua própria nação. Germanos. a uma altura que o espírito inglês só alcança em Shakespeare. da Canção de Rolando. um ideal aristocrático do Homem e uma arte popular que traduz a concepção dominante da vida em cantos heróicos análogos àqueles dos Gregos primitivos. tio profundamente humanos e tão próximos de nós. dormitavam nas bibliotecas e foi preciso que uma erudição prévia os redescobrisse e trouxesse à luz.cia consagrada à investigação da sua tradição e forma original . o diálogo. A Divina Comédia de Dante é o único poema da Idade Média que desempenhou papel análogo ao de Homero. a biografia. apesar de todos os “progressos” burgueses. Com frequência observaram-se as semelhanças intensas de todos aqueles poemas. nascidos do mesmo grau de desenvolvimento antropológico. A poesia grega desenvolve. mas a sua representação ideal. que ama os nomes significativos. aparecem outras passagens nas quais o interesse pelos objetos descritos afasta a possibilidade de pensar numa segunda intenção moral do poeta. As suas pedras fundamentais estão na obra dos poetas. A glória e a sua manutenção e aumento constituem o sentido próprio dos cantos épicos. O cantor do Canto I daOdis s éia recebe do poeta. A poesia homérica é uma vasta e complexa obra do espírito. Não se limita à formulação expressa de problemas pedagógicos nem a algumas passagens que aspirem a produzir um determinado efeito moral. a intenção educadora daqueles cantos. OPathos do sublime destino heróico do homem lutador é o sopro espiritual da Ilíada.história da poesia grega. ter-se tornado o mestre da humanidade inteira demonstra a capacidade única do povo grego para chegar ao conhecimento e à formulação daquilo que une e move todos nós. incorporada na poesia homérica. converteu-se no fundamento vivo de toda a cultura helênica. despertam-na e extasiam-na em cantos e . tem uma posição firme na sociedade dos homens. Já mostramos por meio de exemplos concretos. anunciador da glória. Ao lado de fragmentos relativamente recentes que revelam um interesse pedagógico expresso. na análise precedente da Embaixada a Aquiles e daTelemaquia. portador da fama.mentos. Já apreciamos o seu valor como “fonte” do nosso conhecimento histórico da sociedade grega mais antiga. destes. uma educação objetiva que nada tem a ver com o propósito do poeta. O cantor. por assim dizer. nos quais se revela. Platão enumera o êxtase poético entre as belas ações do delírio divino e descreve em conexão com ele o fenômeno original que se manifesta no poeta7. que já se aproximam da elegia. Talvez pudéssemos perguntar como a atitude plenamente objetiva da epopéia é compatível com esta intenção. O nome do cantor feace Demódoco contém a referência à publicidade da sua profissão. O Canto IX daIlíada ou aTelem aquia revelam na sua atitude espiritual uma vontade tão decidida de produzir um efeito consciente. que não se pode reduzir a uma fórmula única. As antigas canções heróicas eram freqüentemente denominadas “glórias dos homens”6. de degrau em degrau e em crescente medida. Mas a importância educadora de Homero é evidentemente mais vasta. Mas a sua descrição imortal do mundo cavalheiresco é algo mais do que um reflexo involuntário da realidade na arte. Este verso exprime a lei fundamental da história da educação helênica. Homero é o representante da cultura grega primitiva. mas se baseia na própria essência do canto épico. A sociedade que produziu aquela forma de vida desapareceu sem deixar qualquer testemunho para o conhecimento histórico. o seu espírito educador. Este mundo de grandes tradições e exigências é a esfera mais elevada da vida. isto é. o nome de Fêmio. como mantenedor da glória. Hölderlin disse: O que permanece é obra dos poetas. com plena consciência. Ternos de distinguir. Oethos da cultura e da moral aristocrática encontra na Odisséia o poema da sua vida. de cuja tradição artística nasceu a épica. na qual a poesia homérica triunfou e da qual se nutriu. Isto nos conduz aos tempos relativamente primitivos onde se encontra a origem do gênero. outros frag. O propósito desses cantores é manter vivos na memória do mundo futuro os “feitos dos homens e dos deuses”5. Homero oferece-nos múltiplas descrições dos antigos aedos4. A possessão e o delírio das musas apoderam-se de uma alma sensível e consagrada. Louva e exalta o que no mundo é digno de elogio e de louvor. sem dúvida alguma. Quando muito encontramos o mítico como elemento idealizador em outros gêneros. mas sim nos discursos das personagens épicas. as advertências ou estímulos de Fênix a Aquilese de Atena a Telêmaco. fixado por uma tradição de séculos. Parte da união necessáriae inseparável de toda a poesia com o mito .em toda sorte de criações poéticas. O extraordinário. Não tem caráter meramente fictício. Assim como os heróis de Homero reclamam. a qual foi para os Gregos uma lei invariável. mas são impostos pela convenção do estilo épico. até pelo simples reconhecimento do fato. mas sim pela sua própria natureza. Uma prova da íntima conexão entre a epopéia e o mito é o feto de Homero usar exemplos míticos para todas as situações imagináveis da vida em que um homem pode estar na presença de outro para o aconselhar. por exemplo na lírica. um elemento indispensável. obriga. embora originalmente seja. advertir. Falamos então do valor educativo dos exemplos criados pelo mito – por exemplo. admoestar. que neles bebe o seu pensamento. Nem de outro modo se deve interpretar a união da poesia com o mito. por si só. O mito contém em si. estes epítetos. Ele não é educativo pela comparação de um acontecimento da vida corrente com o acontecimento exemplar que lhe corresponde no mito. Tal é a concepção helênica original. educa a posteridade. Tornaram-se. ideais e normas para a vida. com o uso. perderam a vitalidade. do louvor e da imitação dos heróis. uma ação educadora. O simples fato de manter viva a glória através do canto é. e surgem nela . assim todo o autêntico feito heróico está sedento de honra. Uma das particularidades da linguagem épica é o uso estereotipado de epítetos decorativos. Este fato atua em todos os detalhes de estilo e de estrutura da epopéia.e daí deriva a função social e educadora do poeta. esta função não consiste em nenhuma espécie de desígnio consciente de influenciar os ouvintes. exortar e lhe proibir ou ordenar qualquer coisa. O mito serve sempre de instância normativa para a qual apela o orador. e não um acontecimento qualquer. já em vida. Os mitos e as lendas heróicas constituem um tesouro inesgotável de exemplos e modelos da nação. Há no seu âmago alguma coisa que tem validade universal. Devemos recordar aqui o que já dissemos antes sobre o significado do exemplo para a ética aristocrática de Homero. Tais exemplos geralmente não se encontram na narração. o conhecimento do que é magnífico e nobre. Os epítetos isolados já não são empregados sempre com um significado individual e característico. Este uso deriva diretamente do espírito inicial dos antigos κλέα νδωρν ἀ heróicos. para esta arte.des ações do passado . A épica é por natureza um mundo ideal. A lei não tem valor para além do domínio da grande poética. e ela enquanto glorifica os inúmeros feitos do passado. Mas o cantor não se limita a referir os fatos. A tradição do passado celebra a glória. São em grande medida ornamentais. no entanto. Está intimamente ligada à origem da poesia nos cantos heróicos. Para Platão. e o elemento de idealidade está representado no pensamento grego primitivo pelo mito.o conhecimento das gran. o sedimento de acontecimentos históricos que alcançaram a imortalidade através de uma longa tradição e da interpretação enaltecedora da fantasia criadora da posteridade. a idéia da glória. a devida honra e estão dispostos a conceder a cada um a estima a que tem direito. dos ditirambos. uma vez que exprime um ponto de vista pessimista. a poesia mélica nasce das canções populares. Dión de Prusa. e as que se originam na vida da comunidade. Veremos mais adiante os seus pressupostos sociais. Em contrapartida. Já os antigos fizeram notar como Homero eleva àquela esfera até as coisas mais insignificantes.constantemente. A tendência idealizante da épica. O seu juízo pouco nos interessa aqui. ligada à sua origem nos antigos cantos heróicos. E. Dela recebem o espírito educador que passa mais tarde a outros gêneros. Todos os gêneros da literatura grega surgem das formas primárias e naturais da expressão humana. como os iambos e os cantos corais. das cerimônias populares das bodas. poderemos afirmar. onde é exaltado tudo o que a narração épica toca. Podemos seguir dois caminhos: examinar a forma integral da . doskomos. desprezível e falho de nobreza é suprimido do mundo épico. A tragédia tanto pelo seu material mítico como pelo seu espírito.se dela pela forma. mesmo quando não fazem falta e até quando perturbam. cheio de fina sensibilidade para as coisas formais.tudo engrandeceu. Podemos afirmar que não deixou nada sem elogio e sem louvor. Assim. Tudo quanto é baixo. distingue-a das outras formas literáriase outorga-lhe um lugar proeminente na história da formação grega. oposto à antiga educação dos nobres e ao culto do exemplo. as armas e os cavalai. As formas de expressão poética de origem privada ou cultuai pouco têm a ver com a educação. a égua e a terra. os epitalâmios. Os epítetos passaram a ser um simples ingrediente da esfera. cujas formas transmuta e enriquece artisticamente. as que pertencem aos serviços divinos. animais e plantas. Ainda acima do emprego dos epítetos. o único que ele difamou. enobrecedor e transfigurante. contrapõe a Homero o crítico Arquíloco e faz o reparo de que os homens precisam mais de crítica que de louvor para a sua educação. Podemos dividir assim as formas originais a partir das quais se desenvolvem os gêneros poéticos posteriores. se repararmos que as formas da prosa literária que desempenhavam uma ação educadora mais eficaz — a História e a Filosofia . É unicamente à sua ligação com a epopéia e não à sua origem dionisíaca que ela deve o seu espírito ético e educador. sem mais. os hinos e opr os odion. o iambo. dos serviços divinos. dos cantos das festas dionisíacas. as que se referem à vida privada. pois reflete objetivamente a vida inteira e apresenta o homem na sua luta contra o destino e em prol da consecução de um objetivo elevado. campeia nas descrições épicas um tom ponderativo. é a herdeira integral da epopéia. as comédias. que a epopéia é a raiz de toda a formação superior na Grécia. ideal. Queremos evidenciar agora o elemento normativo na estrutura interna da epopéia. denomina-o orador de voz clara.nasceram e se desenvolveram diretamente da discussão das idéias relativas à concepção do mundo contidas na epopéia. Mesmo Tersites. os idealizadora.Hom er o — diz . que não chegou a ter consciência clara da profunda ligação do estilo enobrecedor com a essência da épica. as tragédias. A didática e a elegia seguem os passos da épica e aproximam. O seu significado educativo situase a grande distância daquele dos restantes gêneros poéticos. Mas dificilmente se pode descrever a natureza do estilo épico e a sua tendência idealizante com mais acerto que o das palavras daquele retórico. conservam uma certa independência e mostram assim que originariamente constituíram um fim por si próprias. . São cenas completas que. cujo espetáculo e íntima vitalidade logo desaparecem. As descrições de batalhas campais só conseguem despertar o nosso interesse nas cenas dominadas por grandes heróis individuais. conformes com o modelo épico. é insustentável. como aar is téia de Diomedes (E). A idéia que tivermos formado a respeito da natureza dos mais antigos cantos heróicos exercerá uma influência essencial sobre tal concepção. e também pela íntima ligação dos seus momentos particulares com a unidade da ação. mesmo sob o ponto de vista do absoluto agnosticismo. Estas cenas faziam as delícias da geração a que se dirigiam os cantos heróicos.epopéia. no seu devir. e que nas batalhas de grupos mal aparece. todos episódios já em si mais ou menos significativos. O poeta daIlíada interrompe a narração da guerra de Tróia pela descrição da cólera de Aquiles e respectivas conseqüências. consideram sempre em conjunto a totalidade da Ilíada e daO dis s éia. embora façam parte da obra total. mais ou menos modificadas. sem prestar qualquer atenção aos resultados e problemas da análise científica de Homero. a mais primitiva tradição. antigas formas das sagas. as quais formam. Em todo caso. e os duelos entre Menelau e Paris (T) e entre Heitor e Ájax (H). sobre uma matéria inesgotável. no que se refere ao problema da educação. do que a ostentação de combates de multidões. que via nelas o espelho de seus próprios ideais. Episódios desta índole. Na llía d a constituem o ponto culminante da ação bélica. e. Menelau (P). por isso seguiremos uma via intermediária. A narração daaristéia de um herói contém sempre um forte elemento moralizante. Consideraremos. surgem ainda em épocas posteriores. ou foram modeladas como cantos independentes. na sua realidade completa e acabada. do ponto de vista do interesse humano. as quais. A nossa idéia fundamental da origem da épica nas canções heróicas mais antigas. constitui a mais antiga forma dos cantos épicos. A narração dos combates singulares é mais fértil. como em outros povos. o desenvolvimento histórico da epopéia. Qualquer destas atitudes é má. aar is téia (que termina com o triunfo de um herói famoso sobre o seu poderoso adversário). bem como pela de um cerco número de combates individuais. a de Agamenon (A). Participamos profundamente da narração dos combates individuais através do que neles há de pessoal e ético. ou mergulhar nas dificuldades inextricáveis que apresenta o emaranhado das hipóteses relativas à sua origem e nascimento. ainda que a análise leve à conclusão de que o todo resulta de um trabalho poético ininterrupto. Mas ainda que aceitemos a possibilidade (que a todos parece evidente) de a epopéia ter incorporado. leva-nos a supor que a descrição dos combates singulares. uma vez completa. mas prescindiremos dos detalhes das análises relativas ao assunto. Esta constatação separanos das antigas interpretações de Homero. ter admitido a inserção de cantos inteiros de origem mais recente. através de gerações. A totalidade deve naturalmente continuar a ser mesmo a meta para os intérpretes modernos. devemos esforçar-nos para conceber de modo mais inteligível as fases do seu desenvolvimento. em princípio. qualquer concepção que não leve em conta o fato indiscutível da pré-história da epopéia. o poeta pinta um quadro grandioso: a guerra de Ílion.A nova finalidade artística da grande epopéia. Interpretação espiritual e criação são. que desde o “ovo de Leda”. A ação é para o poeta o laço íntimo pelo qual ele junta numa unidade poética as cenas sucessivas da guerra. Não é difícil de compreender que a originalidade incontestavelmente superior da epopéia grega na composição de um todo unitário brota da mesma raiz que a sua ação educadora: da mais alta consciência espiritual dos problemas da vida. Diz-se ocasionalmente que lutam para vingar o rapto de Helena. avançando in media res. não de um Grego. um destino individual de pura tragédia humana: a vida heróica de Aquiles. da mais sublime areté — e não apenas Gregos. desenrola-se através de uma fatigante série de contos tradicionais. visava também pôr em relevo o valor de todos os heróis famosos. ao introduzir um elevado número de cenas desta natureza e ligá-las a uma ação unitária. quando tal acontece. Os grandes heróis aqueus encarnam o tipo da mais alta heroicidade. Mas não se faz nenhum uso importante desta justificação. como anteriormente. Do fundo sangrento da peleja heróica destaca-se. mas o resplendor imperecível do seu heroísmo. Por meio da ligação de muitos heróis e figuras já parcialmente celebrados nos antigos cantos. e começando na história do nascimento do herói. as grandes crises. na sua totalidade. AIlíada deve à trágica figura de Aquiles o não ser para nós um venerável manuscrito do espírito guerreiro primitivo. uma e a mesma coisa. procede apenas por traços justos e precisos. O que desperta a simpatia do poeta para com os Aqueus não é a justiça da sua causa. o que eleva a poesia heróica muito acima da sua esfera originai e outorga aos poetas uma posição espiritual completamente nova. significa também uma consideração mais profunda dos conteúdos íntimos da vida e dos seus problemas. como parece aconselhar uma política razoá. a mulher e os filhos são motivos que atuam sobre eles com menos força. Há a intenção de negociar diretamente com os Troianos o regresso de Helena ao seu marido legal. no fundo. mas sim um monumento imortal para o reconhecimento da vida e da dor humanas.vel. que tomba pela pátria e com isso atinge uma tão viva qualidade humana. quadros particulares de uma ação de conjunto que se supunha conhecida. É um poeta no sentido pleno da palavra: intérprete e criador da tradição. A sua obra mostra bem o que a guerra representava para ele: era a luta prodigiosa de muitos heróis imortais. dramático e concentrado. apresenta apenas. Ele já não é um simples divulgador impessoal da glória do passado e de suas façanhas. O interesse e o prazer cada vez maiores no domínio das grandes massas temáticas — traço típico dos últimos graus de desenvolvimento dos cantos épicos e que também se encontra em outros povos — não leva nestes necessariamente à grande epopéia e. A grande epopéia não representa apenas um progresso imenso na arte de compor um todo complexo e de amplo traçado. O acontecer da epopéia homérica. alguns momentos de significação representativa . Em vez de uma história da guerra troiana ou da vida inteira de Aquiles. com prodigiosa segurança. sempre intuitivo e imagético. naIlíada. cai facilmente no perigo de degenerar em uma narração novelesca. uma função educadora no mais alto sentido da palavra. e assim evitar o derramamento de sangue. Os inimigos destes são igualmente um povo de heróis que lutam pela sua. não consistia apenas em apresentar. A pátria. mas do herói dos Troianos. o triunfo de Aquiles sobre o poderoso Heitor. enfim. para Aristóteles e Horácio. aparece-nos com o mesmo fulgor crescente que por toda a parte circunda a figura dele: o heroísmo sobre-humano de um jovem magnífico que prefere. até que o crescente perigo dos seus move Pátroclo a intervir. Toda a história finda com a tristeza inconsolável do herói. por causa dos erros e misérias humanas. o fruto dos seus esforços. sem indulgência para o adversário de igual condição. Quando Príamo se arrasta a seus pés pedindo-lhe o cadáver do filho. O poema começa. lançam no combate todo o peso da sua força e o campo de batalha chega ao momento supremo. AIlíada começa no instante em que Aquiles. Depois de tantos anos de luta estão quase perdendo. salva os Gregos da ruína. enternece-se o impiedoso coração do Pelida com a recordação do seu velho pai. retira-se da luta. assim. por . mas ainda o mais sublime modelo de força e mestria poéticas. Quem pretende suprimir o último Canto ou continuar a ação até a morte de Aquiles. em que a tragédia da grandeza heróica votada à morte se mistura com a submissão do homem ao destino e às necessidades da sua própria ação. encorajados pela ausência de Aquiles. o que permite concentrar e evocar. Prescinde do que é meramente histórico. por um momento obscuro da sua figura luminosa. Foi ela que fez de Homero. mata Heitor. presentes e futuras.só atenta no único fruto da sua luta: a glória pessoal.psychos que. A terrível cólera do herói. Já os críticos antigos se admiraram desta capacidade. e quiser fazer daIlíada uma aquileida ou pensar que ela era originariamente assim. passadas. corporifica os acontecimentos e deixa que os problemas se desenvolvam pela força da sua íntima necessidade. em breve espaço de tempo. cercada de prazeres e de tranqüilidade. o que não haviam alcançado as súplicas e tentativas de reconciliação dos Gregos: Aquiles entra de novo na luta para vingar o amigo morto. AIlíada celebra a glória da maioraristéia da guerra de Tróia. que é o motivo de toda a ação. colérico. um verdadeiromegalo.e da mais alta fecundidade poética. a dura e breve ascensão de uma vida heróica a uma longa existência sem honra. embora ainda vivo. e com a sombria certeza que o vencedor tem a respeito de seu próprio destino. A sua morte pelas mãos de Heitor consegue. a quem também o filho. com aquelas espantosas lamentações de morte de Gregos e Troianos perante Pátroclo e Heitor. apesar de saber que após a queda de Heitor o espera a ele. dez anos de guerra com todos os seus combates e vicissitudes. e do mesmo o final não se compara a êxito triunfante de uma aristéia comum. A retirada do seu herói mais poderoso anima os outros heróis gregos a realizar um esforço supremo e a mostrar todo o brilho da sua bravura. É o triunfo do herói. no momento em que estavam bem perto de alcançar o seu objetivo. que pertence à autênticaar is téia. Os adversários. enterra o amigo lamentos selvagens conforme os antigos usos bárbaros e vê avançar sobre si próprio o destino. A tragédia contida na resolução de Aquiles de vingar em Heitor a morte de Pátroclo. não apenas o clássico dentre os épicos. Aquiles não fica satisfeito com a sua vitória sobre Heitor. em plena consciência. o que põe os Gregos no maior apuro. foi roubado. não do ponto de vista artístico da forma. estará encarando o problema de um ponto de vista histórico e de conteúdo. não a sua ruína. do nascimento da epopéia homérica não pode ser resolvida de chofre e nem ser posto de lado por uma simples alusão àquela intenção. Há uma profunda necessidade espiritual no fato de serem precisamente os Gregos. e a conseqüente cólera do deus. a ofensa a Crises. por ser extremista. quer se achasse ligada à concepção original. porque não “sabe ceder” e. a de Aquiles. em certo sentido. pois é a negativa dele que acarreta a intervenção e a ruína do seu amigo. da própria vida. naturalmente. o poeta toma um partido inequívoco. Todos os Gregos posteriores concordam com esta interpretação e vêem nisto a grandeza moral e eficácia educadora do poema. Agamenon. no Canto IX. mil vezes discutido. o Homem aparece. Maldiz então o rancor que o levou a ser infiel ao seu destino heróico. E. as ophr os yne em pessoa. O seu heroísmo não pertence ao tipo ingênuo e elementar daquele dos antigos heróis. Mas o fato de aparecerem com clareza as linhas firmes da ação é um antídoto salutar contra a tendência unilateral a fragmentar o conjunto. aqui. a unidade espiritual da obra de arte. Quando já é tarde demais é que fala cheio de arrependimento. como força divina a que o homem mal pode resistir. não é possível ignorá-la na forma atual daIlíada. de conseqüências bem mais graves. Para pôr a claro de modo convincente as particularidades de tal intenção. fazse necessária uma análise profunda. como co-autor inconsciente dele. principalmente no Canto IX. ao preço antecipadamente conhecido. a questão do criador da arquitetura do poema. a permanecer ocioso e a sacrificar o seu amigo mais querido. Mas. ultrapassa todas as medidas humanas. que pressupõe. depois da sua reconciliação com Aquiles. Podemos deixar de lado. e é de fundamental importância para o seu intento e o seu efeito. que não podemos realizar aqui. não encontrará a sua plenitude até a consumação da catástrofe. tal como amoira. Deve-se concluir desta ligação que aIlíada tem uma intenção ética. À cegueira de Agamenon junta-se. Serve apenas para exaltar e dar maior profundidade humana à vitória de Aquiles. mas classifica-a claramente de incorreta. apenas em alguns pontos de maior importância. Homero concebe aate. quer fosse fruto da elaboração de um poeta posterior. sacerdote de Apolo. de modo estritamente religioso. a sentir como algo de demoníaco o trágico perigo da cegueira e a considerá-la como a eterna . A figura de Nestor mantém a totalidade da cena em equilíbrio.sua vez. Eleva-se até a escolha deliberada de uma grande façanha. onde se enuncia a causa da discórdia entre Aquiles e Agamenon. para quem a ação heróica do homem se situa no mais alto lugar. senão como senhor do seu destino. Refere-se com objetividade total à atitude dos dois contendores. É claro que o problema. No meio deles encontra-se o prudente ancião Nestor. No entanto. Esclareceremos isso. pelo menos. é este um fato que se deve esclarecer bem. no momento do descalabro grego. aqui. segundo a nossa maneira de ver. uma morte certa. lamenta igualmente a sua própria cegueira numa ampla alegoria sobre os efeitos mortais deate. Viu três gerações de mortais eé como que de um alto pedestal que fala aos homens irados do presente sobre as suas momentâneas agitações. cego pela cólera. Já nesta primeira cena aparece o estereotipado termo ate. A resolução heróica de Aquiles só alcança a plenitude trágica na sua ligação com as razões da cólera do herói e com a vã tentativa dos Gregos para conseguirem a reconciliação. Já no Canto I. Há também um campo onde os lavradores abrem sulcos com as suas juntas e. apriscos e estábulos. Não lhe escapa nada do essencial da vida humana. Numa delas. Voam as lanças no meio do tumulto. de coração alegre. Os jovens dançam em roda. vem uma herdade na época da colheita. A preferência dos Gregos pela poesia gnômica.se em pedras polidas. com ovelhas. a tendência a avaliar tudo o que acontece pelas ideais imperativos. não querem render-se. flui o Oceano. Uma vinha com os seus alegres vinhateiros. Em volta do círculo do escudo. enquanto os servos preparam a comida. que são atadas em molhos. o demônio da morte. junto com os respectivos pastores e cães. junto à margem de um rio. cortejos nupciais e epitalâmios. A seguir. ηθος νθοωπωι δαίμων. um homem despeja vinho numa taça. onde há um bebedouro para o gado. onde moços e moças bailam de mãos dadas e um divino cantor canta com voz sonora. de vestes ensangüentadas. enquanto a resignada sabedoria asiática tratava de evitar esse perigo pela inação e pela renúncia. Contudo. na ribanceira. Os seus habitantes. por um pensamento “filosófico” relativo à natureza humana e às leis eternas que governam o mundo. e Ker. e o proprietário permanece calado. porém. na sua totalidade. armam uma emboscada e assaltam um rebanho. realizam-se bodas. os homens saem secretamentee. A outra cidade está cercada por dois exércitos numerosos. avançam Éris e Kydoímos. situa-se no final do caminho percorrido pelos Gregos no conhecimento do destino humano. o céu e o mar. ao som das flautas e das liras. todos estes traços têm a sua origem última em Homero. demônios da guerra. num círculo sagrado. festas. e arrastam pelos pés os mortos e feridos. O poeta que criou a figura de Aquiles está no início desse caminho. Não há símbolo da concepção épica do homem tão maravilhoso como a representação estampada no escudo de Aquiles e descrita em detalhe pelaIlíada10. a lua cheia e as constelações que povoam o céu. as mulheres e as crianças. O poeta contempla todo o conhecimento particular à luz do seu conhecimento geral da essência das coisas. jogam no chão as espigas. A frase de Heráclito. Hefestos pinta nele a terra. As mulheres. de armaduras brilhantes. antes se mantêm firmes nas ameias das muralhas para defenderem os velhos. revelada na descrição do escudo. Cria ainda a imagem das duas mais belas cidades dos homens. para refrescá-los.oposição à ação e à aventura. Não há dia que seja tão transbordante de azáfama humana que faça o poeta esquecer- . um soberbo rebanho de bois com grandes chifres. Os juízes sentam. completam esta pintura exaustiva da vida humana. e de cetros na mão pronunciam a sentença. com o seu singelo. Por toda a parte o grande ritmo uniforme mantém a plenitude do seu movimento. desejosos de a destruírem e saquearem. O povo está reunido no mercado. Dois homens brigam a propósito do preço de um morto. contemplam-nos. A obra de Homero é inspirada. Açode o inimigo e trava-se o combate. o sol infatigável. admiradas. envolvendo todas as cenas. A perfeita harmonia da natureza e da vida humana. onde se desenrola um processo. magnífico e eterno significado. à parte. um local para dança. domina a concepção homérica da realidade. Os ceifeiros levam na mão a foice. uma pastagem no fundo de um vale formoso. Conhece-lhes a força primária e demoníaca. que é mais potente do que o Homem e o arrasta. Não são fáceis de assinalar oslimites a partir dos quais esta representação da realidade é. é falso explicar sempre a intervenção dos deuses como simples recurso da poesia épica. um dique inamovível. A narração que a seguir se faz da cólera de Apoio delimita exatamente e desvenda a causa essencial da desgraça. O poeta não vive num mundo de ilusão artística consciente. em Homero. encontra sempre a barrá-la. Mas. o musa. Não se entrega às experiências caóticas da vida sem tomar posição perante elas. A ação não se desentranha como uma desconexa sucessão temporal. Assim Ulisses é guiado por inspirações de Atena. Que deus consentiu que eles brigassem com tão grande azedume? A pergunta voa direto ao alvo. como se ele próprio as tivesse sentido (o que os nossos escritores precisam fazer) mas sim porque ele vê laços entre o humano e o divino. No mundo em que vive. Canta. que se sucedem passo a passo. em relação ao qual todo “realismo” aparece como irreal. como experiência ou fenômeno de uma consciência humana. por trás do qual se encontre o frio e frívolo iluminismo. nem as domina de fora. até a condução contínua de certos homens por uma divindade. Impera sempre nela o princípio da razão suficiente. e a banalidade do dia-a-dia burguês. no entanto. não há a simples aceitação passiva das tradições nem a mera relação dos fatos. não é autor moderno que considera tudo simplesmente no seu desenvolvimento interno. situando-se no início da epopéia como a etiologia da guerra do Peloponeso no começo da história de Tucídides. que se baseia a força ilimitada da epopéia homérica. numa inviolável conexão de causas e efeitos. Homero não é naturalista nem moralista. como o repouso se segue ao trabalho e à luta do dia. artifício poético. Para Homero. como para os Gregos em geral. As forças morais são para ele tão reais como as forças físicas. mas leis do ser. Homero. . por fim. Toda a ação tem uma vigorosa motivação psicológica. A inevitável onisciência do poeta não se revela em Homero na forma como nos fala das emoções secretas e íntimas das suas personagens. que poderão pertencer aos usos mais antigos do estilo épico. A arte da motivação em Homero está ligada à sua maneira profunda de penetrar o que é universal e necessário nos temas. e a mesma coisa acontece na epopéia. embora a sua corrente com freqüência alague as margens. a cólera de Aquiles tua sua contenda com o atrida Agamenon. abraça os mortais. A ação dramática desenrola-se nos dois poemas com ininterrupta continuidade desde os primeiros versos. Compreende as paixões humanas com visão penetrante e objetiva. as últimas fronteiras da ética não são convenções do mero dever. sempre renovadas. como uma seta. É na penetração do mundo por este amplo sentido da realidade. Para ele. nada de grande acontece sem a cooperação de uma força divina. e como o sono.se de notar como o sol se levanta e se deita sobre o esforço cotidiano. veremos um desenvolvimento espiritual que vai desde as intervenções mais exteriores e esporádicas. Se percorrermos com discernimento casos de intervenção divina na épica homérica. mas. que distende os membros. evidentemente. mas um desenvolvimento íntimo e necessário das ações. São eles que verdadeiramente agem nas ações e padecimentos humanos. tal como ela aparece aos olhos do poeta. A sua ação recíprocaé. a epopéia grega é mais objetiva e mais profunda que a épica medieval. A intervenção dos deuses nos fatos e sofrimentos humanos obriga o poeta grego a considerar sempre as ações e o destino do Homem na sua significação absoluta. assim. e o caráter antropocêntrico do pensamento grego. se compara a ela. Por outro lado revela-se com maior grandeza o contraste entre a concepção do mundo puramente teomórfica dos povos orientais. A epopéia grega já contém o germe da filosofia grega. a miopia e a dependência das ações humanas em relação aos decretos sobre-humanos e insondáveis. Seguimos constantemente a sua marcha sub specie das ações e projetos humanos. tanto quanto possível. A consideração psicológica e a metafísica de um mesmo acontecimento não se excluem de modo nenhum. embora o enquadre na perspectiva das idéias mais sublimes e dos problemas máximos da vida. Também naIlíada os deuses se dividem em dois campos. tanto nas inscrições reais dos Persas. uma duplicidade característica. Isto é crença antiga. racional e sistematicamente. Mesmo na tragédia de Aquiles. A causa última de todos os acontecimentos é a decisão de Zeus. Homero situa resolutamente em primeiro plano o Homem e o seu destino. manifesta-se ainda com maior vigor esta peculiaridade da estrutura espiritual da epopeia grega. para a qual só Deus age e o Homem é apenas o objeto da sua ação. para o pensamento homérico. A cena deste drama desenrola-se em dois planos. Os deuses estão sempre interessados no jogo das ações humanas. como o esforço do poeta para manter. Toda intervenção e todo êxito são obra dele. Desse modo surge à plena luz a limitação. Do ponto de vista da concepção do mundo. Tomam partido por este ou por aquele. onde nenhuma força divina interfere e todos os acontecimentos decorrem sob o prisma do acontecer subjetivo e da atividade puramente humana. na sua dimensão fundamental. Na Odisseia. na dissensão que a guerra de Tróia provoca no Olimpo. Isto não está em contradição com a compreensão natural e psicológica desses acontecimentos. conforme desejam repartir os seus favores ou tirar vantagem. a unidade do seu poder e a estabilidade do seu reino divino. Todos tornam o seu deus responsável pelos bens e pelos males que lhes acontecem. Mas são novas algumas facetas da sua elaboração. tal como chegou até . o natural. a lealdade mútua dos deuses. Em qualquer caso.dem ver esta conexão. A epopéia conserva. A Odisseia pertence a uma época cujo pensamento já se encontrava altamente ordenado. mas ainda nos acontecimentos religiosos e políticos. a subordiná-los à conexão universal do mundo e a avaliá-los pelas mais altas normas religiosas e morais. Babilônios e Assírios como nos livros históricos dos Judeus. para nos darmos conta da diferença da concepção poética da realidade. Os deuses intervém em toda motivação das ações humanas. Homero vê o decreto da sua vontade suprema. Uma vez mais. só Dante. própria de Homero.Também no antigo Oriente os deuses não atuam só na poesia. e dos mais altos poderes que governam o mundo. Basta pensar na epopéia cristã medieval escrita em língua romântica ou germânica. Os atores não po. Qualquer ação deve ser encarada ao mesmo tempo sob o ponto de vista humano e sob o ponto de vista divino. o poema completo. um problema que ainda aguarda solução: o de compreender do ponto de vista . O poeta ordena tudo quanto ocorre no sistema do seu pensamento religioso. serve de alimento às ideias mais sublimes da arte e da filosofia posteriores Só na Odisseia. É da essência desta história que a vontade suprema. Recebe da Ilíada a idéia de um concilio dos deuses. Não se compara às paixões cegas que arrastam consigo as faltas dos homens e os fazem cair nas redes de Ate. Quando dois povos lutam entre si e imploram com preces e sacrifícios o auxílio dos seus deuses. Em contraste com esta representação que tantas vezes se choca contra a elevação abstrata dos filósofos posteriores. Começa a sua apreciação do destino em questão com a formulação geral do problema do sofrimento humano e da irreparável ligação do destino com as culpas humanas. no início dos Cantos I e V. vemos na Ilíada um pensamento religioso e moral já bastante avançado debater-se com o problema de pôr em concordância o caráter original. a qual orienta de um modo consequente e poderoso o conjunto da ação e a conduz finalmente até um resultado justo e feliz. Esta rígida construção ética pertence. põem os deuses em situação delicada. Assim. provavelmente. vê-se na Ilíada um sentimento religioso cuja representação da divindade. expiada com a morte. porém. É através deste prisma ético e religioso que o poeta encara os sofrimentos de Ulisses e a hybris dos pretendentes. A mais alta divindade é para o poeta uma força sublime e onisciente que se encontra acima dos esforços e pensamentos dos mortais. Zeus impõe a sua superioridade pela força. aparece sem disfarce no momento culminante. a supor que a vida e as atividades das forças celestes não diferiam muito das que tinham lugar na sua existência terrena. particular e local da maioria dos deuses com a exigência de um comando unitário do mundo. A sua essência é o espírito e o pensamento. O Zeus que preside ao concílio dos deuses no começo da Odisseia representa uma elevada consciência filosófica do mundo. foi terminado naquele período e deixa ver claramente os seus vestígios. a este propósito. e os deuses empregam na sua luta meios humanos — humanos demais -. Toda a ação decorre até o fim invariavelmente em torno deste problema. e principalmente do soberano supremo do mundo. sobretudo dentro de um pensamento que acredita na onipotência e na justiça imparcial do poder divino.nos. Na Ilíada os deuses chegam quase a passar às vias de fato. como a astúcia e a força. Cada personagem conserva firmemente a sua atitude e o seu caráter. A crítica levantou. descobrimos uma concepção mais coerente e sistemática do governo dos deuses. aos últimos estágios da elaboração poética da Odisséia. Esta teodicéia paira sobre a totalidade do poema. mas cai na vista a diferença entre as cenas tumultuosas do Olimpo da Ilíada e os maravilhosos concílios de personalidades sobrehumanas da Odisseia. que com plena consciência do seu orgulho aristocrático se sentia intimamente aparentada aos imortais. A humanidade e proximidade dos deuses gregos induzia uma estirpe. a mulher desamparada e ignorante do paradeiro do esposo. que poderíamos vê-los com os olhos e tocá-los com as mãos. O segredo da força plástica das figuras de Homero está na capacidade que ele tem de situá-las. de modo intuitivo e com precisão e clareza matemáticas. e nas suas múltiplas conexões desencadeia a lógica interna da personagem segundo um efeito tranqüilo e plástico. As personagens de Homero são sempre naturais e manifestam a cada instante a própria essência. sem que com isso se esgote a ação do poema. tem raízes. que domina amplamente a forma definitiva da Odisséia. que repousa em si próprio e onde se mantém o equilíbrio entre o acontecer móvel e um elemento de ordem e estabilidade. longe da cidade. a mulher inquieta e angustiada pelo cuidado com seu filho único. aparece uma riqueza inesgotável de rasgos espirituais que vão desde o fabuloso ao idílico. numa característica específica do espírito grego. no sólido sistema de coordenadas de um espaço vital. em última análise. a partir dos estágios mais primitivos. em face das dificuldades surgidas com os pretendentes. todas as forças e tendências características que se manifestam no desenvolvimento posterior do povo grego. Mas isto é só um dos aspectos de um fenômeno muito mais rico. O pai de Ulisses. a senhora fiel e afetuosa para as servas.histórico o progresso desta elaboração moralizadora. depende das grandes linhas do problema religioso e moral que apresenta. Tudo se passa no quadro da existência concreta. idoso e fraco. Mas essa atitude seria insuportável para o leitor e inadequada ao objeto. A aptidão da epopéia homérica para nos dar a propósito do mundo que descreve a intuição de um cosmos acabado. O espectador moderno fica maravilhado pelo fato de em Homero se revelarem já. ética e religiosa. assim como ordena o destino humano dentro do vasto âmbito do acontecer universal e de uma concepção de mundo perfeitamente delimitada. Homero. O seu próprio pai está longe e não a pode ajudar. Têm uma solidez. Não tem mais ajuda que o honrado e velho porqueiro. sentida desde sempre como um dos seus traços fundamentais. Mas. por exemplo. Esta impressão é naturalmente menos óbvia quando se consideram os poemas isoladamente. As suas figuras não são meros esquemas que ocasionalmente despertam para a expressão dramática e se levantam a extremos prodigiosos para logo caírem na inação. Penélope é ao mesmo tempo dona de casa. uma facilidade de movimentação e uma contextura íntima a que nada se pode comparar. se englobarmos Homero e a posteridade grega num só panorama de conjunto. A fecundidade do nosso contato com o mundo grego baseia-se no conhecimento . A sua existência está em íntima conexão com o mundo exterior. Contudo. a unidade e a rigorosa economia da construção. Tudo isto é simples e necessário. pela coerência do pensamento e da ação. com nitidez. a expressão do sentimento teria alcançado maior intensidade lírica com gestos e expressões mais exageradas. está numa pequena e pobre mansão. Em Penélope. Os homens de Homero são tão reais. Ao lado da idéia de conjunto. Nunca considera os homens em abstrato e apenas na sua intimidade. O seu fundamento mais profundo são as qualidades inatas e hereditárias do sangue e da raça Em face delas sentimo-nos ao mesmo tempo próximos e distantes. ao heroico e aventureiro. ressaltará a sua intensa semelhança. também situa as suas personagens no âmbito próprio. No entanto. pela primeira vez. o espírito pan-helênico atingiu a unidade da consciência nacional e imprimiu o seu selo sobre toda a cultura grega posterior .desta necessária diferença entre o queé análogo. Nele. acima do elemento da raça e do povo. que só podemos apreender de maneira emocional e intuitiva. não podemos esquecer a influência histórica incalculável que o mundo humano plasmado por Homero exerceu sobre todo o desenvolvimento histórico posterior da sua nação.e que se conserva com rara imutabilidade através das mudanças históricas do espírito e da fortuna.
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