Alda Britto da MottaA FAMÍLIA MULTIGERACIONAL E SEUS PERSONAGENS ALDA BRITTO DA MOTTA* RESUMO: O objetivo deste artigo é discutir, a partir dos resultados de quatro pesquisas realizadas ao longo desta década, na Bahia, a família multigeracional contemporânea em dois dos seus segmentos geracionais básicos: os muito idosos, que crescentemente atingem a condição de centenários, e a geração-pivô, constituída por seus filhos, também idosos, que, além de se constituírem em seus cuidadores, também apoiam os seus próprios filhos e netos. Para isso será necessário abordar a questão da duplicidade dos papéis geracionais como obrigatoriamente de gênero, contemplando, ao mesmo tempo, mudanças: o processo de ressocialização desses “idosos jovens”, os quais, participando de novas experiências, como lazer em grupo ou retorno ao mercado de trabalho, tentam novas atuações sociais. Palavras-chave: Gerações. Socialização. Relações de gênero. MULTIGENERATIONAL FAMILIES AND THEIR PERSONAGES ABSTRACT: Based on the results of four surveys conducted during the past 10 years, in Bahia, this paper explores two basic generations of contemporary multigenerational families: the very old, who are increasingly becoming centenarians, and the pivot generation, constituted by their children, who also grow older. Besides being caregivers for the former, the latter frequently support their own children and grandchildren. We thus consider the duplicity of the generational roles as gender-oriented and take * Doutora em Educação e professora do Departamento de Sociologia e da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia ( UFBA ). E-mail:
[email protected] Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 111, p. 435-458, abr.-jun. 2010 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> 435 A família multigeracional e seus personagens into account the impact of social changes on the resocialization process of the “young old” who, after new experiences such as leisure groups or return to the labor market, are trying to play new social roles. Key words: Generations. Socialization. Gender relations. Introdução o percurso teórico e no descortino atual das idades e relações socialmente fundamentais, vêm-se destacando as famílias multigeracionais como loci privilegiados destas, na sua estrutura destacando-se dois segmentos populacionais muito nítidos, ao mesmo tempo quase ignorados pela pesquisa no Brasil, e que pela sua novidade de realização e intensidade quali-quantitativa se constituem em expressivos personagens geracionais, demandando pesquisa urgente: os centenários e a geração-pivô. A geração intermediária ou pivô foi socializada pelas gerações mais antigas, principalmente a dos seus pais centenários, para o exercício dos papéis tradicionais, sobretudo de gênero – os homens, como provedores; as mulheres, para serem essencialmente cuidadoras. Mas ao mesmo tempo estão vivenciando agora outros processos sociais e extrafamiliares do mundo capitalista, que os redirecionam ou ressocializam para novas atuações. E de tal forma vêm-se diferenciando os segmentos geracionais mais velhos, que já não são simplesmente “idosos”, mas fazem jus a novas denominações, tais como “idosos jovens” e “muito idosos” ou “velhos mais velhos”. E seu cotidiano, ainda quando moram juntos, é também muito diferenciado – principalmente (importante questão de gênero) quando se observam as mulheres. Assim é que as gerações mais velhas se conservam ou se voltam para a vida privada – literal ou simbolicamente aposentados conforme sejam homens ou mulheres –, mantendo laços de sociabilidade tradicional; ao passo que os idosos “jovens” estão sendo ressocializados em direção à naturalidade (mas também necessidade crescente), de participação das mulheres no mercado de trabalho, e dos homens em inicial partilha de algumas das antigamente só “femininas” tarefas domésticas. E, importante, rendendo-se alegremente as mulheres ao apelo ou à atração de uma 436 Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 111, p. 435-458, abr.-jun. 2010 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> para atividades políticas no movimento dos aposentados. articuladamente presentes no interior dos diferentes grupos etários idosos (Britto da Motta. conforme o gênero e a geração. novíssimo e tentativamente. Além de terem nascido em momentos sociais diversos e. n. ao passo que os menos idosos são cada vez mais “jovens” (Britto da Motta. vem-se destacando uma sequência outra de diferenciações. de cerca de 40 anos. evidentemente. pois. v. Em contrapartida. 1999a). hoje. e de uso e desgaste corporal e afetivo/emocional.Alda Britto da Motta sociabilidade nova dos grupos e “programas para a terceira idade”. além das diversidades de gênero. como apontou Mannheim ([19–]. têm variados tempos de experiência de vida. quantitativamente. Campinas. E. Soc. que é de se perguntar até que ponto os atuais indivíduos de 60 e 70 anos ainda poderão ser considerados “velhos” pelos padrões atuais. embora este ainda seja majoritariamente constituído por homens. A família multigeracional A reconhecida heterogeneidade do segmento idoso da sociedade cresce com o atual e continuado aumento da longevidade. Com o que vivem uma contemporaneidade relativa. assim definidos. p. como se não bastasse a existência de um intervalo etário muito grande em extensão. 80 ou 100 e mais anos. E. 2006a). entre idosos “jovens” e “velhos mais velhos”.br> 437 . no segmento idoso. de classe social e de raça. 111. para os países “em desenvolvimento”. 31. Porque tão diferentes quanto são. ser as condições corporais.. abr. p. Isso significa que. a partir dos 60 anos. formado seus habitus de classe e. o “mesmo tempo” não é igual para todos: “Todas as pessoas convivem com pessoas da mesma e Educ. estende-se tanto. de ordem diretamente etária/geracional. as idades de 60. sociais e os modos de vida de cada grupo dessas pessoas. 2010 Disponível em <http://www. estendendo-se ao interior da própria condição geracional.cedes. mais. Britto da Motta. o estrato geracional idoso. formando outro grupo populacional ainda mais velho – o dos centenários. 435-458.-jun. 1990. ao confluírem para a atualidade. 124). 1999a). vai-se prolongando este ainda mais. consequentemente. podem. para uma idade mais avançada (velhos mais velhos).unicamp. em condições ou tempos sociais diferentes (Bourdieu. com as características tradicionalmente imputadas à “velhice” sendo afastadas para mais adiante no tempo. . este tempo social? Explicitamente. 438 Educ. Campinas. Mas para cada uma o ‘mesmo tempo’ é um tempo diferente (. com os retornos à casa dos pais ou as reaproximações entre as gerações após casamentos desfeitos. que não são coetâneos. Pois até mesmo para as gerações idosas o tempo de formação foi e está sendo cada vez mais diversificado. para completar o cenário social e particularmente o desse fenômeno único da contemporaneidade.br> . com vivências inéditas na contemporaneidade em atividades e papéis superpostos: filhos dos mais velhos. Camarano.cedes.). em suas relações cotidianas. 435-458. e até mesmo como componente do seu sistema básico de relações – que. cotidiana. 2004. pais de adultos ou adolescentes.. busco identificar a fundamental geração intermediária – ou “pivô” (Attias-Donfut. mas também a filhos e/ou netos e bisnetos.. O que as pesquisas atuais começam a levantar e precisam aprofundar. sabemos.unicamp. Diante do que se impõe importante questão teórica. divididos entre cuidados e apoios aos pais idosos. decorrente da amplitude da presença de tantas e tão diversas gerações na atualidade. 1993) –.A família multigeracional e seus personagens de diferentes idades (. nessa idade são comumente adstritas à família – (Britto da Motta. 31. Soc. v. p. Os “idosos jovens” correspondem ao que se inventou e difundiu. como estão vivendo esses diferentes personagens geracionais. mas também pela instabilidade das atuais relações afetivas. pelas restrições que a velhice mais avançada enseja ou impõe. Voltando a atenção aos muito velhos. a família multigeracional.-jun. pelas consequências da reestruturação produtiva e dificuldade de inserção no mercado de trabalho. e segundo a formulação de Mannheim ([19–]): Como estão vivendo essas gerações de contemporâneos. Esteio dos pais. 2004). e incluir aquelas pouco estudadas. constituída pelos filhos dos mais idosos na maturidade ou envelhecendo. os acontecimentos que se estão desenrolando no contexto social mais amplo? As pesquisas mais atuais começam a identificar e documentar as diferenças entre segmentos de idosos (Britto da Motta. Delbes & Gaymu. abr. 2004). 2010 Disponível em <http://www. n. assim como as vivências e a própria extensão do percurso de vida já vencido. como algumas intermediárias (pivôs) e as “finais” (centenários). Revelar o jogo desigual das relações entre as gerações. e dos filhos e netos. 111.)”. tanto em sua trajetória social como na pessoal. detenho-me com foco especial sobre os centenários... 1993. 2003. Britto da Motta. 1979). 31. abr. Os mais velhos perdem a atração pública e a visibilidade acadêmica na razão direta da sua idade – que se traduz para o público em uma aparência mais desgastada e menor “animação” –. sobretudo. Embora muitos oitentões (principalmente oitentonas). como os idosos “jovens”. como pessoas da “terceira idade” (Lenoir. 2004).. Em sua maioria ausentes de festas. de longa permanência no mercado de trabalho e. 111. como espaço público. com os segmentos idosos mais velhos. Campinas. Alegres. a este (Britto da Motta. alegre e saudável – sempre regeneradora da figura dos “pobres velhinhos” de um passado ainda pouco distante. bailes e clubes. principalmente as mulheres (Britto da Motta. por mais parcos que sejam. Delbes & Gaymu. 2003. ou melhor. Educ. ou alternativamente. cosmética “especial”. mas não raro também pesadamente comprometidos ou onerados com os referidos cuidados e obrigações com pais muito velhos e apoios a filhos e netos. 435-458. em visitas ou comemorações com antigos amigos e parentes. Peixoto. residências). objetos preferenciais ou quase únicos das pesquisas sobre idosos no Brasil. como referido.br> 439 . saudáveis e participantes de grupos. n. Soc. de retorno crescente. ao mesmo tempo em que são responsáveis diretos por uma já não tão nova imagem social do idoso como dinâmico. ainda que pouco formal. propiciam-lhes certa estabilidade financeira. 2004. com rendimentos de aposentadoria ou de pensões que.-jun. clubes. particularmente brasileiro. a segurança de uma regularidade de recebimento desse pecúlio que redunda em possibilidade de renovadas relações e contribuições para as suas famílias. da condição de beneficiários da Previdência Social. e de maior recolhimento em casa. São também eles e elas que apresentam o atual ineditismo histórico. – porque estão por toda parte. Ao mesmo tempo. permaneçam ativos. Inclusive para os seus jovens. Objetos de inumeráveis “programas” socializadores (grupos. Uma vez objetos de pesquisa. mas sobretudo em obrigações beneficentes e cerimoniais a ordens religiosas (Britto da Motta. têm sido também os mais atraentes e acessíveis à pesquisa científica – embora não tanto quanto à mídia. nem surpreendendo pela disputa no mercado de trabalho.Alda Britto da Motta a partir da década de 1960. 2010 Disponível em <http://www.. 2004). Simões.unicamp. atingidos pela precariedade de emprego ou pelo desemprego estrutural atuais. p. cultivam uma sociabilidade mais tradicional e restrita. encontra-se o óbvio: são os pais e mães dos alegres “terceira idade”.cedes. e alguns mais raros noventões. “universidades”) e apelos ao consumo (viagens.. v. 2001. partilham. já não estão circulando muito. O objetivo central desses projetos poderia ser definido como a análise das relações entre diferentes gerações familiares. Mais de 70% residem em área urbana. em comum com os outros segmentos idosos. No mais. que vêm se desenvolvendo a partir de dados de pesquisas. A bibliografia sobre eles é escassa. 2006c. abr. Todos foram objeto de pelo menos uma entrevista – em casa. filhos e netos”. gravada. neste artigo. 20 deles eram centenários: 15 mulheres e 5 homens. todos apoiados pelo CNPq). 2010 Disponível em <http://www. v. certas características gerais já conhecidas. não raro. em um total de 104 entrevistados. São a geração-“pivô” ou intermediária. n.br> . notícias ou reportagens em revistas e jornais sobre o rápido crescimento demográfico desse segmento. como maioria de mulheres – e quanto mais avança a idade. ou sobre datas aniversárias de indivíduos. É oportuno ressaltar que. “surpreendentemente” lúcidos e.. Alguns dados relativos a eles foram sistematizados para esta análise. 435-458. e os estudos prospectivos de Britto da Motta (2006b. Constituem esses dois segmentos os nossos personagens geracionais propostos para análise. em bom número (cerca de 16%).A família multigeracional e seus personagens 1993). Guardam. o breve avantpropos de Ana Amélia Camarano (1999). instados a revelar o “segredo” para alcançarem essa extraordinária longevidade. “Personagens geracionais na família contemporânea: centenários e pivôs”. 440 Educ. sendo estas principalmente viúvas e. no livro Muito além dos 60. 111. p. Centenários e pivôs Ao longo de três primeiros projetos de pesquisa com idosos na Bahia. com toda a circunstância de realização do encontro documentada em diário de campo e algumas vezes em fotografias –. Campinas. No Brasil.unicamp. Soc. no estado da Bahia.cedes. 2008). que foram desenvolvidos ao longo desta década – sendo que o último ainda está em andamento –. Os centenários constituem atualmente cerca de 1% da população total do Brasil e um pouco mais na da Bahia. geralmente na área médica e quase nada no campo das Ciências Sociais. solteiras.-jun. saudáveis nessa faixa etária. serão discutidos os dados coletados por meio de quatro projetos de pesquisa (“Os velhos mais velhos”. “Relações entre gerações: pais e filhos idosos”. maior o contingente feminino –. com ênfase sobre o papel das gerações mais velhas. “Relações de gênero e entre gerações: pais. Também apresentam nada surpreendente nível baixo de escolaridade. 31. Curiosamente. a outra o superior (arquiteta).cedes. evidentemente. Duas mulheres têm o ciclo secundário completo.. professora. 2010 Disponível em <http://www. avó ou tia da(o) chefe. Lycia. 111. e de D. laboral e de renda desses centenários. justamente.unicamp. a arquiteta. os três que moram sós ou em asilo – identificaram-se como pai. E no qual grande parte das famílias estudadas foi.1 Na premência da identificação etária.br> 441 . quatro pardos (1 homem). Cosme. talvez geração.. As três que tiveram o nível mais alto de escolaridade foram. Campinas. Oito deles “não estudaram” (3 homens). p. mãe. uma secretária em tradicional instituição de ensino médio em Salvador e a arquiteta. Também contam com pensões ou aposentadorias as que foram: empregada doméstica. seis fizeram o primário (1 homem) e três o ginásio – primeiro ciclo – (só mulheres). Todos se declararam católicos. Nível de instrução relativamente baixo. não defini previamente como seletivos quaisquer atributos de gênero ou de classe social. Todos moram (ou moravam) em Salvador. Entretanto essa tendência de gênero não ocorreu entre esses centenários: a escolaridade das mulheres foi mais completa que a dos homens. Embora. Um homem declarou-se autodidata. mas todas. paralelamente ao desenrolar de novos projetos que se debruçam sobre relações entre gerações na família. Quatro mulheres e um homem se declararam chefes de família. podemos analisar que para a sua “seleção” a “natureza” não se ateve a privilégios de classe. Seis das mulheres nunca trabalharam fora de casa. principalmente nas mulheres. À exceção do Sr. Soc. casado com uma noventona. Somente sete nasceram em zona rural. 435-458. na condição de viúvas.Alda Britto da Motta porém a maioria deles continuou ou continua acompanhada até hoje. 31. deram aulas particulares (uma em cada ocupação) e as três que trabalharam na roça. abr. que teve total entrave.. com livros publicados. Dois moram sozinhos (uma mulher e um homem) e uma mulher mora em asilo há mais de dez anos. evidentemente. Pela condição educacional. solteira. como é comum encontrar-se em idosos. v. lavadeira.-jun. evidentemente. todos são viúvos. é poeta consagrado. Caracterizando esses idosos como grupo de idade. n. essas categorias estejam necessariamente presentes na análise. encontrei as seguintes características: oito brancos (1 homem). oito negros (3 homens). têm pensões. as desses centenários. na Educ. as únicas a se profissionalizar: uma professora primária. Os demais – excetuando-se. principalmente das filhas (seis casos). A professora recebe um salário mínimo e meio e apenas três mulheres têm rendimentos maiores. abr. Vejamos o perfil e as condições de vida de três desses centenários e uma primeira apresentação de dois pivôs.cedes. Apenas sete dos entrevistados são proprietários da casa onde moram – cinco mulheres e dois homens. Anísio. em sua posição de “sanduíche”. na maior parte do tempo.A família multigeracional e seus personagens juventude. e como tal se aposentou. mas também tranquilidade e bom humor. mas ao mesmo tempo tem a renda de uma casa que a idosa aluga. A totalidade dos entrevistados tem renda própria. queixava-se de problemas financeiros. com visitas ocasionais. v. quando. por sentirem-se emocionalmente bem. a mais velha e mais atingida por deficiências. até conseguir trabalhar como funcionária pública. baixa. morreu. sem maior extensão de tempo da doença. Variam muito individualmente as condições físicas desses idosos. telefonemas e participação na comemoração de cada um de 442 Educ. Até D. Os cinco homens foram.-jun. Soc. inclusive D. Quase invariavelmente. 2010 Disponível em <http://www. em grande parte dos casos. ou de um filho. biscateiro e funcionário público. O mais velho do grupo é Sr. p. Uma vive em asilo e outra mora com a filha em casa alugada. há poucos meses.. da neta. ao exercício da profissão. declaram ter boas condições de saúde. Onze dessas pessoas recebem apenas o salário mínimo. 2006c). Costurou e bordou para se manter. n. Suas condições de ânimo alcançam um tom mais para o positivo.br> . 111. Campinas. Há queixas. Quase cega e com grande dificuldade para andar. não raro complementada com alguma ajuda vinda dos filhos. Nós o acompanhamos durante esses anos. Etelvina. respectivamente: lavrador. e três delas não revelaram seus rendimentos. 31. da bisneta ou do sobrinho/filho (um caso cada). caminhava para os 117 anos.unicamp. entre 6 e 36 salários mínimos. pedreiro. não chegou a constituir exceção. Ao longo da pesquisa alguns deles morreram. Etelvina. mas de magnitude muito variável e. 435-458. Os outros moram geralmente em casa de uma filha (sete deles). porém também sorria e contava casos. Foi referida pela neta como “a alegria da casa” (Britto da Motta. Com 108 anos quando da primeira entrevista. carpinteiro. mas sua condição é visivelmente modesta. de 124 anos. Como é bastante comum nesse segmento. muitos que têm algum ou alguns problemas de saúde. A foto passou de mão em mão. com alguma perda auditiva. 31. Tinha poucos amigos pessoais. um dá uma coisa. de um dos músicos. Duas filhas moravam na vizinhança.unicamp. e na rua era ajudado por uma bengala. quando não tinha uma pessoa (empregada) com ele. Sr. Filho de agricultores. E por aí se estendia. onde morava. tudo registrado em diário de campo. Bahia.cedes. pois. repetidamente chamada.-jun. entre os mais próximos. Anísio era negro. alguns dos mais velhos já falecidos. e encantava uma jovem convidada que. uma das mais animadas que acompanhei. financeiramente. mas sem regularidade: “De vez em quando. Mantinham contato por telefone. porte naturalmente elegante. Era o proprietário da casa. Tocava na Filarmônica daquela cidade. p. abr. roupa sempre bem arrumada. Sorria gostosamente com uma delas. “não tem um que não me dê [bem]”. trabalhou como pedreiro e tornou-se mestre de obras conhecido em Riachão do Jacuípe.). com 15 filhos. Campinas. contando com uma empregada para as tarefas domésticas. conserto outra”. pois seus compadres estavam quase todos mortos: “Esse é o preço da velhice: a gente perde as pessoas Educ. Cheguei aqui em Salvador – vim pra esta casa em 64”. 111. Comentou certa vez sobre um deles: “Diz o povo que ele está mais velho que eu”. n. v. em determinado momento foi ao interior da casa buscar uma foto do grupo da Filarmônica. Viúvo duas vezes.br> 443 ... localizada no bairro da Saúde.Alda Britto da Motta seus aniversários. Tão encantada ficou que. Saúde só recentemente abalada.. e uma delas era a grande cuidadora dele: “Anísia me leva pra tudo quanto é canto”. Soc. sem perder palavra. Na festa de seu 115º aniversário. revelou que gostava de morar só. enquanto ele contava histórias de alguns daqueles companheiros. não gostava de ficar parado: “Faço tudo quanto é coisa (. mas se comunicava bem. sorrindo. ia para a casa da filha. relutava em ir embora. Em casa. todos já falecidos. de boa altura. Conserto uma coisa. tranquilo e atencioso. outro dá outra”. 2010 Disponível em <http://www. estava especialmente conversador. Não ficava inteiramente só. Tinha excelente memória e impressionava a precisão com que referia os fatos. 435-458. As pernas já não eram tão firmes. Quanto aos parentes. a do “mistério” do nome do cachorro Jatedigo. inclusive com datas: “Cheguei de Riachão no dia 8 de agosto de 1961. para mostrar a um amigo. ao seu lado. Responsável pelas próprias despesas. Alguns filhos o ajudavam. o escutava. ’ Eu acho ruim por isso. não. e vizinhos. seu corpo a limitava – usava cadeira de rodas. mas vai vivendo”. aos 108 anos. apesar de ter boa memória (era uma ativa contadora de histórias). Também os dedos doíam quando tocava o violão. Às vezes recebia alguma visita. entretanto. na época tocava violão. e que mobilizavam uma pequena multidão de filhos. mas “Trabalhei dentro de casa. 31.. Em abril de 2002. Um 444 Educ. Este considerava. 435-458. no interior – que proclamava isso com orgulho –. abraçando o violão. trabalho puxado. gravara uma fita e estava iniciando um livro de memórias. Pra onde eu vou? Então eu fico em casa”. como sempre com missa festiva. Naquela primeira entrevista. Na comemoração do seu 112° aniversário que acompanhamos. a primeira entrevista. abr. que não é bom ser velho.br> . e mais além das perdas referidas dos seus iguais geracionais. v.cedes. Campinas. eles dizem: ‘Não fazer isso. queixava-se de fastio. era o amigo de cujo registro de nascimento ele foi testemunha. nunca trabalhou fora. n. porque nove filhos!”.A família multigeracional e seus personagens da juventude”. as mulheres vão trabalhar. conversando e interessada nas pessoas. a cada ano. continuava alegre. Fazer outra coisa. “porque os filhos é quem manda. que veio a lançar em maio de 2004. eu não tô mandando mais em nada. Viúva há longos anos. sorriso constante. porque. O dia de domingo vão pra praia. De cor clara. Anísio eram acontecimentos do bairro.-jun. dificuldade para ler (“as letras embaralham”) e para escrever – “as letras saem da linha”. onde ela declarou: “Eu me sinto muito bem e canto em verso e prosa”. Uma das presenças constantes. 2010 Disponível em <http://www. em algum momento sempre fotografadas com ele). 111. havia sempre missa festiva na igreja do bairro e jantar em sua casa. e de certo modo contraditoriamente com a sua usual animação. na festa de seus 110 anos. amigos e admiradores de Salvador. O desejo de conhecer D. reclamava da velhice. As comemorações de aniversário do Sr. Januária veio da contemplação do seu retrato em um jornal: sorriso aberto. Realmente. sua voz estava rouca. p. Anísio. Eu vou fazer uma coisa. mas as famílias vão trabalhar. e estava muito mais “velho” e inseguro das pernas que Sr. em contraste com as queixas. simpática. além dos que vinham do interior do estado.unicamp. Morreu alguns meses depois. E revelava: “Eu tenho vontade de ir para a casa dos outros conversar. netos e outros parentes (iam até as criancinhas de colo. os maridos vão. Soc. Os três filhos homens já haviam morrido. agora sou filha (riso)”. Ainda que contando também com cuidados e atenção da empregada. que a rodeava de cuidados: “A minha vida aqui. teve o apoio decisivo do filho mais velho. Campinas. Vivia com a filha mais moça. 31.Alda Britto da Motta salário mínimo de pensão. de telefonemas e visitas nos fins de semana das outras filhas (idades entre 84 e 72 anos). muitas vezes. 111. não tenho mais alegria pra nada”. p. é ela quem resolve. Durante a doença e após a morte do marido.. n. Comentava a relação com a família: “É boa.unicamp. levavam para a avó conhecer: “Alguns tiram fotografia comigo e com a criança”. “da idade”. Apesar das queixas. de 70 anos. Por isso. D.-jun. desistia de sair. Em casa.. é ela quem manda. ficava no quarto. apoiando financeiramente o filho descasado.”. principalmente. dizia sentir-se só. ao mesmo tempo legítimo exemplo da “geração-pivô” (Attias-Donfut. referia ter muitas amizades boas: “Faço aniversário e todo mundo vem”. essa coisa toda”. Não apenas os filhos. 1993): apoiando e cuidando da mãe centenária. não para ganhar dinheiro. Soc. Eu era mãe. 435-458. reconhecia seus problemas de saúde. de 32 anos (“Casou sem ter ainda condições de casar”) e pagando a pensão alimentícia do neto de 5 anos. “É ela a chefa da casa. é ótima”. minhas amigas”. As filhas e os amigos realmente a procuravam bastante. queixava-se quando a filha saía: “Aí eu sinto muita solidão. que morava com a mãe. Educ. “Só fico alegre quando tem gente. orçamento complementado pelas filhas.. mas também os netos iam sempre visitá-la.br> 445 . v. Resignada. como dizia: “Eu estou assim e não posso fazer nada”. a quem sempre elogiava muito e cuja morte lamentava. Januária dizia que para passar o tempo “tenho sempre que inventar alguma coisa”. Tornaram-se especialmente elucidativos das relações de família entre idosos os depoimentos da filha Hilda. Delbes & Gaymu. Apesar dos cuidados constantes dessa filha. viu? Eu sinto. a ponto de em certo momento declarar: “Para mim o mundo morreu. Raramente saía de casa: “Dou trabalho porque tem que tirar da cadeira e botar no carro. mas queria fazer “qualquer coisa que os outros façam e que eu não posso fazer”. ela é a responsável por tudo. Nem ao menos ela canta!”.cedes. porque ela precisa sair e a moça fica trabalhando lá dentro e ela é muito calada. meus filhos. 1995. que era a sua cuidadora. abr. e quando nasciam os seus filhos. Dizia ter vontade de trabalhar. 2010 Disponível em <http://www. ali. encantado”. “Fica aqui e toca violão com ela. 111. mas não sei. Mas reconhecia o esforço da mãe: “Também ela se ajuda muito. né. nem sempre há satisfação nas minhas irmãs (. O primeiro contato com D. e às vezes o que eu não posso eu faço. ela não ouve. Considerava sempre dar o melhor de si para a mãe e isso nem sempre ser reconhecido: “Eu sei que eu faço o que posso. 435-458. Liberava outra ponta de ciúme em direção ao filho na relação com a avó – mais um caso do clássico acordo entre gerações alternadas: “Ela gosta muito dele. ele parece gostar mais dela que de mim. Revelou que veio dela o seu interesse pela música: “Eu via a minha avó com o violãozinho dela. as outras irmãs reclamavam e ela dizia “Eu vim pra ficar com mamãe”.”. 31. Falou com carinho sobre D. Arrolava os cuidados que prestava: “Precisa que eu dê banho. Aí eu digo: Mas eu não estou gritando. mas ajuda.. a voz já sai diferente. aflorar o ciúme. 2010 Disponível em <http://www.unicamp. v. de idade avançada. nenhuma”. ela tem muita força de vontade”. Gustavo (32 anos). Sua condição geracional de pivô rendeu boas observações e revelações. sai assim aquela voz forte.. n.) sugestões muitas..-jun.. abr.) uma pessoa jovem. eu só estou falando mais alto”. Campinas. trazia transtornos: “A gente fala uma vez. Eram os desgastes do dia a dia. E desta D. mas forte.. ‘voinha’ pra cá. firme e tal”.. Fala uma segunda vez. contando que. Eu acho que o que deixa ela viva é a vontade de continuar vivendo”.br> . Após a morte de D. e eu ficava ali. Na fase atual da pesquisa (referente ao quarto 446 Educ. porque aquela ali [faz gesto em direção a D. Fala a terceira vez.A família multigeracional e seus personagens Hilda fazia algumas queixas da mãe. como será visto adiante. tocando aquelas músicas antigas.cedes... ela não ouve. quando ela estava com 98 anos. p. aí ela diz ‘Isso é brutalidade. por ser “muito teimosa”. quando a irmã que mora no interior do estado vinha a Salvador e ficava na sua casa. ele também gosta muito dela. Soc. por vezes. Januária] é animada e ela também é muito animada”. Januária: “A minha avó é legal. Deixava. levo ao sanitário. Januária não reclamava nada. levar ela ao banheiro”. Considerava a avó “(. é músico. por exemplo. lavar as mãos. Januária.. né? Quando a gente fala mais alto. não precisa gritar’. né. Guiomar foi em 2002. assear. Januária mantive o contato com Hilda. O filho. O problema de audição de D. é ‘voinha’ pra lá. quer dizer. eu faço a higiene. aquela pessoa ali. Conta que uma funcionária da instituição comentou: “Mas a senhora vai se aposentar?! Viva. presta constante assistência à mãe e a visita todos os dias. Dançou também com seu médico. informou quando da primeira entrevista. com o marido e o filho criança. o lado dos idosos alegres. D.-jun. netos. na testa. Ao final da festa. pela presença.unicamp. e já tocou violino. Teve vida profissional ativa – secretária de importante instituição educacional do estado –. agradecendo a todos. abr. Seu centenário. Sobre a velhice comenta que “há idosos abusados e já tem outros que são alegres. filha dessa filha. 31. mora no andar superior. filhos. Guiomar. 26 netos e 42 bisnetos. E ela: “Eu não vou trabalhar de graça para o governo!”. Gosta de passear e vai a restaurantes com filhos e netos. p. 111.br> . apesar de tudo isso. Aristóteles. sofreu um acidente e anda com um pouco de dificuldade. Conta que de vez em quando fica cantando no quintal e é aplaudida pelos vizinhos. Sente-se bem lá e é visivelmente querida pela vizinhança. mantemos o contato com ela e já entrevistamos boa parte da sua família. Viúva. que. foi comemorado em um amplo espaço de eventos. que só interrompeu com a aposentadoria compulsória. com muitas gerações presentes. Foi deixando. v. “mas eu ainda trabalho (. Guiomar conta que até poucos anos atrás fazia de tudo em casa. 2010 Disponível em <http://www. que a beijou. assim? Com esse trabalho todo perfeito?”.. ela falou ao microfone. Soc. bisnetos. então eu pertenço a este lado..2 ainda em andamento.. sorria e cantava enquanto dançava com um dos filhos. Campinas. porque eu nunca estou contrariada. parentes e amigos. D. Tem ótima memória e impõe-se naturalmente como autoridade na família. em 2004. A aniversariante.. 435-458. Tanta dedicação só lhe rendeu um salário mínimo de aposentadoria: mora em casa própria..) minha roupinha eu lavo”. há mais de 50 anos. carinhosamente. em bairro popular. com 7 filhos. apesar de vários problemas de saúde – usa marca-passo. Uma filha viúva mora com ela e sustenta a casa. usa aparelho auditivo e enxerga só de um olho –. exceção como filho homem. transmite um vigor impressionante e é muito animada.Alda Britto da Motta projeto de pesquisa). Considera a relação com a família “a melhor possível” – o que é realmente perceptível. Gosta de ouvir música e de cantar.”. feliz.cedes. Uma neta. 447 Educ. n. Mas comenta: “Ai que saudade eu tenho!”. entretanto. comemorando os seus 104 anos com um café da manhã festivo organizado pelos vizinhos. desabafa: “Eu não me conformo.. sobretudo. porque ele já não estava sofrendo. Dona Guiomar é. Logo após o referido aniversário. p. 448 Educ. estava internado com um derrame cerebral e a filha mais velha. Em conversa.br> . v. Ela não lembra de nada e às vezes só obedece a mim”. de 78 anos.-jun. como já não vem querendo desde então. não quis muitas comemorações. É conhecida e estimada por toda a vizinhança. Mesmo naquela circunstância. “Tenho medo de ‘ir embora’ e deixar Mercês sozinha nessa situação.. teve o aniversário seguinte obrigatoriamente alegre. Guiomar comentou que o período mais feliz de sua vida talvez fosse aquele mesmo. D. “Já tenho 102 anos e estou aqui. Soc. estava pior. Apesar do seu recente retraimento em relação a comemorações. 435-458. foi muito visitada e recebeu muitos telefonemas. 111.A família multigeracional e seus personagens Sobre o que mais deseja. porque naquele momento o filho mais velho. saudável! Só tenho medo de deixar essa aí doente. n. confidenciou. forte e simpática. Eu com essa idade tava nova em folha.” Numa das visitas seguintes da equipe da pesquisa. atingida pelo mal de Alzheimer. me deixe em pé até o meu dia” (preocupação geral entre os velhos ativos em toda a parte).. Campinas. o filho faleceu. Carinho e admiração que são fortemente expressos. internado. minha filha. contou que estava muito infeliz em razão dos problemas de saúde dos filhos. 2010 Disponível em <http://www. “Porque os filhos estão criados”. Minha filha mais velha. coitada. E sobre a filha doente: “Fico imaginando quando eu fizer ‘a minha viagem’. achei que ela é que ia cuidar de mim”. Não adianta que eu não me conformo. Ela ficou entre inconformada e aliviada. Quando da primeira entrevista. eu com 94 anos dizia que tinha 49!”.cedes. 31. É o segundo filho que perde. Aliás. Agora vive um período difícil. revela: “Peço a Deus que os dias passem e não me jogue na cama. como é que fica Mercês? Ainda não me conformei com a situação dela.unicamp. como a comunidade do bairro. Quando completou 102 anos. embora sempre demonstre força. Ele tá com 78 anos. uma pessoa de grande presença. O que é mais um fato que reforça minha observação e o repetido registro de como esses centenários que tenho encontrado têm-se revelado geralmente objeto de admiração e carinho mesmo dos que não participam do seu cotidiano imediato. abr. em janeiro de 2006. Embora seja mais comum pensar-se a geração intermediária em torno dos 50 anos (Arfeux-Vaucher. pois ela me diz cada coisa que me surpreende. pois sou muito acomodada”.. bem além do fato de viverem mais que Educ. No caso de D. porque em época de longevidade crescente todas as presenças etárias têm vez. Minha avó. 111. demográfica e o dinamismo das relações do grupo de parentesco.unicamp.Alda Britto da Motta pela geração dos netos. na forma de “supercentenários” – como referência àqueles maiores de 110 anos –. no caso. Porque a situação de gênero. Continuamos a visitar D. Ela aglomera a família em torno dela”. mais que cinquentona. Guiomar isso aconteceu com intensidade. Falando sobre idosos. 1999). Campinas. eu considero uma pessoa com a mente muito jovem. é que pouco varia – são majoritariamente mulheres que. Delbes & Gaymu. 2004. ou geração-pivô (Attias-Donfut. Hareven & De Gruyère. e a vários outros centenários acompanhados na pesquisa. neta de D. do mesmo modo que em relação a D. 1993. 1995. 31. de 40 anos. no tempo e na designação. falando sobre a condição de jovem.-jun. Nos últimos anos ela conta com o apoio de uma acompanhante. v.. ela é referencial de juventude. abr. retorna naturalmente à avó: “Um idoso como minha avó é um dom grande.. Soc. porém diante de sua força de vida não tenho como referir um pivô na família de D. certamente correspondendo à representação tradicional das famílias de três gerações.br> 449 . Guiomar regularmente e a participar das festas em seu aniversário. Porque as idades de intermediação e apoio constante entre gerações variam de acordo com a sequência temporal. o pivô frequentemente é mais que cinquentão. comparando-se com ela: “Ser jovem é estar aberta às coisas do mundo. às pessoas. Januária. Podem se situar na meiaidade. 2003. em termos de cabeça. com a crescente longevidade atual ensejando o desdobramento das famílias em quatro e até cinco gerações simultâneas. 1993. cuidadora profissional. a geração intermediária. Cristina. como foi visto. curiosamente reportou-se à avó. tanto quanto na velhice “jovem” e até um pouco além. ela acolhe tudo que é novo. Ou melhor. Guiomar que não seja uma figura excepcional que é ela própria. apesar de uma extensão desse segmento de idade já se delinear. ela não se escandaliza com nada. Enquanto os centenários constituem geração demograficamente precisa. Delbes & Gaymu.cedes. ela é muito mais jovem do que eu. Por exemplo. 2010 Disponível em <http://www. n. Guiomar. é de definição relacional e de situação. p. 435-458. todas as vezes que eu vou lá eu volto renovada. 1993). 1995). 1997). 2010). em idades e diferentes experiências na qualidade de filhos. 1999b. Debert. Como fenômeno social novo em escala ampla – tanto quanto pela sua imprecisão de lugar cronológico e social –. p. Campinas. no interior da qual se destacou uma significativa mudança na condição de gênero das mulheres idosas. tão desdobrável. abr. Esse amplo segmento intermediário. por mais dinâmicos e ao mesmo tempo controladores que muitos sejam sobre seus pais “velhos-velhos”. n. Sentindo-se elas então mais livres e satisfeitas na vida cotidiana e de família. denotando um início de preocupação social com essa situação de apoios familiares pressionante. Delbes e Gaymu (1993) –. indo. 1999b) e iniciando um aprendizado político nas associações de aposentados (Azevedo.br> . 111. pode corresponder a uma “quarta idade” – 80. 450 Educ. Peixoto. Principalmente em se tratando de mulheres. Por isso é importante que seja lembrado que muito da solidariedade intergeracional existente se realiza à custa do esforço emocional e do trabalho não remunerado das mulheres. do movimento dos aposentados.cedes. 1994.A família multigeracional e seus personagens os homens. identificadas com suas “colegas” dos grupos de “terceira idade” (Britto da Motta. Programas e movimento que. portanto. em grande parte. Soc.unicamp. particularmente visíveis por meio dos multirreferidos “programas para a terceira idade” e. muito além de seus interesses e propostas iniciais de lazer “produtivo” e de ação política imediata. da velhice. à dos atualmente classificados como “idosos jovens”. Essa “geração-pivô” pode desdobrar-se ainda em um outro segmento geracional um pouco mais velho. 31. a geração intermediária é objeto sempre de referências muito breves – por exemplo. mais atuante e atraente. em direção a uma condição de maior dinamismo social de uma geração. mesmo quando não intencionalmente. embora estas já se amiudem. 80 e alguns anos –. também termina por sofrer restrições no ir e vir. Essa geração intermediária corresponde. 435-458. Aqueles que vivem um dinamismo inédito na história e ajudaram a construir uma nova imagem. constituíram-se em agências ressocializadoras. que constitui ao mesmo tempo um elemento ou uma consequência da condição analisada como solidariedade pública entre as gerações (AttiasDonfut. 2010 Disponível em <http://www. cuidando de uma “quinta idade” – aqueles em torno de 100 e mais anos.-jun. em momentos cruciais. têm o “destino” tradicional de suporte familial. v.. na sociedade atual (Britto da Motta. Ao mesmo tempo. Queixava-se das irmãs. de suas “teimosias” e “desobediências” em querer comer “o que não pode” e de sair da cadeira de rodas sem ter alguém por perto que pudesse ajudá-la. uma filha que fica “escolhida” para cuidar do idoso. e sobretudo em conversas subsequentes. ausentes. Hilda. dessa discussão temática. Ainda não é o argumento principal. para que essa solidão não fosse muito grande. como uma certa queixa.. e não raro críticas. que parecia tratá-la muito bem. também. também. cujos outros filhos sempre moraram em suas respectivas casas. o que as minhas pesquisas têm mostrado é que sempre há um filho – ou melhor. tão incipiente ainda. tinha ciúmes pelas “festas” que a mãe fazia quando as outras irmãs a visitavam. o que resultaria em solidão para a mãe. Além disso. Especificava: pagando plano de saúde para os dois e ainda dando Educ. que não assumiam qualquer responsabilidade – tanto em cuidados como financeiramente – em relação à mãe. agora. v. Januária. porque se tem um número menor de filhos (Delbes & Gaymu. mas com movimentos já dificultados. p. portando-se como visitas eventuais. Campinas. ainda.cedes. abr. seja porque não podem sair. 31. expressou mágoas. pelo menos em países do Terceiro Mundo. mas queixavase também desta. em grande parte. É o caso. tem-se exposto uma espécie de preocupação argumentativa com o “peso” ou a dificuldade maior que existiria. ao passo que os outros filhos frequentemente se omitem. n. setentona. ao contrário do que costumaria fazer em relação a ela.Alda Britto da Motta Nesta fase. Há sempre desabafos sobre renúncias que realizam. 1993).unicamp. para a geração dos hoje muito idosos ainda não se constataria uma redução sensível no número de filhos. que encontrei em pesquisa.br> 451 . Ao longo da entrevista. e revelou renúncias que realizava. Januária. relatos de impossibilidades ou dificuldades de passeios ou distrações. seja porque os mais velhos não gostam. Hilda revelou. Criticava seguidamente essa ausência das irmãs. de 112 anos. 2010 Disponível em <http://www. da parte de D. Em primeiro lugar. em sua velhice lúcida.-jun. de Hilda. que também dependiam dela. a não aceitação. 435-458. É a filha que morava com a mãe e a assistia. do companheiro com quem mora. no cuidado com os pais muito idosos. Hilda. em uma relação desgastada pelo cotidiano. um filho de 32 anos e um neto de 5 anos. e significando clara questão de gênero –. Soc. Há – nem sempre leves – obrigações financeiras. Lamentava muito. é a referida filha mais moça de D. 111. ”. explicava. porque casou sem ter condição de casar. sem saber o que fazer. E ela respondia: “Os velhos agora vivem na rua. demonstra estar abalada com a morte da mãe. considerava que a mãe e ela se davam bem e que esta cooperava no que podia. O dilema de Hilda poderia ser expresso nas palavras de Hareven e De Gruyère (1999..unicamp. Januária insistia: “Só vive na rua. só vive na rua”. 31. n.A família multigeracional e seus personagens “uma ajudazinha” ao filho: “Meu filho (. e. Suas saídas. ‘porque eu acho que você deveria isso. falou sobre os talentos artísticos da família e chegou à morte de D..-jun. não ficam em casa nem a pau”. mas ajuda nenhuma. 2010 Disponível em <http://www. mas tem que dar a pensão do menino (. O cenário então era outro: no apartamento continuavam apenas esta e o companheiro. apesar das referências a saídas. todos (ela. Januária. Muito ativa. Januária. Desabafou: “Eu faço o que posso (.. relatava impossibilidades de passeios e distrações. p.. v. em relação aos cuidados de que necessitava. Não sente vontade de sair de casa para se divertir e não conseguiu assistir à gravação da última festa de aniversário de D. e “o quarto de mamãe. D. O marido e a mãe reclamavam que ela só vivia saindo. logo após o aniversário de 112 anos. “Agora é só eu e meu marido.br> . Hilda pareceu serena. sempre e longamente. Queixa-se de solidão.) e às vezes o que não posso eu faço. abr. eram à tarde. 111.”. Apesar de tantas queixas. pinta. 435-458. Januária não gostava de sair e os domingos se arrastavam. sugestões muitas. Mantém “o quarto de Gustavo”. faz artesanato e frequenta uma Faculdade para a Terceira Idade.)”. Apesar da aparente serenidade.cedes. o filho casado que estava separado. p. teve esse filho. Januária fomos visitar Hilda.”). 18): “El deseo de cumplir com las expectativas de sus padres e al mismo tiempo inpulsar a sus hijos se sumó al conflicto generacional como consecuencia de sus obligaciones hacia ambos”. Mostrou novas peças do seu trabalho artesanal..) ainda depende de mim.. Soc. nem sempre há satisfação nas minhas irmãs. Queixava-se.. Campinas. já separou. mas não sei. o marido e a mãe) “no quadrado” (do apartamento).. deveria aquilo’. Um tempo depois da morte de D. Ela comentou que o apartamento “está vazio”. mas com algum humor. Para o sepultamento – cerimônia que descreveu como tocante – “veio todo mundo”. de manhã havia lides domésticas (comentava que a empregada não era eficiente) e o ritual do banho da mãe (repetia: “Não conto muito com minhas irmãs. porque D.. Ninguém 452 Educ... E que Attias-Donfut (2004) também identifica. 81 anos. Fala também do companheirismo entre as duas. abr.-jun. com jardim e piscina. trocar fraldas) como atuação juntas e companheirismo. Dalva. desenvolveu problema ortopédico grave.cedes. Davina era bem ativa em 2002. por só contar com a presença – ininterrupta – e os cuidados de profissionais da saúde.Alda Britto da Motta mais vem aqui. Davina. v.unicamp. Entretanto. Um “pivô” mais jovem e uma relação menos afetiva entre as gerações podem ser exemplificados pelo caso de Dalva. Ela sempre se queixava de que eu saía demais e eu saía mesmo.. 435-458. A filha montou uma eficiente organização “burocrático-administrativa” em torno da mãe. com o marido e os filhos de Dalva. n. ‘Todo mundo que vem aqui é para me ver’. sofreu cirurgia e tornou-se limitada a uma cadeira de rodas. viajava. Ela já me dizia isso. lembram Attias-Donfut e Arber (2000). Depois de um silêncio. Educ. frequentava um curso “para terceira idade”. Soc. a filha adolescente também trata Dalva assim). com esses profissionais. D. porque as visitas todas eram para ela. continua: “Agora sei o que mamãe passou. tornou-se bastante solitária afetivamente. quando da primeira entrevista – passeava. Mas só agora caí na real”. Entristecida. mais recentemente e com maior incisividade. e até dos próprios atos de cuidado (dar remédio. 2010 Disponível em <http://www. Em contrapartida. p. até três vezes por dia. sempre foi baseado em um “contrato de gênero”. O outro filho de D. Moram em uma casa ampla e confortável. também é a filha mais nova de D. 1993) que. Campinas. Conseguiu-se observar que. voltaram a morar juntos e ela vê pouco o neto. que Hareven e De Gruyère (1999) começam a relatar. mudou de humor. Davina mora em outro estado. pelo qual as mulheres entram como cuidadoras. mas agora eu não tenho mais vontade de sair”.br> 453 . mas não demonstra ter participação direta e afetiva nela. irá necessitar do apoio da família – contará com o filho? Neste ponto registro o interesse de uma reflexão próxima sobre o futuro desta geração dos meia-idade e “idosos jovens” em termos desse “contrato geracional” (Bengtson & Achenbaum. de verem a novela juntas. o filho reconciliou-se com a esposa. de 51 anos. 111. O filho não a visita e esse afastamento a leva a temer também pelo seu futuro de idosa: como a mãe. 31. Que talvez já demonstre um certo afrouxamento de laços das gerações mais novas de filhos em relação a seus pais de idade mais avançada. mas veio estar com ela recentemente. Trata a mãe ao mesmo tempo com distância e brusquidão (de certo modo. que é normal. Soc. sempre. ou até trabalho.. Entrevistada recentemente. então necessitam.)”. então ela só é cuidada. se ele tiver [companhia] na faixa etária dele. aliás. e você não pode deixar um monte de pessoas com 80 e tantos anos juntos. Sobre as suas relações em família. Com a mãe sempre tem discussão. Sobre a velhice da mãe: “É bom de um lado e um pouco. mas as coisas financeiras a gente divide muito (.).A família multigeracional e seus personagens reativamente. né.. ou conversar.. né. 454 Educ. p. porém se mantendo muito reticente quanto a questões de orçamento familiar. apurou-se. né. 111. porque eles ficam carentes.. conta com ponderável contribuição de D. Acompanhamento psicológico toda pessoa idosa necessita. esta falou sobre suas atividades profissionais pós-aposentadoria. se fosse o caso. nesta idade. a família faz tudo para ela participar.. que vai ter um acidente.). assim. declara: “Olhe. que é fruto da carência (. Campinas. 31. Instada a falar sobre a situação ou a participação da mãe no cotidiano da família. pessoas tomando conta junto..) aqui em casa eu me dou bem com todo mundo.. e ao mesmo tempo tem essa parte do trabalho que as pessoas idosas necessitam.unicamp. né. Ela já é bem idosa. de horário. é companhia mesmo..-jun. 435-458. e não essa preocupação que ela tem. v... A participação que a família gostaria e queria que ela tivesse é de dividir alguma coisa.. uma pessoa idosa. só. porque o ser humano se adapta melhor. não. Davina: “Prefiro não detalhar. precisam. né.”. né”.br> . né.. eterna. 2010 Disponível em <http://www. só pensa em coisas. abr. dão. não tem problema. né. porque são coisas complexas (. O acompanhamento psicológico que eles necessitam não é nem acompanhamento psicológico. D. avalia: “(. Só que é uma questão muito difícil de ser resolvida. ele fica mais feliz. diversão e tal. Davina “vinga-se” daquela impessoalidade demonstrando mais fraqueza e impossibilidades de movimentos quando está na presença da filha.. que as pessoas vão chegar. então é mais difícil.cedes. né. sempre isso.. mas na realidade a participação dela é um pouco repelida pela família porque ela só quer participar das preocupações. né. n... desgastante do outro. sempre tem discussão”. que eles são carentes e precisam sempre. que. tem toda a felicidade de você ter uma mãe ainda. ou dividir alegria. né.. n.. Carla Pellegrino. Soc. mas apresentando a peculiaridade de contar com a presença simultânea de várias gerações e de modo mais duradouro do que em qualquer outra época da História. n. Informations Sociales. 1993. Referências ARFEUX-VAUCHER. A ponto de que já se encontrem. “Relações entre gerações: pais e filhos idosos” (2002 a 2004) e “Relações de gênero e entre gerações: pais. n.”. Liv Lobo e Iracema Sousa de Medeiros Costa. G.br> . pois se eu tenho três filhos e só tenho uma mãe. e unidades domésticas onde coabitam duas a três dessas gerações. Paris.. 5-19. com a participação das estudantes Clarissa Paranhos Guedes. Moldura e ao mesmo tempo fundo desse quadro é a família multigeracional contemporânea. com bastante frequência.cedes. Notas 1.-jun.unicamp. p. Participaram das várias fases os seguintes estudantes: Patrícia Schramm Andrade. “corrige” a proporção ao final: “Na realidade. 2010 Disponível em <http://www. 455 Educ. com bolsas PQ e PIBIC/FAPESB. 1998). A família sempre como espaço fundamental e modelar das relações de gênero e entre gerações (Britto da Motta. “matemática”: “No momento o mais importante é o de mãe. filhos e netos” (2005 a 2007) contaram com o apoio do CNPq (Bolsa PQ). Un jeu entre générations. Campinas. mars 2003. Os projetos “Os velhos mais velhos” (2000 a 2001). 2. Paris.. ativa e à espera de pesquisa sistemática. C. Entretanto.. para ela. do PIBIC e do PIBIC/FAPESB (Bolsa IC ).Alda Britto da Motta Solicitada que avaliasse o “peso” dos seus papéis no grupo familiar. Projeto “Personagens geracionais na família contemporânea: centenários e pivôs” (2008 – ainda em andamento). 112-117. Destacando-se. Carolina Santana de Souza e Jeane Rangel. Elaine de Carvalho Lima. Les familles à cinq générations: entre plaisir et souffrance. v. 30. 71. essas famílias estendidas em até quatro e cinco gerações simultâneas. 111. os dois são importantes”. Recherches et Prévisions. também. p. Fabiana de Santana Medeiros. que se divide pouco entre os seus familiares. os centenários com seus claros “segredos” e. Ulisses Oliveira Amorim. Zilmar Alverita da Silva. a geração-pivô.. p. entre elas. ATTIAS-DONFUT. Hugo Lessa Gama. Recebido em maio de 2010 e aprovado em junho de 2010. 31. a resposta veio simples. 435-458. abr. (Ed. São Paulo: Brasiliense.. As dimensões de gênero e classe social na análise do envelhecimento. AZEVEDO. ARBER. A. 111. ACHENBAUM. C. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação. 1-21. v../dez. A. London. As Ciências Sociais: desafios do milênio. Sexo e envelhecimento. 2003. A. P. Paris: Nathan. BRITTO DA MOTTA. Universidade Federal da Bahia.unicamp. S. 2010. Les solidarités entre générations. (Org. C. p. Campinas.. (Ed. p. ATTIAS-DONFUT. Família e envelhecimento. Coisas ditas. Reinventando fases: a família do idoso.cedes. Universidade Federal de Sergipe. 1995. Le double circuit des transmissions. Cadernos Pagu. VICENTE. BOURDIEU. V. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. (Org. 1999b.L. Natal: EDUFRN -PPGCS . p. Rio de Janeiro: FGV.. ( CD-ROM). Soc.-jun. p. V. C. (Org. Não tá morto quem peleia: a pedagogia inesperada nos grupos de idosos. p. S. New York: Routledge.. Idosos na sociedade brasileira no limiar do século XXI. Aracaju. 435-458. 1993. Trabalho apresentado no 11. BRITTO DA MOTTA. abr. C. Campinas. 41-81.A família multigeracional e seus personagens ATTIAS-DONFUT. 2010 Disponível em <http://www.). 2004. ago.).E. W. The myth of generational conflict. 277f.A. 1998. In: PEIXOTO. n. 2000. 29. Equity and solidarity across the generations. 31. n. 1999a. 69-88. BENGTSON. New York: Aldive de Gruyter. Salvador. Um palco de múltiplas vozes: a nova invenção dos(as) idosos(as) em luta pela cidadania. In: ATTIASDONFUT. BRITTO DA MOTTA. 191-221. 13. In: GICO. In: ARBER. Salvador. v. Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste.). 456 Educ. Cadernos do CRH.). Universidade Federal da Bahia. SPINELLI. v. A. 1990. 2001. The changing contract across generations. jul. p. A. n. BRITTO DA MOTTA. 283f. 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