A CADEIRINHA DE ARRUAR DO MUSEU DE ARTE DA BAHIA: UM VEÍCULO DE INFORMAÇÃO Amanda de Almeida Oliveira1 José Claudio Alves de Oliveira2 Resumo: O presente artigo aborda o tratamento do conteúdo informacional do objeto no museu, a partir da cadeirinha de arruar do Museu de Arte da Bahia, e os efeitos para a comunicação com o público na exposição. Discute as possíveis causas que podem provocar barreiras na comunicação, como a subutilização do objeto enquanto portador de informação e os equívocos na utilização dos recursos expográficos, compreendendo que o êxito comunicacional na exposição depende de variados fatores previstos no fenômeno comunicacional e que interferem na transmissão da mensagem entre o emissor e o receptor. Para melhor reflexão sobre a relação entre o objeto e o público, são apresentados conceitos da Teoria da Comunicação como receptor, mensagem, efeitos e repertório. Do mesmo modo, são discutidos, dentro do campo da Museologia, o processo de musealização do objeto e o papel da documentação museológica na representação do objeto em exposição, realizado por meio da linguagem, partindo do pressuposto de que a falta de aplicabilidade dos instrumentos da documentação museológica pode interferir na informação sobre o objeto e, consequentemente, na transmissão da mensagem entre o objeto e o público no espaço expositivo.
Palavras-chave: cadeirinha de arruar; comunicação; objeto; público. 1. Introdução Assunto pouco debatido no campo do conhecimento museológico é o vínculo entre a documentação e a exposição, cujo enfoque é um problema comumente encontrado nas exposições: o distanciamento entre o que é produzido pela documentação e a informação apresentada sobre o objeto, foco da comunicação do museu mediadora para com o público. E é nesse contexto de aproximação ou distanciamento do que pode produzir a documentação e a apresentação/comunicação na área expositiva que se toma como exemplo a cadeirinha de arruar, único exemplar exposto no Museu de Arte da Bahia (MAB), na cidade de Salvador. A partir da análise da cadeirinha em exposição no MAB é possível discutir o uso do conteúdo informacional do objeto na exposição e os efeitos para a comunicação com o público, assim como as possíveis causas que podem provocar barreiras na 1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Museologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
[email protected]. 2 Professor Associado II do Departamento de Museologia da UFBA, Coordenador do Núcleo de Pesquisa dos Ex-votos. Professor permanente dos Programas de Pós-Graduação em Museologia, e Ciência da Informação da UFBA.
[email protected]
comunicação, desde a falta de recursos expográficos até a subutilização do objeto enquanto portador de informação, sobretudo, perceber que algumas falhas na exposição podem causar uma leitura equivocada sobre o objeto ou mesmo torná-lo imperceptível ao público. O êxito comunicacional na exposição depende de variados fatores previstos no fenômeno comunicacional e que interferem na transmissão da mensagem entre o emissor e o receptor. No museu, segundo Cury (2005a), a comunicação pode ocorrer por diversos meios comunicacionais, no entanto, é na exposição que o museu potencializa o “fato museal”, a relação profunda entre o homem e o objeto. Por ser um espaço de interação, essa relação é mais intensa no ambiente expositivo devido ao público ter acesso às coisas a partir de uma experiência poética. A concepção de museu do Conselho Internacional de Museus (ICOM) compreende como relevante a atividade de comunicação do patrimônio material: O museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite. (ICOM, 2007, grifo nosso).
A definição do ICOM impõe ao museu a responsabilidade de mediar o objeto museal, abrangendo a mediação como todo o processo de musealização desde a aquisição até à exposição do objeto no museu. Para Cury (2005a, p. 109): “musealizar um objeto é inseri-lo no universo dos museus, atribuindo-lhe significado(s) diverso(s). Musealizar é, também, expor esse objeto, sem esvaziá-lo de sentido, ao contrário, discutir esse sentido com o público”. A Declaração de Santiago (1992) tem como reflexão rediscutir a missão do museu no mundo contemporâneo e, a partir desse debate, considera a função museológica como um processo de comunicação que norteia todas as atividades do museu. O documento compreende o museu não apenas como fonte de informação, mas como um meio de comunicação que transmite mensagens por meio da linguagem específica das exposições. Essa mudança de enfoque sobre os museus propõe um novo modelo que rompe com as linguagens expositivas tradicionais que utilizam códigos não acessíveis para a maioria do público e o discurso conservador de “sacralização do objeto”. Nesse sentido, por ser um portador de mensagem, o objeto torna-se, para o receptor, um veículo do processo comunicativo na exposição. Todavia, é necessário compreender como se dá na
prática a relação comunicacional entre o objeto e o público para uma melhor compreensão desse fenômeno. 2. A cadeirinha de arruar entre a informação e a comunicação A cadeirinha de arruar pode ser definida como uma cadeira de andar nas ruas. Esse objeto era um meio de transporte urbano popularmente utilizado no Brasil nos séculos XVIII e XIX, destinado, sobretudo, às pequenas viagens, carregado por dois ou mais homens para transportar somente uma pessoa sentada. Contudo, esse tipo de condução não foi uma invenção brasileira, o seu uso remete às antigas civilizações como a Roma Antiga, o Egito, a Índia e a China, sob as denominações de palanquim ou liteira. A cadeirinha foi muito popular na Europa entre os séculos XVII e XIX. Frederico Edelweiss (1968), na obra A serpentina e a cadeirinha de arruar, destaca a utilização desse veículo também pela nobreza em países como a França, Espanha e Portugal, tendo a sua fase áurea após a Idade Média. No Brasil, em meados do século XVI, nas capitanias compreendidas entre Pernambuco e São Vicente, a rede de descanso foi adaptada como meio de transporte urbano e rural, usada suspensa ao longo de um varal de bambu aos ombros de dois índios, tornando-se a precursora da cadeirinha de arruar. Diferente da cadeirinha, o transportado repousava deitado no leito de rede. Com o tempo, foi incluído à rede um longo pano caído sobre o varal para a proteção dos passageiros tanto do sol quanto da chuva. O seu uso, no século XVII, se tornou cada vez mais comum entre as senhoras de famílias abastadas. No final do século XVI, a rede ganhou novos aparatos, proporcionando mais conforto e uma aparência mais sofisticada a esse transporte. Botelho (1943) chega a afirmar que assim surgiu a serpentina, e a trata como um objeto de transição entre a rede e a cadeirinha de arruar. Dentre esses modelos de transporte de propulsão humana, a cadeirinha de arruar foi a mais popular, sinônimo de requinte nos períodos colonial e imperial do Brasil, tornando-se um objeto de ostentação por parte da burguesia e da nobreza. A princípio, a cadeirinha servia aos fidalgos, senhores de engenho, magistrados, médicos, vigários e aos demais senhores notáveis da sociedade. Contudo, são as senhoras quem mais se destacaram no uso desse transporte com base nos relatos dos viajantes estrangeiros. Na literatura clássica brasileira, trechos de obras de grandes autores retratam a forte relação da mulher branca e a cadeirinha de arruar em diferentes épocas. Em As
Minas de Prata, romance que se passa no século XVII, na cidade de Salvador, José de Alencar (1865, p. 12) faz referência às senhoras e senhoritas que iam à igreja em suas respectivas cadeirinhas: "[...] a igreja enchia-se de fiéis, e no adro viam-se já as cadeirinhas e palanquins que traziam à missa as donas e filhas dos ricos senhores da Bahia." No livro Quincas Borba, Machado de Assis narra um episódio que se passa no Rio de janeiro que mostra os costumes da segunda metade do século XIX: [...] defronte da Capela Imperial, que era então Real, em dia de grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro, para ir ter à cadeirinha, que a esperava no Largo do Paço. Gente como formiga. O povo queria ver entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No momento em que minha avó saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar-se uma das bestas de uma sege; a besta disparou, a outra imitou-a, confusão, tumulto, minha avó caiu, e tanto as mulas como a sege passaram-lhe por cima. (ASSIS, 2012, p.53 e 54).
Os trechos dos romances acima mostram como a cadeirinha de arruar fez parte do cotidiano das senhoras da alta sociedade, refletindo os costumes da época tanto do século XVII quanto do século XIX, cujo hábito era de não andar a pé nas ruas, como comenta o viajante alemão Oscar Canstatt (2002, p. 272): “Se, em geral, no Brasil, sente-se uma facilmente explicável aversão pelo andar, isso acontece com dupla intensidade na Bahia”. Ao mesmo tempo, a cadeirinha era um acessório para ostentar sua condição social, elemento que também reforçava os aspectos sócio raciais do período escravocrata, a diferenciação entre aqueles que carregavam e aqueles que eram carregados (figura 1).
Figura 1. Jovem senhora sentada numa cadeirinha de arruar com dois carregadores anônimos. Salvador, BA. c.1860 Crédito: Autor desconhecido. Instituto Moreira Sales
Enquanto os proprietários andavam na cadeirinha de arruar em total anonimato, exibiam os seus carregadores como se eles fossem itens do próprio móvel. E para aqueles mais abastados, a ostentação não estava apenas em andar na sua luxuosa cadeirinha, era estendida aos carregadores que eram obrigados a usar libré3 (variavam de acordo com o gosto de seus senhores), calças ornamentadas ou calções curtos, coletes e chapéus altos ou cartolas e até luvas, embora sempre descalços (figura 1). Assim, tornaram-se personagens emblemáticos ou extremamente exóticos nos diários dos viajantes estrangeiros que por aqui passaram: “(...) carregadas por dois negros estranhamente vestidos, uma originalidade típica da Bahia”. (CANSTATT, 2002, p. 273). Símbolo de status e poder por mais de dois séculos e meio no Brasil, a cadeirinha entrou em decadência no final do século XIX. Na última década, mesmo com o crescimento do processo de urbanização de Salvador, ainda havia baianos que insistiam em ser transportados por homens. Menos por nostalgia e mais por necessidade, segundo Sampaio (2005), a maioria da população não possuía condições financeiras que possibilitassem ter acesso aos diversos veículos à roda e ao transporte coletivo, como as gôndolas4 e os bondes puxados por burros, que já circulavam na cidade. Nos primeiros anos da década de 1900 a cadeirinha de arruar sai definitivamente de cena das ruas dos grandes centros do país. 2.1.
A cadeirinha de arruar musealizada
As informações sobre a cadeirinha de arruar que compõe o acervo permanente do Museu de Arte da Bahia foram apresentadas numa ficha catalográfica impressa. Conforme consta na ficha5 do MAB, a cadeirinha de arruar tem o tombamento estadual pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Denominada de “cadeira de arruar”, faz parte da coleção de mobiliário do Museu, de autoria desconhecida, produzida na Bahia entre os séculos XVIII e XIX. A sua procedência é a coleção particular Góes Calmon, adquirida pelo então Museu do Estado da Bahia, por meio de compra, no ano de 1943, anteriormente, pertenceu à família Wilson, de origem inglesa. Consta no campo “observação” da ficha: “Segundo a Família Calmon, esta peça, provem da residência 3
Fardamento provido de galões e botões distintivos usados pelos criados de casas nobres e senhoriais. 4 Grande carruagem puxada por quatro animais, fechada dos lados, entrada pela frente e com bancos laterais. 5 Informações cedidas pela museóloga Celene Sousa, Setor de Museologia, em 08/03/2017.
Wilson, no Campo Grande, atual Palácio da morada do arcebispo. Existem semelhantes no Instituto Histórico e no Liceu de Artes e Ofícios”. Na ficha de catalogação incluem ainda os seguintes dados: material, dimensões, intervenções, uma breve descrição e referências bibliográficas. Os campos “técnica”, “estilo”, “inscrição” e “localização” estão sem preenchimento. Observa-se que a ficha não possui o campo classe ou categoria para determinar a classificação da cadeirinha de arruar, mas consta a informação que ela compõe a coleção de mobiliário, a mesma informação pode ser verificada no catálogo Museu de Arte da Bahia, do Banco Safra. Com base no sistema de classificação de referência para o tratamento da informação no âmbito da documentação museológica, o Thesaurus para Acervos Museológicos6 (1987), de Helena Ferrez e Maria Helena Bianchini, a cadeirinha de arruar está categorizada da seguinte forma: 11. TRANSPORTE (classe) 11.6. TRANSPORTE TERRESTRE (subclasse) CADEIRINHA (termo autorizado) Por sua vez, Maria Helena Ochi Flexor (2009) no livro Mobiliário Baiano classifica a cadeirinha de arruar como um tipo de móvel de transporte que acompanhava o estilo decorativo do mobiliário de casa. As cadeirinhas eram vistas também nos interiores das residências, pois quando não estavam em uso eram guardadas, cobertas por pano para proteger da poeira, nos vestíbulos ou nos porões das residências dos seus proprietários e suspensas ao teto por meio de roldanas nos velhos sobrados de pé direito alto, com intuito de não ocupar espaço e nem bloquear a passagem. (BOTELHO, 1943). A aplicação de um tesauro ou vocabulário controlado na documentação museológica possibilita uma padronização na terminologia e uma recuperação da informação mais eficiente, como estabelecido no plano geral de classificação do Thesaurus para Acervos Museológicos que optou por organizar os termos (denominações de objetos) com base na sua função original por compreendê-lo como o atributo imutável existente em todos os artefatos. No seu papel inerente de documentar o objeto, a documentação museológica se torna uma forma de representação da realidade, realizada por meio da linguagem. A documentação é uma tentativa, dentro do campo semântico, de interpretar o real, 6
Instrumento de controle terminológico produzido para garantir a recuperação de informações de objetos museológicos, a partir do estudo do acervo do Museu Histórico Nacional. Possui um plano geral de classificação com 16 classes, 60 subclasses e 2.560 termos autorizados e não autorizados.
expressar e comunicar ideias, envolvendo o uso da palavra, símbolos, gestos e imagens que significam ou representam objetos. Hall (2016, p. 24) explica que esses elementos “(...) são representações de nossos conceitos, ideias e sentimentos que permitem aos outros ‘ler’, decodificar ou interpretar seus sentidos de maneira próxima à que fazemos. Deste modo, a linguagem é uma prática significante”. Hall utiliza uma abordagem mais geral da semiótica aplicando-a para todos os objetos culturais por entender que eles funcionam como linguagem, pois, do mesmo modo, os objetos expressam sentido e fazem uso dos signos. Na teoria da Semiologia, de Ferdinand Saussure, o significante juntamente com o significado são partes da natureza do signo linguístico, isto é, o signo, segundo Saussure (2006, p. 81), é “o total resultante da associação de um significante com um significado”. O significante é a face material do signo e, o significado é o conceito, o conteúdo, atrelado ao significante. O objeto ao entrar no museu perde a sua função utilitária e lhe são atribuídos novos valores e significados. O objeto deixa de cumprir o seu papel social no universo ao qual fazia parte para ser tratado como algo detentor de símbolos e signos, ou seja, passa a exercer uma função interpretativa. Contudo, o museólogo Bruno Brulon (2015, p. 26) discorda da perda da função ao assegurar que “o objeto não perde a sua funcionalidade e nem mesmo é possível afirmar que ele ‘morre’ para o mundo do qual fazia parte anteriormente, no entanto, ela deixa de exercer as suas funções tradicionais para ser interpretado como símbolo ou signo [...]”. É possível, então, afirmar que o objeto musealizado perde o seu uso, mas não são retirados os seus sentidos, significados e valores que a ele foram atribuídos no universo cultural ao qual pertenceu. Para o teórico Stuart Hall (2016), o objeto cultural é carregado de sentido sempre que o indivíduo se expressa, faz uso ou de algum modo se apropria nas práticas do seu cotidiano, investindo-o de valor e significado. Os objetos retirados do cotidiano e transferidos para o museu passam a ser alvo de um “olhar museológico”, lugar onde significados também são produzidos, adquirindo novos atributos e propriedades dentro de sistemas de representação que proporcionam narrativas e discursos. O processo de musealização implica nas atividades de coleta, seleção, classificação, documentação e comunicação, isto é, desde a aquisição até à exposição do objeto na instituição museológica. O museu elabora, a partir das possíveis decodificações do objeto, narrativas e práticas interpretativas que estarão em consonância com o seu universo informacional, apresentadas em discursos expositivos.
Para o teórico Peter Van Mensch é necessário se despir de preconceitos para uma leitura isenta sobre o objeto, no entanto, o autor reconhece que numa observação e numa descrição sempre existirão teoria ou ideologia. “Toda observação requer uma representação verbal, pela qual o objeto e o seu potencial de comunicação se tornam possíveis. (...) Daí a importância de uma linguagem das “coisas”, consistindo de uma terminologia da percepção com significado autêntico e comprovado, expurgado, tanto quanto possível, de julgamentos subjetivos individuais”. (MENSCH, 1990, p. 59). O objeto necessita ser decodificado para que venha à tona em maior nível a sua carga informacional. Quando musealizado, o objeto continua a ter “vida”, e ao ganhar novas informações precisa ter a sua história no museu documentada, desde o registro da sua entrada, assim como devem ser registradas as informações de conservação, restauração, movimentação interna, empréstimo, exposição, entre outras. Juntamente com outros procedimentos de identificação e controle, esse processo compreende a documentação museológica. Ceravolo e Tálamo (2007, s/p) utilizam a terminologia documentação de museus em vez de documentação museológica e a define como: “[...] uma série de procedimentos técnicos para salvaguardar e gerenciar as coleções sob guarda dos museus”. Para as autoras, a documentação de museus está voltada para as atividades de gerenciamento das coleções com a finalidade de controle dos objetos, tendo como suporte instrumentos de registro como inventário e fichas de identificação. Sob a perspectiva da Ciência da Informação, a documentação museológica é [...] o conjunto de informações sobre cada um dos seus itens e, por conseguinte, a representação destes por meio da palavra e da imagem (fotografia). Ao mesmo tempo, é um sistema de recuperação de informação capaz de transformar, como anteriormente visto, as coleções dos museus de fontes de informações em fontes de pesquisa científica ou em instrumentos de transmissão do conhecimento. (FERREZ, 1991, p. 1).
Como visto, nessa área do conhecimento há tendências distintas no modo de conceber teoricamente a documentação museológica, enquanto uma abordagem se preocupa com a proteção e o controle do suporte, a outra dá enfoque ao tratamento do conteúdo informacional do objeto. Isso afeta diretamente nas práticas desenvolvidas pelo museu, desde os instrumentos e procedimentos técnicos utilizados até na própria divisão organizacional da instituição.
2.2.
A cadeirinha de arruar na exposição
A cadeirinha de arruar do Museu de Arte da Bahia se encontra atualmente em exposição no pavimento superior do edifício do MAB, na exposição de longa-duração. Na legenda do objeto, verificam-se algumas informações de identificação: cadeira de arruar; madeira policromada, tecido e couro; Bahia, séc. XVIII-XIX, incluindo um texto informativo contendo uma ilustração para demonstrar como era o uso do objeto. Esse estudo de caso permite compreender o uso do conteúdo informacional do objeto na exposição e os efeitos para a comunicação com o público. Ao analisar a cadeirinha de arruar como objeto portador de informação, verifica-se que é possível trazer à tona os seus vários significados e, consequentemente, produzir diferentes leituras e contextos que dão subsídios à exposição. Para Peter Van Mensch (1990, p. 60), “os objetos e a documentação nos permitem perceber o(s) contexto(s) no(s) qual(is) os objetos funcionaram e adquiriram o seu significado. Podemos descrever a história da vida de um objeto como uma travessia por diversos contextos”. A contextualização é imprescindível para uma concepção expográfica que apresente, além da descrição física, a informação semântica inerente ao objeto, os valores atribuídos e significados. Por vezes, as informações sobre o objeto são apresentadas em legenda contendo apenas dados de identificação (autoria, denominação, época, material/técnica e dimensões) sem considerar o potencial informativo do objeto. A baixa produção de conhecimento sobre as coleções dos museus, devido à falta de aplicabilidade da documentação, interfere diretamente nas possibilidades posteriores de comunicação entre o objeto e o público. Essa realidade pode causar algumas distorções nas informações ou propriamente a falta de informação quando expõe um objeto. O tratamento da informação utilizada na exposição da cadeirinha de arruar no Museu de Arte da Bahia pode causar ruídos na transmissão da mensagem entre o emissor e o receptor (objeto/público), devido a algumas variáveis que podem ser causadores de uma improvável comunicação. Ao analisar o espaço expográfico onde está disposta a cadeirinha de arruar, é possível observar algumas situações que podem ocasionar barreiras na comunicação: a peça encontra-se numa área de fluxo de passagem dos visitantes, direcionada para duas
salas que estão em sentidos opostos (figuras 2 e 3); a distância que se encontra a cadeirinha da legenda informativa pode prejudicar o acesso do público à informação (figura 3); os outros objetos – pinturas, gravuras, móveis e porcelanas francesas - que estão expostos no mesmo ambiente não “dialogam entre si”. Somando-se a isso, a falta de recursos expográficos e interativos que contribuem para uma melhor transmissão da mensagem entre o emissor e o receptor.
Figura 2. Cadeirinha de arruar no MAB. Crédito: Amanda de Almeida Oliveira (2016)
Figura 3. Cadeirinha de arruar em exposição no MAB e a legenda em destaque. Crédito: Amanda de Almeida Oliveira (2016)
Para Castro (2009), a comunicação no museu pressupõe a mediação do objeto que ao abandonar sua função original torna-se signo comunicacional e informacional. Essa transformação que sofre o objeto dentro do museu está inserida nas leis da Teoria da Comunicação que pressupõe a emissão e a recepção de mensagem, cujo um dos canais mais utilizados no museu é a exposição. Contudo, para que a mensagem seja decodificada é necessário que o indivíduo tenha um repertório que lhe dê acesso. O desconhecimento dos códigos transmitidos pelo emissor causa a não compreensão da mensagem pelo receptor. Para compreender como ocorre o processo de comunicação dentro do espaço museográfico na relação entre o objeto e o público, é preciso trazer à tona conceitos da Teoria da Comunicação que abordam os efeitos provocados na transmissão da mensagem entre o emissor e o receptor. Gomes (2004) explica o conceito de receptor: Receptor hoje é um conceito geral que designa qualquer indivíduo humano na situação específica em que participa de um processo comunicativo. Enquanto indivíduo, ele participa do processo de comunicação não só com seu cérebro e ouvido, mas com todos os seus sentidos, características de personalidade, seu inconsciente, suas experiências anteriores, sua cultura. (GOMES, 2004, p. 17).
Nas primeiras fases dos estudos sobre os efeitos dos media sobre a audiência, no início do século XX, o tratamento dado ao receptor era do indivíduo passivo e muito
influenciável e, inversamente, o emissor era visto como o onipotente e ativo. Atualmente, nos estudos da recepção observam-se os contextos que influenciam diretamente nessa relação como as questões culturais, as características do indivíduo e o ambiente. Coelho Netto (1983) define mensagem sob a perspectiva do teórico Abraham Moles: “(...) é um grupo ordenado de elementos de percepção extraídos de um repertório e reunidos numa determinada estrutura”. Dessa definição são extraídos três conceitos: ordem, repertório e estrutura. Aqui será focado o repertório, conceito essencial para a análise da relação entre o objeto e o público no museu. Repertório está relacionado ao conhecimento prévio do indivíduo sobre um determinado assunto. Coelho Netto (1983, p. 123) trata como “uma espécie de vocabulário, estoque de signos conhecidos e utilizados por um indivíduo”. Uma mensagem somente será significativa (produzirá mudanças de comportamento) se o repertório do receptor quanto o da fonte (emissor) tiver algum setor em comum. Caso não haja nada em comum, não haverá comunicação. E se ambos possuírem repertórios idênticos, a informação que chegará ao receptor não provocará efeitos por não haver novidades. O conceito “efeitos” apresentado por Gomes (2004) assemelha-se ao termo “mudança de comportamento” utilizado por Coelho Netto (1983). [...] os efeitos pressupõem a finalização do processo de comunicação. Considerar os “efeitos” implica conceber o processo comunicativo como a produção e a transmissão de um estímulo comunicativo (em geral, de uma mensagem dotada de um conteúdo estrategicamente orientado) realizadas por um emissor, dotado de intenções e objetivos, e a produção de um impacto num determinado público. (GOMES, 2004, p. 15).
No museu, os efeitos são os resultados causados pela exposição ao público, a última etapa do processo comunicativo entre o objeto e o seu observador. A não compreensão ou o baixo entendimento da mensagem causa pouco impacto no comportamento do público e quanto mais extenso o repertório da mensagem sobre o objeto na exposição mais efeito ela provoca (mais modificações); e quanto mais restrito o repertório menor possibilidade de modificação no comportamento do público. A Teoria da Comunicação de Niklas Luhmann parte do pressuposto que toda comunicação é improvável, uma mensagem ao ser transmitida tem maior probabilidade de rejeição do que de êxito. A partir dessa perspectiva, Luhmann (2006) analisa os meios para reduzir essa improbabilidade e facilitar o sucesso comunicativo, utilizando o
conceito de seleção evolutiva para compreender como acontece esse êxito, cujo problema central está na aceitação/rejeição das mensagens transmitidas e apresenta as três improbabilidades da comunicação: a primeira: está no receptor compreender o que o emissor quer dizer, ou seja, é necessário que o receptor possua um repertório que seja suficiente para o entendimento da mensagem; a segunda: consiste na mensagem ter acesso aos receptores, a possibilidade da mensagem ser transmitida a receptores que estão em tempo e espaço distintos e; a última improbabilidade consiste na comunicação ser aceita, a mensagem ser acolhida pelo receptor. É possível trazer esse fenômeno da improbabilidade da comunicação no contexto espaço-museu quando observado que essas variáveis apontadas por Luhmann são reproduzidas no espaço expositivo, entre o objeto (emissor) e o público (receptor). A incomunicabilidade do objeto na exposição pode ocorrer devido a diversos fatores, desde a limitação do repertório do indivíduo que o observa até a complexidade da linguagem utilizada na exposição. O sucesso comunicativo da teoria de luhmanniana está inserido na seleção evolutiva, o que interfere na continuidade da transmissão da mensagem, isto é, o processo de seleção dos conteúdos a serem passados adiante. “[...] o problema central da teoria da comunicação - o problema da contingência irreprimível da aceitação/rejeição das mensagens comunicadas”. (LUHMANN, 2006, p. 116). Nesse sentido, o museu ao conceber uma exposição seleciona as informações que considera relevantes para comunicar com o público e, por outro lado, o público seleciona o conteúdo que irá apreender sobre a exposição, podendo rejeitar ideias apresentadas
durante
sua
experiência
expográfica,
e
quanto
mais
vetores
comunicacionais utilizados na exposição, maiores são as possibilidades da mensagem ser aceita. 3. Considerações finais Uma melhor estruturação da informação, realizada pela documentação museológica, sobre o objeto significa intensificar as possibilidades de comunicação e disseminação dessa informação, compreendendo que o museu tem a competência de produzir conhecimento quando proporciona a interação efetiva entre o objeto e o público. Nesse sentido, uma base informacional consistente é determinante para que o
museu cumpra o seu papel na sociedade, tendo em vista que a documentação é uma atividade voltada para subsidiar ações de preservação, educação e comunicação. A comunicação no museu, essencialmente, realiza-se por meio da exposição e tem o objeto musealizado como o protagonista para contar uma história, testemunhar um fato, comprovar um experimento, do mesmo modo que consegue despertar emoções e sensações dentro de um universo lúdico ou científico, integrando o afetivo e o cognitivo. No entanto, é necessário que o museu desenvolva ou potencialize os canais comunicacionais na exposição com o uso de códigos acessíveis que promova uma maior interação entre o objeto e o público. O objeto por si mesmo só consegue transmitir informação caso o indivíduo possua um repertório de conhecimento e valores que lhe dê acesso. No entanto, é necessário que seja ativado potencialmente o conteúdo informacional do objeto para que a experiência seja mais satisfatória. O modo que está exposta a cadeirinha de arruar do MAB, devido a alguns equívocos já apresentados, não permite que o público a perceba num contexto mais amplo de significações. É necessário que o museu considere as diferentes formas e níveis de leitura do discurso expositivo e busque atingir os diferenciados públicos quando elabora uma exposição, considerando que: “[...] o público não é uma massa homogênea com comportamento constante. Constitui-se, sim, em grupos com distinções sociais que manifestam suas diferenças na recepção”. (CURY, 2005b, p. 371). O museu elabora a exposição com o objetivo de levar uma mensagem ao público mesmo que intencionalmente não possua recursos expográficos que facilitem a comunicação da informação sobre um determinado objeto. Nesse sentido, Castro (2009) afirma que o “silêncio museal é impregnado de alta taxa de comunicação”. (CASTRO, 2009, p. 131). Portanto, evidencia-se a necessidade de o museu sair da sua tradicional “zona de conforto” para que seja cada vez mais um lugar de diálogo e discussão, ativando todo o seu o seu potencial comunicativo e nessa direção cumpra a sua missão social.
Referências bibliográficas ALENCAR, José de. Minas de prata. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1865. Disponível em: Acesso em: 14 out. 2015. ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. BOTELHO, Nilza. Serpentinas e cadeirinhas de arruar. In: Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. p. 445 - 472. CAMARGO-MORO, Fernanda de. Museu: aquisição/documentação. Rio de Janeiro: Livraria Eça Editora, 1986. 320 p. (Coleção Eleutherias). CANSTATT, Oscar. Brasil: terra e gente (1871). Brasília: Senado Federal, Conselho Editoria, 2002.448 p. CASTRO, Ana Lúcia Siaines de. O museu do sagrado ao segredo. Rio de Janeiro: Revan, 2009. CERAVOLO, Sueli Moraes. Apontamento sobre a documentação de museus. In: OBSERVATÓRIO DA MUSEOLOGIA BAIANA. Postado em: 25 nov. 2012. Disponível em: . Acesso em: 26. out. 2015 ________; TÁLAMO, M.F. Os museus e a representação do conhecimento: uma retrospectiva sobre a documentação em museus e o processamento da informação. In: Anais do VIII Encontro Nacional em Ciência da Informação (ENANCIB). Salvador, Bahia, 2007. Disponível em: . Acesso em: 03. set. 2015. COELHO NETTO, J. Teixeira. Semiótica, informação e comunicação. São Paulo: Perspectiva, 1983. p. 119- 174 (Debates Semiótica). CONSELHO INTERNACIONAL DE MUSEUS. Declaração de Caracas. In: Cadernos de Sociomuseologia. n. 15. Portugal: 1999. CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Annablume, 2005a. ______, Marília Xavier. Comunicação e pesquisa de recepção: uma perspectiva teóricometodológica para os museus. In: História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 2005b. EDELWEISS, Frederico G. A serpentina e a cadeirinha de arruar: (achegas históricas). Salvador: Beneditina, 1968. 29 p.
FERREZ, Helena Dodd. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. In: IV FÓRUM NORDESTINO DE MUSEUS, 1991, Recife. Anais do IV Fórum Nordestino de Museus. Recife: IBPC/Fundação Joaquim Nabuco, 1991. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015. FERREZ, H. D. ; BIANCHINI, M. H. S. Thesaurus para acervos museológicos. Rio de Janeiro. Fundação Nacional Pró-Memória, Coordenadoria Geral de Acervos Museológicos, 1987. 2. v. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Mobiliário baiano. Brasília, DF: Iphan / Programa Monumenta, 2009. GOMES, Itania Maria Mota. Efeito e recepção: a interpretação do processo receptivo em duas tradições de investigação sobre os media. Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais, 2004. HALL, Stuart. Cultura e representação. Tradução Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2016. LISBOA, José da Silva [1781] - Carta para Domingos Vandelli, datada da Bahia, 18 de Outubro de 1781. Anais da Biblioteca Nacional, 32, 1914. Naturalismo. Disponível em: . Acesso em: 27 fev. 2017 LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. Portugal: Vega, 2006. MENSCH, Peter Van. Metodologia da museologia e treinamento profissional. In: Cadernos Museológicos. Rio de Janeiro: IBPC, 1990. O MUSEU de Arte da Bahia. São Paulo: Banco Safra, 1997. 359 p. SAMPAIO, Consuelo Novais. 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX. Rio de Janeiro: Versal, 2005. 294 p. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2006. SOARES, Bruno Brulon. Os objetos de museu, entre a classificação e o devir. Informação e sociedade: estudos. João Pessoa. 2015. vol. 25, n. 1, p. 25-37, jan. / abr. 2015. Disponível em: Acesso em: 21 out. 2015.