A Arte de Não Amargar a Vida - Rafael Santandreu

May 22, 2018 | Author: Anonymous YX4enXRbB | Category: Emotions, Self-Improvement, Major Depressive Disorder, Thought, Psychology & Cognitive Science


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A ARTE DE NÃO AMARGAR A VIDAPensar bem para viver melhor RAFAEL SANTANDREU A ARTE DE NÃO AMARGAR A VIDA Pensar bem para viver melhor Tradução de ISABEL HABER Dedicado à minha mãe. .a del Valle. uma mulher excecional e a minha primeira professora de felicidade. M. em parte. que são causa de sofrimento e de frustração e que. Contudo. o seu trabalho como professor. Indubitavelmente. é desenvolvido o conceito de que a nossa perceção da realidade existe. PRÓLOGO Após mais de vinte anos de exercício profissional en- quanto médico de família. as suas contribuições e inovações conceptuais tornam-no uma das referências atuais de maior prestígio para os médicos que se ocupam do âmbito da saú- de mental. o pai da Terapia Racional Emotiva Comporta- mental. como ansiedade e depressão. por sua vez. de Albert Ellis. porque enfatiza a exploração dos pensamentos. A sua perspetiva terapêutica é herdeira. a adaptação que dela faz vai mais além. pa- radoxalmente. durante os quais me apercebi de uma fragilização do equilíbrio emocional da população ao mesmo tempo que vi aumentar a prescrição de medicamen- tos psicoativos. de benefícios duvidosos e eficácia contro- versa. a sua trajetória profissional. tive a oportunidade de conhecer Rafael Santandreu. em função de como decidimos reagir. convencio- nalismos e crenças irracionais que adquirimos ao longo da vida. e que é 9 . Ao longo do livro. enriquecido por numerosos exemplos de ca- sos reais testemunhados pelo próprio autor. podem dar origem a mal-estar emocional e transtornos psíquicos. em cuja essência acredito en- contrarem-se as bases de uma nova era no que respeita o tratamento dos transtornos emocionais e adaptativos. A particularidade de Santandreu consiste no facto de nos oferecer os segredos para recome- çarmos. aceitar os outros. desenvolver-nos como pessoas e. mas também a passarmos à ação. Como o autor indica.igualmente suscetível de ser modificada através do nosso pensamento. em resumo. das nossas emoções e do comportamento que decidimos exteriorizar. a vida não é fácil e está repleta de desafios e de acontecimentos adversos que precisam de ser resolvidos. obter uma sensação prepon- derante de felicidade. DOUTOR MANUEL BORRELL MUÑOZ Especialista em Medicina Familiar e Comunitária Prémio de Excelência Profissional do Colégio de Médicos de Barcelona 2009 10 . sem necessariamente aprofundar o passado. Espero que o leitor experimente o mesmo entusiasmo que eu senti ao ler este livro. ao mesmo tempo que nos prepara para uma vida futura mais plena e gratificante. A leitura deste livro impele-nos não apenas à reflexão. mesmo se com esforço. e conse- guirmos transformar-nos. PARTE UM AS BASES . corajoso e. Capa foi um dos primeiros fotógrafos de guerra da história do jornalismo e uma personagem fantás- tica. levava um bilhete para embarcar num navio em direção à Segunda Guerra Mundial. Muitos deles vomitavam o pequeno-almoço no interior das barca- ças geladas. CAPÍTULO 1 É POSSÍVEL TRANSFORMARMO-NOS Uma grande aposta! Certa manhã fria de inverno de 1940. este nova-iorquino nascido em Praga partia à aventura. mas ninguém se queixava do facto. O terror acompanhava-os ao som do ribombar das bombas das defesas alemãs. No bolso direito do casaco. 13 . uma e outra vez. amigo de beber. Capa inspecionava temeroso as suas máquinas fotográficas. um jovem cha- mado Robert Capa guardou na mala a sua pequena máqui- na fotográfica compacta Leica. mesmo romântico. por vezes. como se o ritual de trabalho conseguisse emudecer o ruído ensurdecedor dos canhões inimigos. No Dia D. centenas de milhares de jovens norte- -americanos apinhavam-se nas lanchas anfíbias a caminho das praias da Normandia. Bem-parecido. As suas mentes não tinham tempo para se ocupar dessas ninharias. simpático. Entre esses jovens. inúmeros rolos de filme no- vos e alguma roupa. atiran- do-se para o solo a cerca de vinte metros. Nessa altura. O «veterano» de bigode com 25 anos ergueu novamente a voz para dizer: «Outra vez. encontravam-se já nas rotativas da Grã-Bretanha e o mundo podia ver a imagem da marcha final da guerra pela libertação do mundo. mas mantendo o olhar fixo nas costas do seu superior. espingarda erguida. Capa seguiu-os e fez como eles. Várias garrafas de scotch depois. indi- cando que tinham chegado à margem. Os rapazes saíram. explosões. correndo com o coração a bater a toda a brida. A confusão era imensa: pelotões a correr por toda a parte. encontrava-se já a bordo de um avião do qual iria saltar de paraquedas de 14 . só dois sobreviveram. gritos. e saltou para a água. cravando o olhar na nuca do sargento.. mas a voz do sargento que tinha a seu cargo aquele pelotão conseguiu sobrepor-se-lhe. Dos vinte jovens que acompanharam Capa naquela manhã. De repente. lançou-se duna acima. Mas aquelas fotografias ligeira- mente desfocadas foram os primeiros testemunhos da li- bertação da Europa. O pior que poderia acontecer seria perderem o sargento.. depressa! Agrupamento a vinte metros! Já!». O fotógrafo só teve tempo para tirar algumas fotografias naqueles primeiros metros de batalha antes de o obrigarem a voltar numa lancha anfíbia para um dos navios aliados. o ruído das bombas era ensurdecedor. o único guia em quem podiam confiar naquele inferno. dizendo: «Saiam. corrida de vinte metros e agrupamento! Agora! Já!» E como que im- pulsionado por uma mola. um golpe seco fez tremer a lancha. tropeçando nas próprias pernas. Quando chegou a Londres. No dia seguinte. Capa desfrutou de dois dias de licença que aproveitou para passar com a sua nova namo- rada inglesa. Qual a ligação da história de Capa com um livro sobre psicologia. namorado de Ingrid Bergman e amigo íntimo de Hemingway. há já muito tempo. A depressão. o mú- sico e escritor Boris Vian. a ansiedade e a obsessão constituem os nossos principais inimigos e quando nos deixamos apa- nhar por eles.. A vida é para desfrutar: amar.. Exis- tem muitos outros: o explorador Ernest Shackleton. Raúl. antes de morrer na guerra da Indochina. sem medo. que veio ver-me porque 15 .. e abraçou o seu destino e a sua vida. O seu espírito indomável levou a que tivesse uma vida digna de um filme. Uma mente em forma. isto é. viveu intensamente. aprender. a meu ver. foi um homem com 40 anos. uma vida emocionante Capa representa. perdemos a capacidade de viver a vida em plenitude. Apostou em jogar forte. desco- brir. O principal inimigo dos psicólogos é o denominado neuroticismo. o seu sintoma principal). pois são bons exemplos a seguir. Falarei de alguns deles ao longo deste livro. perguntará o leitor. um mestre da vida. o oposto de viver mal. Para o psicólogo cognitivo representam o contrário daquilo que combatemos.máquina fotográfica em punho para seguir o avanço de exército americano na Europa. o físico Stephen Hawking. Foi o me- lhor repórter fotográfico da História. O que só pode ser feito quando tivermos superado as nossas neuroses (ou o medo.. casado com Gerda Toro. o «su- per-herói» Christopher Reeve. Apenas uma: Capa aprovei- tou os dias. a arte de se afligir através da tortura mental. aos 41 anos. Um dos meus primeiros pacientes. » A neurose é um travão à plenitude e a saúde emocional um salvo-conduto para a paixão e para a verda- deira diversão. Por isso. como se fosse um mar hostil que nos domina! Costumo dizer aos meus pacientes que me procuram no consultório de Barcelona que o meu objetivo último é torná-los fortes emocionalmente. Aos 20 anos. Raúl vivia aterrorizado com ideia de. longe de casa ou de um hospital onde o pudessem socorrer. Vinte anos fe- chado por causa do medo! O maior receio de Raúl era sofrer um ataque de ner- vos no meio da rua. vivia recluso em casa. a programação é muito fraca. desde então. 16 . porque certa vez ti- nha sido acometido de um ataque de pânico ao assistir a cenas de guerra. mas não poder ver televisão por sofrer de pânico. mas ultimamente também tinha pa- vor de ver os noticiários na televisão. isso é de- mais! As vidas de Raúl e de Robert Capa são antitéticas: um encontra-se na zona cinzenta da existência e o outro na de tecnicolor mais brilhante.sofria de ataques de pânico. acompanhado pela mãe. Devido a esse medo. sempre meio afogado. cinzentas ou simplesmente estáveis». poder ser acometido por um ataque de ansiedade. Chegou ao meu consultório de táxi. a qualquer momento. tinham-lhe dado baixa permanente do em- prego e. Essa força permitir-lhes-á desfrutar da vida em plenitude. fustigado pelas cor- rentes marinhas! Desfrutar da vida ou sofrê-la. pouco saía de ca- sa. já nem sequer via televisão. digo- -lhes eu. Quão diferente é surfar a vida sobre as suas ondas ou viver submerso. ultimamente. É verdade que. «Queremos aprender a aproveitar todo o nosso potencial. «Aqui não ansiamos por vi- das “normais”. mas isso não significa que seja impossível fazê-lo. Vejo inúmeros pacientes anualmente.ra- faelsantandreu. e de certa forma tinha razão. muitos dos meus pacientes escrevem acerca de si próprios e sobre as suas histórias de superação. costumava dizer em tom grave: «Se uma pessoa não atingiu a maturidade aos 20 anos. 17 . Entre elas. Sem ir mais longe. no meu blogue (www. Claro que sim! Tenho inúmeras provas que o testemu- nham. Porque a ver- dade é que não é comum mudar-se radicalmente.wordpress. até os mais vulneráveis. Atualmente. as mudanças que experimentaram milha- res de pessoas que consultam psicólogos em todo o mun- do. um dos meus primeiros objeti- vos: informar o leitor de que mudar. Na realidade. Esse é. não só é possível. como todos. podem consegui-lo: a psicologia de hoje desenvolveu métodos para tal. sabe- mos que. um homem duro que tinha lutado na guerra civil. porque todos nós temos a impressão de que é impossível mudar a personalidade. nun- ca a atingirá!». precisamente. centenas. Na consulta. como é possível que uma terapia que vai durar apenas alguns meses logre mudar-me?» A verdade é que fazer esta pergunta tem a sua lógica. trata-se de milhares de provas. frequentemente dizem-me: «Mas se sempre fui assim toda a minha vida. uma vez que cada um destes homens e destas mulheres prova que isso é possível. transformar-se a si mesmo numa pessoa saudável a nível emocional é possível. O meu avô.com). e posso afirmar perentoriamente que a mudança é possível. com as indicações adequadas.É possível aprender! Muitas pessoas são céticas em relação à possibilidade de se tornarem pessoas fortes e emocionalmente estáveis. uma pequena desavença. algo de insignificante. a grande atriz madrilena. durante longos períodos. Aos 50 anos. nessa mesma noite. O final era sempre o esperado: quase dez minutos de aplausos ininterruptos por um trabalho genial. o ânimo de María Luisa se transfor- mava para afundá-la na mais negra das depressões e insegu- ranças. mesmo que sem um motivo em particular. Quando a cortina subia. ficava na cama praticamente o dia inteiro. Saía da cama para ir para o teatro e de lá regressava à cama e mais nada. eu era um ser total e absolu- tamente fechado sobre a minha própria mente. medo do «papão». Esta é a história real de María Luisa Merlo. que dinâmica era María Luisa! Mas o que o público desconhecia era que. ela sur- gia em cena em todo o seu esplendor. saindo apenas para fazer o trabalho que tanto amava.. encontrava-se no seu pior momento pes- soal. com a graça e a ele- gância que só os atores clássicos possuem. de regresso a casa.. Temia os problemas económicos (que na realidade não tinha). mas do qual já nem conseguia desfrutar. Tinha tendência para a depressão e a ansiedade. Que boa atriz. que simpática. Como no caso que passo a narrar: María Luisa dirigia- -se ao teatro todas as noites para representar uma comédia de muito êxito em Madrid. Assim. medo de tudo.. dia após dia. encontrava-se na sua men- te. Por isso.] Na última depressão de que sofri.. [. O problema. Quando alguma coisa me preocupava. era capaz de remoê-lo vezes sem conta e esse turbilhão mental levava a que por fim explodisse. 18 . sentia medo da solidão. conforme narrada pela própria no seu livro Cómo Aprendí a Ser Feliz: O período entre os 44 anos e os 50 anos foi o pior da minha vi- da. conforme lhe dissera o psiquiatra. Mas a dada altura. passo a passo. mas possuía igualmente uma personalidade. uma perspetiva do mundo que a tornavam vulnerável. Viciei-me igualmente em haxixe e em cocaína. o quadro complicou-se com o uso de drogas recreati- vas e de medicamentos autoprescritos: «Quando tive a pri- meira depressão começaram a receitar-me hipnóticos e cal- mantes e comecei a habituar-me a eles. Um reduto de esperança. * Merlo confessa que nunca foi uma pessoa equilibrada. a inesgotável vontade de lutar por si própria que lhe era característica fê-la procurar terapeutas e guias que lhe apontassem a mudança: «E assim. a apreciada atriz tinha um mau prognóstico. E sinto-me orgulhosa do trabalho que fiz comigo pró- pria. mas quando iniciou a sua vida adulta. muito fundo — explica-nos. comprimidos para despertar. com a ajuda de Deus e de mim mesma. apenas comparável a quando era uma criança feliz. — Agora sinto-me melhor do que nunca.» Por fim. A sua mente peculiar tornava-lhe a vida muito complicada e o problema ia-se agravando com o passar dos anos. porque tinha a tendên- cia para depender de algo. Teve uma infância feliz. Havia dias em que era capaz de tomar dez ou quinze comprimidos para coisas diferentes. aos 50 anos. comprimidos para tu- do. porque o fosso onde estava enterrada era muito. emergi da depressão. Comprimidos para dormir. No seu caso.» 19 . os transtornos emocionais começaram a fazer-se sentir. Ter emergido das profundezas para onde mergulhara faz-me sentir uma enorme segurança. a sua história teve uma reviravolta. Era verdade que tinha uma certa tendência para a depressão (aquilo que denominamos por depressão endó- gena). Posso afirmar que me sinto realizada pela primeira vez na minha vida. aberta à aventura. grande amante da vida. e é sobre essa estrutura mental que podemos atuar. que partilha alguns princípios com a filosofia antiga e que. se foi desenvolvendo a partir de uma intensa investi- gação em universidades de todo o mundo. Precisamos de saber que é possível. mas também por toda uma série de aprendizagens ad- quiridas na infância e na juventude. A personalidade é formada por uma série de características inatas. Atualmente. María Luisa transformou-se a si mesma e saiba que to- dos nós podemos fazê-lo. Como veremos ao longo das páginas deste livro. relatos e metáforas para 20 . Este livro pretende ser um manual didático para o grande público e contém histórias. po- demos criar uma vida livre de medos. Quando tivermos transformado a nos- sa mente. a terapia cognitiva constitui a escola de psicologia com maior base científica e que melhor foi cor- roborada por estudos de comprovada eficácia. seremos capazes de amar — e de permitir que nos amem — com maior intensidade e tere- mos uma imensa dose de serenidade interior. plena de realizações. neste caso amantes da nossa própria vida. ao longo da segunda metade do sécu- lo XX. Existem mais de duas mil investigações independentes publicadas em revistas especializadas que comprovam o seu valor. seremos mais capazes de desfrutar das pequenas e grandes coisas da vida. A terapia mais científica Em suma. aquilo que vamos ver em seguida é o á-bê- -cê da teoria cognitiva. Seremos mais como o fotógrafo aventureiro Robert Capa. Nenhuma outra forma de psicoterapia conseguiu igualar o seu êxito terapêutico. Como o leitor poderá comprovar. uma vez que a terapia cognitiva é uma ciência em constante evolução. É necessário um esforço conti- nuado. naturalmente. fundador do Instituto Albert Ellis. Aaron Beck. o recentemente falecido doutor Albert Ellis. 21 . mas estou certo de que. em Nova Iorque. A força emocional é o passaporte principal para dar a volta ao mundo.ajudar a compreender as diferentes mensagens. Transformar-se em alguém positivo é essencial para desfrutar da vida. mas não gostaria de deixar de mencionar os dois conceituados psicólogos cognitivos que deram grande impulso a esta nossa disciplina: em primeiro lugar. mas pode ser conseguido. 2. É possível mudar. não cito autores ou investigadores ao longo destas páginas para facilitar a flui- dez da leitura. mas é preci- so sublinhar que tem por base estudos e ensaios científicos de primeira linha. professor de Psiquiatria na Universidade da Pensilvâ- nia e. Milhares de psicólogos em todo o mundo trabalham com a terapia cognitiva e testemunharam o poder dos seus métodos. no futu- ro. Neste capítulo aprendemos que: 1. ainda encontraremos formas melhores de administrar estes princípios. Centenas de milhares de pessoas transformaram as suas vidas graças a ela. reparou que ele era sobre- dotado e quis tê-lo entre os seus escravos. com apenas quatro anos. fê-lo perder o equilíbrio e cair. Um deles deu-lhe um encontrão. o seu jovem criado. onde Epafrodito começaria a prosperar como comerciante de artigos de luxo. Hierápolis. Como em câmara lenta. Levavam- -lhe amostras de perfumes preciosos da Pérsia e tecidos do Oriente. CAPÍTULO 2 PENSE BEM E SENTIR-SE-Á MELHOR O jovem Epicteto carregava vários embrulhos. Epicteto quase não conseguia ver por onde ia e. nesse momento. Quando o encontrou. lia e escrevia em grego e latim e ninguém o ensinara! Aprendera simplesmente lendo os letreiros nas lojas e nos templos. À sua frente. na Turquia. Naquela manhã. dois rapazinhos cruzaram-se com ele na rua. Epafrodito. Epicteto viu como o frasco do perfume mais caro dava 22 . na sua cidade natal. sobretudo pela sua incrível inteligência. mudaram-se ambos para o centro do mundo. o seu amo. a capital do Império. a principal rua comercial da cidade. Este rapazinho. uma viúva milionária que morava perto do Fórum. estugava o passo. Anos mais tarde. tentando esqui- var-se dos transeuntes que com ele se cruzavam sem cessar pela Via Magna de Roma. ainda criança. Com tantos embrulhos. amo e escravo dirigiam-se a casa de Amalia Rulfa. indiferente às dificuldades do seu escravo que era obrigado a segui-lo apesar de carregado. Epafrodito gostava de Epicteto. Roma. servia-lhe de travão na maior parte das suas discussões com fornecedores e clientes. Epicteto continuava impassível. ate que finalmente abriu a boca e disse: — Cuidado. com o seu espírito razoável. um grupo reuniu-se em redor dos dois. De qualquer mo- do. enquanto lhe batia uma e outra vez na mesma perna. mas possuía um lendário carácter irascível e impulsivo. batendo-lhe com tanta força que transpirava abundante- mente.uma volta no ar e descrevia uma curta parábola para acabar por ater- rar no pavimento: crash. o jovem escravo não abria a boca para se queixar ou para expressar qualquer dor. cego de cólera. bandido. não era invulgar que o amo batesse sadicamente no seu escravo. — Não te dói. Para surpresa de todos os que assistiam ao que acontecia. na Roma antiga. — Toma. Epicteto. De repente. contudo. Limitava-se a olhar para o amo com uma indiferença que o enfurecia ainda mais. insolente? Pois toma lá mais estas! — gritou o comerciante. quando a ira do amo lhe era dirigida não havia ninguém que o protegesse. * 23 . meu amo. vidros partidos e salpicos de perfume sobre a sua roupa. Naquela manhã. porque se continuar a bater-me dessa maneira vai acabar por partir o bastão. um ruí- do seco e uma dor intensa na perna esquerda devolveram-no à realida- de! O seu amo Epafrodito batia-lhe com o duro bastão de carvalho. mas por uma razão totalmente fora do comum. contudo. assim vais aprender a ser mais cuidadoso! — gritava-lhe ele. O tempo deteve-se durante breves instantes. que não passava de propriedade sua. Epafrodito gostava verdadeiramente do criado — na verdade pagava-lhe até uma dispendiosa educação numa escola de filosofia —. o Enchiridion e os Discursos. viveu entre os anos 55 e 135 da nossa era. que podemos en- contrar em dois livros. e é isso que vamos apren- der neste manual. apesar de 24 . transformou-se num dos inte- lectuais mais prestigiados da sua época. cristianismo in- cluído. mas os seus discípulos reuniram as suas palavras. Epicteto. Na verdade. As suas ideias deram origem a muitas das corren- tes de pensamento que hoje conhecemos. Através desse controlo mental. com uma fama que ultrapassou a de Platão. Muitas lendas foram tecidas em redor da vida deste fi- lósofo e uma das mais conhecidas é esta que acabei de contar. Naturalmente que se trata de uma narra- ção exagerada numa tentativa de resumir a filosofia de Epicteto. Mais tarde também a História lhe fez justiça e atual- mente é considerado um dos maiores filósofos de todos os tempos. Foi escravo durante toda a in- fância e obteve a liberdade graças aos seus prodigiosos dons para a filosofia. ainda que não cumpra o seu objetivo principal. Epicteto ensinava a ter força emocional. mas antes «não sentir emoções negativas exageradas». mas essa não era de modo algum a sua intenção. Nem o pretendia. Epicteto não deixou testemunhos escritos. tanto entre Romanos como entre Gregos. nem isso tinha a mínima relação com os seus ensinamentos. A historieta leva-nos a pensar que o filósofo tinha conse- guido controlar por completo as suas emoções. A fantasia popular explica assim a causa do seu co- xear característico. o protagonista desta história. o que não sig- nifica «não sentir emoções negativas». alegria ou tristeza. sinto-me triste. todos — podemos aprender a ser mais fortes e equilibrados a nível emocional. existiria uma asso- ciação direta entre êxito e emoção. em pleno século XX. o nosso diálogo in- terno —. Se a principal mensagem deste livro é a de que todos — sim. Segundo essa ideia.. pena ou irritação. dando origem a emoções: raiva ou satisfação. como Aaron Beck e Albert Ellis.sentirem dor. os indivíduos adquirem uma confiança em si mesmos que lhes permite desfrutar das possibilidades maravilhosas que a vida oferece. permitiu que centenas de milhares de pessoas em todo o mundo trans- formassem a sua mente. a re- volução cognitiva impulsionada por grandes psicólogos e psiquiatras.» Milhares de anos mais tarde. se a mi- nha mulher me abandona. mas aquilo que dizemos acerca do que nos acon- tece. Por exemplo. Vejamos mais pormenorizadamente. sinto-me ofendido.. Também o leitor se pode juntar a elas. Temos a impressão de que existe 25 . Se alguém me in- sulta. de uma maneira semelhante à que Epicteto intuiu há vinte séculos. Como o filósofo dizia: «Não é o que nos acontece que nos afeta. a segunda é que a aprendi- zagem acontece através da transformação da nossa maneira de pensar — a nossa filosofia pessoal. A origem das emoções Costumamos ter a impressão de que os acontecimen- tos externos — aquilo que nos acontece — influenciam as nossas vidas. medo. mas porque digo a mim próprio algo como: «Meu Deus. Na verdade. há homens que fa- zem uma festa quando a mulher os abandona! Deste modo. que me deprimem. diz-nos que isso não é verdade. e estas ideias produzem em mim a emoção correspondente.uma relação direta (de causa e efeito) entre acontecimentos e emoções que poderá seguir o seguinte esquema: Na realidade. isso não acontece pelo acontecimento em si. de- sespero e depressão. a psicologia cognitiva. e não o facto de a minha mulher se ter ido embora. Se me sinto deprimido pelo facto de a minha mulher me ter abandona- do. a interpretação do abandono. neste caso. São as ideias. vou ser um infeliz!». Entre os acontecimentos exteriores e os efeitos emocionais existe uma força intermédia: os pensamentos. estou sozinho. o meu diá- logo interno. o esquema exato do nosso funciona- mento mental será: 26 . que horror. o nosso método de transformação pessoal. passo a narrar o caso real de Jordi. É o diálogo interno o verdadeiro pro- dutor — por vezes oculto — das emoções. no que diz respeito a emoções. que Epicteto dizia: «Não é o que nos acontece que nos afeta. um adolescente com depressão. não 27 . veremos que o Pepe leva a cabo determinadas ações (supostamente inconvenientes) e eu manifesto no meu interior ideias do estilo: «Isto é intolerável! Não consi- go suportar!» São essas ideias que têm o poder de me irritar. A verdade é que nem todas as pessoas reagem da mesma maneira quando estão com o Pepe: a umas ele irrita mais do que a outras.» Todos nós temos a sensação de que os acontecimen- tos dão origem — automaticamente — às emoções e este erro é o principal inimigo do crescimento pessoal. muito angustiada. Há mesmo pessoas às quais nem ori- gina qualquer tipo de mal-estar. e aqui estamos já a cometer o erro que referi- mos. sou eu quem me irrita! Se analisarmos cuidadosamente o nosso processo mental. exatamente. é neutra. Lembro-me que foi a mãe quem o trouxe à con- sulta. não a forma de agir do Pepe que. Por exemplo. O estudante suicida Para que o conceito seja mais facilmente compreendi- do. Tratara-se de uma tentativa real. É isto. mas aquilo que dizemos acerca do que nos acontece. O Pepe não me irrita. dizemos frequentemente frases do estilo: «O Pepe irrita-me». porque o filho tentara suicidar- -se há duas semanas. Tudo depende do diálogo interno de cada um. Claro que pensei que. Jordi cortara os pulsos dentro da banheira enquanto os pais passavam o dia fora. Mas. aos poucos. Tiveste três negativas e isso é aborrecido. o diálogo que habi- tualmente mantinha consigo próprio. 28 . Acordava diversas vezes durante a noite com uma imensa sensação de angústia no peito. ao mesmo tempo que escondia o rosto com as mãos. por que razão desejavas acabar com a tua vida? — Porque tive três negativas na escola — respondeu. — Deixe-me explicar-lhe. Segundo ele próprio dizia. Quando ele se sentou à minha frente. Por aca- so. tenho de repetir o ano! Compreende agora? Do que eu tenho medo é de reprovar o ano! — res- pondeu ele. O que você não sabe é que na minha escola não permitem passar se no final do ano nos faltarem mais do que duas disciplinas. olhando o vazio. se calhar. essa não era a verdadeira causa das suas emoções. Jordi sentia-se infeliz. — Compreendo. não? — disse-lhe eu. que con- sistia na sua forma peculiar de pensar. E se isso acontecer. como veremos mais adiante. regressaram a casa mais cedo e encontraram-no incons- ciente.. irritado. Jordi.de uma chamada de atenção. Mas creio que dás demasiada importância a is- so. não vou conseguir recuperar as três negativas. fui descobrindo a verdadeira causa do seu mal-estar. o problema eram as três negativas. invadido por um profundo sen- timento de fracasso que o impedia de desfrutar da vida. Falei com ele durante várias sessões e.. perguntei-lhe diretamente: — Diz-me.
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