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March 27, 2018 | Author: Daiane Marques | Category: Anthropology, Sociology, Ethnography, Science, Homo Sapiens


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Depois de Lévi-Strauss: um olhar sobre aantropologia francesa contemporânea Erwan Dianteill Universidade de Paris Descartes – Sorbonne RESUMO: Antropólogos franceses são herdeiros de Claude Lévi-Strauss, herdeiros do conjunto de conceitos, métodos e paradigmas lançados pelo autor, que eles aceitam, transformam ou criticam. Podemos identificar três tendências epistemológicas na antropologia contemporânea francesa, todas elas conectadas ao trabalho de Lévi-Strauss. A primeira tendência se inspira no estruturalismo, no intento de descrever “universais”. A segunda ocupa uma posição oposta, seu principal objeto é a interpenetração de culturas e sociedades. A terceira tendência é experiencial: como podemos descrever nossa subjetividade em relações de alteridade? Essas três tendências se originam na famosa distinção entre antropologia, etnologia e etnografia, originalmente cunhada por Lévi-Strauss. PALAVRAS-CHAVE: antropologia social, etnografia, epistemologia, França, Claude Lévi-Strauss A antropologia social na França se encontra hoje em dia em situação paradoxal.1 É ao mesmo tempo celebrada por meio da figura de Claude Lévi-Strauss, ao ponto que um prêmio com seu nome, destinado a todas as ciências sociais, foi oficialmente criado por ocasião do centésimo aniversário do seu nascimento ­— 2 mas também, apesar disso, há incertezas com relação à sua especificidade, sua inserção universitária, seus métodos e seus conceitos. Foi um grande acontecimento no campo da edição, em 2008,3 a publicação, na muita prestigiada Bibliothèque de la Pléiade (Gallimard), das obras de Lévi-Strauss (2128 páginas!). Mas Erwan Dianteill deve-se notar que a organização dessa imensa publicação foi entregue a um especialista dos estudos literários (Vincent Debaene) e não a um antropólogo, como se o pensamento de Lévi-Strauss tivesse sido “patrimonializado”, como se esse pensamento fosse um “monumento”, cujo valor de verdade importa pouco, e não como uma fonte de métodos, conceitos e descrições, que podem fertilizar a antropologia contemporânea e que estão sujeitos a debates e contestações. Esse paradoxo revelouse com muita força por ocasião da morte de Claude Lévi-Strauss. A maior parte dos jornais lhe consagrou as edições do dia 4 de novembro de 2009, mas seria vão qualquer esforço para descobrir nessas páginas alguma menção à posteridade científica de Lévi-Strauss na antropologia francesa. Celebra-se Lévi-Strauss, mas o que é feito da antropologia francesa em 2009? O Museu do “Quai Branly” (também denominado Museu das Artes e Civilizações da África, da Ásia, da Oceania e das Américas), o último em data dos grandes museus de Paris, inaugurado em Paris no ano de 2006, concentra em si essas contradições, pois não poderia existir sem a antropologia, à qual, no entanto, atribui apenas um lugar bastante reduzido. Lá se encontra um anfiteatro “Lévi-Strauss” (ainda um exemplo de oficialização “monumental”…), mas nenhum centro de pesquisa em antropologia. A antropologia francesa é, portanto, sustentada por sua glória passada, mas será que ainda emite algum brilho? Proponho-me aqui responder a tal pergunta, mostrando, inicialmente, que não há uma, mas três antropologias francesas. Efetivamente, com base nos trabalhos de Wolf Lepenies, podemos identificar três culturas em nossa disciplina. Veremos a origem dessa multiplicidade, depois que forma assume atualmente, antes de, finalmente, concluirmos com uma reflexão sobre a unidade e a fertilidade da disciplina. - 12 - no qual o durkheimianismo se impôs até a Segunda Guerra Mundial. São Paulo. podemos compreender. a história da antropologia francesa como resultado de um difração das três culturas identificadas por Lepenies. A sociologia alemã não foi vítima da fascinação cientificista.De onde vem a antropologia francesa? Wolf Lepenies identificou três culturas no surgimento da sociologia na Europa. v. Na Inglaterra encontrou-se um equilíbrio. com Weber. Stuart Mill evoluiu de uma posição cientificista. Lepenies associa essas culturas às três nações europeias. Saint-Simon escolheu a expressão “Fisiologia Social”. na França. I . A sociologia deveria se preocupar em relatar os fatos. 53 nº 1. 2010. um método de interpretação da ação humana. a longo termo. Noutras palavras. Eu aqui emito a hipótese de que tais tendências estão presentes na França menos no espaço da sociologia em sentido estrito. A sociologia ficou na metade do caminho entre a ciência e a literatura. mas sob a condição de reformu. Lepenies mostra que a “carta científica” foi empregada pelos fundadores da sociologia. Na Inglaterra. contra o ensaísmo da filosofia social. a sociologia nascente teve de tomar posição entre ciência natural e literatura. na Alemanha. enquanto Adolphe Quételet e Auguste Comte optaram por “Física Social”.4 Sua tese é bem conhecida. mas dando também lugar à intuição. no campo da sociologia. do que na antropologia. Originou-se das ciências do espírito e queria ser. a sociologia alemã dirigia seu olhar para a dominação e os modos de legitimação.Revista de Antropologia. até chegar ao reconhecimento das virtudes da poesia para reconstituir todas as dimensões da vida humana. O que contava era menos o fato do que o sentido.13 - . à compreensão. usp. ao sentimento. Durkheim não parava de reivindicar o status científico da sociologia. Bem menos fincada na Filosofia das Luzes do que a sociologia francesa. E deste modo a sociologia de Weber se encontrou na confluência de Marx e de Nietzsche. 5 Lévi-Strauss define da seguinte maneira as missões específicas da antropologia. 422-423) A subjetividade pessoal do antropólogo é portanto encarada como obstáculo a ultrapassar para que se possa atingir o saber objetivo. ao mesmo tempo descritivo e programático para a nossa disciplina. datado originariamente de 1954. visa estabelecer um conhecimento válido para “todos os observadores possíveis”. O primeiro critério. pode ser dinamista ou política.A antropologia como ciência natural da significação Há. pp. A antropologia fica. a totalidade. a. cujo conteúdo é evidentemente etnológico) e de Mauss (o Mauss do Ensaio sobre o Dom). A disciplina deve procurar a objetividade. pode ser experimentalista. Ele elabora novas categorias mentais. inteiramente submetida à “procura intransigente de uma objetividade total”. a antropologia tem por missão re.14 - . por conseguinte. Esta foi muito claramente a opção de Lévi-Strauss em As Estruturas Elementares do Parentesco (1949). E é explicitamente associado às ciências da natureza: O antropólogo não se limita a impor silêncio aos seus sentimentos. Além disso. em primeiro lugar.Emerson Giumbelli larmos essas orientações independentemente dos contextos nacionais. contribui para introduzir as noções de espaço e de tempo. a significação. tão estranhas ao pensamento tradicional quanto as que se encontram hoje em dia nas ciências naturais. (Lévi-Strauss. com um título que se refere à última obra de Durkheim. o da objetividade. Noutro texto. uma antropologia que se afirma como ciência social herdeira de Durkheim (o Durkheim das Formas Elementares da Vida Religiosa. A antropologia pode ser cientificista. 1958. de oposição e de contradição. Revista de Antropologia. os mitemas. consiste em elementos tais que qualquer modificação de qualquer um deles acarreta a modificação de todos os outros”. É por isso que deve manter um constante diálogo com a linguística. manifesta sua fascinação.15 - . compara-os com os costumes de seu próprio país. trabalho no qual Mauss constrói o conceito de fato social total. para aqueles que o recitam ou escutam. constituir as totalidades. 53 nº 1. são. Esta antropologia toma a forma literária do relato de viagem. sua indignação. 2010. trata de sistemas de signos. mas a organização lógica dos mitemas. interroga-se sobre o sentido que possuem. Para Lévi-Strauss. e não o sentido que lhes possa ser atribuído pelos Bororô ou pelos Caduveo. Trata-se agora não de formular as leis e os modelos da vida em sociedade. que não se reduz ao conjunto das partes. v. A subjetividade prevalece sobre a objetividade. Finalmente. b. mas de um nível de complexidade mais alto do que o dos fonemas e morfemas. O etnógrafo descreve os costumes das populações que visita. Notemos que para Lévi-Strauss o que importa não é absolutamente a significação do mito. seu espanto. mas de reconstituir o mais fielmente possível o encontro com homens de cultura diferente. Os elementos do mito. unidades constitutivas da linguagem. São Paulo.6 “uma estrutura apresenta caráter de sistema. A antropologia só adquire sentido no estudo do todo. desta maneira. isto é. do diário. que é uma “ciência semiológica”. Esta concepção tem origem explícita no Ensaio sobre o Dom (cujo original francês data de 1924). da descrição de uma aventura exótica.A antropologia como experiência da diferença cultural Pode-se qualificar a segunda das orientações de antropologia experiencial. a significação constitui o objeto principal da antropologia. . usp. Trata-se de mostrar que a vida social está organizada num sistema dos qual todos os aspectos se interligam. pois só surge depois da Segunda Guerra Mundial. A antropologia experiencial já havia encontrado seu modelo alguns anos antes. como acabamos de ver. é o desencantamento que prevalece em Tristes Trópicos. o qual. como. O conhecimento antropológico se transmite por essa língua literária. Enquanto os relatos de viagem salientavam até então a curiosidade. pela expressão poética. nada de modelo matemático. no entanto. uma posição de retraimento e de impassibilidade na análise científica. A antropologia experiencial se apresenta antes de tudo como etnografia.A antropologia como estudo dos relacionamentos dinâmicos entre as sociedades A terceira cultura tem origem mais recente na França. por exemplo. impressões registradas numa língua literária. o deslumbramento. Aqui. Não pode ser reduzida nem ao tro. que remonta a Jean de Lery. O importante é descrever como vivem as pessoas fora da Europa. Lévi-Strauss não foi absolutamente o primeiro a escrever nesse gênero.9 Nesse tipo de antropologia. é a particularidade do itinerário pessoal que ocupa o lugar principal. recomenda. o pavor ou o espanto suscitados pelo contato com os povos não europeus. c .Erwan Dianteill O paradoxo é que esta antropologia fundamentalmente subjetivista tem seu mais alto ponto de expressão em Tristes Trópicos. Quase todos os antropólogos franceses se deixaram tentar pela literatura. mas ao qual acrescentou uma tonalidade elegíaca. O primeiro trabalho de Roger Bastide sobre o Brasil é também o relato da viagem do antropólogo ao Nordeste. pelo estilo.7 que ele não deixa de reivindicar como seu predecessor. relatos. com A África Fantasma (1934). mas sim descrições.16 - . de diagrama de parentesco ou formalização estrutural. de Michel Leiris. de Lévi-Strauss.8 autor de um romance etnográfico publicado no mesmo ano do livro de Leiris. Vincent Debaene salientou com relação a Marcel Griaule. enquanto a segunda descreve uma experiência singular. conjunto de forças. situados bem no centro do questionamento de Weber e de Marx. americanas. mas no das relações históricas entre as sociedades.17 - . naquele período. Nos anos 60. pensaremos certamente na situação colonial. mas se trata de uma violência generalizada e não de um sistema racional ou de uma estrutura abstrata. asiáticas. mas também por Emmanuel Terray10 e. Nos anos 50. mas as transformações contemporâneas das sociedades africanas. A questão colonial ocupa posição central.11 desenvolve-se segundo princípios comparáveis. efetivamente. outra via é explorada. 2010. A colonização. O antropólogo não se situa nem no nível mais abstrato e universal das invariantes estruturais. reencontram-se aqui em primeiro plano. mas é tratada com . A totalidade não é mais considerada como sistema estável. Dito de modo esquemático. dialética entre dominação e contestação. política. por Maurice Godelier. v. nem tampouco no nível das intencionalidades subjetivas mais particulares.Revista de Antropologia. oceânicas. A primeira utiliza métodos formais (derivados das matemáticas ou da linguística). suas condições de exercício e seus efeitos. mas num sentido diferente daquele que Lévi-Strauss atribui a essa expressão. São Paulo. Bastide faz o mesmo no Brasil. Se quisermos resumir em poucos termos a temática central desta corrente antropológica. A situação colonial é produto de uma dominação militar. usp. se exerce de maneira global nos territórios que atinge. As modalidades da dominação. Com Roger Bastide e Georges Balandier. uma antropologia marxista. a primeira tendência visa o universal humano. mas como configuração em movimento. econômica e cultural. 53 nº 1. Não são as estruturas nem as experiências individuais que constituem o objeto do conhecimento. Balandier descreve suas modalidades na África central. representada não só por Claude Meillassoux. pismo científico nem à inclinação poética. Pode ser considerada como um fato social total. a segunda opera com a escrita e a literatura. mas foi afetada por muitas perturbações já a partir dos anos 60 e 70. Françoise Zonabend pesquisando a implantação da indústria nuclear numa aldeia da Normandia. muitas vezes. A partir da independência das colônias. por exemplo. décadas do apogeu do estruturalismo e do marxismo na antropologia francesa. dos senhores sobre os escravos. de acordo com o postulado estrutural-funcionalista de Radcliffe-Brown. dos mais velhos sobre os mais moços. Meillassoux também se interessa pelas formas econômicas da dominação dentro mesmo das sociedades pré-coloniais.18 - . A França perdeu quase a totalidade de suas colônias nos anos 60 e depois se “mundializou”. como. A ideia de que as sociedades pré-coloniais são sistemas institucionais. é errônea. na dominação dos homens sobre as mulheres. dos pais sobre os filhos.Erwan Dianteill orientação mais economicista.14 Esses . segundo ele. Mas os antropólogos progressivamente empreenderam o estudo de terrenos urbanos. No princípio tratou-se de uma antropologia do mundo rural. as sociedades africanas baseiam-se. abordando. sobretudo.12 Para os antropólogos marxistas. que. sob o impacto da imigração e da integração acelerada do capitalismo mundial nos 80 e 90. a antropologia francesa liberou-se de certa tendência ao “exotismo”. antes de qualquer contato com a Europa. A antropologia francesa contemporânea se originou dessas três culturas. a colonização resulta da expansão capitalista. depois de pesquisar sobre as relações entre homens e mulheres na Grécia. Houve também fortes influências intelectuais britânicas e. Longe de serem totalidades harmoniosas.13 ou Marie-Elisabeth Handman. numerosos pesquisadores voltaram-se para terrenos europeus. assuntos ligados à “alta modernidade”. norte-americanas que se exerceram sobre a disciplina e lhe conferiram novas orientações. pois são organizadas à base de relações de produção derivados da exploração. Paralelamente. passou à descrição das formas contemporâneas da prostituição em Paris. Temos portanto de considerar os centros universitários – de ensino e de pesquisa – de onde provêm as publicações mais importantes de nossa disciplina. sobre as mudanças socioculturais na modernidade. apesar dos fatores de transformação que já enumeramos.Revista de Antropologia. mas três vertentes de cultura erudita. identificar as filiações dessas três culturas. mais do que do teatro da investigação. É portanto tratando primeiro da questão das orientações epistemológicas. v.16 a . usp. II . mas apenas proporcionar uma amostra representativa da produção contemporânea. 2010. estudos são diversos e. São tão variados quanto as pesquisas “exóticas”. que partiu para a aposentadoria em 1980. que melhor entenderemos as formas contemporâneas da antropologia francesa. ao redor do titular da cátedra de antropologia. 53 nº 1. que se organizou a descendência de Lévi-Strauss. às vezes sobre as experiências subjetivas. São Paulo. Ainda hoje podemos. a antropologia francesa se baseia numa tradição complexa. cujo fundador foi Lévi-Strauss.A antropologia francesa atual Com não apenas uma. O Laboratório de Antropologia Social. outras vezes. Mesmo se os trabalhos que vou citar em seguida se acham . o campo de pesquisa “próximo” não basta para assegurar sua unidade. é o lugar por excelência do estruturalismo na França. a verdade é também que se assentam em instituições. Se as pesquisas antropológicas são indubitavelmente produtos do espírito. Não se vai aqui descrever exaustivamente o panorama das publicações francesas. ainda. na medida em que o acento às vezes recai sobre as estruturas perenes. a meu ver.A partir do estruturalismo Foi no Colégio de França.19 - . 19 Clastres se opõe violentamente ao economicismo marxista. têm em comum a opção de colocaram-se na trilha aberta pela obra de Lévi-Strauss. Para Clastres. Para ele foi o Estado que originou o capitalismo e não o inverso. por serem rousseaunianistas. O relato do seu terreno entre os Guayaki16 faz eco aos Tristes Trópicos de Lévi-Strauss e a transcrição dos mitos e cantos dos Guarani17 converge evidentemente para a série dos Mythologiques. desde os anos 60. Em compensação exerceu notável influência. de modo especial no caso de Marcel Gauchet. a partir dos anos 80.Erwan Dianteill às vezes em contradição uns com os outros. 18 Mas Clastres afirma. que foi aluno de Lévi-Strauss. bem como Lévi-Strauss. continuou inicialmente a trabalhar no domínio dos estudos . a posteridade de Clastres é limitada ou inexistente na antropologia francesa atual. São sociedades sem Estado. segundo o qual as sociedades primitivas se caracterizam pela recusa do surgimento do Estado. nas sociedades arcaicas. que sucedeu a Lévi-Strauss na cátedra do Colégio de França. que continua a ser uma referência importante. A primeira dissidência a ser mencionada é a de Pierre Clastres. por reativarem o mito do “bom selvagem”. tendo sofrido por causa do total abandono do sistema de oposições entre sociedades “primitivas” e sociedades “estadísticas”. sobre a filosofia política. com predileção pelo estudo do parentesco e das mitologias. para evitar que apareça um poder político efetivo e separado. É a introdução da questão política no estruturalismo. que se acentua cada vez mais até a sua morte prematura em 1977. Devido a uma espécie de presciência. A polêmica foi muito viva. tudo se faz. a antropologia de inspiração marxista censurando Clastres. A parte mais antiga de sua obra se situa na sequência de seu mestre. não por falha. isto é. a sociedade primitiva é contrária ao Estado.20 Fora da sua etnografia americanista.21 Françoise Héritier. um ponto de vista original. objetos privilegiados da antropologia estrutural.20 - . mas por prudência. a exogamia e a existência de uma forma legítima de união entre homem e mulher constituem as três colunas da família segundo Lévi-Strauss. São Paulo. sempre masculino. Mas sua contribuição mais original à teoria antropológica se exerceu em duas direções: de um lado a identificação de um incesto de “segundo tipo”.24 É uma vasta síntese de antropologia do parentesco. dos sistemas de parentesco ditos “semicomplexos”. Há os . publicado em data ainda muito recente. deve-se mencionar os de Laurent Barry. Em última análise. Os homens são senhores da emissão do sangue e do esperma. bem como de duas irmãs. e a realidade orgânica da menstruação e do parto.23 O que é o incesto? Para responder a esta pergunta. 2010.22 do outro o reconhecimento de uma valência diferencial dos sexos.Revista de Antropologia. mas as mulheres engravidam e perdem sangue sem poder de decisão. é proibido a um homem ser amante de uma mulher e da filha desta. 53 nº 1.21 - . Trata-se de uma antropologia das transferências de substância. mas é também uma obra baseada numa tese: o parentesco repousa sobre a oposição entre identidade e alteridade. Existe na realidade um incesto de “segundo tipo”. Héritier formula a hipótese de existe ainda uma quarta: a valência diferencial dos sexos. v. Se a divisão sexual do trabalho. Na sequência dos trabalhos de Françoise Héritier. dois princípios poderiam encontrar-se na origem desse desequilíbrio: a vontade dos homens de controlarem a reprodução. Desta maneira. usp. afetando os consanguíneos que compartilhariam um mesmo parceiro e que é objeto de uma proibição específica. Héritier não se limita à definição usual. uma espécie de lógica dos humores. As representações binárias associadas aos dois sexos são assimétricas em proveito do primeiro termo. autor de um importante trabalho sobre o parentesco. muito estrita porque confinada às relações sexuais entre irmãos e irmãs e entre pais e filhos. de mecânica dos fluidos corporais. que biologicamente lhes escapa. a proibição do incesto vem da interdição absoluta de acumular o idêntico. Para esta. por exemplo. mas a relação. não é a substância. “em nenhum lugar bastam um homem e uma mulher para fazer um menino”. A segunda tese é que a família não é absolutamente o fundamento da sociedade. de um extremo ao outro. as pessoas que nada têm em comum com as primeiras. Mas para Barry. enquanto para Barry o recurso a um repertório léxico que se refere aos fluidos corporais é apenas uma das metáforas entre outras possíveis.22 - . o parentesco é atravessado por relações sociais. de um ponto de vista resolutamente semântico e formal. Mesmo se não o quer aceitar. A metáfora pode também referir-se a uma entidade espiritual concebida como origem da identidade (como. mas rejeita o tratamento “substancialista” de Héritier e Barry. portanto de um lado as pessoas que têm alguma coisa em comum e. A solidariedade social não é produto das relações de parentesco. Duas fortes críticas contra essa perspectiva se exprimiram entre os próprios partidários do paradigma lévi-straussiano. não menos do que unem. como pretende Françoise Héritier. Para Godelier. não há incesto do “segundo tipo”. Trata-se apenas de casos extremos do incesto de “primeiro tipo”. Além disso. A primeira veio de Maurice Godelier.25 autor de uma imponente obra em antropologia econômica e grande especialista dos Baruya da Nova Guiné. os indivíduos e os grupos. pelo menos na área cultural americana. deve ser pensado. políticas e econômicas que não se confundem com ele. Emmanuel Désveaux também se considera “lévi-straussiano”. Godelier formula suas teses no que se refere ao parentesco.26 Ele desenvolve a ideia de que o segundo Lévi-Strauss – . Barry continua próximo a Héritier. como para Héritier. “somos todos filhos do jaguar”). Segundo ele. Dito de outro modo. a identidade está baseada na partilha da mesma substância corporal. O que para ele importa.Erwan Dianteill “nossos” e há “os outros”. pois estas dividem. A primeira é que. a partir da mitologia e de suas transformações. o parentesco. do outro. mas sem que os corpos sejam também considerados como idênticos. 53 nº 1. Terminemos com uma menção à obra de Philippe Descola. 2010. Enquanto Godelier desenvolve sua crítica em tom materialista. pelos seres humanos a seres não humanos. de uma interioridade idêntica à dos primeiros. quatro modos de encarar a relação entre o homem e a natureza.Revista de Antropologia. O animismo corresponde à atribuição. como todo o resto do mundo. v. Descola propõe uma antropologia mais próxima do cognitivismo que das ciências sociais. os da série dos Mythologiques – opera um rompimento fundamental com o pensamento funcionalista.23 - . Algumas dessas modalidades foram anteriormente indicadas na história da antropologia. São Paulo. O totemismo é repensado como participação. muitas vezes entendido como o antepassado primordial comum ao grupo. ao mesmo tempo material e moral. o naturalismo postula uma continuidade material. e não o contrário.27 mas sem que jamais tenha chegado a completar um retorno crítico a seus próprios trabalhos sobre o parentesco. isto é. a de Désveaux acentua os aspectos mais abstratos do pensamento de Lévi-Strauss. Segundo a terceira “ontologia”. separados tanto pela matéria como pelo espírito. com Jean-Paul Colleyn. na medida em que os modos de pensamento (as ontologias) estariam na origem do social. entre o reino humano e o reino não humano. Embora reconhecendo o caráter muito estimulante de tal construção teórica. mas o corpo humano é feito de átomos. Finalmente. Deste modo existiriam quatro ontologias fundamentais distribuídas por todo o planeta.29 fazer pelo menos três críti. o pensamento analógico atribui sentidos às correspondências entre os dois universos. podemos. As concepções humanas são próprias da humanidade. os homens tendo parentesco com uma espécie animal ou vegetal. usp. mas uma descontinuidade subjetiva entre o homem e o ambiente.28 atual titular da cátedra de antropologia da natureza no Colégio de França e diretor do Laboratório de Antropologia Social. mas Descola redefine completamente esses conceitos. Será que se trata do que LéviStrauss denominava sistemas simbólicos? Se for o caso. como decidir se um rito.24 - . Surgem ainda mais dificuldades se se pensa na historicidade das sociedades. se enfraqueceu marcadamente com a constatação das transformações radicais produzidas pela colonização. A primeira se refere à heterogeneidade das fontes. também se constrói uma antropologia que integra resolutamente a dimensão histórica e projetiva das sociedades que estuda. pela descolonização e pela integração dos países da África. de Paris. Se não são confiáveis. da América. A ideia que o antropólogo estuda sistemas integrados. linguística e simbólica. foi largamente substituída uma antropologia desligando essas realidades. um povo e um território. que liga uma cultura. pessoas e informações. da Ásia e da Oceania no capitalismo mundial. o Centro de Estudos Africanos da École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Será que as ontologias podem ser instrumentos explicativos pertinentes em linha diacrônica?30 Em sentido inverso ao desta abordagem. e o Centro de An.Antropologia dos mundos contemporâneos A uma antropologia “clássica”. que teoria pode ser obtida de tão vasta síntese? A segunda visa a extensão dessas ontologias. Na África as distinções étnicas são instáveis. na circulação generalizada de mercadorias. Do ponto de vista institucional. uma crença. b . de natureza social. como o cristianismo há cinco.Erwan Dianteill cas a essa perspectiva. uma classificação corresponde ou não a uma ontologia? Os sistemas simbólicos seriam de fato tão sistemáticos? Pode-se também questionar se as quatro ontologias não são mais instáveis do que pensa Descola. uma língua. os povos têm estado em contato com o Islã há dez séculos. As intuições de Balandier e de Bastide foram aprofundadas por alguns de seus estudantes. Nos anos 90. 53 nº 1. o de “ramificação”. oral/escrito. que a tradição durkheimiana tem tendência a negligenciar na França. tropologia Cultural da Université Paris Descartes-Sorbonne são os lugares principais dessa antropologia de fluxos. a “ramificação” permite pensar a globalização em termos de . que supõem.33 O estudo do N’Ko é para isto uma boa ocasião. sociedade fria/sociedade quente) não têm mais sentido algum? Augé propõe três novas orientações. O indivíduo.Revista de Antropologia. na trilha aberta por Bastide e por Métraux. Trata-se de um movimento cultural.31 na sequência dos trabalhos fundadores de Balandier e de Bastide. São Paulo. a existência prévia de culturas estáveis e homogêneas. conceito elaborado em trabalho anterior. Melhor do que as noções de “sincretismo” ou de “mestiçagem”. Marc Augé pretendeu fundar uma antropologia dos mundos contemporâneos. Como fazer antropologia cultural. usp.32 A descendência de Balandier também se encontra nos trabalhos que desconstroem a noção de etnia e mesmo de “cultura”. instabilidades e interpenetrações de civilizações. mas muito disseminado por toda a África. candomblé). Amselle construíu um novo conceito. nascido entre populações de etnia mandinga. A cidade. uma espécie de “profetismo escriturário” afro-central. A antropologia clássica privilegia o estudo monográfico de comunidades locais. v. para melhor entender a globalização cultural. Por meio da análise antropológica. 2010. em parte esotérico. destinado a compreender a supermodernidade. santeria. ora menos. que é uma combinação de “lugares” e de “não-lugares”. As religiões afro-americanas (vodu. tradição/modernidade. JeanLoup Amselle deseja romper com essa abordagem “autoctonista”. Três “novos” mundos merecem ser especialmente explorados. que nos obrigam a pensar a cultura de outro modo que em termos de totalidade homogênea. ora mais. a partir do momento em que as distinções fundamentais da disciplina (primitivo/ evoluído.25 - . bem distantes do modelo da linguística estrutural. As culturas crioulas das Américas são portanto um terreno muito fértil para a antropologia dinâmica. mais do que nacional ou local. Acrescentemos que Affergan desenvolve também um ponto de vista teórico sobre a disciplina antropológica. é mais uma pedra no jardim excessivamente organizado da antropologia à francesa (isto é. o trabalho de Michel Agier em Salvador da Bahia é também exemplo da mesma tendência. Possa eu mencionar aqui meus trabalhos sobre Havana e Nova Orleans. sobre a movimentação constante das formas da vida. como clã. Em . a música e a dança. Na sociedade martinicana. Noutras palavras. As investigações de Francis Affergan sobre as identidades crioulas demonstram a mesma desconfiança a respeito das categorias “clássicas” da antropologia. repensando-a por meio da fenomenologia. cartesiana e estruturalista). sobre sua instabilidade. surgiram grupos carnavalescos organizados (blocos) exaltando uma identidade especificamente afro-brasileira. Nos anos 70. o carnaval. todas as sociedades são atravessadas por correntes de trocas que as ultrapassam.26 - .Erwan Dianteill redes e derivações. o samba.35 No mesmo âmbito. tribo e até parentesco. como antropólogo. as identidades conservam alguma coisa de transitório. visto como um momento festivo que deve ser compreendido em relação dinâmica com a sociedade dentro da qual acontece. sempre foi (ou deveria ter sido) o verdadeiro objeto da antropologia cultural. a globalização está longe de ser um fato novo e. Não há mais culturas “puras”. Agier estuda. A ênfase sobre a incompletude da identidade crioula. não sendo jamais fixadas de uma vez por todas. de certa maneira.36 Indo bem além dos lugares-comuns sobre a festa brasileira.34 A originalidade de Affergan consistiu inclusive em retomar um trabalho de campo primeiro empreendido nos anos 70. estudada há mais de 30 anos por Affergan. do segundo Wittgenstein e da teoria do relato. noção que pareceria bem fundamentada dentro da disciplina. situa. Depois de estudar o Parlamento europeu (1992).38 o modo de ser e de comportar-se dos políticos. O que efetivamente fazem os deputados europeus e franceses? Tal é a questão formulada pelo etnólogo. deve ser objeto de análise específica a dialética da ordem e da desordem. qual será a ligação entre cultura e política? Noutras palavras. São Paulo. vem o estudo da coexistência urbana de grupos economicamente. Estudando a atividade dos deputados. 2010. cujo trabalho se situa no domínio da antropologia política e no da antropologia da modernidade ocidental. Neste caso preciso. que preside a organização do carnaval. Em segundo lugar. que se esforça para compreender a visão do mundo. Assim se descobrem os “arcanos” do Palácio Bourbon. Marc Abélès é autor de uma importante série de trabalhos. empreendeu uma análise da vida quotidiana na Assembleia Nacional francesa. o funcionamento da “fábrica de leis”. 53 nº 1. é o relacionamento da sociedade francesa com a política e a democracia que se quer atingir. Inicialmente africanista. culturalmente e “racialmente” diferentes. O exemplo do PACS ilustra perfeitamente. v. como se constrói o relacionamento entre o movimento social “negro” e sua expressão pública festiva? Michel Agier aprofunda essa temática entrançando três fios principais.39 segundo a descrição do autor. que parece ser mais diferencialista do que integracionista. Antes de encerrar esta seção. Finalmente.Revista de Antropologia. Primeiro. os valores e as práticas dos representantes do povo. embora tenha sido aluno de Lévi-Strauss. É Marc Abélès. o carnaval da grande cidade do Nordeste assumiu uma ideologia identitária “negra”. duas décadas.27 - .37 O grande interesse dessa abordagem é superar a imagem oficial que a representação política oferece sobre si mesma. dos mais modestos até os caciques que atuam no palco ou nos bastidores. usp. o carnaval da “Roma Negra” revela as contradições entre a afirmação identitária “negra” e a profunda mestiçagem da sociedade brasileira. devemos sem falta mencionar a obra de um antropólogo “modernista”. Antropologia experiencial A antropologia estruturalista e a antropologia marxista. além disso. um pouco ao modo de um diário de viagem. continuada por Métraux no Haiti e. À investigação etnográfica dos “tarantulados”. foi marginalizada no mundo universitário francês.Erwan Dianteill da no coração da atividade da Assembleia Nacional. Mas essa antropologia experiencial não desapareceu e readquiriu brilho com o enfraquecimento.40 em 1966.28 - . Foi apresentado como o “Lévi-Strauss” italiano. mas eram respostas culturais a dificuldades existenciais. De Martino juntava uma pesquisa histórica sobre a transição da interpretação católica dessa “possessão” a uma interpretação terapêutica fornecida pala psiquiatria moderna. Queriam por em evidência estruturas ocultas ou então estudar os modos de produção. ocasionou um mal-entendido. mas o método que adotava não tinha relação alguma com o estruturalismo. é escrito na primeira pessoa do singular. O que importava a De Martino era demonstrar que a “crise” provocada pela picada da aranha e seu tratamento pela dança e pela música não consistiam num envenenamento ou numa patologia mental. a da participação do antropólogo numa experiência singular. A etnografia inaugurada por Leiris na África. da dominação cientificista na . c . que se combateram asperamente nos anos 60 e 70. o sentido que as pessoas davam às suas vidas era objeto de desprezo e assim também se tratava o relacionamento que o próprio antropólogo mantinha com aqueles cuja cultura descrevia. por De Martino na Itália. O livro. A publicação em francês do trabalho principal de De Martino. tratando do tarantulismo no Sul da Itália. apesar de tudo compartilhavam certos postulados objetivistas. em ambos os casos. nos anos 80. de certa maneira. E isto nos leva a nossa terceira “cultura” antropológica. mas. é preciso que o trabalho se concentre sobre as pequenas ligações. Em Estrasburgo.42 Mais do que à elaboração de teorias e conceitos. para a reabilitação dessa “cultura”. Partindo das ficções de Flaubert. a voga do pós-moderno. 53 nº 1. tal tendência foi particularmente bem recebida nas universidades de Lyon e de Estrasburgo. usp. David Le Breton tem desenvolvido uma antropologia. feito de oscilações. Do ponto de vista institucional. 41 bem como. de Clifford Geertz e do textualismo. que esmaga mais do que esclarece aquilo que pretende estudar. bem entendido. na França. foi certamente decisiva no desenvolvimento de uma antropologia aberta à psicanálise. a afetividade é também cultural. disciplina. v. murmúrios e cochichos. Ele busca. Não menos do que o objeto de estudo.Revista de Antropologia. intitulado A Expressão Obrigatória do Sentimento. em Lyon. Nosso modo de “sentir” . afim à orientação de Lyon. São Paulo. um simples efeito do acaso. 2010. na literatura e no cinema. As ligações discretas. bem como à literatura e ao cinema. Quer explorar o “modo menor” da realidade social. A influência crescente.29 - . Laplantine marca assim sua oposição a uma antropologia “monumental”. A influência de François Laplantine. visa construir o conceito (ou melhor. os microacontecimentos que tecem as relações entre os indivíduos. com certeza contribuíram. o método também é original. a fonte de um conhecimento que qualifica de “micrológico”. as graduações minúsculas. querendo “explicar” os fatos sociais. o “deceito”) de “pequeno”. em muitos pontos. E isto não foi. os fragmentos de sentido entram assim no campo de pesquisa da antropologia. na mesma década. como já destacava Marcel Mauss num ensaio de 1921. ao estudo das emoções e ao fluxo da vida.43 Haveria alguma coisa aparentemente mais espontânea e mais natural do que as emoções? No entanto. É uma antropologia do corpo e das emoções. nessa década. as associações livres. dos filmes de Bresson e de Godard. Essa antropologia é particularmente sensível às relações mais ínfimas entre as pessoas. Kafka e Tchekhov. como “Guerreira” e “Anunciadora”. tendo seguido os peregrinos antes. Noutras palavras. Durante dez anos. Medjugorje tendo se tornado um lugar de peregrinação ao qual afluem milhares de pessoas.Erwan Dianteill e de “ressentir” é socialmente construído.30 - . segundo sua história pessoal e circunstâncias concretas. uma investigação a longo termo sobre as aparições da Virgem na Bósnia-Herzegovina. a Virgem apareceu a seis crianças daquele país. um sociólogo do religioso que adotou um . Ficou então mais fácil de compreender como a Virgem pode ser interpretada. Elisabeth Claverie pesquisou sobre o acontecimento original. Seguindo uma orientação muito próxima (Claverie e Piette pertencem ambos ao Grupo de Sociologia Política e Moral da EHESS). na Croácia. A etnografia de Claverie é sempre de uma grande precisão. Desde então as aparições não mais cessaram. Paralelamente. As convenções que governam o ódio ou o amor. pela experiência religiosa. por conseguinte. Ao contrário. esforça-se para reconstituir as esperanças e expectativas dos peregrinos. o ciúme ou a alegria são afins às coerções linguísticas. que pode sempre ser decodificado por outros. citemos também a obra de Albert Piette. ao mesmo tempo como “Mãe da Misericórdia”. seguindo um método compreensivo radical.44 Em 1981. A cultura afetiva é. para cada pessoa. temos todos nosso próprio “estilo” emotivo. Esta antropologia também se interessa. Elisabeth Claverie realizou. nos anos 90. ainda que não cheguem a reduzir-se a uma linguagem articulada. recusando-se absolutamente a emitir qualquer julgamento sobre a realidade das aparições. durante e depois da guerra da Bósnia (1991-1995). efetuou uma investigação aprofundada sobre a personalidade da Virgem tal como concebida pelos Padres da Igreja. uma espécie de repertório ao qual cada um recorre. não pode ser compreendido fora do relacionamento de um indivíduo com outro indivíduo ou com a coletividade. de maneira central. O que. A explicação pela história. O etnógrafo é um autor entre outros. método decididamente etnográfico no estudo do cristianismo.45 para a África Ocidental.31 - . um método privilegiado para a antropologia experiencial. a raridade das referências à antropologia “estrangeira” na França. local e concreta.Revista de Antropologia. todos os anos. mas sem nenhuma reivindicação de uma “objetividade” privilegiada ou superior à dos outros indivíduos. usp. v. 53 nº 1. pelas estruturas. aparecendo muitas vezes nas interações. O que caracteriza a ação religiosa é tornar presente um ausente.46 para a Nova Guiné-Papuásia. determinações e motivações sociais são deliberadamente colocadas “entre parênteses” a fim de reconstituir o sentido da relação com Deus. ao término deste percurso. que se esforçam de confirmar por meio da investigação. mas sem por isso fazer teologia. Sabemos que Jean Rouch foi um pioneiro do cinema etnográfico nos anos. Ele quer fazer uma etnografia minuciosa das ações de certos católicos do Oeste da França. que constitui. O festival do filme etnográfico perpetua sua obra. seguindo os menores detalhes de sua vida cultual. utilizando o que cada recurso oferece de melhor. um acontecimento que é mostrado. em particular. bem como Stéphane Breton. estão à frente de uma obra de antropologia visual e de antropologia escrita. 2010. a possessão e o transe. Conclusão: Rumo a uma nova definição da disciplina Poderíamos estranhar. E é sempre uma situação particular. Nada melhor que o filme para mostrar a emoção e. em Paris. A maior parte dos pesquisadores parte de uma hipótese teórica. Jean-Paul Colleyn. não . a exaltação religiosa. instituições. É outra a metodologia sugerida por Albert Piette. São Paulo. por exemplo. com o relato e a descrição fenomenológica. Destaquemos o desenvolvimento contemporâneo da antropologia visual. Esclareçamos que a imagem (fixa ou animada) não exclui o texto. mas restrita a um só domínio cultural. cuja obra continua com certeza a ser “boa para pensar”.Erwan Dianteill se poderia dizer do peso das obras de Marylin Strathern. considerando diferentes momentos de sua história. exerce essa integração com referência a dados de uma única população. pela literatura e pelas ciências sociais) lhe permite manter um debate centrado sobre si mesma. É o que podemos tentar compreender a partir de Lévi-Strauss48. efetua uma síntese dita sistemática. Se achamos que continua a haver três culturas na antropologia francesa atual. A etnografia. Esses trabalhos são sistematicamente “canibalizados” pelas questões de maior interesse do campo intelectual francês. da maneira mais ampla. trabalho de campo (fieldwork)”. Joana Overing. em particular na distinção que elaborou entre etnografia. apesar do risco de parecer fechada dentro de si mesma. ou. a construção de vastos modelos explicativos. Roy Wagner. etnologia e antropologia. numa área cultural limitada (por exemplo. um tipo . A etnologia é uma etapa na rota da síntese antropológica.32 - . trabalhos conhecidos. isto é. corresponde à primeira etapa do trabalho científico: “observação e descrição. com certeza. os Índios da América do Norte). noutros casos. Esta é a força e a fraqueza da antropologia francesa. com a possível exceção de Clifford Geertz nos anos 80. como então podemos conceber a unidade da disciplina? O que pode haver de comum a essas três orientações? Será que ainda formam uma única disciplina? Em oposição a qualquer definição dogmática e exclusiva da antropologia. Para Lévi-Strauss. do pensamento humano. o objetivo supremo da ciência é a antropologia geral. Sua longa história plural (enriquecida pela filosofia. não é em torno deles (ou só raramente) que se articula na França o debate científico. ou. Alfred Gell ou Annette Weiner? São. continuo persuadido de que há alguma coisa de comum a essas três culturas científicas. A etnologia integra as informações relativas a grupos vizinhos. ainda. dentro dessa perspectiva. usp. a etnologia se limita a comparar as experiências de campo concretas. Entretanto. a etnologia e a antropologia. v. Da etnografia à antropologia. a preferência por um ou outro desses termos exprimindo apenas uma atenção predominante a um tipo de pesquisa que jamais poderia excluir os outros dois. matizando esse projeto de uma ciência geral do homem. As três culturas da antropologia francesa praticam efetivamente a etnografia. A antropologia teórica e a etnologia são postas a serviço da etnografia. na verdade. Por sua vez. Na orientação cientificista.33 - . progredindo na direção de um conhecimento global do homem por meio de um saber cada vez mais abstrato. o que afinal se deseja é enunciar leis e atingir as formas universais que governam o gênero humano. (Lévi-Strauss. três etapas ou três momentos de uma mesma investigação. etnologia e antropologia: São. passamos portanto do particular ao geral. de costume ou de instituição. Finalmente. 53 nº 1. mas só como reflexão sobre as condições de possibilidade do trabalho etnográfico. os dados da pesquisa de campo e a comparação etnológica ficando a serviço deste objetivo último. p. Lévi-Strauss esclarece um aspecto essencial das relações entre etnografia. 2010.Revista de Antropologia. Na antropologia experiencial. 413) É esta última afirmação que me parece essencial. delas tirando lições para a pesquisa localizada. mas não as organizam como sugere Lévi-Strauss. passando pela etnologia. colocando a etnologia como objetivo supremo da pesquisa. Em comparação com o estruturalismo. Pode haver nela lugar para uma antropologia abstrata. de técnica. a teoria antropológica servindo antes de tudo . Os dados do trabalho de campo devem servir para alimentar a comparação. a antropologia dinâmica instaura um terceiro tipo de dialética entre essas atividades epistêmicas. as prioridades epistemológicas são invertidas. é da etnografia que surge o conhecimento do homem. 1958. São Paulo. Erwan Dianteill para construir instrumentos pertinentes de comparação. Seu objetivo é colocar o trabalho etnográfico e a teoria a serviço da comparação. realizado na Universidade Federal do Ceará. foi o . Será estudada. Dan Sperber. por Balandier. nem se preocupa com modelos universais. de 23 a 26 de novembro de 2009. É sobretudo por essa terceira orientação. Tradução de Roberto Motta (UFPE) Notas 1 Este texto se origina da conferência inaugural do colóquio “França – Brasil. etnologia e antropologia. refletindo sobre as categorias de cidade. Para concluir. que situa a etnologia no coração da disciplina. por exemplo. que a antropologia francesa poderá conservar sua fertilidade e manter sua influência internacional.34 - . direi que é tendo bem consciência que esses três momentos são igualmente necessários. como. no meu entender. bem como aos autores anônimos dos pareceres da Revista de Antropologia por sua preciosa ajuda. que me inclino a título pessoal. 2 Esse prêmio é atribuído pela Academia de Ciências Morais e Políticas. Domingos Abreu e Marie-Elisabeth Handman. isto é. nem muito amplos. que não sejam nem muito estreitos. da filosofia. cuja obra se situa nos confins da linguística. Mas a unidade contemporânea da antropologia reside. Desejo agradecer especialmente a Alexandre Câmara Vale. A antropologia dinâmica não se concentra nem numa única experiência de campo. do cognitivismo e da antropologia. na articulação – com acentuação às vezes mais fraca e às vezes mais forte sobre um desses momentos epistêmicos – entre etnografia. Olhares Cruzados sobre Imaginários e Práticas Culturais”. êxodo rural e migrações. a urbanização na África do Oeste e o seu equivalente na África central. campo. 8 Vincent Debaene. usp. p. Paris: Plon. 1995. Plon. Paris: Le Sycomore. 1997 (1985). 2005. 6. La prostitution à Paris. Paris: Gallimard. Mas já há uma dezena de anos. La société contre l’Etat. Paris. 4 Wolf Lepenies. La Violence et la ruse: hommes et femmes dans un village grec. 1983. Handman. Paris: Mouton. Mythologiques (4 vol. n. “Les ‘Chroniques éthiopiennes” de Marcel Griaule. Les trois cultures. foi durante muito tempo orientada pelo pensamento estruturalista. abriu-se consideravelmente às diferentes correntes da antropologia francesa. 1578. 3 Claude Lévi-Strauss. 1974. in Gradhiva. Entre science et littérature. 2008. 1974. 1973. primeiro laureado. pp. 53 nº 1. Paris: MSH. 2007. 6 Claude Lévi-Strauss. 9 Roger Bastide. São Paulo. 10 Emmanuel Terray. Paris: Minuit. 422-425. 17 Pierre Clastres. 1964. L’ethnologie. in Anthropologie structurale. Anthropologie économique des Gouro de Côte d’Ivoire: de l’économie de subsistance à l’agriculture commerciale. Paris: Maspero. Images du Nordeste mystique en noir et blanc (1945). la littérature et le document en 1934”. v. l’avènement de la sociologie. 7 Jean de Lery. Chronique des Indiens Guayaki. 1979. 11 Maurice Godelier. n. 1964-1971.Revista de Antropologia. 13 Françoise Zonabend. Paris: Plon. Horizon. Le marxisme devant les sociétés “primitives”: deux études. 15 L’Homme – Revue française d’anthropologie. Paris: Odile Jacob. (orgs. La Presqu’île au nucléaire. Paris: F. O leitor poderá consultar diretamente essa revista. 2010. Arles: Actes Sud. Œuvres. 18 Claude Lévi-Strauss. Aix en Provence: Edisud. 1989 14 Marie-Elisabeth Handman. 86-103. Paris: Seuil. 1958.). (ed. 20 Jean-Loup Amselle. 16 Pierre Clastres. Maspero. Marie-Élisabeth et Janine Mossuz-Lavau. Bibliothèque de la Pléiade. em 2009. Le grand parler – Mythes et chants sacrés des Indiens Guarani.s. trajets marxistes en anthropologie. fundada por Claude Lévi-Strauss em 1961. Histoire d’un voyage fait en la terre de Brésil. 12 Claude Meillassoux. . 1972. para completar sua informação. 1972. pp.35 - . “La notion de structure en ethnologie”.).). 19 Pierre Clastre. 332. Le Sauvage à la mode. sob a direção de Jean Jamin. “Place de l’Anthropologie dans les Sciences Sociales et Problèmes Posés par son Enseignement (Lugar da Antropologia nas Ciências Sociais e Problemas Colocados por Seu Ensino)” incluído em Anthropologie structurale. Paris: La Martinière. 5 Claude Lévi-Strauss. Erwan Dianteill 21 Gauchet. Masculin – Féminin – La pensée de la différence. n. Notemos que Bruno Latour. 707. 2005. Critique. 1985. Paris: Ellipses. a interpretação que faz Patrice Maniglier da obra de Lévi-Strauss (Le vocabulaire de Lévi-Strauss. Une histoire politique de la religion. 25 Maurice Godelier. 29 Jean-Paul Colleyn. Marcel. 27 Esta ideia também está presente no campo filosófico. 2002). 2009) deverá fertilizar esse debate. Genève: Georg. Métamorphose de la parenté. sugerindo paralelamente a possibilidade de uma antropologia inspirada na filosofia de Gilles Deleuze e Felix Guattari. Paris: PUF. Pour une anthropologie des mondes contemporains. Paris: Fayard. 2001. 22 Françoise Héritier. 302-310. . publicado por Anthropology today (http://www. 1994. 34 Francis Affergan. 28 Philippe Descola. com. 2006. Les deux sœurs et leur mère – anthropologie de l’inceste. Le Désenchantement du monde.36 - . 2004. 26 Emmanuel Désveaux.bruno-latour. Branchements – Anthropologie de l’universalité des cultures. 33 Jean-Loup Amselle. Paris: Gallimard. Non-lieux – Introduction à une anthropologie de la surmodernité. 30 Pode-se também ler a transcrição por Bruno Latour de um debate apaixonante entre Descola e Viveiros de Castro. sociólogo das ciências. La parenté.pdf ). 1996. Quadratura americana – Essai d’anthropologie lévistraussienne. Martinique. Paris: Odile Jacob. Paris: Flammarion. pp. Mas seus trabalhos são pouco citados pelos antropólogos franceses. 2001. Paris: Gallimard. 24 Laurent Barry. “De la manière d’habiter le monde”. nem dinamista… 31 Marc Augé. adquiriu grande notoriedade internacional. Paris: Gallimard. talvez porque dificilmente podem ser situados dentro de uma escola de pensamento bem definida. O antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro considera que os Mythologiques abrem o caminho ao “pós-estruturalismo”. Paris: Aubier. 2009. 1994. Paris: Odile Jacob. A propos de Philippe Descola Pardelà Nature et Culture . anthropologie d’un terrain revisité. avril 2006. 32 Marc Augé. por exemplo. nem marxista. nem estruturalista. 23 Françoise Héritier. Par-delà nature et culture. A publicação em francês de seu livro Métaphysiques cannibales (Paris: PUF. Paris: Seuil. 1992. les identités remarquables.fr/ poparticles/poparticle/P-141-DESCOLA-VIVEIROS. Latour não quer ser nem durkheimiano. Paris: Gallimard. 35 Erwan Dianteill.Revista de Antropologia. 44 Elisabeth Claverie. 2009. in the sense that he has defined a set of concepts. 2010. 1984. 2000. 1958. Paris: Odile Jacob. De tout petits liens. Boli. methods. Bali. 2003. São Paulo. in its intention to describe “universals”. Paris: Payot. coined originally by Lévi-Strauss. la fête et l’Afrique à Bahia. 41 Clifford Geertz. (Nota do tradutor. Paris: Mille et une nuits. We can identify three epistemological trends in contemporary French anthropology. usp. 46 Stéphane Breton. paradigms they accept. 1966. 2001. Anthropologie du carnaval. The third is experiential: how can we describe our subjective relation to otherness? These three trends find their origin in the famous distinction between anthropology. 42 François Laplantine. 411-413. in Anthropologie structurale. Paris: Gallimard. Paris: Arte video. Eux et moi (dvd). The second one takes the opposite position. Les passions ordinaires – Anthropologie des émotions. Paris: Plon. v. 37 Marc Abélès.) O PACS (Pacte Civil de Solidarité) define as condições de vida em comum de duas pessoas 39  que não são casadas ou que. La Terre du remords. 2005. La Samaritaine noire – Les Eglises spirituelles noires américaines de La Nouvelle-Orléans. écriture et divination dans les religions afrocubaines. la ville. . (Nota do tradutor. 38 Sede da Assembleia Legislativa da República Francesa.37 - . Des dieux et des signes . as its main object is the interpenetration of cultures and societies. Interprétation d’une culture. all of whom have a connection with the work of Lévi-Strauss. pp. The first trend is inspired by structuralism. Un ethnologue à l’assemblée. Paris: Gourcuff Gradenigo. 36 Michel Agier. “Place de l’anthropologie dans les sciences sociales et problèmes posés par son enseignement” (1954). ethnology and ethnography. abstract: French anthropologists are heirs of Claude Lévi-Strauss. 53 nº 1. juridicamente. 47 Claude Lévi-Strauss. não podem casar uma com a outra. Marseille: Parenthèses. 2004. transform or criticize.) 40 Ernesto De Martino. 2003. 43 David Le Breton. Les Guerres de la Vierge – Une anthropologie des apparitions. 45 Jean-Paul Colleyn. Paris: Editions de l’EHESS. Paris: Editions de l’EHESS.Initiation. 2000. 2006. Paris: Gallimard. LéviStrauss. epistemology. ethnography. France.Erwan Dianteill Key-words: social anthropology. Recebido em janeiro de 2010.38 - . . Aceito em abril de 2010.
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