54Unidade II do que propagam diversas análises mais recentes sobre o tema, não possui a menor possibilidade de desaparecer enquanto objeto principal da antropologia. Inclusive, amplia essa assertiva às ciências sociais como um todo e diz que a cultura não pode ser abandonada, desprezada sob pretexto de deixarmos de apreender e compreender o seu objeto de pesquisa, que além de nomear e distinguir, é a razão de ser do antropólogo. Para o autor, a partir de ações que interferem na vida dos povos, das aldeias, das cidades e das nações, se produz uma contracultura que visa em seu conjunto possibilitar a reconstrução de seu objeto antropológico sob o prisma da diversidade cultural que envolve todos e cada um. A cultura vem recoberta de afetos, desejos e necessidades econômicas, sociais e políticas, de modo que está contida nela como sua constituinte. Em lugar de celebrar (ou lamentar) a morte da “cultura”, portanto, a antropologia deveria aproveitar a oportunidade para se renovar, descobrindo padrões inéditos de cultura humana. A história dos últimos três ou quatro séculos, em que se formaram outros modos de vida humanos – toda uma outra diversidade cultural –, abre-nos uma perspectiva quase equivalente à descoberta de vida em outro planeta. (SAHLINS, 1997, p. 18) A antropologia ganha relevância e sentido a partir de sua ênfase na organização da experiência e das ação humanas por meios simbólicos e culturais. Nesse sentido, quando o autor afirma que a cultura está sob suspeita, está dizendo que “os povos que sobreviveram fisicamente ao assédio colonialista vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo” (SAHLINS, 1997, p. 52). Ou seja, esses modos de vida que florescem e intensificam aqui e acolá em toda a parte do globo terrestre nos surpreende por seus modos de vidas translocais e neotradicionais. Sendo assim, estes grupos inventam e reinventam seu lócus de ação, sua forma de experimentar e experienciar a vida cotidiana, subvertendo as expectativas de um mundo avassalador em função da ordem capitalista. Nesse sentido podemos afirmar, a partir dos estudos supracitados, que tanto Geertz quanto Shalins e Hall buscam compreender de forma contemporânea o significado de cultura. Estes autores levam em consideração o processo de globalização, dando à antropologia um novo fôlego de pesquisa, análise e método. 5.3 A Diáspora Negra como revanche Ao olharmos sob um prisma mais generoso podemos perceber que o impacto do imperialismo produz um deslocamento como revanche. Este deslocamento de ideias, ações, pessoas, representações, objetos, imagens – ou seja, culturas –, produz um confronto dentro do sistema capitalista e no momento atual, cuja carga civilizatória está sendo posta em xeque. Aquela carga provinda do mundo ocidental estritamente europeia, de onde se partiam os modos de vida, as estruturas econômicas, sociais e culturais, os estilos, as formas de pensar o mundo, a maneira e hábitos fragmentados que impunham um certo grau ou status de cosmopolita, padecem de orientação. 55 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO Esta forma de impor formas e conteúdos constrangeu e constrange, até os dias atuais, vilarejos, vilas, cidades, campos, aldeias, metrópoles, estados e nações, com sua forma destruidora em favor do capital. Fruto deste processo avassalador e até mesmo despótico surge a revanche, ou melhor, a Diáspora Negra, que provém de múltiplas formas e conteúdos transportados, traduzidos nas fronteiras, nos limites, das múltiplas disposições dos territórios ocupados por negros e negras advindos de várias partes do continente africano. Diria que a discussão contemporânea sobre o conceito de diáspora surge como uma resposta mais ou menos direta aos ganhos translocais advindos do movimento Black Power durante a Guerra Fria. Primeiramente, ela circulou como parte de um argumento que propunha a reconfiguração da relação entre a África e as populações parcialmente descendentes de africanos do hemisfério ocidental. Sustentada por frutíferas revisões da ideia de libertação nacional, esta iniciativa cada vez mais audaz se dirigiu contra argumentos mais gerais que iluminaram as limitações políticas reveladas pelas formas essencialistas de conceituar a cultura, a identidade e a identificação. Diferenças dentro do coletivo em questão não podem ser indefinidamente reprimidas em prol de que se maximize as diferenças ente este grupo em particular e os outros. (GILROY, 2001, p. 17) Este confronto espaço-temporal provoca revezes, inverte e ao mesmo tempo subverte o processo de descolonização. Este fenômeno se vê impregnado de cantos, contos, músicas, lazeres, práticas cotidianas em conformidade com as diversas identidades em jogo, que questiona a hierarquia ocidental, envolvida em um espaço de dominação simbólico-cultural e dominada por ideias universalistas. Desta forma, a antropologia acaba lançando nova luz sobre os estudos antropológicos culturais. Assim, os estudos culturais passam a ser vistos como um espaço de embate entre as diversas culturas, de modo que os estudos vinculados à Diáspora Negra permitem um distanciamento das escolas marxistas e frankfurtianas, sendo densificados pelos estudos de Antonio Gramisci. Isto permite aos analistas apreenderem as práticas culturais dos povos não somente como reprodutores de cultura, mas como produtores. Nessa linha, Stuart Hall propõe que os objetos estudados pelos analistas sejam todos os que fazem parte de um grupo ou de um povo, por meio de suas práticas e da compreensão de seus significados para quem deles usufrui. A cultura negra para o autor passa a ser codificada e decodificada levando em consideração sua influência, a qual possibilita uma leitura positiva enquanto cultura e ao mesmo tempo instrumentaliza os grupos que dela usufrui com mecanismos como as músicas, que vão desde o punk até o hip-hop. Hall, partindo de sua experiência pessoal e de sua trajetória de vida, afirma que: é possível, então, examinar o campo das relações sociais, na Jamaica e na Grã Bretanha, em termos de um campo interdiscursivo gerado por pelo menos três contradições (classe, raça e gênero), cada qual com uma história diferente, um modo distinto de operação; cada qual divide e classifica o mundo de formas diferentes. Seria então necessário, em qualquer formação 56 Unidade II social específica, analisar como a raça e a classe, a raça e o gênero são articulados um com o outro para estabelecer posições sociais condensadas. As posições sociais, pode-se dizer, são aqui sujeitas a uma ‘dupla articulação’. São, por definição, sobre determinadas. (HALL, 1999, p. 191) O autor, que por meio de sua própria experiência vive um processo identitário, móvel, plural e transitório a partir de sua trajetória pessoal, quando sai da Jamaica para viver na Inglaterra, padece dos impactos da Diáspora, pois se encontra em meio aos co-irmãos africanos, ao racismo inglês e à indiferença do povo europeu. Hall tinha por mãe uma mulher da classe média urbana de pele clara, ao passo que seu pai era um homem de classe média baixa e herdeiro de uma mistura étnica que envolvia africanos, indianos, portugueses e judeus, ou seja, “não existe um eu essencial, unitário – apenas o sujeito fragmentário e contraditório que me torno”. (HALL, 1999, p. 188) Desta forma, o estudo da Diáspora sugere um olhar no outro, na alteridade e na busca de olhar, de modo a compreender as práticas, as estratégias e as ações humanas do que é diferente de nós; ou melhor, de sujeitos imersos em um conjunto de práticas, tendo como ponto de partida a contribuição antropológica que envolve uma discussão sobre o espaço simbólico-cultural de competição na busca de legitimação das representações por meio dos conflitos e das disputas dos grupos envoltos no processo da diáspora. Este processo imprime um contra-discurso para fundamentar o processo cultural de hibridização conformado pela diáspora negra e outras. Paul Gilroy (2001), por meio do seu texto “O Atlântico Negro”, analisa a construção do discurso do termo “Diáspora Negra”, além de sua forma e seu conteúdo sob sua constituição. Essa constituição se encerra no processo de definição de modernidade, de suas perdas, narrativas, deslocamentos, exílios, viagens e construções identitárias, plurais e móveis. Os africanos descendentes de africanos habitantes do Novo e do Velho Mundo, por meio de suas músicas, artes, modas, ideias e representações, criavam, inventavam modos de ser, agir e estar, cujas práticas inovadoras são projetos de inserção e/ou subversão da modernidade. Este deslocamento produz um evento de hibridação entre o intercâmbio da cultura negra e da cultura dominante do pensamento branco por meio das ideias e ações de ambos os lados. Gilroy (2001) afirma que “mover-se no atlântico negro é um modo de reconquistar a humanidade que a escravidão lhes negou”. Deste modo, o desenvolvimento da translocalidade do jogo das identidades negras vão sendo construídas por meio de ideias e ações inventivas, criativas, sedutoras de grande engenhosidade, graças às novas formas que os sujeitos negros tiveram e têm de interpretar o movimento do real. “A solidariedade translocal que aquelas reivindicações promovem parece ser mais preciosa a partir do momento em que sua vulnerabilidade aos poderes destrutivos da globalização se tornou mais óbvia.” (GILROY, 2001, p. 10). O estudo da diáspora tem a intenção e a ousadia de abordar e mapear as condições delicadas e as consequências da influência mútua entre as várias etnias envolvidas neste processo. Utilizei o modelo de Atlântico Negro para identificar outras possibilidades e interpretações. As culturas do Atlântico Negro criaram veículos de 57 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO consolação através da mediação do sofrimento. Elas especificam formas estéticas e contra-estéticas e uma distinta dramaturgia da recordação que caracteristicamente separam a genealogia da geografia, e o ato de lidar com o de pertencer. Tais culturas da consolação são significativas em si mesmas, mas também estão carregadas e contrapostas a uma sombra: a consciência oculta e dissidente de um mundo transfigurado que tem sido ritual e sistematicamente conjurado por pessoas que agem em conjunto e se abastecem com a energia fornecida por uma comunidade mais substantivamente democrática do que a raça jamais permitirá existir. (GILROY, 2001, p. 13) Segundo o autor, é na memória da escravidão e na experiência do racismo e do terror racial que se funda politicamente a identidade cultural dos negros no ocidente. Para um maior aprofundamento no conceito de diáspora, são indicados dois textos de Nei Lopes: • “Enciclopédia Brasileira da Diáspora africana” (2004), editora Selo Negro: o texto se fundamenta na cultura de matriz africana. Com nove mil verbetes, o autor passeia pelo Brasil e pela África no que concerne a suas atividades sociais, econômicas, políticas, religiosas, comidas, vestimentas e tradições. Nesse sentido, reúne o que estava disperso na vida de entremeios de cada afro- brasileiro. • “Novo Dicionário Banto do Brasil” (2006), editora Pallas: neste texto o autor reúne a partir de uma pesquisa densa oito mil verbetes trazidos pelos povos bantos da África para o Brasil, conformando desta forma a diáspora Banto em solo brasileiro. Este texto nos possibilita compreendermos a variações dialetais dos vocábulos dos povos africanos e sua contribuição para a formação da nossa Língua Portuguesa. Para Nei Lopes não basta ser negro. Há de se ter uma negritude que se afirma não só culturalmente, mas politicamente em um processo de uma identidade cidadã. 5.4 Imigração e multiculturalismo As migrações e imigrações põem o globo terrestre em movimento por meio de milhões de seres humanos que se deslocam de um canto para o outro do planeta. No caso do Brasil, as rodovias, as estradas, os becos e vielas estão habitadas por indivíduos, pessoas ou grupo de pessoas em busca de um território como abrigo e aconchego. Este movimento aparente esconde e revela ao mesmo tempo um momento de profundas transformações na sociedade contemporânea. Tais movimentos migratórios e imigratórios produzem deslocamentos espaciais de origem internas, externas, temporárias (ou sazonais), circulares, pendulares ou de êxodo rural. Segundo Becker (1997), os deslocamentos de populações em contextos variados e que envolvem ao longo do tempo escalas espaciais diferenciadas conferiram complexidade crescente ao conceito de mobilidade como expressão de organizações sociais, situações conjunturais e relações de trabalho particulares.