06-bell hooks - O amor como a prática da liberdade

March 27, 2018 | Author: Luisa Marinho | Category: Love, Ethnicity, Race & Gender, Racism, Sexism, Liberty


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O AMOR COMO A PRÁTICA DA LIBERDADE* bell hooks Nesta sociedade, não há um discurso poderoso sobre o amor emergindo nem dos radicais progressistas nem da esquerda. A ausência de um foco continuado sobre o amor em círculos progressistas surge de uma falha coletiva em reconhecer as necessidades do espírito e de uma ênfase sobredeterminada nas preocupações materiais. Sem amor, nossos esforços para libertar a nós mesmas/os e nossa comunidade mundial da opressão e exploração estão condenados. Enquanto nos recusarmos a abordar plenamente o lugar do amor nas lutas por libertação, não seremos capazes de criar uma cultura de conversão na qual haja um coletivo afastando-se de uma ética de dominação. Sem uma ética do amor moldando a direção de nossa visão política e nossas aspirações radicais, muitas vezes somos seduzidas/os, de uma maneira ou de outra, para dentro de sistemas de dominação – imperialismo, sexismo, racismo, classismo. Sempre me intrigou que mulheres e homens que passam uma vida trabalhando para resistir e se opor a uma forma de dominação possam apoiar sistematicamente outras. Fiquei intrigada com poderosos líderes negros visionários que podem falar e agir apaixonadamente em resistência à dominação racial e aceitar e abraçar a dominação sexista das mulheres; com feministas brancas que trabalham diariamente para erradicar o sexismo, mas que têm grandes pontos cegos quando se trata de reconhecer e resistir ao racismo e à dominação por parte da supremacia branca do planeta. Examinando criticamente esses pontos cegos, concluo que muitas/os de nós estão motivadas/os a mover-se contra a dominação unicamente quando sentimos nossos interesses próprios diretamente ameaçados. Muitas vezes, então, o anseio não é para uma * hooks, bell. Love as the practice of freedom. In: Outlaw Culture. Resisting Representations. Nova Iorque: Routledge, 2006, p. 243-250. Tradução para uso didático por wanderson flor do nascimento. 1 em muitos aspectos. limitado porque era um esforço reformista. nós “o encontramos por meio do amor". continuaremos a agir de forma a minar nossa busca individual por liberdade e nossa luta por libertação coletiva. não apenas permanecemos ligados ao status quo. vejo que tinha o poder de movimentar coletivos de pessoas para atuarem no interesse da justiça racial – e porque estava profundamente enraizado em uma ética do amor. mas simplesmente para o fim do que sentimos que nos machuca. porque esta é “a chave que abre a porta para o significado da realidade última". porque acreditava profundamente que. Ele tinha a percepção profética de reconhecer que uma revolução construída sobre qualquer outra fundação falharia. Fundamentalmente. para um fim da política de dominações. Luther King afirmou que ele "havia decidido amar". se estamos "buscando o bem supremo". classe ou sexo. Até todas/os nós sermos capazes de aceitar a natureza interconectada e interdependente dos sistemas de dominação e reconhecermos as formas específicas de manutenção de cada sistema. nutrindo e conservando esses mesmos sistemas de dominação. O movimento de direitos civis transformaram a sociedade nos Estados Unidos porque era fundamentalmente enraizada em uma ética do amor. Nenhum líder enfatizou mais essa ética que Martin Luther King Jr. ao mesmo tempo percebendo que somos sempre mais do que nossa raça. se estamos comprometidas/os apenas com a melhoria daquela política de dominação que sentimos conduzir diretamente para nossa exploração ou opressão individual. 2 . mas agimos em cumplicidade com ele.transformação coletiva de sociedade. A capacidade de reconhecer pontos cegos só pode surgir à medida em que expandimos nossa preocupação sobre a política de dominação e nossa capacidade de nos preocuparmos com a opressão e exploração de outrem. para o movimento pelos direitos civis que era. E o ponto de estar em contato com uma realidade transcendente é que lutamos por justiça. É por isso que precisamos desesperadamente de uma ética do amor para intervir em nosso desejo autocentrado por mudança. Quando olho para trás. Uma ética de amor torna possível essa expansão. Repetidas vezes. Assim. quase todos homens. 3 . que uma abordagem misógina em relação às mulheres se tornassem centrais como a equação entre liberdade e a masculinidade patriarcal entre dirigentes políticos negros/as. A ênfase agora estava mais no poder. As mortes desses importantes líderes (bem como as de líderes brancos liberais que eram aliados importantes na luta pela igualdade racial) trouxeram intensos sentimentos de desesperança. Embora Luther King tenha frisado a importância do amor próprio negro. aterrorizar. E não é de surpreender que o sexismo que sempre intensificou a luta de libertação negra. reconhecendo que cuidar da negritude era nossa responsabilidade central. as/os negras/os coletivamente experimentaram uma dor viva e angústia sobre o nosso futuro. Este foi um importante desenvolvimento político. o movimento Black Power deslocou o foco da luta pela libertação negra da reforma para a revolução. No entanto. Na verdade. expressa. ele falou mais sobre amar nossos inimigos. o progresso foi feito mesmo com algo valioso sendo perdido. nem ele nem Malcolm viveram o suficiente para integrar plenamente a ética do amor numa visão de descolonização que fornecesse um plano para a erradicação do auto-ódio negro. Esta era a mais crua encarnação do credo corajoso de Malcolm X "por qualquer meio necessário". trazendo consigo uma perspectiva global anti- imperialista mais forte. Malcolm chamou-nos de volta a nós mesmos. anunciando que a expressão essencial da liberdade seria a vontade de coagir. Feridas/os naquele espaço onde conheceríamos o amor. viéses sexistas machistas na liderança levaram à supressão da ética do amor. O movimento Black Power dos anos sessenta se afastou dessa ética do amor. Como um lado positivo. impotência e desespero. a nova militância do poder negro masculinista equiparou amor com fraqueza. de repente descobrimos que lutávamos com uma intensificação do racismo internalizado. Os povos negros que entraram no domínio racialmente integrado da vida americana por causa do sucesso dos direitos civis e do movimento Black Power. Enquanto Luther King tinha se concentrado em amar os inimigos. Em última análise. A ausência de espaços públicos onde essa dor pudesse ser articulada. de fato utilizar as armas de dominação. fazer violência. continuamente impedindo o reconhecimento público do enorme sofrimento e dor na vida negra. Em seu ensaio “Love and Need: Is Love a Package or a Message?” Thomas Merton argumenta que somos ensinadas/os. Uma cultura de dominação é anti-amor. Nunca saberemos até que ponto o foco do machismo negro sobre a dureza e a tenacidade serviu como barreira. um risco de morte desesperador se apoderou da vida negra. Não só há um empobrecimento da nossa vida emocional e sensorial. pois este tem sido um terreno fértil para o desespero niilista. a ver o amor como um negócio: “Esse conceito de amor assume que a maquinaria de compra e venda de necessidades é o que faz tudo acontecer. Se as pessoas negras têm avançado em nossa luta por libertação.. Sentindo como se “o mundo tivesse realmente chegado ao fim”. negras e não negras. havia morrido. Devemos voltar coletivamente para uma visão política radical da mudança. Músicas contemporâneas como “What's Love Got To Do With It” de Tina Turner defendem um sistema de trocas em torno do desejo. significou que ela foi mantida infiltrada. enraizada em uma ética do amor e buscar. mais uma vez. dentro da estrutura de consumo capitalista competitivo. transformar coletivos de pessoas. enfatiza que a recusa em sentir tem um preço alto. refletindo a economia do capitalismo: a ideia de que o amor é importante é zombada.compartilhada. Exige violência para se sustentar. no sentido de que uma esperança de que a justiça racial se tornasse a norma. no capítulo “Despair Work”. World as Self Joanna Macy. Mas esse entorpecimento psíquico também impede nossa capacidade de processar e responder às informações. esgotando a resiliência e a imaginação necessárias para novas visões e estratégias. até mesmo como maneira de ir além de tal sofrimento e continuar vislumbrando a luta de resistência. Muitas pessoas sentem-se incapazes de amar a si mesmas ou a outras porque não sabem o que é o amor. Em World as Lover. Considera a vida como um mercado e o amor como uma variação na livre 4 .. suprimindo a possibilidade de que esse sofrimento coletivo fosse reconciliado em comunidade. Escolher o amor é ir contra os valores predominantes dessa cultura. temos de confrontar o legado desse sofrimento irreconciliado. A energia gasta em empurrar para baixo o desespero é desviada de usos mais criativos. livros que procuram maneiras de melhorar a autoestima. muitas pessoas se sentem emocionalmente perdidas. amor. Peck escreve: Todo mundo na nossa cultura deseja. O livro de autoajuda de M. tanto quanto ele fez. que estamos mais bem posicionadas/os para transformar a sociedade de forma a melhorar o bem coletivo. sobre o poder transformador do amor. e começando com o amor como fundamento ético para a política. Suas palavras ecoam a declaração de Martin Luther King: “Eu decidi amar”. que também enfatiza a escolha. “em última análise. que o desejo de amar não é. demonstram que há consciência pública de uma falta na vida da maioria das pessoas. O amor é um ato de vontade – ou seja. em si mesmo. amor-próprio e nossa capacidade de ser íntima/o nos relacionamentos. mas muitas/os não são de fato amorosas/os. Scott Peck The Road Less Traveled é enormemente popular porque aborda essa falta. Nós não temos que amar. uma intenção e uma ação. ou mesmo o que é o amor. formas de sustentar uma ética do amor em uma cultura que nega valores humanos e valorizam o material. Escolhemos amar. até certo ponto. em uma cultura na qual esse discurso é muitas vezes visto como meramente sentimental. Também implica uma escolha. Embora muitas pessoas reconheçam e critiquem a comercialização do amor. Peck oferece uma definição operacional para o amor que é útil para aquelas/es de nós que gostariam de fazer de uma ética do amor o núcleo de toda interação humana. a única resposta” para os problemas enfrentados por esta nação e por todo o planeta. portanto.iniciativa”. Não sabendo amar. elas não veem alternativa. outras buscam definições. Ele define o amor como “a vontade de estender-se para o propósito de nutrir o crescimento espiritual de si mesmo ou de outrem”. Concluo. ser amoroso. Luther King acreditava que o amor é. As vendas de livros que se concentram na recuperação. O amor é o que o amor faz. Nos 5 . É realmente surpreendente que Luther King tivesse a coragem de falar. Compartilho essa crença e a convicção de que é na escolha do amor. Comentando sobre as atitudes culturais predominantes sobre o amor. a resposta é esmagadora. há muitas pessoas que reconhecem abertamente que são consumidas por sentimentos de auto-ódio. o empobrecimento do espírito significa que esta frieza e mesquinhez se tornam cada vez mais e mais infiltradas. Mas. elas estão presas demais por um desespero paralisante para serem capazes de se engajar efetivamente em qualquer movimento de mudança social. quando Cornel West e eu falamos com grandes grupos de pessoas negras sobre o empobrecimento do espírito na vida negra. que mantinha a frieza e a mesquinharia à distância. fora desses círculos. houve forças e tradições culturais. Historicamente. A igreja manteve estas forças à distância promovendo um sentido do respeito para com outrem. um senso de propósito e valor que encaminharia a batalha contra o mal. No entanto. especialmente. que se sentem sem valor. A institucionalização e comercialização da igreja têm minado o poder da comunidade religiosa em transformar almas. querendo uma saída. a falta de amor. se líderes de tais movimentos se recusam a enfrentar a angústia e a dor de suas vidas. como a igreja. a partilha de que podemos coletivamente recuperar-nos no amor. Isso só pode acontecer se abordarmos as necessidades do espírito na teoria e na prática política progressistas. um sentimento de solidariedade. intervir politicamente. a maioria das pessoas aprendia e cuidava das necessidades do espírito no contexto da experiência religiosa. No passado. Muitas vezes. falar de amor é garantir que alguém seja dispensado ou considerado ingênuo. Cornel West afirma: Há um perverso empobrecimento do espírito na sociedade estadunidense e. no contexto da luta pela libertação. terá sucesso. Comentando o sentido coletivo da perda espiritual na sociedade moderna.círculos políticos progressistas. Muitas vezes. As comunidades políticas que sustentam a vida podem proporcionar um espaço semelhante para a renovação do espírito. entre negros. No entanto. Qualquer movimento político que possa atender eficazmente a estas necessidades do espírito. nunca estarão motivadas/os a considerar a recuperação pessoal e política. As pessoas querem saber como começar a prática de 6 . A ordem social anseia por um centro (isto é. Trabalhando dentro da comunidade. Os Estados Unidos. Quando eu olho para a minha vida. com um olhar crítico. estão em busca de uma alma”. procurando por um plano que me ajudou no processo de descolonização. Sempre que aquelas/es de nós que são membros de grupos oprimidos se atrevem a interrogar criticamente nossas posições. Se descobrimos em nós mesmas/os auto-ódio. baixa autoestima ou um pensamento branco supremacista interiorizado e os enfrentamos. Para mim. Comentando este aspecto de seu trabalho no ensaio “Spirituality out on The Deep”. sei que foi aprendendo a verdade sobre como os sistemas de dominação operam que ajudou. também escolhemos viver em comunidade. e todas as entidades culturais. e isso significa que não temos que mudar apenas por nós mesmas/os. Movendo inteiramente a dor para o outro lado. poder e propósito. iniciamos o processo de descolonização. espírito. O teólogo afro-americano Howard Thurman acreditava que aprendemos melhor o amor como a prática da liberdade no contexto da comunidade. Escolhendo o amor. Luther Smith nos lembra que Thurman sentiu que os Estados Unidos foram dados a diversos grupos de pessoas pela força da vida universal. A consciência é central para o processo de amor como a prática da liberdade. uma vez que escolhemos o amor. é uma etapa necessária para o crescimento pessoal e político. Este é geralmente o estágio mais doloroso no processo de aprender a amar – o que muitas/os de nós procuram evitar. podemos começar a curar. ele escreve: “A verdade se torna verdadeira na comunidade. a liberdade de espírito trazidas por uma ética do amor. Novamente. encontramos a alegria. é onde a educação para a consciência crítica deve entrar. alma) que lhe conferira identidade.amar. Reconhecer a verdade de nossa realidade. aprendendo a olhar para dentro e para fora. como um local para a construção da comunidade. de auto recuperação pessoal e política. instintivamente possuímos os recursos interiores para enfrentar essa dor. tanto individual como coletiva. Podemos contar com a afirmação crítica e diálogo com companheiras/os andando por um caminho semelhante. seja compartilhando um projeto 7 . as identidades e lealdades que informam como vivemos nossas vidas. Parafraseando Thurman. Ao servir a outrem. você se move. e Howard Thurman advertiram contra o isolacionismo. A ética do amor enfatiza a importância do serviço para outrem. aprendemos a amar doando serviço. pois eles são “dons que nós requeremos agora na cura de nosso mundo”. você percebe que não é uma batalha entre os bons e maus. ou com um grupo maior. uma dimensão do que Peck significa quando fala de estender-se para outrem. somente mostraremos uma imagem parcial. O serviço fortalece nossa capacidade de conhecer a compaixão e aprofunda nossa percepção. como Septima Clark. você sabe que as ações empreendidas com intenção pura têm repercussões em toda a rede da vida. as dificuldades. Dentro do sistema de valores dos Estados Unidos. Este apelo à 8 . somos capazes experimentar alegria na luta. não apenas para as/os que sofrem e oprimidas/os. além do que você pode mensurar ou discernir. Martin Luther King Jr. Você precisa ter compaixão porque ela lhe dá o combustível. Com a percepção de nossa profunda inter-relação. Essa alegria precisa ser documentada. não posso vê-las/os como um objeto: devo ver sua subjetividade. a budista Joanna Macy escreve que precisamos de armas de compaixão e discernimento. Incentivaram as pessoas negras a olharem para além de nossas próprias circunstâncias e assumirmos responsabilidade pelo planeta. Em parte. Fannie Lou Hamer. Quando você se abre para a dor do mundo.com outra pessoa. a paixão para mover. Macy ensina que a compaixão e a percepção podem “sustentar-nos como agentes de mudança saudável”. você age. Porque se nos concentrarmos apenas na dor. o poder. qualquer tarefa ou trabalho relacionado com o “serviço” é desvalorizada. O movimento dos direitos civis tinha o poder de transformar a sociedade porque indivíduos que lutavam sozinhos e em comunidade por liberdade e justiça procuravam essas dádivas para todos. Esta é. Compartilhando o ensino dos guerreiros Shambala. Líderes negras/os visionárias/os. mas que a linha entre o bem e o mal passa pela paisagem de cada coração humano. Ela pode te queimar. que certamente são reais em qualquer processo de transformação. Mas essa arma não é suficiente. Com essa sabedoria. novamente. então você precisa de outrem – você precisa entender a radical interdependência de todos os fenômenos. Luther King diz-nos que “o fim é a reconciliação. a fim é a redenção. Isso leva além da resistência à transformação. da nação. Meu coração se eleva quando leio o ensaio de Luther King. Quando massas de pessoas negras começam a pensar apenas em termos de “nós e eles”. começamos a nos mover para a liberdade. devemos reafirmar nosso compromisso com uma visão do que Luther King mencionou no ensaio “Facing the Challenge of a New Age” como um genuíno compromisso com “liberdade e justiça para todas/os”. 9 . Ao escolher amar. da tribo. contra a opressão. era um constante convite para expansão pessoal e crescimento. começamos a nos mover contra a dominação. da raça.comunhão com o mundo além do eu. No momento em que escolhemos amar. Essa ação é o testemunho do amor como a prática da liberdade. a capacidade de empatia necessária para a construção da comunidade fora diminuída. internalizando o sistema de valores do patriarcado capitalista da supremacia branca. a agir de maneiras que libertem a nós mesmas/os e a outrem. pontos cegos são desenvolvidos. Para curar nosso corpo político ferido. lembro-me de onde nos leva a verdadeira libertação. o fim é a criação da comunidade amada”.
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