A CULTURA DAS CIDADES In: ROGERS, Richard. Cidades para um pequeno planeta. Barcelona, G. Gilli, 2005. págs. 1-23.Em 1957, o primeiro satélite era lançado na órbita da Terra. Isso nos oferecia uma posição privilegiada, a partir da qual podíamos olhar para nós mesmos e assinalar o começo de uma nova consciência global, uma mudança dramática no nosso relacionamento com o planeta. Vista do espaço, a beleza da nossa biosfera é fantástica - mas é fantástica também sua fragilidade. As manchas da poluição, as feridas do desmatamento, as cicatrizes da industrialização e a expansão caótica de nossas cidades são evidências de que, na nossa busca por riqueza, estamos sistematicamente espoliando todos os aspectos do sistema de apoio à vida do planeta. A sobrevivência da sociedade sempre dependeu da manutenção do equilíbrio entre as variáveis de população, recursos naturais e meio ambiente. O desleixo para com este princípio foi desastroso e as conseqüências, fatais para antigas civilizações. Da mesma forma, estamos sujeitos às leis de controle da sobrevivência, entretanto, somos os primeiros a constituir uma civilização global e, portanto, os primeiro que enfrentam, simultaneamente, a expansão da população a nível mundial, a destruição dos recursos naturais e do meio ambiente. Enquanto escrevo, cerca de 400 satélites equipados com instrumentos de verificação do tempo, estudo das zonas litorâneas, processos polares e marítimos monitoram constantemente a vegetação e a atmosfera, apontando os efeitos da poluição e da erosão. Os dados coletados têm um papel crucial, proporcionando corretas verificações e constatações de padrões geológicos em modificação, aquecimento global e destruição da camada de ozônio. Eles estão testemunhando a conformação de uma catástrofe ambiental de uma magnitude jamais enfrentada pela humanidade. A longo prazo, os resultados dos níveis atuais de consumo ainda não estão claros, mas devido à falta de precisão científica em relação a seus efeitos, meu argumento é que devemos usar o 'princípio da precaução' e tomar alguma atitude para garantir a sobrevivência de nossa espécie neste planeta. 1 está bebendo a água de seus dois rios secos. enquanto o grande congestionamento de trânsito de Londres causa hoje maior poluição do ar do que a queima de carvão. A cidade do México. a poluição das cidades já reduziu a produção das plantações em quase 10%. o habitat da humanidade. presidente do comitê sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas. e os padrões. Nos Estados Unidos. literalmente. já que são as nossas cidades que ocasionam esta crise ambiental. sobretudo para um arquiteto. o urbanismo e o planejamento urbano possam. É uma ironia que as cidades. esta é uma revelação chocante. adverte sobre os efeitos igualmente desastrosos dos atuais níveis da produção desses gases. antes da lei pela qualidade do ar. Todas são 2 . caracterizem-se como o maior agente destruidor do ecossistema e a maior ameaça para a sobrevivência da humanidade no planeta. e. Acredito piamente que a arquitetura.Sem dúvida. Enquanto não houver diminuição no ritmo de crescimento das aglomerações urbanas. o simples fato de morar em uma cidade não deveria conduzir à autodestruição da civilização. o Clean Air Act. Hoje. Este livro tentará demonstrar que as cidades futuras podem ser o trampolim para restaurar a harmonia da humanidade com seu meio ambiente. evoluir ainda mais para nos proporcionar ferramentas cruciais para garantir nosso futuro. A população urbana vem aumentando a uma taxa de 250 mil pessoas por dia . através da criação de cidades com ambientes sustentáveis e civilizados. ineficientes de moradia estão acelerando a taxa de aumento da poluição e erosão. No Japão. no período anterior a 1956. por todo o mundo. O crescimento da população urbana. da tecnologia das comunicações e da produção automatizada. metade de toda a população mundial vive em cidades e num prazo de 30 anos. As cidades geram a maioria dos gases causadores do efeito estufa e figuras respeitadas do establishment como sir John Houghton. esta proporção poderá atingir até três quartos dos habitantes do planeta. Em 1900 apenas um décimo da população mundial vivia em cidades. grosso modo. pela primeira vez na história. por um ar limpo. o lixo da cidade de Tóquio chega a um valor estimado de 20 milhões de toneladas por ano. A causa do meu otimismo vem de três fatores: o aumento da conscientização ecológica.grosseiramente o equivalente a uma nova Londres a cada mês. lixo que já saturou toda a baía de Tóquio. água potável. intitulado Nosso Futuro Comum (Our Common Future) propôs o conceito de 'desenvolvimento sustentável' como espinha dorsal de uma política econômica global: atender às nossas necessidades atuais sem comprometer as futuras gerações e dirigir ativamente nosso desenvolvimento em favor da maioria do mundo . aumento do uso de automóveis. a capacidade das cidades está sendo solicitada até o limite. portanto. O objetivo final do desenvolvimento econômico sustentável é deixar para as futuras gerações uma reserva de capital natural igualou maior que nossa própria herança. acarretando desequilíbrio ambiental. De fato. nossos padrões de comportamento econômico e social são as causas principais do seu desenvolvimento. camada de ozônio efetiva. Os meios propostos para garantir a proteção deste capital natural são normas reguladoras que. sem qualquer custo. construção de estradas. os benefícios oriundos dessa posição possuem um potencial tão grande que a sustentabilidade do meio ambiente deve transformar-se no princípio orientador do moderno desenho urbano. a migração das pessoas e atividades dos centros urbanos tradicionais para o sonhado mundo dos bairros residenciais distantes levou a um enorme desenvolvimento dos subúrbios. mais importante ainda. artistas e cidadãos clamam pela integração da perspectiva global nas estratégias para o futuro. filósofos. cientistas. políticos. sua expansão se dá em tal índice que os padrões tradicionais de acomodação do crescimento urbano tornaram-se obsoletos. Se as cidades estão destruindo o equilíbrio ecológico do planeta. economistas. O relatório das Nações Unidas. Por todo o mundo. Tanto nos países industrializados quanto nos países em desenvolvimento. Nos países desenvolvidos. O âmago desse conceito de desenvolvimento sustentável está na redefinição da riqueza para incluir o capital natural: ar limpo. Em nenhum outro lugar a implementação da 'sustentabilidade' pode ser mais poderosa e benéfica do que na cidade. congestionamento e 3 . mar sem poluição. urbanistas.condições que contribuem para o desenvolvimento de uma cultura urbana pósindustrial socialmente responsável e ambientalmente consciente.os mais pobres. terra fértil e abundante diversidade de espécies. devem fixar um preço adequado para uso do capital natural. patrimônio que anteriormente havia sido considerado ilimitado e. sendo abandonados e isolados em guetos nos centros urbanos. portanto. Os melhores exemplos são as cidades do oeste dos Estados Unidos. caracterizadas por desigualdades. com preocupação ínfima em relação ao impacto social e ambiental futuro. sofrerem intensa privação social e causarem danos ainda maiores ao meio ambiente. E as cidades estão destinadas a abrigar parcelas cada vez maiores dessas populações. No mundo desenvolvido. Apesar do aumento global da riqueza. Cidades que conviveram com guerra civil. como Los Angeles. saúde comprometida. E em todos os lugares. novas cidades estão sendo construídas num ritmo e densidades fenomenais. ensino de má qualidade. que alienaram da corrente principal da vida grandes parcelas de sua população. As cidades estão produzindo uma instabilidade social desastrosa e levando a um declínio ambiental adicional. expostos a níveis extremos de pobreza ambiental. Em geral. o ciclo de destruição e poluição. Portanto. os mais pobres são excluídos da sociedade de consumo. enquanto nas cidades em desenvolvimento eles são relegados à miséria das favelas sempre crescentes. Pobreza. como Phoenix e Las Vegas. injustiça social em todas as suas formas minam a capacidade de uma cidade de ser sustentável do ponto de vista ambiental. que buscam o lucro como motivação maior. como São Paulo. No mundo desenvolvido. Enquanto isso. Por todo o mundo. uma vez que as questões sociais e ambientais estão entranhadas. como Beirute. nas economias de crescimento rápido do mundo desenvolvido. há cidades que abrigam comunidades com intensas 4 . há uma migração rural da população mais pobre para essas novas cidades. cresce o grau de pobreza e o número de pobres no mundo. perpetuando. cidades assim prejudicam o meio ambiente em detrimento de todos. conflitos . com graus extremos de pobreza. o número de moradores 'ilegais' ou 'não oficiais' extrapola os números oficiais. Muitos deles estão vivendo nos ambientes mais desfavoráveis. Não pode existir harmonia urbana ou melhoria ambiental real sem paz e garantia da aplicação dos direitos humanos básicos. como Bombaim. que ultrapassa em muito o aumento da população. a situação da população pobre é amplamente negligenciada.em resumo. não deveria ser surpresa o fato de sociedades e cidades.poluição do ar. desemprego. que quase não nos lembramos que elas existiam em primeiro lugar. medo da violência ou congestionamento e poluição do que de comunidade. e retirando o verdadeiro significado do conceito de cidadania. De fato. geralmente as cidades não conseguem ser vistas sob esta ótica. A complexidade da comunidade foi desvendada e a vida pública foi dissecada em 5 . No mundo desenvolvido este conflito está levando os cidadãos a enclausurarem-se em territórios particulares protegidos. São necessários novos conceitos de planejamento urbano para integrar as responsabilidades sociais. Quando perguntadas sobre as cidades. A busca deste objetivo estreito minou a cidade em sua vitalidade. As cidades cresceram e transformaram-se em estruturas tão complexas e difíceis de administrar. A falta de eqüidade básica é a força que incessantemente mina as tentativas de harmonização da sociedade e humanização de suas cidades. A cidade tem sido encarada como arena para o consumo. e agir em confortável isolamento destes centros de desolação. provavelmente as pessoas irão falar de edifícios e carros. o domínio público nas cidades. isolamento. é uma visão extremamente míope e distorcida. as cidades garantem a estrutura física para uma comunidade urbana. A conveniência política e comercial deslocou a ênfase do desenvolvimento urbano de atender às necessidades mais amplas da comunidade para atender às necessidades circunscritas de indivíduos. Se nada for feito.privações sociais. Nas últimas décadas e por todo o mundo. tem sido negligenciado ou dilapidado. e acima de tudo. Além de oportunidades de emprego e riqueza. participação. segregando ricos e pobres. seus problemas ecológicos e sociais logo dominarão a cena mundial. beleza e prazer. os espaços públicos entre os edifícios. em vez de falar de ruas e praças. Este processo aumentou a polarização da sociedade e criou mais pobreza e alienação. A idéia de que os ricos podem continuar a dar as costas para a poluição e a pobreza destas cidades. para satisfazer as necessidades humanas e sociais das comunidades. Se perguntadas sobre a vida na cidade. Provavelmente dirão que os conceitos 'cidade' e 'qualidade de vida' são incompatíveis. falarão mais de distanciamento. mas é nas cidades de crescimento rápido do mundo em desenvolvimento que essa crise está se expandindo da forma mais rápida possível. animação. a rua animada. em vez de basear-se em interelações e comunidade. o café na calçada. o parque. No primeiro tipo de espaço. O segundo espaço. concebido como multifuncional. a rotatória. encontrar e participar. Os negócios são isolados e agrupados em centros empresariais. o conjunto habitacional. O bairro residencial distante. as lojas são agrupadas em shopping centers 6 . Os espaços monofuncionais atendem ao desejo moderno de autonomia e consumo particular e são eficientes sob este aspecto. acabamos vendo a primeira categoria eclipsar a segunda. a zona industrial. Mas a praça lotada. as cidades estão polarizando a sociedade em comunidades segregadas. as atividades que tradicionalmente se sobrepõem são organizadas com o objetivo de maximizar o lucro para incorporadores e comerciantes. O resultado desta tendência é o declínio da vitalidade de nossos espaços urbanos. todos representam usos do espaço multifuncional. nesta época global de democracia em ascensão. Nestes novos tipos de desenvolvimento urbano. o shopping center e mesmo o automóvel criam espaços monofuncionais. O espaço multifuncional deu lugar ao espaço monofuncional. estamos apressados. como o nome diz. cada vez mais. As duas categorias têm um papel a desempenhar na cidade. foi pensado para uma variedade de usos. em geral. a ênfase encontra-se no egoísmo e na separação. descreve um conceito de espaço urbano que preenche uma única função e geralmente é produzido como conseqüência de decisões tomadas por incorporadores ou planejadores antiquados. o estacionamento.componentes individuais. a passagem subterrânea. identidade e respeito mútuo. o centro empresarial. Atualmente. espaços multifuncionais nos trazem algo em comum: reúnem partes diferentes da cidade e desenvolvem um sentimento de tolerância. e em seu encalço estamos testemunhando a destruição da própria idéia de cidade abrangente. O primeiro. no processo de planejar as cidades para atender aos padrões inexoráveis de demanda particular. o mercado. Paradoxalmente. consciência alerta. Contudo. participantes e usuários. O cientista político Michael Walzer classificou o espaço urbano em dois grupos distintos: espaços monofuncionais e multifuncionais. no segundo estamos sempre prontos a olhar. Em contraste. considerado seguro. as pessoas prezam sua conveniência. O policiamento natural ou espontâneo das ruas. a universidade transforma-se em campus fechado e. nossos espaços públicos passam a ser percebidos como realmente perigosos e o medo entra em cena. bairros dormitórios de classe média. O mercado da rua torna-se menos atrativo que o shopping. tomadas por carros particulares encerrados ou pedestres apressados. Desaparece a cidadania . uma classe a ser banida. e as multidões que lotam os centros urbanos nos finais de semana são testemunhas deste fato. aquele produzido pela própria presença das pessoas.a noção da responsabilidade compartilhada por um ambiente .e a vida na cidade torna-se dividida. As cidades foram originalmente criadas para celebrar o que temos em comum. o domínio do espaço público multifuncional sai de cena. mostram de forma mais clara essa 7 . já que há guardas em todos os portões de acesso. as casas. por sua vez. À medida que a vitalidade dos espaços públicos diminui. Logo. são projetadas para manter-nos afastados uns dos outros. Aqueles que não têm dinheiro podem ser comparados aos 'sem passaporte'. fortemente policiados. Inevitavelmente. As pessoas com mais posses se trancam ou mudam de cidade e. mas também anseiam por uma vida pública genuína. As cidades dos Estados Unidos. são agrupadas em bairros residenciais e conjuntos. à medida que este processo se espalha por toda a cidade. nestes espaços fechados e privatizados. as atividades tornam-se ainda mais divididas em territórios. O desaparecimento de espaços públicos multifuncionais não é apenas um caso a ser lamentado: pode gerar terríveis conseqüências sociais dando início a um processo de declínio. Como resposta. com os ricos situados em territórios protegidos e os pobres fechados em guetos ou favelas. em geral inchadas por subúrbios. Hoje em dia. Agora. perdemos o hábito de participar da vida urbana da rua. as ruas e praças da cidade são esvaziadas de sua vida comercial e tornam-se nada mais que uma terra de ninguém. grandes shoppings e centros empresariais. os pobres são proibidos de entrar. é substituído pela segurança oficial e a própria cidade torna-se menos hospitaleira e mais alienante.com 'ruas internas'. com seus inúmeros guetos. cercas altas. Toda uma rede de ruas subterrâneas . um grande aterro sanitário. grades e portões imponentes. Aqui. depósito de dejetos radioativos e poluentes. criando um distanciamento e alienação ainda maiores entre o indivíduo e sua cidade. a polícia de Los Angeles investiga mais assassinatos do que qualquer outra polícia local no país. Em Los Angeles o carro transformou-se numa fortaleza móvel. que não se sustenta apenas em limites físicos. sobretudo. Nos seus arredores há o chamado Cinturão Tóxico. bloqueia-se o acesso. palco de inúmeros tumultos nas últimas décadas. As janelas. ironicamente chamado de sistema de ligação. acionam-se vedações à prova de balas e venezianas antibomba. As ruas repletas de carro são deixadas para os pobres e os desempregados. Nesse distrito. é inteiramente privado. mal deixam ver os passageiros. Ao toque de um simples botão. A situação em Houston é quase tão perturbadora quanto em Los Angeles. o escritor Mike Davis descreve como Los Angeles. emerge um novo tipo de cidadela. Na Califórnia. além desse setor situa-se o distrito empresarial. Em direção ao centro. mas. as portas podem ser travadas instantaneamente. Finalmente. Enfim. passa-se pelos chamados subúrbios residenciais.tendência de divisão.mais de dez quilômetros . Não se pode ter acesso a ele da rua. com filme escurecedor. Este labirinto. enquanto os profissionais de grande poder aquisitivo fazem compras e fecham 8 . mas somente através de saguões de mármore dos bancos e das empresas de petróleo que dominam Houston.existe sob o distrito empresarial do centro da cidade. câmaras de vídeo e outros equipamentos de segurança monitoram qualquer pedestre que entre naquela área. em equipamento eletrônico invisível. os vidros à prova de balas protegem seus ocupantes contra ataques armados. até chegar a uma área central de guetos e gangues. cresceu cada vez mais segregada e até mesmo militarizada. com portões de acesso rigidamente controlados e uma zona autopoliciada com residências de classe média. O resultado é a criação de outro tipo de gueto urbano. A aparência de 'certo tipo de pessoa' dá início a um pânico discreto: câmaras de vídeo viram-se para ela e guardas de segurança ajustam seus cintos. de familiaridade e surpresa. Admiro seus espaços grandiosos. A beleza cívica é o resultado do compromisso social e cultural das comunidades de uma sociedade urbana. bares e catedrais. a mistura de comunidade e anonimato. mas também em gestos espontâneos e de pequena escala. a procura crescente pela segurança privada e pelo transporte individual e a proliferação de espaços monofuncionais. Ao caminhar pelos grandes espaços públicos da Europa . Observamos também o deslocamento para bairros residenciais afastados e a pobreza crescente na área urbana central. concentram e condensam energia física.a Gallería coberta em Milão. porque facilitam o trabalho e são a sementeira de nosso desenvolvimento cultural. Qualquer tentativa de reverter a situação deve depender da percepção do indivíduo de que pertence à cidade e da mobilização de todos os habitantes. lojas e casas que torna os bairros vivos.seus negócios com o conforto e a segurança de um ambiente com ar condicionado. Juntos. lojas e teatros. É uma força dinâmica que colore todos os aspectos da vida urbana até o projeto de seus edifícios. eles criam a rica diversidade da vida urbana. bem como a animação que simples cafés ou bares de calçada trazem às ruas. As cidades permanecem sendo o grande imã demográfico de nossos tempos. as Ramblas em Barcelona. Este compromisso é absolutamente essencial para a concretização da noção de cidade sustentável. As cidades são centros de comunicação. Embora as cidades inglesas e européias ainda não tenham chegado a esse ponto. intelectual e criativa. os parques de Londres ou os espaços públicos cotidianos dos mercados e bairros – sinto-me parte da comunidade local. A cidadania manifesta-se em gestos cívicos planejados e de grande escala. percebem-se tendências similares. É fantástica sua combinação de idades. Os 9 . Elas abrigam grandes concentrações de famílias. São lugares de atividades e funções muito diversificadas: exposições e manifestações. e até mesmo o senso de perigosa efervescência. Acredito piamente na importância da cidadania e na vitalidade e humanidade que ela estimula. aprendizado e empreendimentos comerciais complexos. culturas e atividades. A vitalidade informal do espaço público é a mistura de espaços de trabalho. raças. expressão artística grandiosa da cultura helênica e os catalisadores do seu rico desenvolvimento humanista. A ágora. da prioridade que ambos dão à criação e manutenção de um ambiente urbano e humano. cenário da corrida de cavalos do Palio. o estádio. no centro de Siena. estes espaços pertencem ao cidadão e completam a totalidade da esfera pública. Devem sentir que o espaço público é responsabilidade e propriedade da comunidade. o sucesso de uma cidade depende de seus habitantes e do poder público. entre o Centro e a Praça Beaubourg.italianos têm. os templos. é o elemento que pode agregar uma sociedade urbana. uma palavra especial que descreve a forma como homens. uma instituição com seus próprios direitos que. As cidades só podem refletir os valores. Uma cidadania ativa e uma vida urbana vibrante são componentes essenciais para uma cidade e uma boa identidade cívica. Quando as autoridades de Paris nos permitiram destinar metade da área inicialmente programada para o Centro Pompidou. tais como Jamaa EI Afna. o teatro e os espaços públicos entre eles eram. Da ruela mais modesta até a grande praça cívica. em Marraquesh. O compromisso com a interdependência entre forma construída e os ideais foi 10 . a um só tempo. É onde os cidadãos desempenham seus papéis. compromissos e resoluções da sociedade que abrigam. pode aumentar ou frustrar nossa existência urbana. Os atenienses da Grécia antiga reconheciam a importância da cidade e o papel que ela desempenhava no estímulo da moral e democracia intelectual de seu tempo. com efetiva vida pública e regenerou toda a área em seu entorno. Para minha grande satisfação. mulheres e crianças interagem com o espaço público da cidade à medida que caminham pelas ruas e praças à noite: é a passeggiata. os cidadãos devem estar envolvidos com o processo de evolução de suas cidades. para uma piazza pública. A idéia de integrar uma praça pública vibrante no projeto do Centro Pompidou já surgira de nossa experiência com espaços públicos históricos. A esfera pública é o teatro de uma cultura urbana. criou um local vibrante. Portanto. acabaram encorajando este tipo de cidadania. a relação entre edifício e espaço público. como qualquer outra. Piazza San Marco em Veneza e o Campo. inclusive. onde eles estejam desconsiderados. Para recuperar estes aspectos. os tremendos e caóticos resultados produzidos. Esta é a dicotomia da cidade: seu potencial para embrutecer e para refinar. Le Corbusier. A relação entre cidade e harmonia cívica é bem definida. Mas de fato. Para responder às necessidades de uma cidade moderna. portanto. É essencial ainda um fortalecimento da participação do cidadão e das lideranças. Não é de surpreender. É muito grave situar a cultura das cidades em segundo plano na agenda política.que iriam estimular uma melhor cidadania e capacitariam a sociedade para superar seus traumas. porém maior. Thomas Jefferson. Buckminster Fuller e muitos outros propuseram cidades ideais que. as cidades também podem nos inspirar. estas tentativas arquitetônicas no campo da Utopia poderiam nos lembrar que. O envolvimento da população nas tomadas de decisões pressupõe que o ambiente construído torne-se uma parte básica da formação e um componente importante do nosso currículo nacional de educação. melhor e mais bonita do que aquela que nos foi deixada". As cidades são o berço da civilização. A riqueza tornou-se um fim em si mesma. Frank Lloyd Wright. A qualidade do ambiente urbano define a qualidade de vida para os cidadãos. numa época democrática. em tantos lugares. as mais recentes transformações das cidades refletem o compromisso da sociedade na busca de riquezas pessoais. deve-se desenvolver uma nova forma de cidadania. em vez de firmar-se como um meio de atingir metas sociais mais amplas. Ensinar as crianças a respeitar seu ambiente urbano cotidiano é uma forma de prepará-las 11 .compreendido no juramento feito pelos novos cidadãos: "Deixaremos esta cidade não menor. os condensadores e motores de nosso desenvolvimento cultural. A construção de nosso habitat continua a ser dominada pelas forças do mercado e imperativos financeiros de curto prazo. Uma vez que tais visões de cidade não são mais relevantes para a diversidade e complexidade da sociedade moderna. Ebenezer Howard. porque embora elas sejam lugares onde a vida pode ser bem precária. Leonardo da Vinci. O que me deixa perplexo é que. segundo acreditavam. a arquitetura contemporânea e o planejamento deveriam estar sendo cobrados a expressar nossos valores sociais e filosóficos comuns. criariam sociedades ideais . o ambiente construído continue sendo considerado como uma questão política fortuita. Vitrúvio. É nosso dever buscar recursos para interessar e informar o público. um tema ligando física. mas esta é apenas a ponta do iceberg. tivemos dez concursos públicos de projeto enquanto que a França teve 2. além de concursos internacionais (freqüentemente envolvendo o próprio presidente) para garantir que a França abrigue o melhor da arquitetura internacional. Na Grã-Bretanha. 12 . A noção de cidade sustentável em termos ambientais deve estar no âmago das disciplinas ensinadas. especialistas no tema e arquitetos.da ecologia à arquitetura -. uma praça local. arte e história. O presidente francês François Miterrand afirmou que 'a cultura'. a cidade é em seus muitos aspectos . ensinar uma boa cidadania aos velhos e aos jovens. Na França. era o quarto aspecto mais importante na questão eleitoral na França (temo só de pensar em que nível os políticos britânicos colocariam a cultura). talvez estejamos conscientes apenas das maiores e mais importantes iniciativas francesas recentes. eles têm uma geração de jovens e talentosos arquitetos que. membros da comunidade local. quase sem exceção. As próprias cidades podem representar uma grande ferramenta. uma escola. não realizou qualquer trabalho público no país. Vejamos o contraste entre esta situação e a da Grã-Bretanha. Em inúmeros locais. onde os contribuintes gastam 4 bilhões de libras por ano. Para aqueles desanimados diante da tarefa aparentemente intransponível de obter controle democrático de suas cidades. e contudo o governo federal não tem uma política de arquitetura. acrescento que por todo o mundo há exemplos bastante animadores. em seus edifícios públicos. Os britânicos reclamam de sua arquitetura e.para participarem do amplo processo de respeitar e melhorar a cidade. Há pequenos concursos previstos para encorajar os jovens talentos. biologia. uma agência de correios. Em 1992. seja um conjunto residencial. e ouvir os cidadãos. uma questão eleitoral e de debate público. realizam-se concursos para cada edifício público. um representante dos usuários. Todos os concursos locais de algum significado são decididos por um júri composto pelo prefeito. num nítido contraste com a desconsideração com que é tratada na Grã-Bretanha. um laboratório vivo para a educação. Muito de nossa futura qualidade de vida depende de fazer tudo isso de forma correta. e particularmente a arquitetura.000. como os Grandes Projetos de Paris. no entanto. um parque ou toda uma cidade nova. que foi muito além da criação de equipamentos e instalações para os jogos. A cidade almeja crescer como uma estrutura celular. que assegura a coerência social do todo. englobando desde educação e comércio. que havia 13 . os cidadãos sentem-se. a criação de ‘150 novas praças públicas’. Um plano estratégico global define as principais direções de crescimento escolhidas pela comunidade. Roterdã nos dá um exemplo de harmonia entre ações patrocinadas pelo governo e desenvolvimento orientado pela comunidade. em vez de sempre que alguém quiser ou puder comprar um local. Pasqual Maragali. O prefeito. lojas e residências. ao final do período de Franco seguiu-se a eleição de prefeitos municipais e. e seu secretário. de três a cinco mil pessoas com locais de trabalho. Roterdã evita se dividir em zonas segregadas e comunidades isoladas. dividindo-se e reproduzindo-se em vizinhanças diversificadas.É lamentável observar tantos talentos sendo desperdiçados hoje em dia e uma herança arquitetônica medíocre sendo deixada para as futuras gerações. o arquiteto Oriol Bohigas. Como descreverei adiante. Curitiba. um novo mobiliário urbano para as ruas e. conseguiu lidar com seus problemas de crescimento e consolidação. significativamente. então sem vida e deteriorada. A conversão de suas docas é assunto de estudos. Ao menos um terço de cada nova comunidade consiste no desdobramento dos núcleos vizinhos. Foram selecionados alguns dos mais importantes arquitetos do mundo para implementar o mais ambicioso plano de desenvolvimento urbano conhecido: a recuperação de sua área industrial. em Barcelona. na cidade e em volta dela. escolas. a liderança do prefeito eleito e o grande apoio popular transformaram a cidade por completo. A maioria da terra firme. cidade brasileira em rápida expansão. de fato. utilizaram o fato da cidade sediar os jogos olímpicos de 1992 como catalisador para uma reforma visionária. Incluía o estabelecimento de um plano diretor estratégico para toda a cidade. até transporte e planejamento. Na Espanha. Graças à participação pública e a líderes de visão. discussões e colaborações contínuas. Por sua vez. a cidade buscou implementar políticas para aumentar a consciência social e ambiental. é propriedade pública e pode ser dada à comunidade quando e onde houver necessidade. como donos de sua cidade e responsáveis pelo seu futuro. Como resultado. mas havia a oportunidade de decidir sobre o próprio contexto urbano: quanto espaço de escritório deveria ser permitido? Que plano de regeneração seria melhor? Que estratégia de transporte deveria ser adotada? Com isso. Barcelona transformou-se em uma cidade privilegiada. ao mesmo tempo. elas provam que a participação popular aliada a um efetivo compromisso do poder público podem transformar a estrutura social e física de nossas cidades. Nos parágrafos anteriores. de antecipar e resolver seus problemas. Através desse processo democrático. Seattle e Portland incluíram a participação pública no processo de planejamento urbano em seu processo eleitoral. O resultado devolveu à cidade o mar ao longo de uma imensa faixa costeira. foram abordados alguns dos problemas que as cidades contemporâneas enfrentam e como o compromisso dos cidadãos contribui para melhorar essa situação. os habitantes sentiam que tinham controle e envolvimento sobre os destinos de suas cidades. As práticas citadas ilustram como as sociedades urbanas estão desenvolvendo estratégias adequadas a sua cultura e necessidades específicas. onde as pessoas têm vontade de trabalhar. morar ou visitar. vêem os benefícios globais de melhorias a longo prazo na cidade e reconhecem a importância do interesse público. Maragall criou uma estrutura em que o setor privado tem vontade de se adaptar à liderança pública. construídas às margens do Tigre e do Eufrates. há um pressuposto fundamental: os cidadãos querem interferir na conformação de suas cidades. Durante as eleições locais não se escolhia apenas um candidato. capaz de construir uma cidade espacial. As cidades de San Francisco. deve-se buscar de forma ainda mais concreta o desenvolvimento da tecnologia e as inovações que protejam nossa ecologia e humanizem nossas cidades. 14 . porque os incorporadores. De forma enfática.separado a cidade do mar. de uma época que contemplava as primeiras cidades. Além da implantação de projetos específicos. Paralelamente. O grande trunfo da humanidade tem sido sua capacidade de transmitir os conhecimentos acumulados de geração em geração. Em cada uma delas. É espantoso e bastante inspirador que apenas algumas centenas de existências separem nosso tempo atual. o espaço entre a invenção da bicicleta e as viagens espaciais é de apenas duas gerações. que Berman expôs de forma tão brilhante. econômicos e religiosos que acompanharam essa evolução tecnológica. Na sua análise da modernidade durante os séculos XIX e XX. Atualmente. O poder de transformar e mudar o mundo.este é o acordo de Fausto. de acordo com seus cálculos. Em 1798. Tudo que é sólido desmancha no ar. o economista Malthus alertava que. estanques. Afinal. a tecnologia se desenvolve ainda mais rapidamente e oferece oportunidades ainda maiores. a população da Grã-Bretanha quadruplicou. a taxa de crescimento da população mundial estava excedendo a própria capacidade da terra de alimentar as gerações futuras. com seu conjunto de antigos e veneráveis preconceitos e opiniões. as leis do mercado é que comandam o jogo. de confrontar velhos valores com os novos. Mas a 'mão invisível' do mercado não é uma força natural ou do homem. tudo que é sagrado é profanado. e menos de uma geração separa a invenção do primeiro computador eletrônico e o desenvolvimento da rede mundial de computadores.A tecnologia e nossa habilidade em prever o futuro transformaram nosso mundo e. tem a responsabilidade de concentrar a dinâmica da vida moderna. e os homens finalmente são forçados a enfrentar as reais condições de suas vidas e as relações com seus semelhantes". sua forma 15 . Ficou provado que ele estava errado porque suas estimativas haviam sido feitas sem o notável potencial da tecnologia. mas os avanços tecnológicos aumentaram catorze vezes a produção agrícola. A sociedade. é viver esta vida de paradoxos . A ânsia que nos conduz é contrabalançada pela consciência de nossa habilidade em destruir. diante de dados terríveis. Abrir-se a mudanças sempre acarreta incertezas e riscos. Neste redemoinho. na forma de seus governos e outras instituições. de dirigir a aplicação de nova tecnologia. define nossa condição moderna. são varridas. Ser moderno. Ele cita a condição moderna descrita por Marx: “Todas as relações fixas. freqüentemente. portanto. Marshall Berman nos lembra do desafio para os valores tradicionais sociais. A cidade é a corporificação da sociedade. ou nós mesmos. e todos os novos valores tornam-se antiquados mesmo antes de se solidificarem. Nos cem anos seguintes à sua terrível predição. mas não pelo seu uso desvairado. educação. medicina. está fazendo mau uso da tecnologia. A agência de desenvolvimento da ONU estima que. empresta à sociedade moderna seu maior potencial. Robótica. será o mesmo número de pessoas que o fizeram desde o início da civilização. para outro que tem objetivo de tornar as cidades sustentáveis. A velocidade das mudanças tecnológicas. no comércio. esperança e liberdade para todos. comunicação global . o número de pessoas buscando melhor qualificação. Os problemas das cidades de hoje não são o resultado de um desenvolvimento tecnológico excessivo. na arquitetura e no planejamento urbano. Também faz mau uso da tecnologia. ou com a qualidade de vida de seus cidadãos. através da educação formal. E isso exige mudanças fundamentais no comportamento humano. e sobretudo sua amplitude de disseminação.proporcionam as condições para o desenvolvimento de uma nova forma de cidadania criativa. Sou aficionado pela tecnologia. O empresário que constrói apenas em busca de retorno financeiro. sem romper os limites de um ambiente sustentável. sem qualquer compromisso com o meio ambiente urbano. nos próximos trinta anos. Acredito que uma cidade sustentável pode proporcionar a estrutura para a realização desses direitos humanos básicos. A robótica situa nossa geração em uma posição de colher os benefícios decorrentes de uma maior riqueza per capita com menos trabalho. água. O desafio que enfrentamos é mudarmos de um sistema que explorar o desenvolvimento tecnológico por puro lucro. saúde. comida. sem qualquer preocupação com questões sociais ou ambientais mais abrangentes. um profissional que projeta uma via de tráfego intenso pelo meio da cidade. que gera riqueza para a sociedade. Este ideal é o fundamento de meu enfoque para uma cidade sustentável: a mobilização 16 .todas manifestações de nosso desenvolvimento tecnológico . o trabalho está tirando menos de nossas vidas.deve ser sempre vista em relação a nossos objetivos sociais. na prática do poder público. deve buscar assegurar direitos humanos universais e garantir abrigo. educação. A tecnologia deve ser utilizada pelo cidadão para beneficiar o próprio cidadão. Pela primeira vez desde a revolução industrial. mas de uma excessiva aplicação equivocada. do pensamento criativo e da tecnologia para garantir o futuro da humanidade neste pequeno planeta de recursos finitos. 17 . É uma inovação que teria. um impacto tão radical quanto aquele da revolução industrial sobre a cidade do século XIX. na cidade do século XXI.